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Poesia e fome dos modernistas na preservação de Ouro Preto

Reza a lenda que foi mais ou menos assim: depois de passarem o dia subindo e descendo ladeiras, tropicando em capistranas escorregadias e parando para observar passarinhos e folhagens, altares e oratórios, os dois burocratas enfim chegam ao restaurante do Hotel Tóffolo, situado na rua São José, 72, uma das poucas casas de pouso da Ouro Preto de meados dos anos 1940. Estavam esgotados e, além disso, preocupados com o que viram: parte do barroco mineiro, se nada fosse feito, estaria com os dias contados.

Com pesar, um dos funcionários, Manuel Bandeira, membro do conselho consultivo do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPAHN), constatava que a antiga Vila Rica era toda “cinza e desgosto”. Também aflito, seu companheiro de versos, carimbos e circulares, Carlos Drummond de Andrade temia que os muros brancos que tudo viram e reviram caíssem não só no esquecimento, mas literalmente. A questão a ser resolvida naquela noite, contudo, era de ordem mais imediata: estavam, os dois modernistas, completamente famintos.

Mas sucedeu que um aspecto do passado que poucos gostariam de ver preservado – a conservação de carnes em gordura animal, uma vez que os refrigeradores ainda não eram acessíveis – impossibilitou a tão ansiada refeição dos poetas. Por não terem avisado com a antecedência devida que gostariam de cear ao hoteleiro, o italiano Olívio Tóffolo, restou o encabulado anúncio de que não haveria jantar.

Não há registros sobre a reação imediata dos dois, mas é de se supor que felizes eles não ficaram. Como Bandeira não estivesse em condições de reclamar – ele se hospedava num esquema de permuta, trocando exemplares de seu “Guia de Ouro Preto”, lançado em 1938 por encomenda do SPAHN, por uma cama no hotel –, coube a Drummond expressar o descontentamento da dupla.

Nascia ali o poema “Hotel Tóffolo”, publicado originalmente em 1951 no livro “Claro Enigma”:

“E vieram dizer-nos que não havia jantar.

Como se não houvesse outras fomes e outros alimentos.

Como se a cidade não nos servisse o seu pão de nuvens.

Não, hoteleiro, nosso repasto é interior e só pretendemos a mesa.

Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras.

Tudo se come, tudo se comunica, tudo, no coração, é ceia.”

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Ouro Preto. Crédito: Daniel Maia
Ouro Preto. Crédito: Daniel Maia

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Em 1893, a nascente república brasileira decidia que Minas Gerais precisava de uma nova capital. Os motivos eram muitos, desde disputas políticas entre Juiz de Fora e Ouro Preto, passando pela necessidade de descentralizar a economia do Estado e mesmo de dissociar o núcleo administrativo do forte simbolismo colonial da cidade do ouro. Ficou resolvido que em Curral del-Rei, antigo arraial próximo a Sabará, seria erguida a moderna capital. Em 1897, Belo Horizonte substituía Ouro Preto como principal centro do Estado.

As coisas já não iam bem na antiga capital. Como escreveu Manuel Bandeira no “Guia de Ouro Preto”, as ruas e prédios da cidade eram constantemente descritas por viajantes europeus como “devastadas” e “arruinadas”. Com a perda do status político, muitos deixaram a cidade, abandonando ao tempo os casarões e os sobradinhos – em pouco mais de uma década, estima-se que a população decresceu 45%. Foi nessa época, mais precisamente no ano de 1915, que o jovem Olívio Tóffolo realizou seu temerário investimento e comprou os dois andares da casa de número 72 da rua São José.

Como quem coordena a composição das mesas de uma festa literária, vai narrando Gracinda, a atual hoteleira do Tóffolo: “A mesa 6 é a do Bandeira; na mesa 8 Cecília Meirelles começou a escrever o ‘Romanceiro da Inconfidência’; ali, no fundo, o pintor Guignard tomava seus conhaques e rabiscava desenhos, era um sujeito muito simpático”. A parede do bar, além do poema impresso de Drummond, ostenta também uma variação do painel “Os cavalos”, presente do mestre japonês Yoshiya Takaoka, outro artista que se apaixonou por Ouro Preto e pela hospitalidade dos Tóffolo.

A fachada do Hotel Tóffolo no livro de desenhos de Manuel Bandeira. Crédito: Guilherme Aguiar
A fachada do Hotel Tóffolo no livro de desenhos de Manuel Bandeira. Crédito: Guilherme Aguiar

A octogenária de cabelos brancos e modos despreocupados, nora de Olívio Tóffolo e que desde a morte de Rodrigo, seu marido, é quem toca o hotel, força um pouco mais a memória: “O Olavo Bilac também morou aqui uns meses, muito antes de eu nascer; o arquiteto Lúcio Costa, colega do Niemeyer, era presença constante, e perto da porta lateral foi onde se sentava Vinícius de Moraes: dizem que ele queria se ausentar da cidade grande depois de 1964”.

As linhas de Drummond, atrevimento do poeta à parte, honram a família. Gracinda enche a voz para declamar o poema e não se cansa de recontar a história aos hóspedes dos dias de hoje. “Aqui era o point de antigamente”, diz.
A matrona faz questão de sublinhar, contudo, que apesar de popular o ambiente tratava-se de um recinto “familiar”. “É estranho imaginar, mas aqui se tocava ópera na vitrola. Em que bar se escuta ópera hoje em dia?”, questiona. E o local segue familiar: no carnaval, quando as ruas são tomadas por multidões e, como diz a hoteleira, por “coisas que a gente nem sabe”, o acesso ao bar é restrito aos hóspedes e vedado aos demais foliões.

Modernistas e burocratas

Dois anos depois da Semana de Arte Moderna de 22, uma comitiva que contou, entre outros, com Oswald de Andrade, Tarsila de Amaral e Mario de Andrade percorreu algumas das cidades históricas de Minas naquela que ficou para a posteridade como a “viagem de redescoberta do Brasil”.

Ali, onde o barroco é à base do ouro e da pedra-sabão e não do mármore e do bronze europeus, os modernistas pareciam ter encontrado a identidade genuinamente nacional que buscavam. Logo depois da viagem, fundaram a Sociedade dos Amigos das Velhas Igrejas de Minas, grupo que influenciaria na formação do SPAHN, ao qual Drummond e Bandeira logo se vincularam. Após sucessivas trocas de nomes, a instituição chegou ao formato atual, tornando-se o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN.

O SPAHN tratava-se de um movimento amplo que congregava políticos, arquitetos de renome como o já citado Lúcio Costa, escritores e burocratas (encarnados muitas vezes na mesma figura), cujo objetivo era realizar um primeiro esforço institucional pela preservação do patrimônio e da memória histórica brasileira. Subordinado ao Ministério da Educação liderado pelo mineiro Gustavo Capanema, homem de confiança de Getúlio Vargas e amigo de Drummond, as diretrizes do SPAHN estavam afinadas também aos ideais nacionalizantes que perpassavam as políticas de Vargas, promovendo uma conveniente aproximação com os intelectuais da época.

Em parte por consequência da pressão exercida pelos modernistas ligados ao SPAHN, em 1938 Ouro Preto foi alçada à condição de patrimônio nacional, sendo tombada em todo o seu conjunto.

Embora as atividades mineradoras na região – que, como se viu no caso envolvendo a Samarco, arrasaram Bento Rodrigues, distrito vizinho de Ouro Preto – o tráfego intenso de carros e ônibus e um ou outro excesso estudantil continuem atentando contra as casas que ainda restam, Ouro Preto resiste. Se não é “a cidade que não mudou”, como queria Bandeira, ao menos não sofreu mudanças tão intrusivas quanto as que ameaçam parte do patrimônio histórico de Recife e do Rio de Janeiro, por exemplo.

A outra cruzada de Bandeira e Drummond, em favor da satisfação de seus apetites, também não foi em vão. Gracinda afirma que tempos depois do incidente que os deixou a ponto de comer as mesas do Tóffolo, os poetas puderam coordenar a cozinha do hotel para que ela preparasse o prato perfeito: juntando batata frita e mandioca (“só a antropofagia nos une!”), filé mignon e linguiça calabresa, sem esquecer da farta muçarela derretida em cima, nascia, é o que dizem, o “Véu da Noiva”, iguaria presente em 9 a cada 10 bares do Estado – o que, em se tratando de Minas Gerais, não é pouco.

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Carandiru, 1992

O relógio batia por volta das 16h20 naquele 2 de outubro de 1992. Para 111 homens presos no Pavilhão Nove do Carandiru, os ponteiros deslizavam feito foices. A cada milímetro, um segundo mais próximos da hora de sua morte. Quem sobrevivesse, ainda encararia a violência, o medo e a humilhação para se tornar memória do horror.

No perfil @carandiru1992, o Risca Faca voltou o tempo em 24 anos. Em feeds frenéticos de informações tão abundantes quanto diversas, resgatamos lembranças terríveis, desconfortáveis, necessárias. Minuto a minuto, cobrimos os acontecimentos como se aquele dia se descortinasse hoje, diante de nossos olhos.

Os tuítes foram publicados nos horários aproximados em que cada evento do massacre ocorreu: do confronto inicial entre detentos até a contagem dos sobreviventes, ainda olhando duas décadas e meia à frente para um futuro de pouco esclarecimento. Abaixo, reunimos todos eles.

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A última viagem de Rolf

Tinha tudo para ser mais uma sexta-feira na vida de Rolf Ferdinando Gutjahr. Pela manhã, ele organizava as tarefas para encerrar a semana de trabalho à frente da GK & B, uma fabricante de componentes eletroeletrônicos sediada em Manaus, da qual era dono. À tarde, retornava para casa, em Curitiba, para aproveitar o fim de semana com a esposa e a filha.

Tinha tudo para ser mais uma sexta-feira na vida de Rolf. Mas foi a última. Há exatos dez anos, no dia 29 de setembro de 2006, uma sucessão de erros técnicos e humanos fez com que o empresário e outras 153 pessoas jamais retornassem às suas casas. Aos 50 anos de idade, no auge da carreira, Rolf entrou na estatística como uma das vítimas da tragédia do voo Gol 1907 – que se despedaçou em pleno céu da floresta amazônica.

Cedo da manhã, Rolf saiu de casa com apenas uma mala de mão. No escritório, localizado no distrito industrial da capital amazonense, falou pela primeira vez no dia com a mulher. A 2730 quilômetros de distância, Rosane Prates de Amorim Gutjahr, então com 47 anos, tomava café no confortável imóvel do casal, localizado em um bairro nobre de Curitiba. Começaram a conversa falando justamente sobre trabalho, já que Rosane cuidava da área de planejamento e fornecedores da mesma empresa.

Rolf quis saber da filha, Luiza, então com quatro anos de idade. Estava tudo bem. Ambas o esperavam. Ao se despedir, um aviso: “Vou sair no horário de sempre. Estou levando a nossa graninha”. No dia seguinte, a família iria a Foz do Iguaçu passear. A graninha, alguns dólares, seria usada para se divertir em cassinos argentinos e paraguaios na tríplice fronteira.

“Antes de desligar, perguntei se ele queria um pouco da sopa que eu faria para a Luiza, para comer quando chegasse à noite”, lembra Rosane. Quase dez anos depois, ela está sentada na mesa do bar do hotel Plaza São Rafael, no Centro de Porto Alegre. É um fim de tarde ensolarado. Nem percebemos, mas a noite cai. “Ele disse que sim.” Desligaram.

No fim da manhã, Rolf partiu rumo ao Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, em um trajeto de pouco mais de meia hora. Do saguão, ligou mais uma vez para a esposa. Rosane aprontava Luiza para a escola. Do outro lado da linha, o marido avisava que o voo atrasaria, mas que embarcaria em poucos minutos. Aproveitou a conversa para dar um oi para a filha. Assim que desligou, a mulher levou Luiza para a creche e se dedicou a tarefas administrativas do negócio. Rolf colocou o celular no bolso da camisa e aguardou pela chamada dos passageiros. Quando solicitado, levantou, teve a passagem conferida e percorreu o caminho até a aeronave. Acomodou-se na poltrona 14-C, à direita de quem entra na aeronave, próximo à asa. O embarque foi finalizado com 148 passageiros e seis tripulantes. A decolagem ocorreu às 14h35, horário local (15h35 no Paraná). A chegada em Brasília aconteceria às 18h12.

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Os destroços do voo Gol 1907.
Os destroços do voo Gol 1907. Foto: FAB

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Assim como os carros em terra, os aviões viajam por estradas no céu. Só que invisíveis. São as chamadas aerovias, detectadas por radares. Entre Manaus e Brasília, os voos ocorrem em aerovias distintas, de acordo com o sentido: norte-sul em níveis ímpares, como 350, 370 e 390; já no sentido sul-norte são operados os níveis pares, como 360, 380 e 400. O nível representa a altitude de cruzeiro do aparelho.

No caso do Boeing da Gol, o nível pré-determinado era o 410, o que significa que ele faria a viagem a 41 mil pés – algo equivalente a 12,5 mil metros de distância da superfície. Antes de decolar, o comandante Décio Chaves Júnior e o copiloto Thiago Jordão analisaram as condições meteorológicas previstas para a rota. Em razão dos ventos, solicitaram ao centro de controle para mudar de nível: de 41 mil pés para 37 mil. A autorização foi concedida sem objeção, já que pedidos semelhantes são absolutamente corriqueiros na aviação. O Boeing partiu coordenado para voar no nível 370, a 11,1 mil metros.

Para ir a Curitiba naquele horário, Rolf tinha duas opções de conexão: um voo da Tam com destino a São Paulo, ou o da Gol, que ia para o Rio de Janeiro. Ambos tinham escala em Brasília, onde Rolf tomaria outro avião, para Curitiba. Com a segunda opção, chegaria um pouco mais cedo no Aeroporto Internacional Afonso Pena – por volta das 22h. Além disso, desde a queda do Fokker-100 da Tam, em 1996 em São Paulo, Rolf ficava ressabiado em viajar pela companhia, mas não chegava a eliminar a opção. Naquele dia – e horário –, optou pela Gol.

No mesmo momento, voava no sentido sul-norte um jato executivo, de prefixo N600XL, pilotado por dois norte-americanos: Joseph Lepore e Jan Paul Paladino. Estavam no Brasil para transportar a aeronave, fabricada pela Embraer, até seus novos compradores: a empresa de táxi-aéreo ExcelAire, cujo hub ficava em Fort Lauderdale, na Flórida, Estados Unidos. O pequeno avião partira às 14h51 de São José dos Campos, interior de São Paulo, com cinco passageiros: dois executivos da ExcelAire, dois representantes da Embraer e um jornalista. O trajeto previa uma parada em Manaus.

De acordo com a carta de voo, elaborada pela própria Embraer, o jato voaria de São Paulo a Brasília a 37 mil pés (nível 370). Assim que chegasse ao espaço aéreo do Distrito Federal, tomando a aerovia em direção a Manaus, o Legacy desceria a 36 mil pés. Mais adiante, em um ponto virtual denominado Teres, cuja localização ficava 480 quilômetros ao norte de Brasília, subiria novamente, agora a 38 mil pés (nível 380). Assim voaria até o procedimento de aterrissagem em Manaus.

Em tese, era para ter sido assim. Na prática, o N600XL não baixou do nível 370 ao passar por Brasília. O jato permaneceu em 37 mil pés, voando na contramão da aerovia. Mas por quê? Meses mais tarde, a Aeronáutica divulgaria suas conclusões. O erro começou ainda em São José dos Campos, quando o controlador da torre local informou os pilotos que o nível 370 deveria ser mantido até o Amazonas. Em seguida, o mesmo controlador se comunicou com o Cindacta-1, o Centro de Controle do Tráfego Aéreo de Brasília, por onde a aeronave passaria. E repetiu ao oficial do Cindacta que o N600XL seguiria a 37 mil pés até Manaus. A recomendação contrariava o plano original de voo. Mesmo assim, os pilotos receberam autorização dos controladores para a partida.

Ao estabilizar o Legacy em voo de cruzeiro, a 37 mil pés, os norte-americanos selecionaram o dispositivo que conserva a altitude no piloto-automático e começaram a estudar a computação do avião, uma novidade para eles. Aí houve outro erro: mesmo experientes na aviação executiva, os pilotos não se sentiam capacitados o suficiente para lidar com aquele modelo de aeronave. No Brasil, eles haviam recebido um treinamento curto, de quatro dias – o que se revelaria insuficiente para entender o complexo software do jato.

A preocupação de Lepore e de Paladino possivelmente culminou em mais um erro. Em vez de conferir o plano de voo antes da decolagem, os pilotos simplesmente confiaram na palavra do controlador, que informara o nível 370 até Manaus. Os pilotos tinham uma cópia do plano no escaninho da cabine, assim como as cartas aeronáuticas nas quais estavam especificados os níveis corretos de voo nos dois sentidos da aerovia Brasília-Manaus. Documento algum, exceto o manual da aeronave, foi checado.

Ao adentrar na região de Brasília, os dados do N600XL acusaram a necessidade de mudança no Cindacta. O painel exibiu a seguinte mensagem: 370 (nível efetivo) = 360 (nível programado). A altitude estava errada e indicada claramente na tela do controlador. O desnível não chegava a ser um problema, uma vez que o transponder – sistema que envia dados sobre a localização da aeronave para as torres de controle – do N600XL seguiria alertando o Cindacta-1 sobre o curso incorreto. Logo o controlador perceberia o erro e informaria o nível correto aos pilotos do Legacy. Se outra aeronave voasse próxima e em sua direção, criando um risco de choque, ainda havia o dinâmico Traffic Collision Avoidance System. Conhecido como TCAS, o dispositivo detecta aeronaves em sentido contrário e indica as manobras necessárias para evitar um impacto de frente.

Acontece que transponder e TCAS estavam desligados. Outro erro dos pilotos. O dispositivo anticolisão do Legacy já partira em off. Puro descuido. Assim, impediu o sistema de indicar se algum avião voava em sua direção. Já o transponder foi desligado por engano por um dos pilotos, o que fez o círculo ao redor do bloco de dados do Legacy desaparecer dos consoles do Cindacta-1. Com o transponder desligado, o centro não tinha como alertar a aeronave, pois ela repassava dados estimados (e não precisos) aos controladores. O painel sugeriu que o Legacy estava no nível correto, o 360, quando na verdade estava no nível 370 – ou seja, na contramão – exatamente na mesma aerovia utilizada pelo Boeing da Gol que partira de Manaus.

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Curitiba, Parana, Brasil, 23-09-2016, 14h30 - Entrevista com Rosane Gutjahr, viuva do empresario Rolf Gutjahr, uma das vitimas do acidente que derrubou o voo 1907 da gol em 29 de setembro de 2006. (Foto: Theo Marques/Risca Faca)
Rosana Gutjahr em sua casa. Foto: Theo Marques/Risca Faca

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Porto Alegre, dez anos depois. Rosane pediu um café antes de começar a descrever o marido. Falou da ascendência alemã, o que influenciava seu porte. Rolf era parrudo, tinha 1,80m e pesava mais de 100 quilos. A viúva compartilhou as manias, os gostos, e refez a trajetória pessoal e profissional do companheiro. Embargou a voz diversas vezes.

Rolf nasceu em novembro de 1955 em Canoas, na região metropolitana da capital gaúcha. Com 12 anos, já colaborava no sustento da família. Para sustentar os oito filhos, o pai trabalhava como garçom, enquanto a mãe cuidava do lar. Rolf ajudava como podia: foi desde vendedor de água mineral na porta do cemitério a catador de estrume de vaca, para ser transformado em adubo. Apesar de trabalhar desde cedo, jamais perdeu o foco dos estudos. Terminou o ensino fundamental, o ensino médio e ingressou na faculdade de Engenharia Mecânica na Unisinos, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul.

Em 1982, aos 27 anos, Rolf conquistou um posto de trabalho importante: gerente mecânico da Icotron, uma antiga indústria de componentes eletrônicos localizada em Gravataí. Foi ali que conheceu Rosane, então uma jovem administradora de 24 anos. Papo vai, papo vem, engataram um romance.

O jovem engenheiro se destacou no emprego e foi convidado para atuar na sede da empresa, em Manaus. Sem pensar duas vezes, aceitou na hora. Chegou à namorada e disse: “Nega, eu vou [para Manaus] e depois volto para a gente casar.” Ela foi reticente. Discordou. Impôs que fossem juntos, já casados. Apaixonado, ele topou. A cerimônia aconteceu no dia 21 de outubro de 1983, cerca de um ano e meio depois de se conhecerem. Em dezembro, o casal se mudou para o Amazonas – de mala e cuia, como bons gaúchos. Aquela era a primeira vez que Rosane viajava de avião.

Na Zona Franca de Manaus, Rolf ocupou cargos de diretoria na Icotron e em outras empresas, como Thomson e Molex. No início dos anos 1990, a carreira em ascensão foi baqueada por uma demissão inesperada. “Ficamos sem eira nem beira”, rememora Rosane. Foi aí que um amigo, Matias Machline, presidente do grupo Sharp entrou na jogada. Gaúcho de Bagé, o executivo sondou Rolf sobre o seu desejo de abrir um negócio próprio. “Querer eu quero, mas não tenho dinheiro, nem nome no mercado. Não tenho nada”, respondeu Rolf, descrente.

Machline estava disposto a ajudá-lo. Concedeu cinco funcionários, matéria-prima e crédito para iniciar a empreitada. Rolf então convidou o japonês Hidetaka Kamezaki para ser seu sócio. Juntos, eles abririam, em março de 1991, a GK & B. Inicialmente, a empresa atuava como fornecedora da Sharp. Mas Rolf queria mais. Habilidoso para os negócios, possuía uma retórica sedutora. Conquistou clientes Brasil afora. Na verdade, mundo afora, viajando regularmente para países como China, Japão e Estados Unidos.

Em menos de dez anos, a GK & B cresceu de forma robusta. Passou de cinco para 3,5 mil funcionários. Com o avanço da tecnologia, o negócio precisou se reinventar, entrando na produção de placas para celulares. Em 2005, um ano antes da tragédia, Rolf havia sido eleito Empresário do Ano pela Fieam, a Federação das Indústrias do Estado do Amazonas.

Machline, o amigo e incentivador, não presenciou o auge do amigo. Por uma infeliz coincidência, o executivo da Sharp e a esposa morreram em 1994 em um acidente de helicóptero nos Estados Unidos.

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A caixa-preta.
Militares exibem a caixa-preta do voo Gol 1907. Foto: Alessandro Silva/FAB

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A lógica diz que dois aviões voando em sentido contrário, pela mesma aerovia e na mesma altitude têm tudo para se chocar de frente. Acontece que a aerovia UZ6 do nível 370, percorrida pelo Gol 1907 e pelo N600XL na tarde daquela sexta-feira, tem nada menos do que 80 quilômetros de largura. A probabilidade de acidente era mínima. Exceto pela configuração dos instrumentos de navegação aérea, incrivelmente precisa. Aí sim, dois aviões voando em sentido contrário, pela mesma aerovia e na mesma altitude têm mesmo tudo para se chocar de frente.

Passava das 16h quando um controlador do Cindacta fez contato com o Legacy. Lapore e Paladino, porém, não entenderam o inglês macarrônico do operador. Os pilotos passaram os minutos seguintes tentando estabelecer diálogo em terra, mas sem sucesso. Quando sobrevoavam Nabol, ponto na floresta amazônica que demarca o fim da vigilância área do Cindacta-1 (Brasília) e dá inicio ao controle do Cindacta-4 (Manaus), a situação piorou. A zona de transição era famosa pela crítica transmissão de rádio – muitas vezes os pilotos não conseguiam sequer comunicação com os controladores, e vice-e-versa. A região tinha até um apelido macabro entre aeronautas: “buraco negro”. Foi neste local que os pilotos norte-americanos insistiram com os controladores. Mas nada se ouvia.

Às 16h55, o Gol 1907 já estava sob a vigilância do Cindacta-1. Os pilotos haviam se despedido minutos antes do centro de controle de Manaus. Tudo estava ok, e a viagem seguiria conforme o plano de voo. Chaves e Jordão operavam a aeronave com o auxílio do piloto automático. Conversavam tranquilamente sobre assuntos comezinhos e de uma viagem de férias feita há pouco pelo comandante. No N600XL, os pilotos insistiam contato com os controladores. Para eles, o único problema estava na falta de resposta. Não sabiam que operavam o jato executivo no nível errado, menos ainda que o transponder e o TCAS estavam desligados. No minuto seguinte, ambos os aviões sobrevoavam o território de Peixoto de Azevedo, no Mato Grosso, a 88 quilômetros da divisa com o Pará.

Às 16h56min54, algo estranho aconteceu.

A caixa-preta do Boeing registrou um forte estrondo na cabine. “Ai!”, limitou-se a dizer o copiloto, quando sentiu o solavanco. Imediatamente, a ponta do avião guinou para a esquerda e uma sequência frenética de alarmes começou a disparar. O avião perdia altitude velozmente. “Não acredito que isso está acontecendo”, dizia o piloto, incrédulo. Os dois não sabiam, mas um terço da asa esquerda estava serrada. Por isso, a aerodinâmica da ave metálica estava desestabilizada. “Ai, meu Deus do céu!”, desesperou-se Jordão. “Calma, calma”, repetia Décio Chaves, enquanto acionava os flaps – recursos que aumentam o coeficiente de sustentação das asas – e o trem de pouso. Valia tudo na tentativa de aterrissar. O Boeing, insustentável, estava caindo em espiral, desintegrando-se e tossindo fumaça. Passaram 63 segundos, desde o choque, até tocar o solo da inóspita floresta amazônica.

A caixa-preta do Legacy, por sua vez, registrou um som seco de impacto. O avião deu uma abrupta guinada para a esquerda, mas se manteve voando. O comandante gemeu. O piloto automático estava desconectado. Os alarmes soaram. “What the hell was that?” (Que diabos foi isso?), questionou Lepore a Paladino. Eles sabiam que haviam sido atingidos por algo, mas não o quê. “Where the fuck did he come from?” (De que porra de lugar ele veio?), disse Lepore. “Go down” (Vamos descer), emendou, declarando emergência no rádio. Um executivo da ExcelAire, que percebeu a ausência da ponta da asa esquerda, foi até o cockpit informar os pilotos. “Where the fuck did he come from?” (De onde diabos ele veio?), repetiu Paladino. A aeronave, ainda que avariada, continuava no ar. Pousaria dali 25 minutos depois, em uma base área militar próxima.

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Versão digitalizada criada pela Embraer mostra o momento em que as naves se chocaram.
Simulação do acidente criada a partir do relatório final da CENIPA.

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A exaustiva ponte-aérea entre Manaus e Curitiba era frequentada por Rolf havia sete anos. Começara em 1999, quando a mulher dera início a um tratamento de inseminação artificial no sul. O empresário ficava duas, às vezes três semanas em Manaus, e depois voltava. Rosane cuidava do planejamento da empresa de casa, em Curitiba.

O tratamento não vingou. As diversas gestações iam no máximo até o terceiro mês. “As pessoas diziam: ‘adota que vocês engravidam’”, ela conta. O casal não levava fé na superstição, mas as tentativas frustradas de engravidar, porém, falaram mais alto. Rolf segurou as mãos de Rosane e pediu: “Nega, nós já tentamos engravidar, mas Deus não quer. Vamos adotar”. Ela topou. Após um processo rigoroso de quase dois anos, a família Gutjahr foi oficialmente autorizada a adotar uma criança. Em agosto de 2002, uma menininha recém-nascida chegava à vida do casal. Foi amor à primeira vista.

Luiza tornou-se a “filha do coração” deles. O pai, babão, não media esforços para agradá-la. Quando viajava para o exterior, por exemplo, trazia uma mala cheia de brinquedos e roupas para a bebê. E ela retribuía o carinho. A primeira palavra que aprendeu a dizer, então com 1 ano e um mês, foi “papai”.

A paixão pela filha transformou a ponte-aérea em algo saboroso, tanto é que Rolf passou a fazer o trajeto semanalmente. Às segundas-feiras, ainda de madrugada, tomava o caminho para Manaus. Regressava para Curitiba nas sextas. Como faria pela última vez naquele 29 de setembro de 2006.

Por volta das 18h, uma hora depois do choque do Legacy com o Boeing, Rosane atendeu um telefonema. Era sua mãe. “Acabei não falando muito com ela porque o Rolf me ligaria em seguida e a linha estaria ocupada”, recorda. Rolf costumava entrar em contato quando chegava em Brasília. Avisava sobre o primeiro trajeto, e que logo tomaria o voo para casa. Ela prometeu ligar para a mãe depois.

Meia hora se passara. Rosane percebeu que, nesse interim, Rolf ainda não havia ligado. Ele deveria aterrissar na capital federal entre 18h10 e 18h20. Mas o pensamento negativo logo lhe fugiu da cabeça. A filha chegara da escola e estava faminta. Rosane foi providenciar a sopa – a mesma que prometera guardar ao marido – e depois foi brincar com Luiza.

O telefone tocou novamente às 19h. “Devia ser Rolf”, pensou Rosane. A babá, Aparecida, atendeu e em seguida desandou a chorar. “Na hora, sabe? Na hora eu sabia que alguma coisa tinha acontecido”, afirma Rosane, antes de narrar a sucessão de fatos posteriores. “Eu perguntei: ‘O que foi, Aparecida?’ E ela chorava. Eu dizia: ‘Fala, Aparecida!’” Depois de muita insistência, a babá respondia, tomada de perplexidade, com uma frase fragmentada: “Caiu; um avião… da Gol”.

***

O Fokker-100 da Tam que deixava Rolf receoso caiu no dia 31 de outubro de 1996, logo após decolar do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Morreram 96 pessoas a bordo e outras três em solo. Entre os passageiros estava o gerente da Siemens, Ivo Roberto Gutjahr – um parente distante e desconhecido de Rolf. O sobrenome acabou em evidência na imprensa, a ponto da GK & B receber ligações para confirmar se o Gutjahr do avião era Rolf. Felizmente, daquela vez, não.

Rosane, que já não gostava de voar, decidiu reduzir as viagens. E foi além: não queria mais pegar a mesma aeronave que o marido, levando em consideração o fato de a família depender do casal. Caso um morresse, o outro seguiria vivo para tocar os negócios. O marido consentiu com a proposta, sem passar pela cabeça que aquilo seria, de fato, útil algum dia.

[olho]“Até ali, eu imaginava que meu marido pudesse estar vivo”[/olho]

Rosane ligou a televisão e viu que o burburinho era real. Angustiada, pegou o telefone e ligou para o celular do marido. O telefone chamou até cair na caixa de mensagens. Ela repetiu a ligação. Tentou duas, três, quatro vezes. Nada de atender. Decidiu, então, ligar para a agência de turismo em que Rolf comprava passagens. A funcionária atendeu soluçando, desolada pelo desaparecimento do Boeing. Rosane desligou e continuou tentando falar com Rolf. Tentou cinco, dez, 20, 30 vezes. Nada. “Até ali, eu imaginava que meu marido pudesse estar vivo”, reconhece.

Todas as 154 pessoas a bordo do Boeing morreram. O detalhe é que não foi pelo impacto, conforme apuração de Ivan Sant’Anna, autor de um detalhado retrospecto do desastre publicado no livro “Perda Total”. Tudo indica que alguns podem ter perdido a consciência pela descompressão do avião, que se desintegrou antes de tocar o solo. Ainda assim, a asfixia foi curta demais para levar alguém à morte. Além disso, a força do impacto se concentrou na parte inferior da asa atingida – a investigação revelou que o winglet (dobra para cima, em forma de lâmina) da ponta da asa esquerda do Legacy decepou a asa esquerda do Boeing. Com ambas as aeronaves a 800 km/h por hora, a colisão foi mais rápida que um disparo de revólver calibre .38.

Tanto no Cindacta-1 quanto no Cindacta-4, o pânico foi geral quando os painéis mostraram o Gol 1907 perdendo velocidade. Eram 17h57. Em seguida, o avião simplesmente sumiu das telas. Os centros de controle se comunicavam entre si, compartilhando a mesma angústia de ver um avião perder velocidade em plena floresta até desaparecer do radar. “Não há nenhum Gol! O Gol desapareceu!”, gritava desesperado o controlador de Brasília.

Embora com a dobra da ponta da asa arrancada e sem parte da cauda, o Legacy conseguiu pousar com as sete pessoas a bordo ilesas, mas em estado de choque. Todos se perguntavam o que havia os atingido quando um oficial informou sobre o desaparecimento de um avião comercial. A notícia foi estarrecedora.

A apuração seguiu nas horas seguintes. Por volta das 21h, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) informou à imprensa que duas aeronaves colidiram no ar, e que uma delas conseguiu pousar em uma base aérea militar. Aos familiares dos que estavam no Gol, a informação dava uma esperança, ainda que remota, de que houvesse sobreviventes. Talvez o avião conseguisse pousar na floresta – remetendo ao caso de um Boeing 737 da Varig que conseguira tal façanha em 1989; das 54 pessoas a bordo, 41 foram resgatadas com vida do local.

Completamente atordoada, Rosane decidiu ir ao aeroporto de Curitiba. Lá, ela diz ter sido confinada por agentes da Gol em uma pequena sala “sem televisão, sem janela, só com uma jarra de água”. Outras duas famílias estavam junto. Havia uma pessoa na porta que os impedia de sair. Ela seguiu ligando para o celular do marido, que chamava até cair na caixa postal. Tentou convencer o funcionário da Gol a liberá-la, sem sucesso. Rolf tinha problemas de coração e pressão arterial. Na cabeça dela, o marido não estava morto. Machucado, talvez. “Quando acontece esse tipo de coisa, você não raciocina direito”, desabafa.

A Gol procrastinava. Seus representantes diziam que em seguida dariam informações, mas os minutos e horas passaram sem qualquer notícia. Rosane seguia ligando ao marido e, às vezes, falava rapidamente com Aparecida para saber da filha. A noite virou. No sábado, as equipes de busca e salvamento da Força Aérea Brasileira haviam encontrado o Boeing, espatifado no coração da floresta. Mas foi apenas no domingo que Rosane soube disso, quando a Gol repassou a ela a nota da Aeronáutica que admitia não haver sobreviventes entre as pessoas a bordo do voo 1907. “Imagina o desespero da gente”, relembra ela, olhar embargado, voz trêmula. A conversa silencia.

***

O sol já havia minguado do lado de fora do hotel, enquanto Rosane seguia o depoimento. A entrevista precisou ser interrompida duas vezes, de forma breve, para que ela se recompusesse. Quando falou dos dias seguintes, a viúva recordou que no domingo, 1° de outubro, recebeu os familiares e amigos em casa. Sem condições, pediu a Arno Gutjahr, irmão de Rolf, que reconhecesse e trouxesse o corpo.

No local do desastre, foram dois meses até que os restos mortais dos passageiros e tripulantes do Boeing fossem encontrados. À medida que iam sendo descobertos, os corpos eram transportados por helicópteros até uma fazenda e, de lá, para a Base Aérea de Cachimbo – a mesma onde pousara o Legacy depois da colisão. Aviões da FAB levavam os corpos das vítimas para Brasília, e então eram encaminhados ao Instituto Médico Legal (IML) para reconhecimento.

Os dias passaram e não havia sinal algum do empresário. Rosane estava aflita e cobrava pelo corpo do marido. Foi aí que um oficial do Cenipa, o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, comentou com Arno sobre uma pessoa ainda não identificada e que estava entre os primeiros restos mortais encontrados. Dilacerado, o corpo sequer podia ser identificado como de um homem ou de uma mulher. Seria preciso aguardar um exame de DNA.

A certeza de que era Rolf veio por um detalhe que nada tem a ver com a ciência. Encontraram o celular no bolso da camisa, intacto. Ao consultar o registro do chip, descobriu-se que estava em nome de Rosane Prates de Amorim Gutjahr. Era o telefone que ela dera para Rolf. O mesmo para o qual ela tanto ligava nas horas posteriores à tragédia.

Rosane relembra os detalhes esfregando as mãos sobre as pernas. Olha para o lado, como que buscando algum ponto específico no saguão do hotel. Há um nó em sua garganta. “O caixão teve de ser lacrado. Não pudemos nem nos despedir do corpo”, ela segue, pedindo outra pausa na conversa. Rosane serve um copo d’água, evoca o nome de Deus, olha para mim e sorri, nervosa. Após uma breve reflexão e um respiro profundo, repetiu: “A gente não pôde dizer adeus. Nem o direito de se despedir, nós tivemos.” Rolf foi cremado e suas cinzas guardadas em um cântaro na casa da família.

“Não só o meu marido”, ela seguiu, “mas todas as pessoas que estavam lá morreram por inconsequência de dois pilotos [do Legacy]. O funcionário de uma fazenda [Jarinã, para onde os corpos foram levados] disse que, quando houve um estrondo no céu, era uma chuva de corpos. Depois a investigação confirmou: as pessoas caíram ainda vivas, sabendo que estavam caindo para a morte. Imagina o sofrimento, a angústia, o que passou na cabeça dessas pessoas sabendo que estavam caindo para a morte. Uma mãe foi encontrada segurando um bebê… Com tudo aquilo acontecendo, ela não largou o filho…”

Rosane chora copiosamente.

“Desculpa”, murmura.

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Curitiba, Parana, Brasil, 23-09-2016, 14h30 - Urna onde sao mantidas as cinzas do empresario Rolf Gutjahr, uma das vitimas do acidente que derrubou o voo 1907 da gol em 29 de setembro de 2006. (Foto: Theo Marques/Risca Faca)
O altar que Rosane criou para Rolf. Foto: Theo Marques/Risca Faca

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A culpa pela tragédia que resultou na morte de 154 pessoas é atribuída a Joseph Lepore e Jan Paul Paladino. A conclusão é do processo criminal movido pela Justiça brasileira, encerrado em 2015. Os pilotos foram condenados pelo crime de atentado contra o transporte aéreo, por desconhecerem a aeronave que operavam, além de negligências como a falta de verificação do plano de voo, que indicava o nível correto do trajeto, e a pilotagem com o TCAS desligado.

A pena: três anos, um mês e dez dias, a ser cumprida em regime aberto. Não cabe mais recurso. O documento, redigido em português, está em tradução para o inglês para que os pilotos sejam notificados. Eles podem cumprir a pena no Brasil ou nos Estados Unidos. O acordo fora firmado entre os dois países.

Diretora da associação de amigos e parentes das vitimas do voo 1907, Rosane moveu esse e outros processos. Um deles contra Joe Sharkey, jornalista a bordo do Legacy. A Justiça estipulou que ele pagasse R$ 50 mil por ofensas que teria proferido contra o Brasil em um blog. O valor até hoje não foi pago. “Ele não vai pagar, mas só pela condenação já me dei por satisfeita quanto àquele repórter, se é que se pode chamar de repórter”, ironiza.

Rosane também ganhou um processo movido contra o Estado, pela pilhagem dos corpos das vítimas. O caso veio à tona quando a revista “Vanity Fair” informou que soldados roubaram joias, relógios e outros pertences. A Aeronáutica não negou os furtos, mas alegou que se tratava de pessoas “estranhas às equipes de resgate”. O fato é que poucas semanas depois do desastre, documentos dos passageiros do voo 1907 foram usados na obtenção de empréstimos fraudulentos. O dinheiro da indenização, cerca de R$ 31 mil, será pago provavelmente até o fim deste ano. A quantia será depositada diretamente a uma instituição filantrópica, conforme acordado por Rosane previamente.

Pela morte de seus parentes, as famílias das vítimas receberam indenizações da Gol. Rosane é uma das poucas pessoas que se recusaram a firmar qualquer tipo de acordo. Ela garante ter recebido duas propostas para desistir dos processos que movia. A primeira, de US$ 2,5 milhões; e uma segunda, de US$ 5 milhões. Não aceitou nenhuma delas.

Pergunto se a sua boa condição financeira influenciou a decisão de negar o dinheiro oferecido. Afinal, algumas famílias chegaram a fechar acordos com valores muito abaixo das propostas que ela recebeu. Algumas indenizações foram estipuladas em R$ 160 mil. “Não condeno quem aceitou fazer acordo, pode ser que as pessoas dependessem de quem morreu. Mas eu não preciso do dinheiro e jamais venderia a dignidade do meu marido.”

Além dos pilotos do Legacy, o sargento Jomarcelo Fernandes dos Santos, controlador do Cindacta-1, também foi condenado. A Justiça Militar determinou que o operador cumprisse 1 ano e dois meses de prisão por não seguir as normas de segurança. Segundo a decisão, ele não atentou para o desaparecimento do sinal do transponder do Legacy, não orientou o piloto sobre uma mudança de frequência (durante os problemas de transmissão), não atentou para a altimetria da aerovia (aeronaves no sentido sul-norte não podiam voar no nível 370) e passou o serviço a outro militar sem alertá-lo sobre as irregularidades.

Jomarcelo ainda não cumpriu a pena. Ele e o controlador que o sucedeu, Lucivando de Alencar, também aguardam a análise de outro processo, que corre no Superior Tribunal de Justiça.

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Curitiba, Parana, Brasil, 23-09-2016, 14h30 - Fotos e objetos do empresario Rolf Gutjahr, uma das vitimas do acidente que derrubou o voo 1907 da gol em 29 de setembro de 2006. (Foto: Theo Marques/Risca Faca)
Rolf, a filha Luiza, e Rosane. Foto: Theo Marques/Risca Faca

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Uma semana antes de a tragédia completar dez anos, agora no fim de setembro, peço a Rosane, por telefone, sua opinião quanto à pena estipulada aos pilotos do Legacy. “Para cá eles não vão voltar, a gente sabe disso”, prevê. Segundo ela, a condenação é irrisória, mas ao menos fará com que os pilotos não saiam impunes. “Agora, só a palavra ‘condenação’ não me serve. Quero que eles cumpram a pena.” A defesa de Joseph Lepore e Jan Paul Paladino não comenta o assunto.

Tampouco a Gol. Procurada, a empresa se limitou a encaminhar uma nota por e-mail: “Nesses dez anos, carregamos o nosso pesar e solidariedade aos familiares e amigos das vítimas do acidente com o voo 1907 em 29 de setembro de 2006. Essa data será para sempre lembrada por nós com profunda tristeza.” Rosane não culpa a companhia aérea pelo desastre, mas critica a maneira como a empresa agiu depois. “Poderia ter auxiliado melhor e ajudado a cassar o brevê dos pilotos [do Legacy].” Ela nunca mais pisou em uma aeronave da Gol.

Pergunto sobre a tentativa de encabeçar um Projeto de Lei para aumentar a pena para crimes aéreos – ela se reuniu com deputados e senadores ao longo dos últimos anos, em busca de apoio. A ideia não vingou. “Você acha que eu conseguiria fazer alguma coisa com esse nosso Congresso?” Mesmo assim, incansável, seguirá lutando.

Aliança no dedo, Rosane pensa em Rolf diariamente. Lamenta a saudade. Sua e da filha. A menina ainda guarda sapatos, perfumes e camisas do pai. Os carros que o empresário tinha na época, uma Toyota Hilux e um Jeep Cherokee, seguem com a família a pedido da filha. Enquanto Luiza hoje leva uma vida normal para uma adolescente, Rosane carrega no olhar, um tanto triste, as marcas da tragédia. Segundo ela, não é possível tirar lição alguma do que viveu, reconhecendo que a morte do marido não está superada. A demora no processo criminal tornou o caso uma ferida aberta ao longo de dez anos.

Hoje, ela se agarra à simbologia da presença física do marido para que, à sua maneira, ainda conviva com ele. Um jarro com as cinzas, as roupas, os carros, o apartamento… elementos que ajudam a manter Rolf em sua memória. Embora tenha ido às lágrimas por incontáveis vezes durante nessas conversas, Rosane diz que ainda não colocou para a fora a dor de ter perdido o marido. Espera chorar e gritar quando finalmente os culpados forem punidos. E só então irá se libertar.

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Que zona boa

São 10h30 de um sábado e já é impossível entrar no Armazém Santa Filomena, na zona cerealista, em São Paulo. O trecho entre a rua Santa Rosa e a avenida Mercúrio, a cinco minutos do Mercado Municipal, está praticamente intransitável. Há carros parados em fila dupla, manobristas instruindo motoristas a estacionar nas apertadas e raras vagas, famílias empurrando carrinhos de feira cheios de comida pela calçada, procurando espaço entre os vendedores de diferentes tipos de produtos, de ricota defumada a doces. Em duas horas, o movimento não diminui e as lojas continuam cheias. Ainda é impossível colocar o pé dentro do armazém, tamanho o número de pessoas apinhadas ali. De algum lugar não identificado na rua vem o alto som da música “Quem de Nós Dois”, de Ana Carolina, em uma versão em espanhol.

Sábado é o ponto alto do trânsito semanal de pessoas na zona cerealista, no Brás, no centro de São Paulo. Mas o movimento é constante: segunda o fluxo é maior entre quem compra no atacado — hotéis, restaurantes, outras lojas da cidade que abastecem suas prateleiras de castanhas, farinhas, frutas secas e grãos variados. Há também a reposição daquilo que se foi no sábado. Às terças e quartas as ruas são mais transitáveis e o público, menor. Na quinta já começa a preparação para o fim de semana. Sábado é o caos e domingo, a calmaria, quando a maior parte das lojas fecha. Mas mesmo nos dias que parecem tranquilos a zona cerealista não para. Para além da Santa Rosa há um mar de galpões, abastecidos constantemente por caminhões cheios de produtos desde a madrugada.

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Cebolas descarregadas de caminhão para depósito na zona cerealista. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Nas lojas da zona cerealista há uma variedade imensa de alimentos e bebidas. É possível encontrar vinhos, queijos, vários tipos de comida sem glúten ou lactose, ervas, chás, grãos e mil tipos de farinha (aparentemente é possível fazer farinha de maracujá). Para desbravar as lojas é melhor ir munido de uma lista de compras, porque as opções são muitas e o tempo geralmente é curto. Em boa parte das lojas você pega uma senha e espera para ser atendido. Você diz o que procura, fala a quantidade desejada, o vendedor embala o produto num saco, pesa e etiqueta. “Que mais?”, pergunta, e assim vai. É um pouco como ir ao Spoleto: fale agora o que quer ou cale-se para sempre.

Há também produtos industrializados ou já embalados, mas tem muita venda a granel e, nos dois casos, os preços são bem mais em conta. A goji berry seca, fruta rica em vitamina C e que virou moda poucos anos atrás, por exemplo, é vendida na Drogaria São Paulo a R$ 21,99 (100g). Na Bendito Grão, na rua Santa Rosa, o preço do quilo é R$ 69,90. No caixa da loja na Santa Rosa, a funcionária checa três vezes todos os itens da minha numerosa compra, apesar da imensa fila, para ter certeza de que o valor, de R$ 70, estava correto (“Muito alto. Você comprou algo super caro?”, ela pergunta).

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Azeites na Laticínios Camanducaia, na rua Santa Rosa. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

O bairro do Brás, onde se localiza a zona cerealista, se desenvolveu com a cultura do café. Os imigrantes que chegavam ao Brasil em Santos iam de trem até o Brás, de onde eram encaminhados para o interior de São Paulo para trabalhar nos cafezais. Alguns imigrantes, porém, principalmente italianos, optavam por ficar na cidade e se estabeleciam no bairro, montando fábricas e pequenas lojas. Segundo a Prefeitura, em 1886 o Brás tinha 6 mil habitantes e, sete anos depois, o número era cinco vezes maior.

“As produções eram escoadas para cá e daqui eram distribuídas: café, feijão, arroz, grãos diversos. Aí começaram a montar os armazéns aqui”, conta Bruno Lopes, do Laticínios Camanducaia, que está na zona cerealista desde 1952 — jovem e vestindo uma roupa despojada, trabalha há cinco anos na loja da família de sua mulher. “Os imigrantes que ficavam aqui precisavam fazer alguma coisa. Como era aqui o centro de São Paulo eles começaram a montar os comércios pra cá. A rua Santa Rosa começou com esses empórios, não tinha supermercados. Eles vendiam pra tudo quanto é tipo de cliente, mas principalmente abasteciam os pequenos comércios que iam surgindo nos bairros.”

Bruno diz que hoje o mercado na zona cerealista está em transformação. “Ainda tem parte de atacado — você abastece muita loja por aqui –, mas tem também lojas para um público que vem buscar produtos diferentes, por estilo de vida”, afirma, num galpão em que, numa sexta de manhã, dezenas de pessoas trabalham descarregando produtos de caminhões. “Ainda mais de uns dois anos pra cá, com a crise econômica, tem um público que vem atrás de preço, que migra do mercado e vem pra cá. Porque aqui é realmente muito mais em conta.”

José Bispo, da Casa Flora, presente há mais de 40 anos na Santa Rosa, concorda que a busca por produtos saudáveis fez o fluxo aumentar nos últimos anos — ele trabalha ali há 30. Preço e qualidade de vida — a zona cerealista é ótima para quem está naquela dieta ou tem curiosidade com os super ingredientes da moda — são os dois fatores que mais levam o público para lá.

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Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Sobre os produtos que mais saem, Bruno faz uma lista eclética: tapioca, sal rosa, derivados de soja, leite, cacau, farinhas diversas, azeitonas, cereja para bolo. “Tem uma turma que vem atrás de proteína, sem gosto, whey, e compra cacau ou farinha de morango pra misturar e fazer shake”, diz. Também são muito procurados produtos que se acham em supermercados, mas mais baratos se comprados em grandes quantidades. Em vez de levar uma lata padrão de leite condensado, por exemplo, pode-se comprar logo um quilo, já que o preço compensa. O mesmo vale para macarrão, granola e molho de tomate, por exemplo. “Na nossa loja quase todo produto vende muito. Tem muito giro”, diz Bruno enquanto mais e mais caixas são carregadas para dentro do depósito da Camanducaia.

As lojas também precisam ficar atentas aos ingredientes do momento — como o hibisco e o sal rosa do Himalaia, presentes nas prateleiras de todas as lojas. O hibisco, por exemplo, potencializa a queima de calorias e combate o inchaço, enquanto o sal rosa tem menos sódio, um dos inimigos da vez. As lojas lá costumam ter painéis que informam as características de cada ingrediente e funcionários que sabem tirar dúvidas — e que, com sorte, te darão comida para experimentar.

De tempos em tempos, novos ingredientes ganham o cardápio de quem faz dieta ou quer levar uma vida mais saudável e a zona cerealista é o lugar ideal para quem busca reproduzir as receitas da Bela Gil. As lojas têm de ficar atentas às modas. “Quando o ‘Globo Repórter’ fala de uma castanha, por que comer, no sábado abarrota e o estoque vai embora. E hoje, com esses programas culinários em alta, na TV a cabo e o ‘Masterchef’, eles usam alguns produtos no preparo e reflete aqui também. Você vai na internet procurar onde achar cúrcuma e vai chegar na zona cerealista, vai acabar vindo pra cá”, diz Bruno, citando o ingrediente que Bela Gil usa como pasta de dente.

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Caixas de alho em depósito. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Boa parte dos produtos vendidos na rua Santa Rosa e na avenida Mercúrio, vitrines da região, vem do próprio bairro, de estabelecimentos que não vendem ao público. Saindo um pouco da região mais movimentada descobre-se outra faceta da zona cerealista, por onde praticamente só circula quem trabalha ali e onde as câmeras fotográficas do Risca Faca são observadas com curiosidade.

Portas abertas revelam grandes galpões abarrotados de sacos, do chão ao teto, enquanto caminhões bloqueiam completamente as ruas. Na sexta de manhã, um pequeno grupo de homens ensaca feijão em frente a um depósito. O feijão solto é colocado em sacos, costurados ali mesmo, e uma máquina os levanta para ajudar a colocá-los nas costas dos carregadores. “O feijão fica saindo o dia inteiro e vai abastecer o atacado. Você tem o cara do milho, o cara que torra o amendoim, faz paçoca, um monte de coisa. Batata ainda é muito forte aqui. Alho. Você cansa de contar as carretas de alho que chegam: alho argentino, importado da China, nacional. Tudo quanto é tipo de alho. E tudo isso acontece pra trás”, conta Bruno.

As calçadas são cheias de grãos e cascas de alho, que vendedores compram e descascam ali mesmo para vender no farol. É mais sujo que na Santa Rosa, onde a Prefeitura pressiona por mais limpeza. “A maioria dos nossos fornecedores está por aqui. Quando você não compra de fora tem tudo aqui, o próprio fornecedor está aqui, mas não tem loja”, diz Bruno. Entramos em um desses galpões e ele mostra os sacos de 25 quilos de hibisco empilhados. “Esse é um dos maiores fornecedores nossos, muita coisa que a gente pega vem daqui. Aí a gente porciona ou vende a granel. Esse saco rosa é de hibisco, muito bom. A gente compra feijão, milho, lentilha, grão de bico, ervilha, chia… Tudo. Acho que nossa lista de compras tem mais de cem itens daqui.” O saco rosa de hibisco que ele aponta é o melhor, em sua opinião. Em outros sacos pode-se encontrar bitucas de cigarro, penas de galinha, lascas de madeira.

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Vendedor de frutas numa esquina da rua Santa Rosa. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Mas há também coisa de fora, de vários cantos do mundo, na zona cerealista. É quase a regra na Casa Flora, onde o forte são as bebidas — a loja também é uma importadora, e por isso vende mais barato que supermercados, apesar de ter garrafas na casa dos 3 mil reais expostas. José Bispo lembra que nem sempre foi assim. A loja começou pequenininha, vendendo bacalhau, queijos e produtos enlatados. Bispo estava lá quando os primeiros vinhos começaram a chegar e fez curso para entender bem do produto — é comum que fregueses apareçam atrás de um vinho que tomaram na viagem e, caso eles não tenham aquela garrafa, lá eles sabem te indicar um produto que se aproxime.

Bispo, gerente que circula pela loja, conta que já conhece alguns clientes faz tempo e que é comum que fregueses novos venham se apresentar e peçam ajuda para conhecer a loja. Com prazer, ele mostra algumas de suas garrafas mais especiais, aquelas com rótulos mais bonitos (há uma coleção com o rosto de divas do cinema), com garrafas diferentes ou mais antigas (é comum que clientes peçam, por exemplo, um vinho do mesmo ano do nascimento de um conhecido).

Se a maioria das lojas da zona cerealista lembra armazéns do interior, a Casa Flora está mais para Empório Santa Luzia, o supermercado chique localizado nos Jardins. No meio de muitas lojas que vendem a mesma coisa, é importante se diferenciar. Ali os grãos, frutas e farinhas são vendidos em embalagens da Casa Flora e, além das bebidas, há uma boa variedade de queijos. Há produtos importados e nacionais, incluindo uma marca própria — o primeiro produto de lá foi o queijo Flora, produzido a partir de 1955 por Antônio Pereira Carvalhal, em Flora, distrito de Três Corações, em Minas Gerais. Basicamente, segundo Bispo, se o seu produto for bom as portas da Casa Flora estão abertas.

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José Bispo na Casa Flora. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Além das pessoas que se aglomeram na calçadas aos sábados tentando vender seus produtos na rua mesmo, há produtores batendo na porta das lojas direto querendo vender, com variados graus de qualidade. Queijos, por exemplo, devem respeitar algumas especificações para que possam ser vendidos. Produtos baratos demais também devem levantar suspeitas. O sal rosa, por exemplo, tem grandes variações de preço na própria zona cerealista. Se for muito barato, segundo Bruno, provavelmente o sal não será do Himalaia, e sim da Bolívia. “Você é obrigado a ter laudo de todo produto que você vende. Você pode pedir o laudo do hibisco. Tem que ter. Tem que ter uma garantia.”

Outra dica: ao comprar uva-passa, fique atento a grãos de açúcar ali. Se houver pontinhos brancos na fruta, é sinal de que ela recebeu um banho de groselha para ficar mais doce e com aparência mais fresca. Mas essas coisas só se aprende com a experiência. “Esse sal é bom, olhe a cor, bem rosa”, aponta Bruno numa loja concorrente. Além da Camanducaia, ele cita como lojas mais tradicionais a Casa Flora, o Empório Casmar, o Arroz Integral, o São Vito, o Filomena, o Empório Rosa — mas, basicamente, o ideal é ir ao bairro com calma e testar, se possível em dias de semana, dica unânime por ali. A cada visita é possível descobrir algo novo: diferentes tipos de lentilha, temperos, ervas, chás, grãos, e até cereal matinal de açaí ou bacon em flocos. Dá vontade de cozinhar mais.

No encontro entre a avenida Mercúrio e a Santa Rosa está sendo construído uma unidade do Sesc, que deve trazer ainda mais movimento no local — já há alguns eventos culturais no espaço. Entre os prédios baixos e mal conservados, começam a apontar também alguns edifícios altos e modernos residenciais, que parecem não pertencer ao bairro. Boa parte das lojas da zona cerealista fica no térreo de edifícios antigos, com salões pouco espaçosos nos quais é difícil circular — não é bem um local turístico, como o vizinho Mercadão. Os lojistas não ignoram o desconforto e alguns já expandiram os negócios para a internet — embora a maioria das lojas ainda não tenha aderido.

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Estoque de alho na zona cerealista. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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“A gente ainda não tem a parte de internet e está desenvolvendo esse meio de venda. É muito solicitado, mas como a gente vende muito a granel tem dificuldade com transporte e embalagem. A gente não encontrou um meio bom de fazer isso ainda. Tem muito produto de geladeira, precisa dar uma encaixada melhor nisso. Tem uma empresa já vendo isso pra gente, é um passo que a gente tem que dar”, diz Bruno, sobre a Camanducaia. Outras lojas, como a Empório Rosa e o Armazém Santa Filomena, já vendem pela internet — mas é uma minoria. No caso da Casa Flora, dá pra ver os produtos que eles têm, mas para comprar é preciso ir até o local.

De lá é possível ver o Mercadão, localizado do outro lado da avenida do Estado, primo rico da zona cerealista. O que se encontra na Santa Rosa também se acha lá, mas a preços mais turísticos. Sobre a zona cerealista, apesar do forte movimento aos sábados, sabe-se menos, vai-se menos a passeio e ainda há gente com um pé atrás. “Qual é o metrô mais próximo daqui?”, pergunta uma mulher com quatro sacolas pesadas, cheias de grãos, na porta da Casa Flora. Respondo que é o Pedro II, mas que não sei o melhor caminho. “Tudo bem, chegar lá eu sei. Só que tenho medo, dizem que aqui é perigoso, né?”, diz ela às 16h, com as ruas ainda bem cheias e iluminadas. Mas Bruno é otimista. Além do movimento crescente, diz que tem aumentado também o conhecimento sobre o local. “As pessoas não sabem tanto sobre a zona cerealista. Mas agora estão conhecendo.”

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Postais da era do rádio amador

De sua bolsa, Lena Rocha tira boa parte dos 500 cartões postais que herdou da coleção de seu pai. Agrupados por região de origem, os cartões vêm de todos os cantos do mundo e têm estilos bem diferentes: uns são coloridos, outros em preto e branco, uns com ilustrações, caricaturas, e outros com fotos, uns num papel mais fino, mole, outros mais firmes. Mas há algo um pouco esquisito em comum: todos eles têm uma espécie de código formado por duas letras, um algarismo e mais três letras. Lena explica: todos aqueles cartões foram recebidos por seu pai nos anos 1980 quando ele atuava como radioamador — alguém que se comunica com outras pessoas por hobby por meio do rádio. Cada cartão veio de alguém com quem seu pai conversou e o código é a identificação do rádio. As duas primeiras letras, por exemplo, indicam o país da pessoa com quem ele se comunicou. “É como se fosse uma placa de carro”, ela diz.

Esses cartões são chamados de QSL, uma confirmação escrita do contato entre duas estações de rádio. Geralmente, são enviados depois do primeiro contato entre elas. No verso, em vez de longos textos, como se espera num cartão postal comum, há algumas informações sobre o contato e talvez uma ou outra mensagem curta como “foi ótimo conversar com você”. Há a hora e a data do contato, a frequência de rádio, a banda utilizada… Os cartões, feitos por cada radioamador, têm um formulário atrás, preenchido depois à mão.

Verso de um cartão enviado da Alemanha
Verso de um cartão enviado da Alemanha em 1980

Os 500 cartões em posse de Lena faziam parte de uma coleção ainda maior, que seu pai, Isnard (chamado de Nard nos cartões, uma confusão dos radioamadores que ouviam “my name is Isnard”), jogou fora. Esses foram aqueles que ela conseguiu resgatar e que, agora, colocou à venda — está de mudança para a Europa e guardou apenas alguns exemplares. Do começo dos anos 1970 até metade dos anos 1980, seu pai conversava com outros radioamadores pelo mundo, primeiro em código morse e depois por voz, com microfone. Fez contato com a União Soviética — de onde vêm alguns dos mais belos cartões –, com a Alemanha Oriental e com a Ocidental, com o Japão, os Estados Unidos, a Suíça, o Vaticano, entre outros países. Lena só não sabe sobre o que eles falavam. “Eu era criança, mas possivelmente ele passava recados”, ri.

“Ele foi por dez anos radioamador e fez amizades através do rádio com gente do mundo todo. Cada pessoa com quem ele conversava mandava um cartão pra ele”, conta Lena. “Minha infância foi ouvir os negócios de rádio. Tem uns barulhinhos do código morse, das transmissões. Era no quarto do lado do meu, ele ficava a madrugada falando no rádio”, continua. “A gente sempre morou em apartamento, e em Belo Horizonte as antenas dele davam interferência nas antenas de TV do prédio. A gente levava multa.”

Lena conta a história enquanto mostra os cartões que ainda tinham sobrado, poucos dias após o início da venda, a preços baixos (no máximo de R$ 5). A coleção do Japão, por exemplo, foi vendida para uma pessoa só. Os da Alemanha Oriental foram todos enviados para Brasília — como no caso da União Soviética, havia uma variedade menor de imagens e ela tinha vários repetidos. Os do Brasil ela nem trouxe à conversa, pois são os mais simples. Em vez de fazer um cartão personalizado, como os estrangeiros, os brasileiros costumavam comprar cartões postais normais, desses que se acham em banca, e preenchiam à mão as informações do contato.

Com os endereços e informações de alguns dos radioamadores em mãos, Lena procurou alguns dos radioamadores que falaram com seu pai. Vários já haviam morrido. “Não era muito moleque quem fazia isso”, diz. Mas encontrou no Facebook, por exemplo, o bisneto de um húngaro que Isnard conhecia. “E a gente ficou amigo assim. Engraçado, né?” Também procurou na internet foto das fachadas das casas. “Fui pro Japão, levei os cartões, mas não consegui achar ninguém, acho que as pessoas tinham se mudado.” Menos de uma semana depois, Lena já encerrado a venda — mas as imagens, com as histórias de Isnard, ficaram guardadas.

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Frente de cartões da União Soviética
Frente de cartões da União Soviética

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Cartões ilustrados da Alemanha
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Cartões da antiga Tchecoslováquia
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Cartões recebidos por Isnard do Japão
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Cartões de origens variadas, parte da coleção de Lena
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Cartões britânicos
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Frente de cartões vindos dos Estados Unidos
Frente de cartões vindos dos Estados Unidos

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História

A prisão soldada

Dez anos atrás, no fatídico ataque do PCC e nas rebeliões que se seguiram, diversas histórias marcaram o Estado de São Paulo. Várias se perderam no mar de boatos, conflitos e confusões. Histórias como a de Araraquara, em que a penitenciária Sebastião Martins Silveira, em rebelião, sentiu a mão pesada de Antônio Ferreira Pinto, que acabara de assumir a Secretaria de Administração Penitenciária.

Convidamos o artista Rafael Coutinho para ilustrar uma história frequentemente esquecida, mas que mostra como o Estado de São Paulo estava em regime de exceção em 2006.

 

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Quando São Paulo parou

Os policiais estavam com medo, dentro de suas bases, esperando novos ataques ou novas instruções. O que viesse primeiro. Perto do meio-dia, os telejornais vespertinos passavam imagens dos ataques no dia anterior — nos bastidores, os produtores tentavam confirmar o boato de que um tiroteio teria acontecido em Higienópolis, bairro nobre no centro da cidade. Falavam sobre portas de universidades metralhadas. Histórias desencontradas.

A população estava assustada. Três em cada dez estudantes não foram às aulas na manhã daquele dia — e nada menos que 5,5 milhões de pessoas, aproximadamente metade da população da Grande São Paulo, não tinham como chegar ao trabalho por causa da falta de ônibus. Afinal, os motoristas também estavam apavorados. Da 25 de Março à Daslu, o comércio fechou antes do cair do sol.

Por volta das 18 horas daquela segunda-feira, 15 de maio de 2006, São Paulo era uma cidade fantasma.

Passados dez anos dos ataques promovidos pelo Primeiro Comando da Capital em maio de 2006, parece improvável que a facção repita uma ação coordenada capaz de paralisar o Estado, mobilizar todas as forças políticas e deixar um rastro de mortes — foram 493 em nove dias, de acordo com o Instituto Médico Legal. Desde então, especialistas e autoridades buscam entender a motivação dos ataques, com opiniões divergentes.

Uma pesquisa inédita, porém, traz evidências que apontam um novo caminho para compreender por que o PCC resolveu parar São Paulo. E a explicação tem a ver com a queda nos índices de criminalidade. A partir de dados do Disque-Denúncia e da Secretaria de Segurança Pública do Estado, dois economistas e um sociólogo encontraram indícios fortes de que o PCC aproveitou o levante de 2006 para expandir seu domínio territorial sobre as favelas paulistanas.

 

***

“Tudo isso não passa de ficção. Em São Paulo, não existe crime organizado”, disse o então secretário de Segurança Pública, Benedicto de Azevedo Marques, em maio de 1997. Ele havia sido confrontado com um suposto estatuto do PCC, divulgado à época. Essa é outra mudança perceptível: após os ataques, declarações de autoridades buscando diminuir o poder da facção praticamente sumiram. Ninguém duvida da autoridade de Marco Willians Herbas Camacho, nome completo de Marcola, chefão do PCC que começou sua carreira criminosa aos 10 anos de idade e hoje, aos 48, é o bandido mais influente do país à exceção de alguns políticos.

Em todos os presídios pelos quais passou, distribuídos por cinco Estados e o Distrito Federal, Marcola causou preocupação às autoridades. Em maio de 2006, o governo paulista decidiu transferir o detento a um presídio de segurança máxima no interior do Estado, no qual seria submetido ao regime disciplinar diferenciado — sem direito a TV, rádio, livros e jornais e com apenas duas horas diárias de banho de sol.

Não saiu como planejado.

Simultaneamente ao início da transferência de 735 presos, que segundo o governo seriam ligados ao PCC, a facção pôs em execução um plano para instaurar o terror em São Paulo. “A ordem para os ataques já tinha sido dada antes de a remoção dos presos ser efetuada”, afirma o procurador de Justiça Criminal Márcio Christino, um dos pioneiros no Ministério Público de São Paulo a investigar o PCC. Uma versão divulgada, mas jamais confirmada, dava conta de que os ataques seriam um revide por Marcola ter sido extorquido por policiais corruptos, sem qualquer relação com as transferências. “A remoção dos presos foi efetuada para tentar evitar que as ordens fossem cumpridas, ou seja, para tentar pressionar ou segurar os atentados”, acrescenta Christino. Os primeiros ataques ocorreram na periferia paulistana e na Grande São Paulo na noite do dia 12 de maio, sexta-feira pré-Dia das Mães, somados a três rebeliões em penitenciárias no interior. Como quem não quer nada, o caos entrou pela porta da frente, puxou uma cadeira e se fez presente, especialmente na capital.

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No sábado, Marcola e outros líderes do PCC chegaram à sede do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), onde deveriam ficar incomunicáveis por até 20 dias, antes de serem finalmente levados à prisão de segurança máxima de Presidente Bernardes. Enquanto isso, lá fora, o levante foi escancarado: ocorreram 63 atentados em 23 cidades, deixando 25 agentes públicos mortos — policiais militares e civis, agentes penitenciários e guardas municipais. À noite, o delegado Godofredo Bittencourt, diretor do Deic, se reuniu com Marcola na tentativa de negociar uma saída. “Agora é tarde”, retrucou o bandido, segundo uma das testemunhas do encontro. Na tentativa de responder à altura, a cúpula do governo paulista se encontrou, já durante a madrugada, para traçar estratégias. O secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, definiu a tática que considerava ideal: “Distribua os armamentos de grosso calibre e vamos partir para cima”, ele afirmou, segundo se recorda o advogado Nagashi Furukawa, então titular da pasta de Administração Penitenciária presente na reunião.

O Dia das Mães passou com a certeza de que a efetividade da Polícia Militar havia aumentado. Ao passo em que o PCC expandiu sua tática de terror, com 80 presídios paralisados a mando da facção e 156 atentados realizados, as mortes causadas pelas ações diminuíram em comparação aos dias anteriores. E, naquele dia, diversos suspeitos foram mortos em combate com a PM. Segundo as informações coletadas nos boletins de ocorrência daquele período, o Dia das Mães apresentou o pico de mortes durante toda a crise — 107 civis foram mortos a tiros num único dia, no Estado de São Paulo.

Na segunda-feira, escolas e comércios fecharam, menos ônibus circularam e a capital paulista ficou deserta. Numa época em que os celulares cumpriam principalmente sua função inicial, as ligações telefônicas em São Paulo atingiram seu recorde histórico. A população, aterrorizada, buscava informações confiáveis em meio a um sem-fim de boatos e das respostas lacônicas do governo paulista. Os ataques e rebeliões cessaram na terça-feira, dia 16, mas mortes ligadas ao levante ocorreram pelo menos até o dia 20. As estimativas de vítimas no período variam de 493, número adotado pelo IML com base em laudos necroscópicos, a 564, quantidade calculada pelo sociólogo Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com base em boletins de ocorrência.

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A possível ação de agentes públicos em grupos de extermínio, durante o período, foi investigada, mas ninguém foi denunciado. O Ministério Público requisitou à PM, judicialmente, os registros dos pedidos de checagem de antecedentes criminais feitos por policiais no período dos ataques. O objetivo era descobrir se algum dos civis mortos e com indícios de execução tiveram seus antecedentes consultados. Em resposta à Justiça, o coronel Ailton Araújo Brandão, comandante da PM à época, disse que o sistema “parou de funcionar por problemas de desgaste natural pelo uso, não mais gravando as comunicações do Centro de Operações da Polícia Militar”. Christino, que tentou investigar o caso pelo Ministério Público, encontrou a mesma situação. “Nós chamamos o fabricante, pedimos para ele fazer uma perícia, e o fabricante disse que havia um defeito na máquina, uma tomada que tinha saído.”

Para Fernando Delgado, advogado e professor de direito na Universidade Harvard, “o Estado tomou uma postura de revide, que teve fortes indícios de execuções sumárias e envolvimento de autoridades estatais em grupos de extermínio”. Ele coordenou uma pesquisa que analisou causas e consequências para os ataques do PCC. Além de equívocos na política prisional e a corrupção de agentes públicos, Delgado aponta a resposta do governo aos ataques como um dos erros cometidos. “Esse revide seria ilegal e não contribuiria para a segurança pública, pelo contrário, alimenta-se um ciclo de violência que está instalado”, argumenta o advogado.

***

Para entender como o PCC foi capaz de executar uma ação articulada de tamanho porte — que ocorreu, lembre-se, com boa parte de seus líderes sob guarda 24 horas da Polícia Civil — é necessário, antes, compreender a origem da facção. A célula inicial do Primeiro Comando da Capital foi formada, em 1993, no anexo da Casa de Custódia de Taubaté, local notório tanto por abrigar detentos perigosos como por suas más condições de habitação. O estado precário do Piranhão, como os detentos chamavam o presídio, foi uma das justificativas para a criação do PCC. Sob o mote “liberdade, justiça e paz”, presente em seu estatuto, a facção dizia lutar “contra as injustiças e a opressão dentro das prisões”.

Conforme os membros fundadores foram transferidos para outras cidades, o PCC se difundiu no sistema prisional. Idemir Carlos Ambrósio saiu do Piranhão em 1994. Mas Sombra, como era conhecido um dos oito integrantes iniciais do PCC, continuou no sistema prisional paulista, transferido para Araraquara. “Com seu espírito de liderança, conquistou rapidamente dezenas de adeptos”, escreve o repórter Josmar Jozino, no livro “Cobras e Lagartos: A Vida Íntima e Perversa nas Prisões Brasileiras”, em que narra a história do Primeiro Comando. “Por ser o primeiro batizado da facção, Sombra sempre teve o direito de batizar novos ‘soldados’ e de dizer quem era ou quem não era ‘irmão’.”

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Passaram-se anos e o PCC manteve-se abaixo do radar das autoridades, crescendo por meio de “batizados” feitos entre “irmãos”. As primeiras menções à facção na imprensa datam de 1997, quatro anos após seu surgimento, e aparecem com pouca frequência. Desde então, as principais fontes de renda do grupo mantiveram-se as mesmas: mensalidades de integrantes — tanto dos que estão presos como dos que estão soltos —, crimes de oportunidade (como roubos a banco e sequestros) e, principalmente, tráfico de drogas. A expansão territorial do PCC aconteceu em duas direções: para dentro das prisões e para cima das bocas de fumo paulistas. De modo geral, em troca de uma parcela dos negócios, o PCC fornece segurança para seus membros. E segurança, quando se atua em um mercado ilegal, é um bem muito importante. Assim, a receita do PCC só fez aumentar desde que a facção foi criada. O procurador Christino estima em “alguns milhões de reais” a receita mensal deles atualmente.

***

Especialistas e autoridades concordam que a estrutura capilar estabelecida durante mais de uma década pelo PCC foi crucial para a eficiência do levante, em maio de 2006. As interpretações para entender o que a facção ganhou com os ataques, no entanto, variam. Logo após os atentados, o governo de São Paulo continuou sob críticas pelo descontrole nos presídios do Estado. Uma das respostas foi a demissão do secretário de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, e a nomeação de Antônio Ferreira Pinto, mais alinhado ao titular da Segurança Pública, como seu substituto. Ex-promotor e ex-policial militar, Ferreira Pinto era visto como linha-dura, e a primeira medida de sua gestão determinou que amotinados que destruíssem suas celas não fossem transferidos a outros presídios.

“Com isso, eles entenderam a mensagem de que eram apenas manobrados pela facção, porque os presídios ocupados pelas lideranças sempre permaneceram inteiros, e eles nunca perderam um dia de visita, nunca perderam um dia de sol”, afirma o ex-secretário, hoje aposentado. Ferreira Pinto acredita que os líderes do PCC exercem sua influência para tornar os membros de baixo escalão meros peões, sujeitos somente aos interesses dessas próprias lideranças. Seria uma forma de buscar legitimidade, o que o ex-secretário rechaça. “Nunca nós os dignamos a conversar com eles, bandido é bandido e polícia é polícia”, ele afirma. “Eles não têm status nenhum”, posiciona-se.

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O procurador Christino argumenta no mesmo sentido, mas reconhece que o PCC conseguiu seu lugar à mesa de negociação. “Muito embora eles não tenham nenhum lucro, nenhum ganho patrimonial, eles tiveram um ganho político muito grande, porque se lançaram como uma entidade influente socialmente”, afirma o membro do Ministério Público. A destruição dos presídios, para Christino, também teve influência na definição dos ataques: “O que o PCC pretendia naquela época era inutilizar o presídio que não fosse do agrado deles, para que ele fosse desmobilizado e não fosse mais usado”.

***

Uma pesquisa inédita traz dados que sugerem outro motivo para a facção ter realizado os ataques: expansão territorial. O economista João Manoel Pinho de Mello, professor do Insper, investigou a hipótese em parceria com o economista Ciro Biderman e o sociólogo Renato Sérgio de Lima, ambos professores da Fundação Getulio Vargas. A partir de bases de dados do Disque-Denúncia e da Secretaria de Segurança Pública paulista, à qual Mello teve acesso durante uma pesquisa financiada pelo Banco Mundial, o trio estudou como o PCC expandiu seu território nas favelas em São Paulo.

Antes dos ataques, a facção estava presente em pouco mais de 40% das favelas paulistanas, aproximadamente, índice que saltou para mais de 70% até o fim de 2006 — e manteve crescimento estável até pelo menos o fim de 2009, até onde vão os dados da pesquisa. A partir de menções à facção em ligações do Disque-Denúncia e aos dados do governo, os pesquisadores foram capazes de estabelecer uma linha do tempo comparando a entrada do PCC em determinado local e uma possível influência nos índices criminais de lá.

No mesmo período, a tendência geral das ocorrências de tráfico e de porte de entorpecentes foi de queda. Entre 2013 e 2015, de acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública, ambos os tipos de ocorrência variaram pouco: apresentaram queda em 2014, em comparação ao ano anterior, e subiram em 2015, para patamar equivalente ao inicial. O Risca Faca solicitou ao governo de São Paulo uma entrevista com o secretário de Governo, Saulo de Castro Abreu Filho — titular da Segurança Pública durante a crise de 2006 —, para falar sobre o PCC, mas o pedido foi negado.

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Para o ex-secretario Ferreira Pinto, o sucesso comercial do PCC é resultado de uma política de combate às drogas que deixou de atrapalhar: “A facção ganha muito dinheiro no tráfico. Por que eu, pertencente à facção, vou atentar contra o Estado, se o Estado não me incomoda?”, ele critica. Mello, do Insper, coloca o mesmo argumento em outras palavras, a partir de outra perspectiva: “Se o poder público está disposto a ser cínico o suficiente para conviver com o tráfico de drogas, ótimo”, resume o economista.

Esse é um dos mais delicados temas relacionados ao crime organizado. Afinal, uma facção é capaz de atuar por conta própria a fim de diminuir os índices criminais? “O que a gente estima é que o PCC, ao entrar numa favela, comparado com uma favela onde ele não está, causa uma queda nos crimes violentos — homicídio, agressão e homicídio culposo”, afirma Mello em seu escritório na faculdade, buscando uma resposta científica ao problema. “Só que a gente não encontra nenhum efeito sobre crimes contra o patrimônio, que inclusive era mais fácil de encontrar, porque crime contra o patrimônio é uma coisa comum.”

Ele cogitava duas hipóteses para explicar a queda nos índices: a da competição, na qual os crimes violentos caem simplesmente porque o PCC deixa de ter adversários, e a da justiça, na qual o PCC assume o papel de provedor do bem público no lugar do Estado. Como apenas os crimes violentos apresentaram queda, Mello pende a confirmar a primeira hipótese.

O Primeiro Comando da Capital jamais repetiu uma mobilização tão grande quanto a realizada há dez anos. Por quê? “Dentro do paradigma proibicionista, a evidência que está sendo construída é que é melhor enfrentar um grupo só”, analisa o economista. Em outras palavras, enquanto as políticas antidrogas não mudarem, tende a ser melhor para o governo enfrentar um PCC só, em vez de vários cartéis, como ocorre no México. Além disso, a facção conseguiu se manter sem dissidências. “É simples, a liderança que está prevalecendo hoje é uma liderança forte, que está conseguindo se manter”, afirma Christino.

A pesquisa de Mello, do Insper, vai no mesmo sentido. O estudo mostra que há formas de diminuir os crimes causados pelo comércio ilegal de drogas, sem necessariamente acabar com o tráfico. Por exemplo, incentivando a venda apenas em lugares fechados, como bares, para tirar traficantes das ruas, onde tiroteios são mais prováveis. Ou, como cantaram os Racionais MCs: “O movimento dá dinheiro sem problema, e o consumo tá em alta como manda o sistema”.

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Belas, censuradas e do lar

Não havia horário para o fim do expediente no 12º andar do imponente edifício que ocupa, de forma triangular, as esquinas das ruas João Adolfo e Álvaro de Carvalho, a poucos metros da Avenida 9 de Julho, centro velho de São Paulo. Há 50 anos, no mês de abril de 1966, era lançada a edição inaugural da revista Realidade.

Naquele andar do prédio, antiga sede da então novíssima Editora Abril, estavam homens com idade entre 25 e 30 anos, bem alinhados em camisa, gravata e terno de tergal e, também, bem pagos – em comparação com profissionais da época na mesma função. Essa era a turma de 66, uma equipe de jovens jornalistas escolhida a dedo para compor essa nova proposta editorial, uma revista mensal, com textos e fotos que exibissem o Brasil (e o mundo) de uma forma única e, até então, inédita em solo nacional.

Os últimos dias de 1966 eram de ansiedade para esses repórteres e editores – era assim a cada fechamento de edição. No caso, a próxima capa era a de número dez, chamada de Edição Especial – A mulher brasileira, hoje. Mesmo prevista para circular em janeiro de 1967, já estava certo que as bancas a receberiam ainda no mês de dezembro. A revista Realidade, em seu primeiro número, registrou 250 mil exemplares vendidos em poucos dias. Em tempos de rádio e com a televisão ainda em crescimento no país, a publicação chegou a ter 450 mil exemplares impressos. Atualmente, segundo os últimos dados da Associação Nacional de Editores e Revistas (ANER), a revista Claudia, maior publicação mensal em circulação, tem 420 mil exemplares impressos.

A edição foi pensada e desenhada para falar exclusivamente e, de uma forma inédita, sobre a mulher no Brasil. “Não sei como surgiu a decisão [da edição], mas acho que foi a consequência natural do que a revista vinha fazendo”, relembra o então repórter José Carlos Marão.

A capa. Crédito: Divulgação
A capa. Crédito: Reprodução

Nos últimos meses, o conteúdo da revista vinha abordando, de forma mais pontual, o universo feminino. A edição número quatro foi encartada com um cartão-resposta, que perguntava o que os brasileiros pensavam do divórcio. A revista trazia depoimentos sobre filhos não reconhecidos, viúvas sem herança e casos de discriminação com a situação jurídica das separações. O retorno foi animador para a redação: cerca de 15 mil respostas. “Naquele tempo, sem computadores, o resultado da pesquisa foi tabulado ‘na unha’, só sairia na edição 8, onde pela primeira vez, pelo que eu saiba, foi publicada uma pesquisa completa, com resultados por sexo, idade, escolaridade”, conta Marão.

A “evolução” do tema em pautas da revista, segundo o jornalista, teria motivado a elaboração da Edição Especial – A mulher brasileira, hoje.

***

Hoje já clássica, a capa da edição veio toda em azul. O desenho de uma lupa focava no rosto de uma mulher, registrada pelo fotógrafo norte-americano George Love (1937-1995). O sumário explicava a opção pelo design de capa: “Uma mulher colocada sob a lente de aumento sintetiza o espírito desta edição especial: mostrar como é a mulher brasileira”.

Em uma carta ao leitor sob o título O trabalho que elas deram, o então diretor Roberto Civita explica que a proposta da edição surgiu, seis meses antes, numa longa conversa ao pé da lareira. “Falamos da revolução tranquila e necessária – mas nem por isso menos dramática – que a mulher brasileira estava realizando.”

Um dos eixos da edição estava baseado na publicação de uma pesquisa nacional sobre o sexo feminino, que teve suas conclusões – algumas surpreendentes para os editores – publicadas na íntegra.

Durante 40 dias no ano de 1966, a revista espalhou dez pesquisadores pelo Brasil com o objetivo de entrevistar 1,2 mil mulheres e ouvir o que elas tinham a dizer sobre temas como família, consumo e sexo. Os dados foram computados pelo Instituto Nacional de Estudos Sociais e Econômicos (Inese) e os resultados apresentados na íntegra em seis páginas da publicação.

Dentre os números reunidos havia, por exemplo, que 97% das mulheres ouvidas dizia acreditar em Deus – sendo que 11% já haviam duvidado. Que 40% das entrevistadas achavam que a mulher é mais inteligente que o homem; 59% respondeu que não e 1% preferiu não responder. E sobre sexo, 67% das entrevistadas continuam achando que a mulher deve casar virgem; 81% das analfabetas tiveram essa opinião; 54% entre as de nível universitário.

[olho]“Ao afirmar ter orgulho de ser mãe solteira, ela foi pioneira do movimento de vanguarda de libertação da mulher dos grilhões medievais”[/olho]

As reportagens abordavam temas como saúde, comportamento, humor, artes, religião, revelando mulheres fortes, batalhadoras, inovadoras e marginalizadas. Apesar de a maioria dos textos serem assinados pelo time de jornalistas da casa, quase todos homens, algumas mulheres foram convidadas para integrar a equipe. Daisy Carta realizou uma pesquisa para uma pauta sobre a “superioridade natural das mulheres”; Carmen da Silva teve contato com milhares de cartas para elaborar um artigo sobre “consultórios sentimentais”, e Gilda Grillo escreveu uma impactante entrevista com uma anônima mãe solteira.

A entrevista dada a Gilda Grilo. Crédito: Reprodução
A entrevista dada a Gilda Grilo. Crédito: Reprodução

Gilda havia voltado recentemente para o Brasil. Ainda na juventude tinha viajado para estudar na França e Nova York onde conheceu pessoalmente nomes como Greta Garbo, Marilyn Monroe, Simone de Beauvoir, François Truffaut, Catherine Deneuve. “A entrevista com a mãe solteira foi marcante para mim pela enorme coragem que ela teve, naquele tempo”, recorda Gilda, hoje vivendo no Rio de Janeiro, há 30 anos atuando como terapeuta. A autora da reportagem lembra que a mulher recusou-se a casar com o pai da criança se o motivo fosse apenas o filho, o que, na visão da terapeuta, era fora do comum para a época. “Ela foi pioneira do movimento de vanguarda de libertação da mulher dos grilhões medievais.”

Exemplares recolhidos

No entanto, a maior polêmica sobre a revista viria do talento de uma outra mulher, a fotógrafa Claudia Andujar. Nascida na Suíça, chegou ao Brasil nos anos 1950 e realizou trabalhos para a editora Abril. Foi casada com o fotógrafo Love, autor da capa. Posteriormente, sua atuação com as comunidades indígenas ficaria mundialmente conhecida – hoje, há um pavilhão inteiro sobre sua obra no Inhotim, em Minas Gerais. No número dez de Realidade, ela acompanhou o repórter Narciso Kalili em Bento Gonçalves (RS), para registrar o trabalho de uma parteira, publicado em sete páginas.

A foto da parteira dona Odila, de luvas, no momento exato em que acompanha o nascimento do bebê, com a mãe deitada em uma cama de lençóis amarrotados, uma imagem que foi dividida na dobra entre as páginas 72 e 73, motivou uma decisão judicial inusitada.

O Curador de Menores do Estado de São Paulo, Luiz Santana Pinto, requereu ao Juiz de Menores, Arthur de Oliveira Costa, a “imediata e sumária apreensão desta publicação, onde seja encontrada à venda nesta comarca”. O requerimento foi feito no mesmo dia em que a revista chegou às bancas, 30 de dezembro de 1966. O magistrado aceitou e despachou a ordem que os serviços de vigilância e rondas especiais recolhessem os exemplares.

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As fotos de Claudia Andujar. Crédito: Reprodução

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“A revista foi apreendida por ordem de um Juiz de Menores!”, exclama José Hamilton Ribeiro, à época na redação de Realidade e na ativa até hoje, aos 80 anos, no programa Globo Rural. “Começa aí o absurdo de um governo totalitário: a censura pode vir de qualquer canto, a ditadura se espraia pelas cabeças de todos que têm um pouquinho de poder”, prossegue. O Brasil iniciava o segundo ano de uma ditadura militar que começou com o Golpe de 1964 e que se prolongaria por 21 anos.

Em uma publicação no Diário Oficial, o juiz classificava que a revista tinha “algumas reportagens obscenas e profundamente ofensivas à dignidade e à honra da mulher, ferindo o pudor e, ao mesmo tempo, ofendendo a moral comum, com graves inconvenientes e incalculáveis prejuízos para a moral e os bons costumes”.

No dia seguinte, como descreve a historiadora Rosana Ulhôa Botelho, em seu artigo “Golpes contra a Realidade“, foi a vez do Juiz de Menores da Guanabara, Cavalcanti de Gusmão, adotar medida semelhante. Cerca de 200 mil exemplares já estavam à venda nas bancas. Por volta de 230 mil ainda estavam na gráfica da editora e foram retidos.

“Vista hoje, essa proibição fica ainda mais ridícula, é de dar risada, censurar fotos de um momento glorioso da vida humana, feitas com apuro artístico!”, reforça Ribeiro. “Só mesmo a mente equivocada de uma ‘otoridade’ para ver assim”, brinca.

“A gente sabia que alguns pontos [da edição], como a foto do parto, provocariam discussões”, afirma José Carlos Marão. “A gente esperava boa repercussão de alguns dos temas, como o divórcio. Mas, quando a notícia chegou na redação, a reação foi de perplexidade”, lembra. O jornalista conta que o departamento comercial foi o primeiro a saber.

Segundo Marão, a “venda da revista era tão rápida que não conseguiram apreender muitas – e jornaleiros espertos, percebendo um bom negócio, também esconderam seus exemplares, para a venda futura”.

Em 2011, Roberto Civita (1936-2013), diretor editorial do Grupo Abril, contou para o Jornal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) que “só depois descobrimos que os magistrados tinham sido incitados por um telefonema do Governador de São Paulo (Laudo Natel) que, por sua vez, havia recebido uma ligação indignada do cardeal da arquidiocese (Dom Agnelo Rossi, 1913-1995)”.

A edição seguinte, de fevereiro de 1967, trouxe todo o conteúdo da acusação dos magistrados, bem como a defesa, em forma de reportagem. A capa continha uma ironia: uma foto do renomado fotógrafo americano David Drew Zingg (1923-2000), com o rosto dela, Gilda Grillo. “O Victor Civita então aproveitou para rir da cara da censura, colocando uma moça dando um grande sorriso com o rosto coberto de purpurina. Essa moça era eu”, conta Gilda.

Gilda na capa da edição de fevereiro. Crédito: Reprodução
Gilda na capa da edição de fevereiro. Crédito: Reprodução

Uma decisão judicial favorável à revista seria dada 21 meses depois, mas os exemplares recolhidos já haviam sido destruídos.

Para Marão, o episódio com a Justiça, dois anos antes do rigoroso Ato Institucional nº 5, deixava claro que os holofotes estavam voltados à Realidade. “O que deu para sentir foi o quanto aquela revista nova, que estava ainda na sua edição número 10, já era muito importante no País”, diz.

***

Não é preciso explicar muito o quão diferenciada era a redação de Realidade. Basta ler o primeiro parágrafo da reportagem que causou a apreensão das revistas nas bancas, vindas da Studio 44, máquina de escrever portátil da Olivetti, operada por Narciso Kalili.

A cidade de Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, vive no fundo de um vale cercado por montanhas cobertas de trigo, cevada e parreiras verde-brilhante. O povo fala alto e os gestos acompanham as palavras – a colonização foi feita por imigrantes italianos. Chamam-se a si mesmos gringos embora tenham nascido, em sua maioria, no Brasil. As casas são de madeira e há muitas flôres em seus jardins. O pão é feito em casa e em tôdas as mesas estão o galetto e a polenta. Depois que a indústria começou a sustituir a agricultura, êles fixaram-se na cidade e transformaram-se em operários e comerciantes. Os hospitais foram surgindo e o progresso acabou com muitas tradições, uma delas a parteira que atendia a domicílio. Mas muita gente de Bento Gonçalves ainda não troca a dona Odila pelo médico. Esta é a história de um de seus partos.

“O destino me colocou ali, naquele momento em que diversas circunstâncias históricas se confluíram para gerar um fenômeno jornalístico reconhecido em sua época”, explica José Hamilton Ribeiro, que afirma ainda reconhecer “certas facetas de nosso jornalismo”, especialmente às propostas voltadas à pesquisa, investigação e ao apuro em relação ao texto.

[olho]“A mulher hoje é, sim, bem menos perseguida e tem direito à voz de uma forma que naquele tempo poucas mulheres se arrogaram a ter”[/olho]

E ao utilizar dessas virtudes jornalísticas para falar das mulheres, a revista deu de cara com os rigorosos valores e costumes da época. “Fico imaginando como seria se, naquele tempo, alguém falasse em união de gays ou casais em seu segundo ou terceiro casamento e que, apesar disso, criam os filhos com amor e harmonia”, reflete José Carlos Marão, que ouviu três mulheres divorciadas que optaram por usar nomes fictícios na edição. “O que chamavam de ‘divórcio’ era, para muitos, coisa do demônio e, para outros, uma imoralidade.”

Mas, e se colocada em perspectiva, qual o impacto de uma publicação como a Edição Especial – A mulher brasileira, hoje, passados cinquenta anos? Gilda Grillo, apesar de ter vivido grande parte desse período fora, afirma que a realidade da mulher mudou drasticamente. “A mulher hoje é, sim, bem menos perseguida e tem direito à voz de uma forma que naquele tempo poucas mulheres se arrogaram a ter”, diz.

***

Sérgio carrega o sobrenome de seu pai, Narciso Kalili, repórter que assinou a tão comentada reportagem “Nasceu!”. O filho conta que o autor não falava muito sobre o assunto. “Meu pai não gostava muito de viver do passado, de falar do passado. Estava sempre ligado no presente. Era uma característica dele. Sempre com muitos projetos, sempre em ebulição”, lembra.

Lamenta, também, não ter tido tanto tempo para tratarem desse tema. “Ele morreu muito cedo (em 1992). Não deu tempo de conversar muito sobre o passado”, diz.

Sua homenagem ao legado do pai – e de toda equipe – virá em formato audiovisual. Ao lado de Marcelo Souza, filho do então editor de texto, Sérgio de Souza (1934-2008), pretendem produzir uma série e um documentário sobre “a turma que fez Realidade e que, posteriormente, continuou na imprensa alternativa”. Os trabalhos estão em andamento e alguns depoimentos já foram gravados.

“Meu pai gostava de dizer que o tempo passou, mas que ele não havia se corrigido. Dizia que era um jornalista fora de moda”, lembra Sérgio, ao dizer que o pai continuava humano, companheiro, idealista, sensível e buscando trazer justiça com a profissão para os mais pobres. Kalili também dizia que “jornalismo imparcial não existe”. Seu último texto escrito antes de partir foi o prefácio da primeira edição de Rota 66 (Record), de 1992, livro-reportagem de Caco Barcellos. “Lá ele disse que jornalista tem lado e que Caco escolheu o lado do povo. Ele estava falando dele também.”

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A última família dos índios Juma

De semblante fechado, respostas curtas e simples, pobres de detalhes, mas extremamente ricas em sentimentos, Aruká reflete sobre o que poderia ter feito para não estar na situação em que se encontra hoje. “Meu pensamento é que o Juma aumentasse mais. Como que não tem mais Juma?”, questiona.

Aruká é o último homem do povo Juma. No século 18 eram cerca de 15 mil índios desta etnia, mas hoje só restaram o senhor de 82 anos e suas filhas Maitá, 31 anos, Borehá, 35 anos, e Mandeí, a mais nova, hoje com 28 anos. Como são patrilinear, ou seja, seguem a linhagem paterna, e como não existem mais homens, o futuro dos Juma já está condenado. Esta é a família final.

Os Juma não têm pajé, mas têm cacique – algo raro, um mulher: Mandeí. Assim como as irmãs, é uma pessoa simpática mas de postura firme. Em 2014 ela estava caçando na floresta e foi picada no pé por uma cobra jararaca, cujo veneno pode ser fatal. A cacique aguentou e só foi atendida dois dias depois, sem necroses ou perda de membros. Mandeí é, sem dúvidas, uma mulher forte. Pela organização e rotina da aldeia é claro notar que são as três Juma que tomam a frente e comandam o lugar – afinal, a terra é delas.

A história segue o mesmo triste roteiro de outros povos indígenas do Brasil. Inicialmente dizimados pelos portugueses, os Juma foram arrasados pelas doenças trazidas pelo homem branco e em seguida por seringueiros, garimpeiros e ladrões de terra. Foi um massacre constante, com relatos de chacinas, mas nenhuma condenação. No final da década de 70, um grupo invadiu a aldeia para roubar e matou mais de 60 índios. O caso apareceu no jornal local, mas não apareceram culpados. Ser indígena no Brasil é como ser jovem, negro e favelado, mas com ainda menos programas sociais e menor visibilidade da imprensa ou de organizações de direitos humanos.

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A cacique Mandeí. Crédito: Gabriel Uchida

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Não bastasse todo o sofrimento histórico, em 1998 os poucos Juma restantes foram transferidos pela Funai de sua terra para uma aldeia de outra etnia, a Jamari dos Uru-eu-wau-wau – apesar de a Constituição Brasileira proibir a remoção de indígenas de sua área original. Segundo a Funai, eles estavam à mercê de invasores e correndo perigo de vida e já estavam muito reduzidos.

Após perder seus familiares e também sua terra, o que sobrou aos poucos restantes foi a melancolia. Ivaneide Bandeira, de 57 anos, é indigenista da ONG Kanindé e trabalha há mais de 30 anos na Amazônia. Ela acompanha de perto a história dos Juma. “Quando eles viviam com os Jupaú, conhecidos como Uru-eu-wau-wau, estavam tristes sem poder exercer sua própria identidade porque estavam na terra de outro povo, então acabavam tendo que obedecer outras normas e códigos sociais. O Aruká era muito triste porque sempre foi o líder do povo dele e lá não se sentia respeitado como estava acostumado.”

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Aruká e suas três filhas: a última família. Crédito: Gabriel Uchida

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Somente em 2013, e com um número ainda mais reduzido, os Juma voltaram para a sua terra – de mais de 38 mil hectares e demarcada e homologada desde 2004. Ivaneide acompanhou o processo: “Quando o Aruká retornou para a sua área, ficou orgulhoso de voltar a liderar o seu povo e de ter sua cultura e identidade Juma valorizadas, ele estava super feliz em construir suas próprias moradias com as filhas”.

Os pais de Aruká morreram há tempos. A mãe padeceu por conta da malária, enquanto o pai foi assassinado por um seringueiro. Aruká sonhava em construir uma nova maloca para seu povo, mas o número reduzido de índios impediu que isso se torna-se realidade. Agora próximos de uma unidade da Funai, o último Juma ainda reluta em sair de sua região. “Não gosto muito da cidade porque tenho rancor do branco. Ele matou meus parentes.”

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O acesso até o local é difícil. Do município de Humaitá, que fica a 11 horas de carro de Manaus, segue-se pela Transamazônica em uma interminável reta sem asfalto. Dependendo do tempo, os buracos e a terra viram lama que mais parece sabão sob os pneus. Mesmo com uma caminhonete com tração nas quatro rodas é extremamente difícil completar este trecho que leva em torno de 3 horas, dependendo das condições climáticas. Depois disso ainda falta uma hora de barco até a aldeia, que está às margens do rio Assuã. Um pequeno porto é a entrada das embarcações e também o local para o banho. Dali ainda é puxada a água para algumas torneiras improvisadas.

O sofrimento histórico dos Juma é refletido em sua aldeia: diferentemente do que é encontrado em outras terras, ali não tem posto de saúde, nem igreja, nem pajé e nem campo de futebol. Também não tem eletricidade e o único gerador a gasolina está quebrado. São apenas cinco casas, uma construção para a escola que foi montada mas nunca funcionou e um pequeno tapiri tradicional onde os habitantes se reúnem para as refeições. Além dos quatro sobreviventes, também moram no local alguns indígenas de outras etnias ou já misturados. No entorno da aldeia encontra-se mandioca, castanha e milho. Eles mantêm a tradição de caçar e pescar, principal fonte de alimento e também diversão para as crianças.

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Apesar da idade, o senhor Aruká tem um corpo imponente, anda com firmeza e caça sozinho. Ele fala pouco e quando o faz é breve e apenas na língua indígena – não entende o português. Mas seus olhares são poderosos e ele está sempre atento. Enquanto todos comem, conversam, fazem piadas e fumam tabaco, ele se senta na ponta da mesa e fica calado observando como se estivesse tomando conta de tudo. Aruká não gosta muito de ter sua rotina incomodada.

Aruká sente o peso de ser o último dos seus. “Hoje em dia sinto sozinho e penso muito em antigamente, que tinha muita gente”, desabafa. “A gente era muitos e depois vieram o seringueiro e o garimpeiro para matar o povo Juma todinho.” Enquanto acompanha a vida de suas filhas e toma remédios para dores nas costas, o derradeiro Juma pensa no que já se foi. “Antigamente o Juma era mais feliz… e hoje só tem eu.”


 

Mais fotos da visita de Gabriel Uchida a tribo Jumá:

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História

O jornaleiro mais
resistente da cidade

Aos 78 anos, Ciro de Oliveira Gonçalves continua levantando todos os dias antes das três horas da manhã para labutar até as duas da tarde. Para chegar ao local de trabalho, percorre 27 quilômetros, indo da Parada Inglesa, onde reside atualmente, até o bairro nobre da zona oeste de São Paulo onde atende clientes famosos como Celso Lafer, Eduardo Suplicy, Paulo Maluf e Ricardo Boechat.  Todos os dias ele levanta os portões da Banca Jardins, ou a “Banca do Ciro”, como se referem os frequentadores mais assíduos, onde está desde os anos 1980.

Ciro, o jornaleiro mais antigo em atividade em São Paulo, foi educado lendo jornais e revistas. Tinha 11 anos quando deixou Botucatu, no interior do Estado, após a morte precoce da mãe, para morar na capital com a tia. Chegou em 1947, época em que a cidade somava cerca de 2 milhões de habitantes e a maior parte das bancas se concentrava nos arredores da Estação Júlio Prestes, na região central. De olho no movimento de passageiros da Estrada de Ferro Sorocabana, Ciro arrumou um jeito de vender jornais durante as viagens de trem. Nasceu ali, entre um vagão e outro, a sua vocação.

Hoje, ele é dono de um dos pontos mais tradicionais da capital paulista, a Banca Jardins, na Avenida Cidade Jardim, mas não demonstra o entusiasmo de quando começou no ramo, há mais de 65 anos, nem enxerga à frente um futuro muito promissor. “Nossa profissão está acabando, acredito que não dure mais do que dez anos. Se a gente não vender água, refrigerante em lata, salgadinho e docinho não dá para sobreviver”, diz em tom de lamento. “Aquela fome de ler não existe mais.”

Na sua banca, assim como ocorre nas outras 3.500 espalhadas por São Paulo, chocolates, balas, chicletes, cadeados, baralhos, canetas e até bolas de tênis ocupam prateleiras e dividem espaço com revistas, jornais, gibis e outras publicações. “É preciso ampliar o rol de produtos e entender o local como um ponto comercial, não restrito apenas aos periódicos”. É o que pensa e defende José Antônio Mantovani, presidente do Sindicato dos Vendedores de Jornais e Revistas de São Paulo.

Diante de um cenário pessimista, que sofre com a concorrência dos meios digitais e com a mudança nos hábitos de consumo de informação das novas gerações, José Antônio destaca um dado favorável: desde 2014, o número de bancas na cidade estabilizou, o que interrompeu um intenso fluxo de queda que teve início nos anos 2000. Esse fôlego extra pode ser explicado pela lei aprovada pelo prefeito Fernando Haddad, no final de 2013, que legalizou a venda de bebidas não alcoólicas e alimentos industrializados nesses locais.

“O jornaleiro deve estar atento às demandas dos moradores. Muitas vezes, a banca é o único ponto comercial de um bairro”, diz o presidente do sindicato. Basta passar algumas horas acompanhando o trabalho do Ciro para constatar que boa parte dos clientes que entram no seu negócio está ali atrás de itens como água, recarga de celular, docinhos. Nos anos 1950, no entanto, não era bem assim.

Até 1958, Ciro ia e voltava de São Paulo, a bordo do trem Sorocabana, vendendo revistas como a semanal O Cruzeiro, A Cigarra, mais voltada ao público feminino, e a especializada em fotonovelas Grande Hotel. Circulava pelos vagões na linha cujo destino era a cidade de Presidente Epitácio, no extremo oeste de São Paulo. Chegava a ficar dias confinado no trem, sem retornar para a casa, saindo apenas para tirar um cochilo na estação e tomar banho. “Todo mundo comprava O Cruzeiro para ver as charges do Amigo da Onça”, lembra o jornaleiro. Ele se refere a um personagem criado pelo desenhista pernambucano Péricles que, ao colocar conhecidos em situações embaraçosas, deu nome à expressão popular.

O início de sua vida na cidade grande não foi fácil. Antes de se tornar jornaleiro, vendia amendoins na rua. Por generosidade do dono do hotel Las Vegas, até hoje em funcionamento nas esquinas da Avenida Rio Branco com a Rua Vitória, no centro, Ciro morou, ainda menor de idade, num cantinho improvisado ao lado da caixa d´água do estabelecimento.

Ciro em sua banca, em 1987. Crédito: Arquivo pessoal
Ciro em sua banca, em 1987. Crédito: Arquivo pessoal

Próximo dali, montou a sua primeira banca de madeira, nos anos 1950, sem deixar de trabalhar nos trens em alguns dias da semana. “Ralei muito para fazer meu nome aqui em São Paulo”, diz. O expediente não parava por aí: ele ainda fazia um corre nos bondes, na Avenida São João e na Praça da Sé, onde oferecia de mão em mão, aos gritos, o jornal A Gazeta Esportiva, fundado por Cásper Líbero em 1947, um campeão de audiência, e o lendário Correio Paulistano, de 1847.

[olho]“Hoje ninguém tem mais tempo para bater papo, está todo mundo com pressa, revoltado com a situação do país”[/olho]

Comprar jornais e revistas nessa época significava ter notícias em primeira mão. Leitores se juntavam ao redor das bancas para espiar as primeiras páginas, capas de revistas, e todo assunto virava discussão ali mesmo. “Hoje ninguém tem mais tempo para bater papo, está todo mundo com pressa, revoltado com a situação do país. Antigamente o clima era mais descontraído, a banca era um ponto de encontro aos sábados e domingos”, recorda Ciro.

Entre memórias das décadas passadas, Ciro de Oliveira Gonçalves lembra-se de uma das edições de jornal com maior repercussão no país: a polêmica morte do ex-presidente Getúlio Vargas em agosto de 1954. Sentado em sua banca de jornal, em São Paulo, ele recorda dos detalhes. “Vendeu jornal pra caramba. Getúlio era um ídolo do povo, um cara honesto, que nunca roubou. Falaram que ele havia se suicidado, mas todo mundo sabia que era um assassinato.”

No dia em questão, jornal “O Globo” deu a seguinte manchete na primeira página: “Suicidou-se o Sr. Getúlio Vargas”. Em seguida, a reportagem afirmava que o chefe de Estado havia morrido nos seus aposentos e estava com uma “fisionomia serena, esboçando um leve sorriso”. No mesmo dia, a “Folha da Noite” circulava com o título “Final dramático da crise política”, com a última frase de Vargas em destaque: “À sanha dos meus inimigos deixo o legado de minha morte”.

Fatos marcantes como esse aumentavam em muitos dígitos as vendas. Com a inauguração do Terminal Rodoviário da Luz, em 1961, o negócio de Ciro decolou de vez, sendo que ele se aproveitava do movimento de passageiros pela região. O sucesso do ponto garantiu uma expansão para outras regiões. Ciro apostou em novas bancas em Higienópolis, na Vilaboim, e na Avenida Paulista, entre outras regiões. Tornou-se um especialista do ramo e uma figura folclórica na cidade. Depois de passar o bastão ao filho, que cumpre o turno da noite até as dez horas, Ciro se exercita numa academia para manter a forma e “disfarçar a idade”.

Sobre a evolução tecnológica, Ciro é direto e não dá o braço a torcer. “Minha educação foi ler jornal. Não sei nem quero aprender a mexer no computador. Hoje em dia ninguém lê mais nada, você pergunta uma coisa para o cara, e ele entra no computador para responder. É como comer a comida sem mastigar, não dá para saber se é boa ou ruim. Nossa juventude está perdida.” No final da entrevista, encerra dizendo que está cansado de enfrentar a má vontade da administração pública com os jornaleiros e a falta de interesse da população por uma profissão que lhe garantiu ao longo da vida o conhecimento, a sabedoria e o sustento. Ciro é uma figura em extinção.

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História

As Mãos Limpas italianas

“Esse dinheiro é meu”, disse Mario Chiesa quando percebeu que os três homens com pinta de empresários acomodados na poltrona de seu escritório eram, na verdade, policiais. Chiesa tinha 47 anos e era um dos principais homens do Partido Socialista Italiano (PSI). Comandava o Pio Albergo Trivulzio, um complexo de asilos e orfanatos fundado em Milão em 1771 em torno do qual gravitavam imóveis de compra e venda, aluguéis, obras de construção e restauro, peças de arte e dinheiro, muito dinheiro — caixa forte alimentado pela caridade aos desamparados. “O senhor pode conferir se quiser”, respondeu um dos policiais já com o distintivo em mãos. “Cada nota de 10 liras está assinada pelo procurador da República. Fizemos cópias de todas. Temos ordens para levar tudo, inclusive o senhor.”

O dinheiro não era de Mario Chiesa. Os maços cuidadosamente numerados, fotocopiados e assinados pessoalmente pelo procurador tinham chegado até sua sala em uma maleta 007 de couro marrom minutos antes da discreta batida policial, levada por um pequeno fornecedor de serviços. Sentindo-se extorquido, o fornecedor havia procurado a Justiça meses antes, acusando Chiesa de cobrar 10% sobre cada negócio fechado no Trivulzio. Grampeado por quase um ano, o diretor tinha poucas chances de escapar. O processo era robusto, detalhado com horas de gravações telefônicas que culminavam com a maleta marrom da propina, uma armadilha cuidadosamente preparada no dia em que o fornecedor deveria entregar a Chiesa parte de um suborno negociado.

Era 17 de fevereiro de 1992, seis e meia da tarde de uma segunda-feira e aquela maleta marrom provocaria um terremoto.

Os jornais souberam da notícia por volta das nove da noite e mandaram seus repórteres ao prédio da Procuradoria. A prisão de Mario Chiesa estampou as primeiras páginas nas edições da manhã seguinte encoberta por dúvidas. Teria o membro do PSI se voltado à corrupção? Seria aquele um caso isolado? O partido estaria envolvido? Somente nas semanas seguintes os jornalistas conseguiram decifrar aqueles e outros enigmas. Nos meses e anos que se sucederiam àquela segunda-feira, a Itália seria devastada por uma onda judiciária que passaria à história como operação Mãos Limpas – usada como inspiração na operação Lava Jato, que atualmente provoca terremotos políticos e judiciários no Brasil.

Maleta usada para subornar Mario Chiesa. Ela foi leiloada em 2007. O prefeito da cidade de Senigallia arrematou a relíquia e a expôs na prefeitura. O dinheiro foi doado à caridade.
Maleta usada para subornar Mario Chiesa. Ela foi leiloada em 2007. O prefeito da cidade de Senigallia arrematou a relíquia e a expôs na prefeitura. O dinheiro foi doado à caridade.

A prisão de Mario Chiesa deveria ser apenas uma entre tantas histórias de corrupção italiana: em poucos dias ele estaria solto graças ao trabalho dos melhores advogados do país. Sem dizer uma palavra, o processo terminaria em nada, mesmo sob provas evidentes — algumas vírgulas do ordenamento jurídico o salvariam, talvez até mesmo anulando toda a investigação com alegações banais, desde que juridicamente bem postas. O sistema era conhecido. Aquelas assinaturas nas notas de dinheiro eram previstas em lei, por exemplo? Bastava especular sobre a inexatidão dos códigos e a mágica seria feita.

O final feliz de Mario Chiesa não era o mesmo pretendido por Antonio di Pietro, o procurador da República encarregado do caso. Parcialmente careca aos 41 anos, corpulento e acima do peso, Di Pietro estudava o sistema há tempos. Era um homem interiorano de Molise, uma das regiões mais pobres da Itália, cria de um sul embrutecido onde, diziam o ditado e a história, nem mesmo Cristo havia pisado. A leniência que se atribui à parte mais quente da península não era sua característica.

Lotado na sala 254 da Procuradoria de Milão, Di Pietro era visto como um autêntico outsider: procurador substituto em um mundo cheio de vaidades e compadrios, ocupava a última porta do longo corredor de um prédio que tinha, na outra ponta, o procurador-geral. A distância entre um e outro era um emblema de sua personalidade. Sentado em uma poltrona velha e afastado do coração do poder da magistratura, o procurador estava sempre disposto a enfrentar histórias que poucos se atreviam na Milão daqueles tempos. Quatro anos antes, ele havia colocado uma centena de instrutores de auto-escola atrás das grades para interrogatórios sobre a venda de carteiras de motorista — um sistema paralelo que gerava milhões de velhas liras a dezenas de poderosos locais. O caso lhe rendera algum holofote, mas os anos seguintes apresentaram somente causas de menor expressão. Em 1991, depois de aperfeiçoar seu próprio método de trabalho, Di Pietro estava pronto para o grande salto, e percebeu que o caso de sua vida poderia estar no pedido de ajuda do fornecedor do Trivulzio que lhe contou em detalhes como Mario Chiesa cobrava pedágio de cada prego que entrasse no complexo que dirigia.

Di Pietro conhecia a dimensão de Mario Chiesa, um dos nomes fortes do PSI para a disputa da prefeitura de Milão. Jamais havia encarado alguém de sua estatura política e com suas relações com o poder. Por isso formou uma esquadra de policiais e assistentes leais a seu propósito, convencendo-os de que aquela história poderia ser a ponta de um novelo intrincado de concussões e outros crimes. Aos seus subordinados, o procurador conseguiu passar suas ideias, seu modo de ver uma investigação e também seus próprios trejeitos — ao caminhar, muitos arrastavam os tacos dos sapatos como ele, e balbuciavam em dialeto, como ele, mesmo não sendo de Molise. Eram praticamente seus sacerdotes, mordomos mudos e fiéis como seu plano judiciário requeria.

A maleta marrom foi levada à procuradoria junto com Mario Chiesa. Di Pietro queria que ele confessasse e que entregasse outros membros do partido. Sabia, pelas declarações do fornecedor, que Mario não era um chacal isolado e que o sistema poderia permear parte importante do Partido Socialista Italiano.

Chiesa permanecia calado. Em pouco tempo deveria ser liberado daquele constrangimento. Seus advogados impetraram habeas corpus e tentaram livrar o diretor da prisão, ao menos para responder em liberdade. A batalha entre os advogados e o procurador se arrastou por fevereiro e entrou em março, quando os socialistas já imaginavam que seu dirigente estaria solto, e dia após dia os juízes superiores davam razão a Di Pietro, que defendia a prisão até que Chiesa decidisse colaborar.

A demora preocupou os socialistas. Nos primeiros dias, o partido se limitava a notas burocráticas. Com o passar do tempo e diante de eleições legislativas iminentes, nas quais o PSI depositava grandes esperanças, o secretário-geral do partido decidiu enfim se pronunciar. Bettino Craxi havia sido primeiro-ministro da Itália nos anos 80 e acreditava que o PSI poderia voltar ao poder já em abril, quando o país iria ao voto. Em 3 de março, Craxi tomou uma decisão dramática: dirigiu-se aos estúdios da TV pública RAI e declarou ao vivo em um dos principais telejornais da emissora que Mario Chiesa era “uma marionete” que estava “jogando sombras” na imagem de um partido que “em 50 anos não tivera nenhum administrador condenado por crimes contra a administração pública”. O caso estava desorientando os eleitores, até mesmo os mais fiéis socialistas, surpresos com a corrupção no alto escalão de um partido que acreditavam ser incorruptível. Na TV, Craxi se disse surpreso com a atitude de Chiesa, e se colocou, ele próprio, como “uma das vítimas daquela história”. Mesmo contrariado, o PSI abandonava ao mar seu homem de Milão.

Sem saber, Bettino Craxi dava o primeiro exame de ferro à estratégia montada por Di Pietro. Criticado, o procurador manteria Mario Chiesa — e os futuros envolvidos no caso — presos pelo maior tempo possível, sempre convencendo os juízes de que, soltos, voltariam a cometer crimes e destruiriam provas. Na solidão da cadeia, Chiesa se viu renegado pelo PSI, mas não cedeu. Ainda pensava numa saída quando Di Pietro mandou chamar seu advogado. “Diga a seu cliente que a água mineral acabou.” O procurador não falava sobre os suprimentos da carceragem, mas sobre as contas secretas Levíssima e Fiuggi, descobertas em um banco suíço sob os nomes das mais populares marcas de água vendidas nas gôndolas dos supermercados italianos. Era nelas que Chiesa escondia a maior parte de seu dinheiro.
Em 23 de março, sem saída e diante das insistentes tratativas abertas pelo procurador para que ele colaborasse com a Justiça, Chiesa decidiu contar tudo.

A maleta marrom do Pio Albergo Trivulzio não era caso isolado. Todos os anos, há muito tempo, centenas de maletas como aquela viajavam por toda a Itália para irrigar as contas do Partido Socialista. As propinas eram cobradas em todas as autarquias comandadas pelo PSI e serviam para financiar campanhas eleitorais e enriquecer ilicitamente dirigentes e agregados. Mario Chiesa contou detalhes de algumas operações e revelou ares de organização criminosa. O que para Antonio di Pietro era apenas um ponto no céu, se abriu como uma constelação impossível de alcançar a olho nu. Chiesa contou mais: não era só o PSI a se lambuzar no dinheiro público, mas todos os partidos surgidos na Itália pós-guerra. A chamada Primeira República estava podre.

Chiesa falou por sete dias seguidos. A procuradoria pediu sua soltura sob o manto de colaborador de Justiça, prometeu reduzir sua pena e precisou de um tempo para digerir todas as informações. Nas urnas, Craxi se elegeu deputado, mas o PSI foi derrotado enquanto força política, um abalo provocado pelas seguidas notícias que saíam nos jornais, dia após dia, sopradas de dentro da sala 254.

A imprensa era parte fundamental da estratégia de Di Pietro.

Ele recebia repórteres em sua sala marginal com os pés em cima da mesa enquanto estralava a cervical em movimentos contínuos e barulhentos. A maioria dos jornalistas eram jovens plantonistas em busca de um bom furo na incipiente carreira. Di Pietro, mais velho, chamava-os de “doutores”, um tanto com respeito e outro com ironia. Apenas uma provocação na simbiose entre pequenos burgueses de vida mais ou menos fácil e o filho de agricultores imigrado do sul ao rico norte, formado em direito enquanto fazia mil trabalhos paralelos para comer e viver na civilização acima de Roma. Antonino, como se fazia chamar pelos repórteres mais chegados, sabia que deveria se escorar neles caso quisesse levar seu plano adiante. Contra os mais sorrateiros poderes da Itália, somente a capa dos jornais e revistas e as escaladas dos noticiários de rádio e TV manteriam ao lado dos investigadores o único inimigo que nenhum político em nenhuma parte do mundo deseja ter: o povo.

No mês seguinte à confissão de Chiesa, oito empresários foram presos, provaram o cárcere por mais tempo do que imaginaram, confessaram e saíram como colaboradores de Justiça, abrindo galáxias ainda maiores no universo da corrupção estatal vislumbrada pelo procurador. A técnica se repetiria dezenas de vezes, sob críticas ferozes de partidos e movimentos da sociedade civil que apontavam excessos cometidos pela Procuradoria, que seguia avançando em seu carro-armado.

A confissão de Chiesa criou um clima de instabilidade política. Onde todos se viam como inimigos, Di Pietro surgiu como opção. Sem a confiança do sistema de propinas, o procurador empurrou seu próprio sistema: prender, obter confissões que envolvessem mais e mais nomes, negociar uma pena menor, livrar da prisão. Uma reação em cadeia. Quando o último dos oito empresários prestou o depoimento definitivo, seu advogado, um experiente defensor que já havia visto muitos casos de colarinho branco, foi interpelado por jornalistas que há algum tempo faziam plantão em frente ao presídio de San Vittore, para onde eram levados os investigados. “Esses aí irão em frente por anos e anos. Farão centenas de prisões.”

***

Uma semana depois da confissão dos empresários, o procurador-chefe se arrastou pelo imenso corredor que separava a sala de Di Pietro da sua e lhe ofereceu ajuda. Antonio aceitou e a passou a trabalhar com outros dois procuradores, Gherardo Colombo e Piercamilo Davigo. Juntos, os três dividiram o processo em fases e espalharam o método Di Pietro por todas as fases da operação. Em cada uma delas, um alvo principal deveria ser investigado. Até a metade de 1992, caíram nas redes da Mãos Limpas o prefeito de Milão e seu antecessor, também do PSI. No bar da Procuradoria, os repórteres comentavam que estava aberta a temporada de caça ao secretário-geral do partido, Bettino Craxi, que eles chamavam de “javalizão”. Era sem dúvida a maior cabeça a prêmio do matagal político. Naqueles dias, o próprio Di Pietro confessou a Paolo Colonnelllo, colunista do jornal Il Giorno: “Podemos chegar a Craxi. Mas temos que ir com calma”.

Colombo, Di Pietro e Davigo em 1994.
Colombo, Di Pietro e Davigo em 1994.

Intimidado, Bettino Craxi partiu para o ataque. Acusou os procuradores de tortura, disse que as prisões eram ilegais e que os métodos para obter confissão se configuravam abusos das leis. Em entrevistas e editoriais, apontava a magistratura como fator de instabilização social e política e denunciava os conselhos superiores de compactuar com táticas extremas para levar o processo a um fim político: outros partidos que não o PSI estariam tendo vida fácil enquanto os socialistas eram vistos como únicos culpados diante da opinião pública. Em junho, as denúncias de Craxi tiveram um eco terrível na área rural da cidade de Lodi: Renato Amorese, 49 anos, secretário local do PSI, suicidou-se com um tiro na têmpora. “Eu errei, estou mortificado pelos meus erros”, escreveu na carta de suicídio que deixou para a esposa. “Peço perdão.” A Di Pietro, no entanto, Amorese concedeu o perdão: “Agradeço pela compreensão que demonstrou comigo”. Não teve a mesma compaixão com o procurador o deputado socialista Sergio Moroni, 45 anos, que tirou a própria vida em 2 de setembro depois de enviar uma carta a um líder partidário na qual evidenciava um processo “sumário e violento”.

[olho]“Eu errei, estou mortificado pelos meus erros”, escreveu Lodi na carta de suicídio que deixou para a esposa[/olho]

As tragédias pessoais não pareciam comover a população. A operação tinha forte apelo popular, e os suicídios ou as palavras de Craxi eram sopros de vento diante dos furacões da Procuradoria. Nas ruas, a Itália enlouqueceu. Cartazes com mensagens de apoio a Antonio Di Pietro eram vistos todos os dias. “Salvai-nos do mal.” Foram criados comitês de cidadãos em várias cidades do país para apoiar os trabalhos do procurador. Manifestações tomaram conta da entrada do Palácio da Justiça em Roma pedindo para que Di Pietro não desistisse. Surgiram até mesmo hagiografias baseadas em boatos: numa delas, Di Pietro, um verão antes da Mãos Limpas, havia salvado uma moça que se afogava no mar, levando-a em segurança para a areia diante de centenas de olhares curiosos. No comércio popular, cartazes com os procuradores no lugar dos atores do filme Os Intocáveis eram vendidos aos milhares.

Naquele mesmo ano, quando a mãe de Di Pietro faleceu, o jornalista do Corriere della Sera, Goffredo Buccini, foi à cidade natal do procurador e cedeu carona aos dois novos companheiros de Antonio, Davigo e Colombo. No cemitério, foi como se carregasse duas estrela de cinema — a massa tentando entrar no carro pelas janelas, o jornalista manobrando para evitar uma tragédia. Era como se, depois de décadas votando em lobos sem escrúpulos, aquela gente estivesse abraçando os caçadores que tentavam cortar as cabeças dos animais.

Nomes de políticos de todos os partidos já começavam a aparecer nas anotações dos procuradores, mas o mais em evidência ainda era Bettino Craxi. Cercado, o secretário-geral do PSI pesou a mão. Em um artigo publicado no jornal Avanti, Craxi escreveu: “Nem tudo que reluz é ouro”. Atacando Di Pietro pessoalmente, defendeu que o procurador era parcial, e sugeriu que ele protegia amizades enquanto atacava os socialistas. O artigo não surtiu efeito popular. No descampado da arena política, em 15 de dezembro daquele interminável 1992 Bettino recebeu sua primeira intimação para depor na Mãos Limpas.

A sequência de acontecimentos despertou um enorme sentimento anti-Craxi no país, já visto como culpado aos olhos da opinião pública. Em um editorial publicado em outubro de 2005 no jornal La Repubblica, o jornalista e escritor Filippo Ceccarelli relembrou o clima das ruas. “Foi um autêntico contágio em massa, um mecanismo acusatório” no qual “não passava um dia sem que Craxi encontrasse nas ruas jovens que lhe gritavam ‘Ladrão!’ mostrando os punhos cerrados. Nasceu uma espécie de rito cotidiano, tanto que um dia o sósia televisivo de Craxi, Pier Luigi Zerbinati, precisou se esconder em um carro com medo de ser confundido com o Craxi verdadeiro”.

Em fevereiro de 1993, um ano após a prisão de Mario Chiesa que desencadearia um inferno político na Itália, Bettino Craxi se demitiu do cargo de secretário-geral do PSI. Em 30 de abril, após receber quase duas dezenas de intimações da Justiça, Craxi fez seu último discurso no Parlamento, no qual acusou todos os líderes de partidos de hipócritas, defendendo que todos eram beneficiários do mesmo esquema que estava erodindo o PSI. “Não sou culpado nem mais e nem menos que ninguém”, declarou. Mesmo diante da ira de alguns de seus colegas deputados, Craxi foi blindado pelo Parlamento, que não autorizou que a Justiça fizesse investigações relevantes sobre seu nome e seus contatos, dando a ele uma espécie de foro especial.

[olho]“Não sou culpado nem mais e nem menos que ninguém”, declarou Craxi[/olho]

A proteção da Câmara ao ex-secretário do PSI gerou revolta popular. Naquela mesma noite de 30 de abril, praças em toda a Itália foram tomadas por cidadãos exaltados. Líderes populares e até mesmo outros juízes e procuradores — que haviam se manifestado contra o voto do Congresso para salvar Craxi — fizeram discursos e reuniram multidões. A noite terminou com uma massa diante do hotel em que o político estava hospedado. Ao tentar sair, foi recebido por uma chuva de moedas ao som de Guantanamera, com a letra do refrão trocada pelas frases “vuoi pure queste? Bettino vuoi pure queste?” (“quer também essas? Bettino quer também essas?”). Anos mais tarde, em uma entrevista, Craxi definiria aquela noite como o fim de sua carreira política.

***

A operação Mãos Limpas não parou no PSI. Nos meses seguintes, todos os principais partidos italianos seriam investigados. O escândalo envolveria boa parte das maiores empresas italianas, Olivetti e Fiat na primeira fila — todas sempre dispostas a pagar enormes propinas para ver seus negócios decolarem. O desfecho midiático aconteceu em outubro de 1993, pouco mais de um ano e meio após o início das investigações. Antonio di Pietro conduziu na TV, ao vivo para toda a Itália via RAI, o principal julgamento do caso, que tinha ao centro o empresário Sergio Cusani, uma das principais cabeças da Enimont, petrolífera de economia estatal e privada. As transmissões tinham índices de audiência clamorosos. Todos os principais líderes de partidos do país, até então senhores intocáveis, chegavam às casas dos italianos direto do banco dos réus. Aqueles que se negavam a colaborar eram intimados por Di Pietro na condição de testemunhas. Nesses casos, processualmente, o efeito era zero. Midiaticamente, um cataclisma. Os milaneses faziam fila todos os dias nos corredores do Tribunal de Milão para assistir aos interrogatórios. Quase todos os réus e testemunhas saíam de lá com os ossos triturados por um procurador que conhecia cada centavo de lira pública que cada um tinha nos bolsos. Expressões do dialeto interiorano do procurador-estrela entraram no léxico popular de todo o país, como a curiosa “che c’azzecca?”, algo como “que’nteressa?”.

Com Craxi fora do jogo, a política reagiu. Entre o final de 1993 e os primeiros meses de 1994, vários procedimentos foram à votação no Congresso para tentar salvar reputações políticas. Duas delas eram mais evidentes: uma queria despenalizar o financiamento ilícito de campanhas; outra, reduzir o tempo de prisão cautelar para acabar com a influência que os procuradores faziam em busca das delações premiadas. Por pressão popular, nenhum deles foi aprovado.

A investida da Procuradoria resultou na implosão total dos partidos. Todas as siglas foram abandonadas em nome de novos e lustrosos nomes. Os principais partidos, entre eles o Socialista Italiano e a Democracia Cristã, desapareceram. Em seu lugar, agremiações com ares de modernidade arrastaram para a arena nomes ainda limpos diante do mar de lama dos políticos tradicionais. Um deles era um empreiteiro de Milão que há anos tentava implantar uma rede de televisão privada na Itália. Como era proibido por lei de usar satélites para formar a rede — somente a TV pública RAI tinha a permissão — o empreiteiro decidiu usar a imaginação: comprou pequenos canais de TV regionais e despachou a todos eles fitas com os mesmos programas gravados: todos os dias, na mesma hora, rodava as fitas simultaneamente, criando uma rede sem satélites.

O empreiteiro teria a vida facilitada depois que o amigo e testemunha de seu segundo casamento, Bettino Craxi, conseguiu aprovar no Parlamento, antes de sua derrocada, a liberalização das redes de TV privadas na Itália.

Em 27 de março de 1994, com os partidos esfacelados, o empreiteiro que se vendia como um símbolo de renovação no país saiu vitorioso das eleições nacionais e assumiu o cargo de primeiro-ministro: Silvio Berlusconi chegava ao poder pela primeira vez, derrotando forças históricas, sobretudo com o voto de Milão e das regiões do norte, coração da Mãos Limpas.

***

A eleição pareceu acalmar a opinião pública, já cansada do imobilismo político e econômico. Do lado de fora dos tribunais, notícias pesadas enchiam as casas dos italianos todos os dias. Um levantamento feito pelo sociólogo Nando Dalla Chiesa contabilizou mais de 40 suicídios por conta da operação judiciária.

[olho]Um levantamento contabilizou mais de 40 suicídios por conta da operação judiciária[/olho]

O sucesso das transmissões da Mãos Limpas pela RAI também respingou nas outras redes de TV, sobretudo na Fininvest, nome da financeira de Berlusconi que seria o embrião de seu conglomerado televisivo poucos anos depois. Os programas da Fininvest adoravam Di Pietro, o chamavam de “anjo do bem”, elevavam sua imagem ao culto das massas como modelo de homem que os italianos deveriam copiar. O cortejo a Di Pietro tinha um propósito claro: Berlusconi sabia que o procurador não pararia de investigar, e ele próprio, Berlusconi, recém-eleito primeiro-ministro, era o alvo mais provável após a saída de cena de Bettino Craxi. Ainda em 1994, Berlusconi convidou Di Pietro para uma reunião. O procurador estava disposto a aceitar o jantar em um escritório de advocacia ligado a Berlusconi em Roma quando foi demovido da ideia por seus colegas de Procuradoria. Eles sabiam do que a reunião trataria. Besrlusconi queria dar a Di Pietro um dos mais prestigiosos cargos da Itália, o Ministério do Interior.

Berlusconi não engoliu a desfeita. Em maio, tentou passar mais uma vez, agora por decreto, o projeto que limitava o tempo de prisão preventiva, instrumento largamente usado pela Mãos Limpas para obter delações premiadas. A magistratura de Milão se uniu e protestou — inclusive ameaçando demissões em massa em programas de TV —, barrando o projeto que enterraria a operação. Em outubro, com os ânimos quentes, uma entrevista de um dos procuradores do grupo de Di Pietro, Francesco Borrelli, ateou gasolina em um fogo já altíssimo: Borrelli garantiu que em poucos meses a Mãos Limpas “chegaria em um nível político muito alto”. Todos sabiam que ele falava de Silvio Berlusconi.

O recado de Borrelli se fez sentir de modo inesperado: em 21 de novembro, o jornal Corriere della Sera dava a notícia em primeira mão: “Amanhã Berlusconi será convidado a depor”. A notícia dava detalhes da operação, mostrando que as informações teriam sido vazadas pela Procuradoria. “O presidente do Conselho está inscrito no registro de pessoas sob investigação, por corrupção. Pesam sobre ele investigações que envolvem seu irmão, Paolo Berlusconi, e sobre Salvatore Sciascia, responsável pelos serviços fiscais da Fininvest.” Berlusconi estava em Nápoles como anfitrião de uma conferência mundial sobre segurança. Jornalistas do mundo todo se debruçaram sobre ele como moscas.

Usando o Ministério da Justiça como arma, Berlusconi ordenou uma investigação interna sobre os membros e procedimentos da Mãos Limpas. Fascículos foram devassados e pessoas foram interrogadas. As acusações que pesavam sobre o grupo diziam respeito a possíveis atentados à Constituição. Fora do governo, pessoas implicadas no escândalo de corrupção foram incentivadas a processar os procuradores. Vários o fizeram. Enquanto se esquivava das ações do premier, Di Pietro conseguiu documentos de uma off shore que ligavam Berlusconi a Craxi, com somas milionárias provenientes de corrupção escondidas no exterior. Alguns diretores da Fininvest foram presos para interrogatório, inclusive o irmão de Silvio, Paolo Berlusconi.

[olho]As emissoras que antes louvavam Di Pietro passaram a demonizá-lo[/olho]

Berlusconi não deu trégua. Suas emissoras que antes louvavam Di Pietro passaram a demonizá-lo. Em 23 de novembro, apenas dois dias após a notícia do depoimento do primeiro-ministro aos procuradores, Giancarlo Gorrini, um dos investigados da Mãos Limpas, denunciou Di Pietro: dizia ter pago propina ao procurador — empréstimos sem juros e uma Mercedes. No dia seguinte, o ministro da Justiça começou uma investigação paralela e secreta contra Di Pietro. O procurador foi informado por um de seus colegas e começou a sentir o peso das retaliações. Outro procedimento pretendia culpar Di Pietro por dois dos inúmeros suicídios relacionados à Mãos Limpas. No dia 26, o procurador ouviu pelos corredores do Palácio de Justiça que, em Roma, estavam preparando um golpe para tirá-lo do cargo.

Enquanto aguardava para ouvir Berlusconi — que ainda não havia se apresentado à Procuradoria após várias intimações — Antonio di Pietro se via cada vez mais cercado por dossiês, inimigos e ameaças. Sem dar sinais de cansaço, o procurador marcou para o dia 6 de dezembro de 1994 a última sessão do júri do caso Enimont, o maior e mais midiático da Mãos Limpas. Após o último interrogatório do dia, Di Pietro caminhou até um canto da sala, pediu ajuda a uma funcionária do tribunal e começou a tirar a toga. De camisa azul-clara, o magistrado colocou uma gravata com o nó já pronto, dirigiu-se ao juiz do caso e declarou: “Não quero ser usado. Saio com dor no coração”. As poucas palavras eram seu adeus. Ao vivo para todo o país, o herói nacional anunciou que estava deixando os tribunais para sempre.

***

Apesar do choque, a operação Mãos Limpas continuaria sem Di Pietro por ainda muitos anos, interrogando, prendendo e condenando personagens do cenário político e empresarial italiano. Seu principal alvo, Bettino Craxi, fugiu da Itália em 1994, quando percebeu que seria definitivamente preso. Amigo do então ditador Zine El Abidine Ben Ali, Craxi voou para Hammamet, na Tunísia, e de lá nunca mais saiu, até morrer em 19 de janeiro de 2000, de infarto.

Berlusconi seria primeiro-ministro do país, de modo alternado, por duas décadas. Sua primeira condenação definitiva e consequente afastamento da política só viria em 2013. Durante todos esses anos, uma de suas principais algozes foi a procuradora Ilda Boccassini, formada nas fileiras da força-tarefa da Mãos Limpas de Antonio di Pietro.

Em 1996, longe da magistratura, Di Pietro fez sua estreia na política: aceitou ser ministro do Trabalho da coalisão de centro-esquerda liderada por Romano Prodi. Depois da experiência no governo, ele fundou seu próprio partido, a Italia Dei Valori, tornando-se um dos principais líderes da política italiana. Seus reais motivos para ter deixado a operação que havia começado em 1991 nunca foram totalmente esclarecidos.

No dia 31 de março de 2009, um grupo de policiais do núcleo ecológico dos carabinieri meteu o pé na porta de duas casas na província de Treviso. Era o Dia D da operação “Rewind”, que investigava um esquema de tratamento e despejo ilegal de lixo. Um dos principais alvos dos policiais era um homem de 65 anos, cabelos esbranquiçados e barba bem aparada, apontado pelos investigadores como o coletor das propinas do esquema. Era Mario Chiesa, estopim inicial da Mãos Limpas. Sem qualquer reforma de peso para barrar a corrupção no sistema político italiano, a “marionete” acusada por Bettino Craxi de “jogar sombras” sobre o Partido Socialista Italiano nos anos 90 voltara às ruas e ao jogo que tão bem conhecia.

Leandro Demori é jornalista especializado em investigações e diretor da Abraji. Seu primeiro livro, uma história da Cosa Nostra no Brasil, será lançado pela Companhia das Letras nos próximos meses. No Risca Faca, Demori assinou a investigação sobre o Lobo da Bovespa.

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A ressurreição de Augusto Ruschi

Em janeiro de 1986, onze anos depois de ter sido envenenado por um sapo da espécie dendrobata, o naturalista Augusto Ruschi se viu condenado. O veneno, acreditava ele, havia contaminado 95% de seu fígado. Nos últimos meses, o naturalista acelerara o ritmo de trabalho para concluir os dois livros que estava escrevendo, mas suas forças diminuíam a cada dia. Ele ofegava, dormia mal, sofria com febres e hemorragias nasais. Depois de uma vida desbravando as florestas e matas do país, já não conseguia percorrer longas distâncias.

Temendo pelo pior, chamou um de seus amigos mais próximos, o jornalista Rogério Medeiros, e lhe fez um último pedido. Queria ser enterrado na Reserva Biológica de Santa Lúcia, a mata de 279 hectares cobertas de orquídeas e bromélias que ajudou a tombar.

“Mas tem que ser aqui?”, questionou Medeiros, argumentando que, no Brasil, “não se enterra ninguém fora do cemitério”. Ruschi foi irredutível. Era lá, no paraíso das plantas e dos pássaros, que havia realizado a maior parte de sua obra. A outro grande amigo, o cronista Rubem Braga, confidenciara: depois da morte, sonhava em ser carregado pelos beija-flores.

O naturalista já não tinha perspectivas de curar sua doença, quando recebeu um telefonema de Brasília. Então repórter do Jornal do Brasil, Medeiros estava com Ruschi no dia da ligação.

“Era um ministro do [então presidente] José Sarney, não lembro qual…”, conta o jornalista por telefone, do Espírito Santo, onde mora atualmente. “Eles falaram: conseguimos a ajuda dos índios… O Ruschi adorou a ideia e aceitou se tratar com eles.”

A ligação apenas oficializou um desejo acalentado pela opinião pública à época. Diante daquela doença desconhecida, prestes a matar uma das mais ilustres figuras científicas do país, o governo e a sociedade brasileira buscaram, na tradição de seus índios, uma solução mágica. Sem outra alternativa, o Brasil recorreu às suas próprias raízes. E descobriu, entre deslumbramento e desespero, um processo autóctone, até então desprezado em seu sonho de desenvolvimento.

***

Aos 70 anos, Augusto Ruschi acumulava uma longa lista de serviços prestados para o meio ambiente. Como botânico e ornitólogo, catalogou centenas de espécies de plantas e animais, em especial orquídeas e beija-flores. Como ativista ecológico, foi dos poucos a enfrentar a Ditadura Militar contra o desmatamento da Amazônia. Ganhou notoriedade ao ameaçar com uma espingarda o ex-governador do Espírito Santo, Élcio Álvares, quando este tentou destruir a estação biológica de Santa Lúcia para plantar palmito.

Visionário, Ruschi alertou desde cedo para os perigos dos agrotóxicos e da monocultura de eucalipto. Ainda em 1951, previu, em um congresso na ONU, que as reservas ecológicas se transformariam nos bancos genéticos e habitats do futuro. Seus esforços tinham sido recompensados com medalhas e condecorações no Brasil e no exterior, mas só então, com os dias contados, o cientista ganhava a merecida atenção da imprensa nacional.

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O beija-flor Loddigesia mirabilis, redescoberto por Augusto Ruschi. Ilustração: John Gould
O beija-flor Loddigesia mirabilis, redescoberto por Augusto Ruschi. Ilustração: John Gould

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Em 1975, Ruschi buscava novos exemplares de beija-flores, seu animal fetiche, na Serra do Navio, Amapá, quando se deparou com dezenas de dendrobatas, pequenos sapos coloridos e, consequentemente, venenosos. Pediu ajuda aos índios que o acompanhavam para capturá-los, mas estes se recusaram. O naturalista não os imitou. Um dia depois de apanhar sozinho trinta sapos, foi internado de Macapá com o coração acelerado.

[olho]”Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”[/olho]

Ruschi estava contaminado. Ano após ano, silenciosamente, a peçonha foi corroendo sua saúde. O fato permaneceu desconhecido do grande público até ser revelado pelo Jornal do Brasil, no dia 12 de janeiro de 1986. Assinada por Rogério Medeiros, a reportagem soava como uma espécie de obituário antecipado. Uma chamada estrondosa na capa daquele edição dominical anunciava que o fígado do “defensor intransigente das florestas” já se encontrava “irremediavelmente comprometido”.

Três dias depois, foi a vez do colunista Affonso Romano de Sant’Anna escrever uma crônica emocionada, que mobilizaria os governantes do país.

“Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”, anunciava o poeta e ensaísta.

Sant’Anna foi o primeiro a colocar os índios na jogada. Seu texto conclamava as autoridades a buscarem uma cura para aquele que ele definia como um “monumento nacional”. Se os laboratórios mais sofisticados não a tivessem, sugeria o colunista, talvez os povos da Amazônia, conhecedores da letalidade dos dendrobatas, encontrassem uma alternativa.

“Mas não podemos assistir a essa tragédia tropical achando que Édipo tem mesmo que matar seu pai e Antígona seus filhos”, continuava. “Não podemos ler assim impotentes a crônica de uma morte anunciada, como se fosse uma novela de García Márquez. Alguém tem que ter um remédio.”

O texto sensibilizou a opinião pública. De uma hora para outra, todos queriam ajudar. Homeopatas ofereceram seus serviços e admiradores imploravam por uma intervenção do Palácio do Planalto. Especializada em retratar a flora amazônica, a pintora inglesa Margaret Mee embarcou aos Estados Unidos para informar botânicos americanos sobre o estado de saúde do naturalista.

Augusto Ruschi em Teresa, ES em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi em Teresa, ES em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

Em Brasília, o texto caiu nas mãos do então presidente José Sarney, que enxergou uma oportunidade para ganhar simpatia da opinião pública. Em seu segundo ano no cargo, o maranhense sofria para administrar um país destroçado por 20 anos de Ditadura Militar. Mesmo concorrendo com planos de congelamento de preços e denúncias de corrupção, o caso Ruschi dominava rádios e jornais. Todos os dias, uma nova notícia sobre o cientista ilustrava a capa do Jornal do Brasil.

Sarney não perdeu tempo: no avião em que voltava de Manaus, pediu ao Ministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, que a Funai procurasse a ajuda dos índios. Em um primeiro momento, o órgão indigenista se ofereceu para contatar os Waiapi, povo indígena da Serra do Navio, onde Ruschi havia sido contaminado, em busca de um antídoto. Finalmente, receberam no Palácio do Planalto o cacique Raoni, já internacionalmente reconhecido por sua luta pela preservação da Amazônia, e acordaram uma pajelança.

“Mas por que ele não avisou antes?”, perguntou o cacique, ao ser informado da doença que acometia Ruschi. Raoni encomendou o colhimento de uma raiz da selva chamada atorokon, cuja maceração e cozimento serviria de antídoto para o veneno. “Primeiro, bate a raiz e põe na água quente; quando vira água, pinga no olho; depois bebe um pouco; depois toma banho”, explicou. Um avião da FAB saiu de Brasília com destino ao Parque Nacional de Xingu para buscar o pajé Sapaim, que iria auxiliar Raoni no tratamento.

Cacique dos Txucarramães, Raoni havia sido tema de um documentário premiado com o Oscar, em 1978, e narrado por Marlon Brando. Nascido em 1930 no Mato Grosso e pertencente a um dos ramos da etnia caiapó, aprendera português aos 20 e poucos anos com os célebres indigenistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Boas. Um dos irmãos de Raoni também fora envenenado por um sapo dendrobata, e o cacique garantia agora conhecer o seu antítodo. Ele, porém, não era reconhecido como pajé, nem mesmo entre os caiapós. Como o tratamento exigia um pajé, convocaram também Sapaim, um kamayurá do Alto Xingu, considerado um dos maiores xamãs dos povos indígenas, inciado e consagrado pelo espírito Mamaé.

A passagem dos dois índios pelo Rio de Janeiro, onde iriam tratar Ruschi, foi um prato cheio para a mídia da época. Com seu disco de madeira no lábio inferior, Raoni era uma figura fácil de marcar. O jeito enigmático de Sapaim, que pela primeira vez saía de sua aldeia para visitar uma cidade, também foi motivo de folclore. A mídia acabou focando nos aspectos mais superficiais da cultura indígena. Como o interesse de Sapaim pela música da banda RPM, cuja fita-cassete levou para o Xingu (“Quero ouvir muito o som dessa fita, muito boa”). Ou o comportamento informal de Raoni, que não se conteve e soltou um estrondoso “grito de Tarzan” durante um encontro no Palácio do Planato, não se sabe bem por quê (ao seu lado, o ministro Costa Couto ficou envergonhado e resolveu sair às pressas).

Jornalistas do mundo inteiro vieram cobrir o episódio. Nas disputadas coletivas, os repórteres repetiam a mesma pergunta: como homem de ciência, o naturalista acreditava na fé dos índios? Não estaria ele se rendendo ao “curanderismo”? Ruschi, que já conhecia bem os povos do Xingu, tentou desfazer a oposição ciência/medicina popular. Em suas respostas, sempre enfatizava o conhecimento dos poderes das plantas pelos índios, lembrando que a medicina deles tinha dois mil anos, “muito mais tempo do que a nossa”.

“Até agora enfrentamos problemas com soro antiofídico, com gente morrendo todo dia em decorrência de picada de cobra. No entanto, nesses 50 anos de vida na Amazônia, vi os índios ingerirem chás e serem curados de veneno”, afirmou o naturalista em uma entrevista coletiva no Rio de Janeiro, às vésperas da pajelança.

[olho]Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”[/olho]

“Houve uma cultura sensacionalista, que, aliás, ainda é atual”, lembra o biólogo André Ruschi, segundo dos três filhos de Augusto, em entrevista por e-mail. “Uma parte da mídia foi interessante e prestou significativos serviços. Mas ainda muito superficial. Pouco investigativa. Havia alguns interesses comerciais que estavam sendo mobilizados formando-se um jogo comercial no mercado, oculto do público, da grande mídia.”

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Augusto Ruschi e o cacique Raoni, da tribo Txucarramãe, no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi e o cacique Raoni, da tribo Txucarramãe, no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

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Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”, diagnosticou. Para o cacique, era preciso urgentemente “tirar o sapo” de dentro de seu paciente. A Sarney, contou ter visto Ruschi em sonho, numa lagoa cheia de anfíbios: “Ele já virou um sapo, mas esse sonho pode ser um bom presságio”. Os jornais reproduziram as palavras do cacique sem nenhum contexto, ignorando qualquer cosmologia por trás delas. Também pouco falaram do papel dos espíritos e dos sonhos na cura.

“O pajé fala com o doente de dia e de noite vai dormir. Quando sonha, sai do corpo e acompanha o espírito-guia, que no caso de Sapaim se chama Ypotramaé [mamaé da flor, ‘ipoty + mamaé’]”, explica o médico e antropólogo Wesley Aragão, que acompanhou Sapaim em suas pesquisas de campo. “O mamaé-guia do pajé o leva para uma floresta, em ‘viagem fora do corpo’, e lhe mostra quais ervas deve usar e que procedimento deve tomar, no dia seguinte, com o paciente. O pajé ao estilo de Sapaim age sempre desta forma. Todos têm o seu espírito guia com quem conversam de dia, em clarividência suposta, ou de noite, no sonho. No rito de cura, este sonho terapeutico com o espírito é determimante. Inclusive em termos de prognóstico”.

Segundo Wesley, o pajé é apenas um médium — quem realmente cura é o espírito, no caso Mamaé. Daí a importância do sonho.

“É o Mamaé quem diz tudo: se o doente vai viver, se vai sarar definitivamente ou temporariamente, o que ele deve fazer, o que o pajé deve fazer como e por quanto tempo. Tudo é o Mamaé quem diz. E o sonho é o momento de melhor comunicação entre aqui e o além, onde vive o Mamaé [no Mamaéretam, a terra dos espíritos]”.

***

Às 9h da manhã do dia 23 de janeiro de 1986, os índios chegaram pintados com tinta de jenipapo, como manda a tradição. O ritual aconteceria no casarão do Parque Lage, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro, e iria durar três dias e três noites. De manhã, durante a primeira sessão, os índios cobriram-se de urucum e sopraram a fumaça de um charuto de folhas de trinta centímetros no corpo do naturalista. Vinte minutos mais tarde, Raoni inclinou-se sobre ele, massageou-o com unguento e foi tirando, a partir de seu pescoço, uma substância escura e mal-cheirosa. Era, segundo Raoni, o veneno do dendrobata.

Na segunda sessão, à tarde, Raoni e Sapaim preparam um chá com a raiz de atorokon. A erva foi fervida e espalhada sobre Ruschi. Depois, os índios fumaram novamente o charuto e retiraram mais uma vez a substância. A cada sessão, ela vinha mais clara e em menor quantidade.

Ainda há controvérsias sobre a s funções exercidas por Raoni e Sapaim. Em suas entrevistas mais recentes, este último afirma que, por não ser pajé, Raoni não sabia os procedimentos de pajé.

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Augusto Ruschi (segundo da esq. para a dir.), o cacique Raoni (quarto da esq. para a dir.) e o pajé Sapaim (à dir.), no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi (segundo da esq. para a dir.), o cacique Raoni (quarto da esq. para a dir.) e o pajé Sapaim (à dir.), no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

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“O que Sapaim me disse é que Raoni só quis aparecer perante os brancos como pajé para mostrar sua pessoa, seu povo, impor sua autoridade”, revela Wesley. “Em decorrência disto, Raoni na ocasião disse muitas coisas sem sentido, e fez algumas ‘performances’ para simular a condição de pajé”.

[olho]”Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo”[/olho]

Entre todos os jornalistas, Rogério Medeiros foi o único autorizado a presenciar os rituais. No dia 24 de janeiro, ele publicou um relato no qual descrevia a última sessão:

“No encerramento, Sapaim disse que o veneno já estava diminuindo muito no corpo de Ruschi. E Ruschi, com a voz mais firme, muito tranquilo, sem dor — o que ressaltou logo — disse para mim, com os olhos muito acesos — o que não fazia há meses: ‘Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo’.”

Aos repórteres, Augusto Ruschi afirmava estar totalmente recuperado. Os sangramentos haviam parado e seu intestino voltara a funcionar normalmente, algo que não acontecia há anos. Também dormia melhor — e até sonhava. “Estou sentindo um gosto de vida”, disse a Medeiros. Mas, apesar das manchetes e entrevistas otimistas, o naturalista ainda sofria de insuficência hepática grave, causada por uma cirrose. A retirada tardia do veneno pela pajelança lhe ajudou a recuperar forças, mas não trouxe a cura. Ele morreria quatro meses depois, aos 71 anos, em Vitória, de cirrose viriótica.

A autópsia não revelou nenhum traço de veneno. Para os médicos, tudo indica que a cirrose foi derivada pelo consumo excessivo de remédios contra a malária — e não pelos sapos. A morte por hepatite C, inoculada em coleta de sangue normal para exames de rotina, foi confirmada pelo seu médico particular e assessor de pesquisas, o cardiologista Pedro José de Almeida. Segundo André Rushi, o óbito não foi devidamente esclarecido na época por causa de um desentendimento entre Ruschi e Almeida.

Sapaim, por outro lado, acreditava que o naturalista estava enfraquecido por um câncer, conta Wesley Aragão.

“O que Sapaim me contou é que o envenenamento de Rushi não teve nada a ver com Mamaé, que é um envenanamento físico de fato, que o ‘sapo mijou nele’ e que o ‘veneno entrou nele’ e estava matando ele aos poucos”, relembra o antropólogo. “O que Sapaim diz ter feito foi ‘tirar o veneno do sapo do corpo de Ruschi’. Segundo Sapaim, este se encontrava ‘muito mal’, ‘quase morrendo’, ‘nao tinha voz, não aguentava andar e sangrava pelo nariz’. Quando ele tirou o veneno, Ruschi voltou a andar, a falar normal e parou de sangrar. Perguntei uma vez a Sapaim por que, então, Ruschi morreu alguns meses depois. Ele me respondeu que ‘a parte dele foi feita, ele tirou o veneno, mas Ruschi morreu de câncer porque estava já enfraquecido’.”

***

Em seu ato final, Ruschi fez o Brasil abrir os olhos para a medicina indígena. A intensa — e sensacionalista — exposição de seu tratamento trouxe uma visibilidade inédita, ainda que fugaz, para a ciência dos povos do Xingu. Raoni e Sapaim sabiam que o que estava em jogo ia muito além da saúde do cientista: “Nós dois temos que curar direito, senão o branco não acredita e brinca com índio”, declarou o cacique.

Em uma sociedade descrente, paralisada no labirinto da Década Perdida, o termo “pajelança” ganhou a boca do povo, como uma solução mágica para todos os males do momento. Se o xamanismo indígena podia salvar um dos mais ilustres brasileiros, por que não resolveria os outros problemas do Brasil? O banqueiro Marcílio Marques Moreira chegou a afirmar que o país precisa de “uma pajelança econômica”. E até o jogador Sócrates, que enfrentava uma lesão aparentemente incurável, cogitou chamar Raoni para dar um jeito em seu tornozelo.

“Curado”, Ruschi fez elogios públicos aos indígenas, à “cultura linda” que o havia socorrido. E foi pessoalmente agradecer José Sarney pela intervenção. Já o antropólogo Darcy Ribeiro e o político Mário Juruna — primeiro e único deputado federal indígena do país — acusaram o presidente de usar politicamente os índios. Ribeiro, aliás, também temia que o episódio provocasse uma corrida de brancos a aldeias indígenas, em busca de tratamento.

Sua preocupação tinha fundamento. Graças ao episódio, Raoni e Sapaim alcançaram status de celebridade, fazedores de milagre. Durante a pajelança, pacientes brancos correram ao Parque da Cidade pedindo à dupla que os examinassem. Houve até quem temesse que o local se tornasse um local de romaria: “A fama dos pajés está se espalhando, começa a aparecer gente pedindo informações”, disse um guarda. Assediado enquanto passeava no Centro do Rio, Raoni ouviu de uma senhora: “Esse aí tem que ser ministro da saúde”.

“Durante os dias de pajelança, Raoni e Sapaim ficaram concentrados no Parque da Cidade, não saíram de lá, e os jornalistas se instalaram ali por perto, esperando novidades”, lembra o fotógrafo Custodio Coimbra, do jornal “O Globo”, que na época cobriu o episódio pelo “Jornal do Brasil”. “Quando o tratamento acabou, os índios saíram para fazer compras na Casa Turuna [tradicional loja de fantasias do Rio] e toda a imprensa foi atrás, porque eles tinham virado uma atração na cidade.”

Em um dos seus plantões no Parque da Cidade, o fotógrafo ganhou um charuto de Sapaim, feito provavelmente com as mesmas ervas usadas na pajelança.

“Vi ele de longe, e fiz um sinal. Ele me chamou e deu o charuto de presente. O pessoal queria experimentar ali mesmo, mas eu preferi fumar em casa. Na época era comum fazermos projeções lá na minha casa, e em duas delas fumamos o charuto. Fazia uma fumaceira danada. E até dava um barato.”

[olho]”O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”[/olho]

Em sua coluna, Affonso Romano de Sant’Anna chegou a sugerir a exploração de uma farmacopeia que unisse “a sabedoria indígena e o que há de mais avançado na indústria química”. Raoni, porém, descartou qualquer possibilidade de industrializar a raiz atorokon. “A raiz não pode vender para o branco. Os brancos já têm seus remédios”, enfatizou.

“O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”, diz a antropóloga Gisela Macambira Villacorta, especializada em antropologia da religião e da saúde, e professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. “A repercussão na mídia trouxe à tona algo que já estava ocorrendo no cotidiano: a redescoberta, por não-indígenas, dos sistemas de cura tradicionais. Isso acontece em função da crise da saúde no país, mas também da crise da medicina ocidental, da relação entre paciente e médico, que era e ainda é de muita distância. Na relação com o pajé, o paciente participa mais da cura, ambos são protagonistas, vivem junto o processo.”

No dia 26 de janeiro daquele ano, uma reportagem no “Jornal do Brasil” mostrava que o caso Ruschi havia devolvido o prestígio das ervas medicinais, com a busca de remédios naturais crescendo a cada dia. Um movimento superficial e momentâneo, mas que deixou marcas, acredita André Ruschi. Ele conta que, quando foi delegado do Conselho Estadual de Saúde do E. ES nas Plenárias Nacionais de Saúde, entre 1999 e 2006, conseguiu a aprovação do reconhecimento oficial das terapias alternativas, que foram incluídas no SUS e no ensino oficial dos cursos de medicina. A referência ao nome “Ruschi”, segundo ele, ajudou a fortalecer os argumentos junto aos delegados.

“A ciência médica é produto da coleta de informações populares que vão sendo confirmadas de maneira técnica para que possamos reproduzi-las de maneira consciente”, diz ele. “Portanto, [o caso] trouxe à luz, de maneira mais evidente, como ocorre este processo de assimilação de conhecimentos e desenvolvimento cultural.”

Quase três décadas após a pajelança, Raoni se tornou um ícone da preservação ambiental e da cultura ancestral, mas não deu continuidade a sua experiência como pajé. Sapaim se tornou conhecido especialmente entre pessoas brancas, urbanas, ligadas a movimentos new age, e continua atendendo pacientes famosos, como Leonardo DiCaprio e Gisele Bünchen. Já os alertas de Augusto Ruschi, que no dia 12 de dezembro de 2015 completaria 100 anos, nunca estiveram tão atuais.

“A ausência de política florestal leva o país a um desastre ambiental permanente com desertificação na maior parte do território nacional. Ele sempre advertiu sobre esta tendência. O combate aos agrotóxicos, a rejeição à monocultura, a política de criação de Unidades de Conservação são legados universais do pensamento de Ruschi, amplamente aceitos e adotados em todas as nações”, enumera André, que continua o trabalho do pai na Estação Biologia Marinha Ruschi, uma escola de ecologia dedicada à pesquisa, educação e cultura. Ele lamenta, no entanto, que a instituição continue sofrendo perseguições políticas e lutando contra a falta de apoio governamental.

Após a morte de Ruschi, não demorou um mês para o que o Espírito Santo começasse a sofrer uma nova onda de desmatamentos, que atingiu até sua terra natal, Santa Teresa, na região serrana Estado. Rogério Medeiros, que em 1995 escreveu o livro “Ruschi — o agitador ecológico” (Editora Record), lamenta que o legado do naturalista ainda não seja devidamente reconhecido em sua própria região.

“O mundo respeita Ruschi, mas o Estado inteiro do Espírito Santo, da Academia aos políticos, o odeia. Porque tudo que ele falou que ia acontecer no Estado já está acontecendo. Os estragos das mineradoras, a natureza se vingando, a situação do Rio Doce… Ele previu tudo isso.”