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O ídolo nipo-brasileiro dos anos 80

 

Recomendamos a leitura acompanhada desta mixtape produzida pelo pessoal do Suppaduppa. Boa viagem:

O chão está coberto por gelo seco simulando as nuvens. Várias telas de TV reproduzem cenas do mar, uma imagem do céu é plano de fundo, e uma banda com quatro integrantes usando paletós e camisas sociais em tons azuis e beges domina o palco. O vocalista tem uma voz suave e um penteado à la Tom Cruise no filme “Negócio Arriscado”. Seus movimentos de um lado pro outro formam uma espécie de dança sincronizada e o som é uma mescla de sintetizadores com jazz, o mais puro City Pop. O ano é 1986, o local é Tóquio. 30 anos depois, sem gelo seco e com uma réplica de um castelo japonês como imagem de fundo, em Curitiba, mas com a mesma voz e um penteado mais contido, me encontrei com Carlos Toshiki, o ídolo nipo-brasileiro que abrilhantou as paradas musicais japonesas dos anos 80.

Anônimo no Brasil e ídolo no Japão, Carlos Toshiki viveu no Japão por 13 anos, onde fez sucesso com a  banda 1986 OMEGA TRIBE. Foi presença frequente em centenas de programas de música e variedades, teve três álbuns no topo das paradas japonesas, além de diversos hits. Seu rosto estampou revistas e propagandas. Uma carreira pela qual ele possui muito orgulho. Meu encontro com Carlos aconteceu na Praça do Japão, em Curitiba. Assim que o encontro tento quebrar o gelo falando que todo mundo ao nosso redor estava jogando Pokemon Go ali na praça. Ele ri mas confessa não entender nada do tal jogo. Nos sentamos e Carlos começa a contar sua história, que tem início, naturalmente, na sua infância.

Nascido numa colônia japonesa em Maringá, Carlos foi criado de acordo com os costumes nipônicos. Seu pai era DJ da rádio da colônia e era conhecido por sempre tocar novidades vindas do Japão, desde músicas pops ao tradicional enka. Por este motivo, Carlos acabou criando um gosto pela música e pelo canto. Ele lembra que aos 9 anos, chegava do colégio e se trancava no quarto para cantar por horas. “O tempo voava”, fala com um sorriso saudoso. Como não sabia escrever os ideogramas japoneses, escrevia as letras das músicas da maneira que ele ouvia e as decorava. Seu pai começou então a notar o dom do filho para o canto e queria que ele se envolvesse nos concursos de canto que a colônia fazia. O pânico de Carlos, porém, era subir no palco e enfrentar uma plateia – apesar de também ser seu maior sonho. “Eu não gostava de cantar para as pessoas. Era um paradoxo. Eu gostava de cantar só para mim.” Para incentivá-lo, seu pai prometeu que o daria uma passagem para Tóquio caso ele fosse o campião brasileiro do Concurso de Canto.

Carlos me falou que a ideia de ir a Tóquio despertou nele o desejo de seguir um sonho que estava cada vez mais próximo. Primeiro, ficou em terceiro lugar no concurso municipal de Maringá. Depois tornou-se o melhor no Paraná. Ele tinha orgulho de falar para todo mundo que se ganhasse o concurso nacional, iria para o Japão estudar canto. Todos ao seu redor torciam pelo seu sucesso. “O universo conspira a teu favor, né? Quando você tem uma paixão as coisas começam a girar a teu favor, as pessoas te ajudam”, ele conta.

Gratidão é o termo que o Carlos citou inumeras vezes durante nossa conversa. E foi nessa vibe positiva que ele chegou ao concurso nacional e ganhou primeiro lugar como melhor cantor, em 1981, aos 17 anos. “Eu não sei se os jurados tiveram dó de mim, mas eu fui campeão”, diz, rindo.

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Carlos Toshiki mostrando uma das revistas japonesas dos anos 80. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
Carlos Toshiki mostrando uma das revistas japonesas dos anos 80. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Seu pai teve que pagar a promessa e assim Carlos finalmente viajaria para o Japão. Apesar da certeza de que iria viajar, ainda era incerta a maneira como viveria lá. O Brasil passava pela ditadura militar e não tinha nenhum acordo diplomático com o Japão. Financeiramente, era impossível enviar dinheiro do Brasil para lá. O sonho parecia distante – mas ao mesmo tempo muito próximo. Mais uma vez, rodeado de positividade, Carlos se apegou às boas energias e embarcou para Tóquio. Depois de 42 horas de viagem e 3 escalas, chegou ao Japão, onde viraria uma estrela nacional. Mas não foi tão fácil assim.

Chegar em Tóquio foi uma explosão de emoções e alegrias para Carlos. Foi lá que ele descobriu novos estilos musicais e se aprofundou em artistas que antes conhecia muito pouco por conta da ditadura militar – ele era fã dos Beatles mas nem imaginava toda a grandiosidade em torno da banda, que no Brasil ficava limitada a tocar uma outra música na rádio. Não tinha mordomia ou luxo algum, se alimentava de amostras grátis de supermercado e amendoim porque “enche a barriga, né”. Sofreu com o preconceito de ser um estrangeiro dentro da sua terra mãe – os japoneses não aceitavam o fato de Carlos ser um nipo-brasileiro. A comunicação também não ajudava: seu japonês soava ultrapassado ao tentar conversar com as pessoas. A solidão assolou sua vida. Porém, a música e o sonho de ser cantor o mantinham esperançoso. Contanto que ele tivesse um microfone e uma caixinha de som, ele ficava feliz.

Foi no seu emprego como lavador de pratos – em que ele ganhava menos por ser brasileiro – que começaram a surgir as oportunidades musicais. Por pedido de seu chefe, começou a cantar no karaokê durante os intervalos. Aos poucos, Carlos começou a ficar conhecido entre os clientes. Algumas pessoas passaram a frequentar o restaurante só para ouvi-lo cantar e uma delas o convidou para gravar comerciais de rádio. Pela grana “fácil”, ele topou e gravou seus primeiros jingles. Ao ouvir sua voz na rádio, seu orgulho em cantar só aumentava.

Carlos Toshiki em Curitiba. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
Carlos Toshiki em Curitiba. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Durante os três primeiros anos de sua estadia em Tóquio, dedicou seu tempo entre os bicos que fazia, as aulas de canto e gravação de demos e ensaios com banda. Após inúmeras tentativas de entrar em uma gravadora e desenvolver sua carreira musical, Carlos pensou em desistir – achava que tinha chegado ao seu limite e precisava dar um rumo na sua vida. Decidiu que tentaria mais um ano e, caso não conseguisse, seguiria sua vida em uma nova carreira. Três meses depois, após ouvir uma das fitas demo do Carlos, o produtor Koichi Fujita queria conhecê-lo. Fujita era o produtor da banda OMEGA TRIBE, que acabava de perder seu vocalista e estava a procura de um novo. “Timing perfeito”, segundo o Carlos. Ele fez o teste e de cara gostaram do resultado. E em pouco tempo, Carlos Toshiki tornou-se o vocalista do 1986 OMEGA TRIBE, rebatizada pela nova formação.

Carlos me contou que a banda tinha uma imagem de veraneio, resort, uma estética bem tropical. E, por isso, o produtor decidiu levá-lo ao Havaí para poderem se conhecer mais e imergir Carlos na estética do grupo. Entre uma conversa e outra, Carlos comentou que achava engraçado que em japonês o numeral 1000 se fala “sen” e no Brasil “cem” é 100. A partir daí, o produtor teve a ideia para o primeiro single de Carlos com a 1986 OMEGA TRIBE: “Kimi wa 1000%” (você é 1000%), uma brincadeira entre Brasil e Japão. Carlos então gravou a música que consolidaria sua carreira e que, mais tarde, seria eleita como uma das músicas da geração. Mesmo sem entender muito o japonês da letra, Carlos gravou “Kimi wa 1000%” focando na energia que colocava em cada melodia. O single, que marca a estreia de Carlos como vocal do grupo, foi lançado em maio de 1986 e virou o tema da novela Doyou Grand Gekijou, que passava em horário nobre da televisão japonesa.


Abertura da novela Doyou Grand Gekijou com a música Kimi Wa 1000%

1986 foi um ano importante para o Japão. Marcou o início de uma bolha econômica pós-guerra, época em que o dinheiro rolava solto e os japoneses consumiam bens de consumo como nunca antes. Musicalmente, era o auge do City Pop, gênero musical que mesclava jazz, sintetizadores, rock adulto e mais um monte de referência absorvida da cena musical americana. O City Pop e a bolha econômica estavam intimamente ligados. O gênero musical representava a imagem urbana e tecnológica pela qual a bolha econômica estava guiando o “novo Japão”. Nesta época, diversos músicos e bandas surgiram (na época chamados de idol), e a música era um negócio super rentável. Novos programas de música surgiam todos os dias, cada vez mais glamurosos.

Recentemente, a internet reviveu o City Pop. O vaporwave, gênero musical que tem como base o uso de samples de músicas oitentistas misturado a outros beats, permitiu o conhecimento de diversos artistas japoneses. Até o Ed Motta tem revivido o som através das suas mixtapes. O Youtube também é uma fonte preciosa de músicas city pop. É impressionante a quantidade de vídeos gravados dos programas de música da época. Eu mesmo conheci o Carlos Toshiki e a OMEGA TRIBE através do Youtube. E isso foi um choque pra ele! Como era possível que eu, aos meus 24 anos, recifense, sem descendência japonesa conhecia uma banda que fez sucesso 30 anos atrás?

“Kimi wa 1000%” foi lançada e atingiu o 17° lugar no Oricon, parada musical japonesa. Com isso, foram chamados para se apresentar pela primeira vez na televisão, no programa mais importante da época, The Best Ten. Como o nome indica, o programa chamava os 10 melhores artistas da parada musical e fazia um segmento chamado de Spotlight, mostrando as apostas da música. Foi nesse segmento que o 1986 OMEGA TRIBE fez sua estreia. Em poucos dias, a música pulou de 17° para 7°, até que chegou ao 2° lugar nas paradas.

Primeira apresentação na TV que Carlos fez no programa “The Best Ten” 

Carlos lembra perfeitamente do dia após sua primeira apresentação na TV. “Eu saí na rua no dia seguinte e as pessoas começaram a falar meu nome, a falar: ‘Olha lá, o Carlos da ÔMEGA TRIBE’!” Da noite pro dia, Carlos tinha virado um idol. Ele brinca que sua história foi igual ao conto da Cinderela: ele dormiu como aspirante a cantor que lavava pratos em restaurante e acordou como um astro da música japonesa. Depois de três anos persistindo o sonho, finalmente conseguiu alcançá-lo. A solidão que ele sentia, entretanto, intensificou. Repentinamente, começaram a surgir inúmeros “amigos” e parentes que nunca tinham procurado o Carlos em seus quatro anos de Japão. O dinheiro não faltava, assim como as amizades por interesse. Sua essência, entretanto, continuava a mesma: contanto que pudesse cantar e expressar sua paixão, tudo estava bem.

A bolha econômica unida às tradições japonesas aumentou a pressão sobre os adolescentes da época. Eles precisavam ser os melhores na escola, na universidade e no trabalho. A concorrência era acirrada e, aqueles que ficavam na margem da excelência, se entregavam ao desespero. O suicídio era uma saída comum dessa situação. A música teve um papel importante para os jovens dessa época pois servia como válvula de escape da vida real. De alguma forma, ela ocupava a mente e evitava pensamentos perturbadores. Carlos percebia a importância que sua música e imagem tinham sobre os fãs. “Eu descobri que a musica é um instrumento que faz com que você entre no coração das pessoas na maior naturalidade”, comenta. Agradar os fãs era sua maior motivação.

O arquivo pessoal de Toshiki com matérias da época de sucesso. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
O arquivo pessoal de Toshiki com matérias da época de sucesso. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Sua conexão com os fãs era o elo mais valioso para ele. Diariamente, Carlos recebia cartas das fãs comentando a paixão por ele e também relatando as dificuldades da vida adolescente nos Japão dos anos 80. O sentimento dos fãs inspiravam as composições de Carlos, que de alguma maneira queria retribuir o amor e admiração e ajudá-los a superar as dificuldades, assim como ele estava tentando superar a própria solidão. “Era uma relação de troca.”

Por 5 anos, a 1986 OMEGA TRIBE lançou 6 álbuns, 12 singles, mudou de nome para Carlos Toshiki & OMEGA TRIBE, se apresentou em centenas de programas, virou um dos hinos da geração. Álbum após álbum, os interesses da gravadora e os de Carlos iam se contrastando. Carlos queria seguir sua paixão, fazer músicas que tocassem seus fãs, mas a gravadora da banda não conseguiu acompanhar o amadurecimento dos fãs e começou a forçar Carlos – que na época já tinha seus 27 anos – a fazer músicas cada vez mais adolescentes e com temáticas que não condiziam com seu momento de vida. “Hoje eu vejo que a música é modismo. Se você não cantar de certo modo, você não vende. Música não é arte, é comércio.”. Esse foi um dos motivos do fim da banda, em 1991.

O ano também foi marcado pelo “estouro” da bolha econômica. Com isso, a economia japonesa entrou declínio, influenciando diretamente no modo de vida da população e na música ouvida. O City Pop, que representava toda a prosperidade da bolha, tornou-se obsoleto e ultrapassado. O som não representava mais o Japão contemporâneo. Este novo momento foi crucial para os artistas que marcaram os anos 80. Grande parte deles decaiu das paradas musicais até desaparecer no ostracismo. Carlos Toshiki, após o fim da banda, decidiu seguir carreira solo. Lançou três álbuns solos que mesclavam músicas em japonês e português.

Em certo momento da entrevista, Carlos decidiu mostrar seus vinis, revistas e CDs que guardava numa mala. Após folhear várias pastas com recortes de revista e nos mostrar com orgulho seus vinis, Carlos nos conta qual foi sua maior realização profissional nos seus 11 anos de Japão: entrevistar Zico e Ayrton Senna.

Assim como Carlos, Zico e Ayrton eram dois brasileiros que o Japão idolatrava. Senna, conhecido no Japão após o circuito de Suzuka em que conquistou três títulos, era símbolo de conduta e profissionalismo – princípios marcantes na cultura japonesa – e encantava pelo seu carisma e humor. Zico, por sua vez, conhecido pelos japoneses como “Deus do Futebol”, jogava no Kashima Antlers e ajudou a consolidar a paixão local pelo futebol. Ele abre o Youtube no seu celular e nos mostra a entrevista com muito orgulho.

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Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Em 1995, após operar de hérnia de disco, Carlos decidiu voltar para o Brasil e deixar a carreira musical de lado. A paixão que sentia pela música tinha se transformado em um peso e cantar já não o satisfazia. De volta ao Brasil, tocou o restaurante que a família tinha em Curitiba e, atualmente, trabalha em uma biofábrica, onde reencontrou a paixão que sentia apenas pela música. Após ser um astro no Japão, Carlos é hoje um dos maiores especialistas em alho do Brasil. Mas sua carreira como artista não teve fim.

Neste ano, 30 anos depois do lançamento de sua primeira música, Carlos foi convidado pela sua banda de apoio para fazer uma turnê de comemoração no Japão. Nervoso com a ideia de voltar aos palcos e retomar a carreira que estava parada há mais de 15 anos, mas empolgado com a ideia de encontrar novos e antigos fãs, Carlos aceitou. Quando perguntei sobre suas expectativas ele respondeu, bem sincero: “Eu não faço ideia! A turnê surgiu do nada e foi toda organizada pela banda de apoio. Eu sei que estou empolgado por que vai ser um show com o Carlos de 52 anos mas com a energia que eu sentia no passado”. A turnê vai ter 12 shows – e dois deles, em Tóquio e Yokohama, tiveram os ingressos esgotados no primeiro dia de vendas. É um novo momento – agora misturando nostalgia, gelo seco, passado e presente – para Carlos ser um ídolo no Japão.

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Perfil

As mil frutas de Helton

Repousando sobre a relva fofa na sombra do que parece ser uma mangueira apinhada de enormes pêras verdes, Helton Josué Teodoro Muniz toma um punhado de folhas secas na mão como se estivesse erguendo uma batuta. “A natureza funciona como uma orquestra”, ele diz. “Tudo deve ter seu tempo para que o equilíbrio seja alcançado. Se todos os instrumentos tocarem juntos sem harmonia, vira uma zorra.”

Da mesma forma, cada árvore em sua fazenda espera preguiçosamente por sua época de frutar. A variedade é palavra de ordem. Helton caminha por seu pomar como quem dubla Alceu Valença em uma estrofe de “Morena Tropicana”. Sapoti, juá, jaboticaba… Mais de 1.200 espécies de frutíferas convivem pacificamente pelos três hectares. O número deve aumentar com mais 150 variedades que ele planeja semear. Sentado em seu trono forrado de grama-amendoim, ele é o maior frutólogo do Brasil.

As estradas de terra que levam ao Sítio Frutas Raras, em Campina do Monte Alegre, são de um tom ocre-avermelhado. Os pneus voltam de viagem tingidos de uma cor quase de urucum. Se as árvores de Helton são frondosas e fecundas, é muito por causa deste chão chamado latossolo, com traços de areia e argila. A combinação é altamente fértil, e foi uma das responsáveis pela bonança dos barões do café do oeste paulista no século 19. A vegetação que recobre as terras de Helton, dando-lhes um aspecto almofadado, também é grande responsável pelo vigor das mudas livres de agrotóxicos e adubos químicos. A grama-amendoim fixa o nitrogênio no solo, colaborando para a nutrição das raízes, e retém umidade sob suas minúsculas folhas. Na época da roça, a cada três ou quatro meses, pode chegar a 40 centímetros, formando um espesso carpete esverdeado que se estende pela propriedade.

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Helton exibindo uma cabaça. Foto: Luisa Dörr/Risca Faca

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Helton não nasceu ali – é de Piracicaba. Quando veio ao mundo, o oxigênio demorou a chegar em seu cérebro e lhe causou uma disfunção neuromotora. O que os médicos chamam de hipóxia neonatal só lhe permitiu andar ao cinco anos, com a ajuda da fisioterapia. Em sua vida adulta, o quadro compromete alguns movimentos minuciosos e lhe confere certa dislalia, dificuldade em articular sílabas, mas não causa outros impedimentos, não é degenerativo e não afeta seu tempo de vida. Junto à natureza, ele encontrou um estilo de vida que não o limita. “Até quem não tem problema de saúde se sente melhor perto da natureza. Ela é a maior expressão do amor de Deus. Se você trata uma planta com amor, ela vai te retribuir. Da mesma maneira, se você a trata com desleixo, ela vai murchar.”

Helton tem 36 anos. Após viver 14 anos na vizinha Angatuba, mudou-se para o sítio dos avós em 1995, onde permaneceu. Na cidade às margens do rio Paranapanema, os pescadores se embromavam nos cipós que pendiam sobre a correnteza para colher perinhas-do-mato. Era o saputá, como Helton viria a descobrir em sua adolescência, exasperado com o novo mundo de sabores que se descortinava a sua frente. “Como é possível existir tanta fruta e eu só comer laranja e banana?”, ele se inquietava enquanto folheava dicionários em busca de novos nomes ou conversava com senhores sabidos sobre a flora local.

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Algumas das frutas de inverno do sítio. Foto: Luisa Dörr/Risca Faca

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A primeira semente que plantou veio do saputá. E vingou de primeira? “Claro!”, ele replica em tom de obviedade, com o olhar sereno de quem nunca esqueceu de aguar um vasinho de suculentas. O Viveiro Saputá, erguido ao lado de sua casa, foi batizado a partir daquela que lhe deu o gosto pela fruta. As mudas crescem sob o olhar atento de Helton e de sua esposa Emilene Muniz, que o conheceu em um congresso de Testemunhas de Jeová. A equipe conta ainda com dois funcionários. Os pais são vizinhos de poucos metros. Os habitantes mais recentes são Billy, Polly e Nina, cachorros que recebem os visitantes distribuindo lambidas em troca de cócegas na barriga.

Há alguns meses, Helton não agenda mais os tours de três horas que oferecia a R$ 20, normalmente terminando com degustações das frutas da temporada. O sítio se mantém agora através da venda de mudas, que custam em média R$ 25, e de seus dois livros, “Frutas do Mato” e “Colecionando Frutas”, onde dá instruções de plantio e cataloga suas espécies. Uma terceira publicação está sendo escrita em sua biblioteca, que fica anexa à cozinha da casa, onde uma estante de metal guarda diversos potes transparentes cheios de grãos.

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Crédito: Luisa Dörr/Risca Faca

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“Você coloca dinheiro em banco para render. Da mesma forma, meu banco de sementes tem a finalidade de produzir mais plantas.” Para ele, sementes são mais valiosas que tesouros – afinal, cem gramas de ouro não conseguem gerar mais metal precioso. “Isso faz com que eu tenha filhos, netos e bisnetos aqui no pomar. Essas grandes empresas que armazenam sementes têm de pensar também na reprodução. Mas talvez seu interesse não seja guardar, mas ter o monopólio de uma espécie.”

Seus embriões vegetais chegam por correio de colaboradores que possui pelo Brasil afora. A maioria das plantas são nativas do Brasil. Só da região, são 250 espécies. As estrangeiras contam 300, fazendo com que, no pomar, cactos frutíferos encontrados na caatinga brasileira fiquem a poucos passos de um pé de santol, fruta nativa da Malásia. A oferta fácil de sementes, polpas e bagaços atrai quatis, tatus, cotias, capivaras e 120 espécies de aves — Helton afirma que, quando começou o cultivo há dezoito anos, não somavam nem 40.

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Helton e a simpática Nina na calmaria do sítio. Foto: Luísa Dörr/Risca Faca

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O agricultor também aproveita até o caroço o banquete do qual é dono. Como nem toda fruta é boa para comer do pé, algumas são destinadas a chás, geleias, sucos e doces. Sua preferida é o guaimbé, de origem mexicana, cujo gosto ele jura lembrar uma mistura de banana e abacaxi. Helton reivindica para si a criação do doce de azeitona, que, note, não é doce de oliva. “Qual o fruto da oliveira?” Ao se deparar com uma resposta tímida, ele dispara. “É a oliva! Azeitona não é oliva, é o fruto do azeitoneiro!”, diz ele quase irritado, emendando à constatação uma aula sobre as diferenças entre leguminosas, frutas e grãos.

Sua vontade de tornar conhecidas as mais de 4 mil espécies de frutos comestíveis do Brasil lhe atribui um tom ativista. Junto à estação ecológica de Angatuba, ele agora procura patrocinadores para um projeto de cadastramento e instrução de família agricultoras. A intenção é ensinar o cultivo e venda de produtos de origem vegetal, semeando o conhecimento adquirido em uma vida de pesquisa, prática e observação. O título de botânico, para Helton, é mais honorário que acadêmico. “Eu não tenho diploma. Diploma é gostar do que se faz, é se dedicar”, conclui. “Quando alguma pesquisa minha dá resultados, as pessoas me pedem para citar fontes. A fonte é o que eu observei da natureza. A fonte sou eu!”

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Crédito: Luisa Dörr/Risca Faca

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História

Quando São Paulo parou

Os policiais estavam com medo, dentro de suas bases, esperando novos ataques ou novas instruções. O que viesse primeiro. Perto do meio-dia, os telejornais vespertinos passavam imagens dos ataques no dia anterior — nos bastidores, os produtores tentavam confirmar o boato de que um tiroteio teria acontecido em Higienópolis, bairro nobre no centro da cidade. Falavam sobre portas de universidades metralhadas. Histórias desencontradas.

A população estava assustada. Três em cada dez estudantes não foram às aulas na manhã daquele dia — e nada menos que 5,5 milhões de pessoas, aproximadamente metade da população da Grande São Paulo, não tinham como chegar ao trabalho por causa da falta de ônibus. Afinal, os motoristas também estavam apavorados. Da 25 de Março à Daslu, o comércio fechou antes do cair do sol.

Por volta das 18 horas daquela segunda-feira, 15 de maio de 2006, São Paulo era uma cidade fantasma.

Passados dez anos dos ataques promovidos pelo Primeiro Comando da Capital em maio de 2006, parece improvável que a facção repita uma ação coordenada capaz de paralisar o Estado, mobilizar todas as forças políticas e deixar um rastro de mortes — foram 493 em nove dias, de acordo com o Instituto Médico Legal. Desde então, especialistas e autoridades buscam entender a motivação dos ataques, com opiniões divergentes.

Uma pesquisa inédita, porém, traz evidências que apontam um novo caminho para compreender por que o PCC resolveu parar São Paulo. E a explicação tem a ver com a queda nos índices de criminalidade. A partir de dados do Disque-Denúncia e da Secretaria de Segurança Pública do Estado, dois economistas e um sociólogo encontraram indícios fortes de que o PCC aproveitou o levante de 2006 para expandir seu domínio territorial sobre as favelas paulistanas.

 

***

“Tudo isso não passa de ficção. Em São Paulo, não existe crime organizado”, disse o então secretário de Segurança Pública, Benedicto de Azevedo Marques, em maio de 1997. Ele havia sido confrontado com um suposto estatuto do PCC, divulgado à época. Essa é outra mudança perceptível: após os ataques, declarações de autoridades buscando diminuir o poder da facção praticamente sumiram. Ninguém duvida da autoridade de Marco Willians Herbas Camacho, nome completo de Marcola, chefão do PCC que começou sua carreira criminosa aos 10 anos de idade e hoje, aos 48, é o bandido mais influente do país à exceção de alguns políticos.

Em todos os presídios pelos quais passou, distribuídos por cinco Estados e o Distrito Federal, Marcola causou preocupação às autoridades. Em maio de 2006, o governo paulista decidiu transferir o detento a um presídio de segurança máxima no interior do Estado, no qual seria submetido ao regime disciplinar diferenciado — sem direito a TV, rádio, livros e jornais e com apenas duas horas diárias de banho de sol.

Não saiu como planejado.

Simultaneamente ao início da transferência de 735 presos, que segundo o governo seriam ligados ao PCC, a facção pôs em execução um plano para instaurar o terror em São Paulo. “A ordem para os ataques já tinha sido dada antes de a remoção dos presos ser efetuada”, afirma o procurador de Justiça Criminal Márcio Christino, um dos pioneiros no Ministério Público de São Paulo a investigar o PCC. Uma versão divulgada, mas jamais confirmada, dava conta de que os ataques seriam um revide por Marcola ter sido extorquido por policiais corruptos, sem qualquer relação com as transferências. “A remoção dos presos foi efetuada para tentar evitar que as ordens fossem cumpridas, ou seja, para tentar pressionar ou segurar os atentados”, acrescenta Christino. Os primeiros ataques ocorreram na periferia paulistana e na Grande São Paulo na noite do dia 12 de maio, sexta-feira pré-Dia das Mães, somados a três rebeliões em penitenciárias no interior. Como quem não quer nada, o caos entrou pela porta da frente, puxou uma cadeira e se fez presente, especialmente na capital.

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No sábado, Marcola e outros líderes do PCC chegaram à sede do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), onde deveriam ficar incomunicáveis por até 20 dias, antes de serem finalmente levados à prisão de segurança máxima de Presidente Bernardes. Enquanto isso, lá fora, o levante foi escancarado: ocorreram 63 atentados em 23 cidades, deixando 25 agentes públicos mortos — policiais militares e civis, agentes penitenciários e guardas municipais. À noite, o delegado Godofredo Bittencourt, diretor do Deic, se reuniu com Marcola na tentativa de negociar uma saída. “Agora é tarde”, retrucou o bandido, segundo uma das testemunhas do encontro. Na tentativa de responder à altura, a cúpula do governo paulista se encontrou, já durante a madrugada, para traçar estratégias. O secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, definiu a tática que considerava ideal: “Distribua os armamentos de grosso calibre e vamos partir para cima”, ele afirmou, segundo se recorda o advogado Nagashi Furukawa, então titular da pasta de Administração Penitenciária presente na reunião.

O Dia das Mães passou com a certeza de que a efetividade da Polícia Militar havia aumentado. Ao passo em que o PCC expandiu sua tática de terror, com 80 presídios paralisados a mando da facção e 156 atentados realizados, as mortes causadas pelas ações diminuíram em comparação aos dias anteriores. E, naquele dia, diversos suspeitos foram mortos em combate com a PM. Segundo as informações coletadas nos boletins de ocorrência daquele período, o Dia das Mães apresentou o pico de mortes durante toda a crise — 107 civis foram mortos a tiros num único dia, no Estado de São Paulo.

Na segunda-feira, escolas e comércios fecharam, menos ônibus circularam e a capital paulista ficou deserta. Numa época em que os celulares cumpriam principalmente sua função inicial, as ligações telefônicas em São Paulo atingiram seu recorde histórico. A população, aterrorizada, buscava informações confiáveis em meio a um sem-fim de boatos e das respostas lacônicas do governo paulista. Os ataques e rebeliões cessaram na terça-feira, dia 16, mas mortes ligadas ao levante ocorreram pelo menos até o dia 20. As estimativas de vítimas no período variam de 493, número adotado pelo IML com base em laudos necroscópicos, a 564, quantidade calculada pelo sociólogo Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com base em boletins de ocorrência.

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A possível ação de agentes públicos em grupos de extermínio, durante o período, foi investigada, mas ninguém foi denunciado. O Ministério Público requisitou à PM, judicialmente, os registros dos pedidos de checagem de antecedentes criminais feitos por policiais no período dos ataques. O objetivo era descobrir se algum dos civis mortos e com indícios de execução tiveram seus antecedentes consultados. Em resposta à Justiça, o coronel Ailton Araújo Brandão, comandante da PM à época, disse que o sistema “parou de funcionar por problemas de desgaste natural pelo uso, não mais gravando as comunicações do Centro de Operações da Polícia Militar”. Christino, que tentou investigar o caso pelo Ministério Público, encontrou a mesma situação. “Nós chamamos o fabricante, pedimos para ele fazer uma perícia, e o fabricante disse que havia um defeito na máquina, uma tomada que tinha saído.”

Para Fernando Delgado, advogado e professor de direito na Universidade Harvard, “o Estado tomou uma postura de revide, que teve fortes indícios de execuções sumárias e envolvimento de autoridades estatais em grupos de extermínio”. Ele coordenou uma pesquisa que analisou causas e consequências para os ataques do PCC. Além de equívocos na política prisional e a corrupção de agentes públicos, Delgado aponta a resposta do governo aos ataques como um dos erros cometidos. “Esse revide seria ilegal e não contribuiria para a segurança pública, pelo contrário, alimenta-se um ciclo de violência que está instalado”, argumenta o advogado.

***

Para entender como o PCC foi capaz de executar uma ação articulada de tamanho porte — que ocorreu, lembre-se, com boa parte de seus líderes sob guarda 24 horas da Polícia Civil — é necessário, antes, compreender a origem da facção. A célula inicial do Primeiro Comando da Capital foi formada, em 1993, no anexo da Casa de Custódia de Taubaté, local notório tanto por abrigar detentos perigosos como por suas más condições de habitação. O estado precário do Piranhão, como os detentos chamavam o presídio, foi uma das justificativas para a criação do PCC. Sob o mote “liberdade, justiça e paz”, presente em seu estatuto, a facção dizia lutar “contra as injustiças e a opressão dentro das prisões”.

Conforme os membros fundadores foram transferidos para outras cidades, o PCC se difundiu no sistema prisional. Idemir Carlos Ambrósio saiu do Piranhão em 1994. Mas Sombra, como era conhecido um dos oito integrantes iniciais do PCC, continuou no sistema prisional paulista, transferido para Araraquara. “Com seu espírito de liderança, conquistou rapidamente dezenas de adeptos”, escreve o repórter Josmar Jozino, no livro “Cobras e Lagartos: A Vida Íntima e Perversa nas Prisões Brasileiras”, em que narra a história do Primeiro Comando. “Por ser o primeiro batizado da facção, Sombra sempre teve o direito de batizar novos ‘soldados’ e de dizer quem era ou quem não era ‘irmão’.”

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Passaram-se anos e o PCC manteve-se abaixo do radar das autoridades, crescendo por meio de “batizados” feitos entre “irmãos”. As primeiras menções à facção na imprensa datam de 1997, quatro anos após seu surgimento, e aparecem com pouca frequência. Desde então, as principais fontes de renda do grupo mantiveram-se as mesmas: mensalidades de integrantes — tanto dos que estão presos como dos que estão soltos —, crimes de oportunidade (como roubos a banco e sequestros) e, principalmente, tráfico de drogas. A expansão territorial do PCC aconteceu em duas direções: para dentro das prisões e para cima das bocas de fumo paulistas. De modo geral, em troca de uma parcela dos negócios, o PCC fornece segurança para seus membros. E segurança, quando se atua em um mercado ilegal, é um bem muito importante. Assim, a receita do PCC só fez aumentar desde que a facção foi criada. O procurador Christino estima em “alguns milhões de reais” a receita mensal deles atualmente.

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Especialistas e autoridades concordam que a estrutura capilar estabelecida durante mais de uma década pelo PCC foi crucial para a eficiência do levante, em maio de 2006. As interpretações para entender o que a facção ganhou com os ataques, no entanto, variam. Logo após os atentados, o governo de São Paulo continuou sob críticas pelo descontrole nos presídios do Estado. Uma das respostas foi a demissão do secretário de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, e a nomeação de Antônio Ferreira Pinto, mais alinhado ao titular da Segurança Pública, como seu substituto. Ex-promotor e ex-policial militar, Ferreira Pinto era visto como linha-dura, e a primeira medida de sua gestão determinou que amotinados que destruíssem suas celas não fossem transferidos a outros presídios.

“Com isso, eles entenderam a mensagem de que eram apenas manobrados pela facção, porque os presídios ocupados pelas lideranças sempre permaneceram inteiros, e eles nunca perderam um dia de visita, nunca perderam um dia de sol”, afirma o ex-secretário, hoje aposentado. Ferreira Pinto acredita que os líderes do PCC exercem sua influência para tornar os membros de baixo escalão meros peões, sujeitos somente aos interesses dessas próprias lideranças. Seria uma forma de buscar legitimidade, o que o ex-secretário rechaça. “Nunca nós os dignamos a conversar com eles, bandido é bandido e polícia é polícia”, ele afirma. “Eles não têm status nenhum”, posiciona-se.

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O procurador Christino argumenta no mesmo sentido, mas reconhece que o PCC conseguiu seu lugar à mesa de negociação. “Muito embora eles não tenham nenhum lucro, nenhum ganho patrimonial, eles tiveram um ganho político muito grande, porque se lançaram como uma entidade influente socialmente”, afirma o membro do Ministério Público. A destruição dos presídios, para Christino, também teve influência na definição dos ataques: “O que o PCC pretendia naquela época era inutilizar o presídio que não fosse do agrado deles, para que ele fosse desmobilizado e não fosse mais usado”.

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Uma pesquisa inédita traz dados que sugerem outro motivo para a facção ter realizado os ataques: expansão territorial. O economista João Manoel Pinho de Mello, professor do Insper, investigou a hipótese em parceria com o economista Ciro Biderman e o sociólogo Renato Sérgio de Lima, ambos professores da Fundação Getulio Vargas. A partir de bases de dados do Disque-Denúncia e da Secretaria de Segurança Pública paulista, à qual Mello teve acesso durante uma pesquisa financiada pelo Banco Mundial, o trio estudou como o PCC expandiu seu território nas favelas em São Paulo.

Antes dos ataques, a facção estava presente em pouco mais de 40% das favelas paulistanas, aproximadamente, índice que saltou para mais de 70% até o fim de 2006 — e manteve crescimento estável até pelo menos o fim de 2009, até onde vão os dados da pesquisa. A partir de menções à facção em ligações do Disque-Denúncia e aos dados do governo, os pesquisadores foram capazes de estabelecer uma linha do tempo comparando a entrada do PCC em determinado local e uma possível influência nos índices criminais de lá.

No mesmo período, a tendência geral das ocorrências de tráfico e de porte de entorpecentes foi de queda. Entre 2013 e 2015, de acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública, ambos os tipos de ocorrência variaram pouco: apresentaram queda em 2014, em comparação ao ano anterior, e subiram em 2015, para patamar equivalente ao inicial. O Risca Faca solicitou ao governo de São Paulo uma entrevista com o secretário de Governo, Saulo de Castro Abreu Filho — titular da Segurança Pública durante a crise de 2006 —, para falar sobre o PCC, mas o pedido foi negado.

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Para o ex-secretario Ferreira Pinto, o sucesso comercial do PCC é resultado de uma política de combate às drogas que deixou de atrapalhar: “A facção ganha muito dinheiro no tráfico. Por que eu, pertencente à facção, vou atentar contra o Estado, se o Estado não me incomoda?”, ele critica. Mello, do Insper, coloca o mesmo argumento em outras palavras, a partir de outra perspectiva: “Se o poder público está disposto a ser cínico o suficiente para conviver com o tráfico de drogas, ótimo”, resume o economista.

Esse é um dos mais delicados temas relacionados ao crime organizado. Afinal, uma facção é capaz de atuar por conta própria a fim de diminuir os índices criminais? “O que a gente estima é que o PCC, ao entrar numa favela, comparado com uma favela onde ele não está, causa uma queda nos crimes violentos — homicídio, agressão e homicídio culposo”, afirma Mello em seu escritório na faculdade, buscando uma resposta científica ao problema. “Só que a gente não encontra nenhum efeito sobre crimes contra o patrimônio, que inclusive era mais fácil de encontrar, porque crime contra o patrimônio é uma coisa comum.”

Ele cogitava duas hipóteses para explicar a queda nos índices: a da competição, na qual os crimes violentos caem simplesmente porque o PCC deixa de ter adversários, e a da justiça, na qual o PCC assume o papel de provedor do bem público no lugar do Estado. Como apenas os crimes violentos apresentaram queda, Mello pende a confirmar a primeira hipótese.

O Primeiro Comando da Capital jamais repetiu uma mobilização tão grande quanto a realizada há dez anos. Por quê? “Dentro do paradigma proibicionista, a evidência que está sendo construída é que é melhor enfrentar um grupo só”, analisa o economista. Em outras palavras, enquanto as políticas antidrogas não mudarem, tende a ser melhor para o governo enfrentar um PCC só, em vez de vários cartéis, como ocorre no México. Além disso, a facção conseguiu se manter sem dissidências. “É simples, a liderança que está prevalecendo hoje é uma liderança forte, que está conseguindo se manter”, afirma Christino.

A pesquisa de Mello, do Insper, vai no mesmo sentido. O estudo mostra que há formas de diminuir os crimes causados pelo comércio ilegal de drogas, sem necessariamente acabar com o tráfico. Por exemplo, incentivando a venda apenas em lugares fechados, como bares, para tirar traficantes das ruas, onde tiroteios são mais prováveis. Ou, como cantaram os Racionais MCs: “O movimento dá dinheiro sem problema, e o consumo tá em alta como manda o sistema”.

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Belas, censuradas e do lar

Não havia horário para o fim do expediente no 12º andar do imponente edifício que ocupa, de forma triangular, as esquinas das ruas João Adolfo e Álvaro de Carvalho, a poucos metros da Avenida 9 de Julho, centro velho de São Paulo. Há 50 anos, no mês de abril de 1966, era lançada a edição inaugural da revista Realidade.

Naquele andar do prédio, antiga sede da então novíssima Editora Abril, estavam homens com idade entre 25 e 30 anos, bem alinhados em camisa, gravata e terno de tergal e, também, bem pagos – em comparação com profissionais da época na mesma função. Essa era a turma de 66, uma equipe de jovens jornalistas escolhida a dedo para compor essa nova proposta editorial, uma revista mensal, com textos e fotos que exibissem o Brasil (e o mundo) de uma forma única e, até então, inédita em solo nacional.

Os últimos dias de 1966 eram de ansiedade para esses repórteres e editores – era assim a cada fechamento de edição. No caso, a próxima capa era a de número dez, chamada de Edição Especial – A mulher brasileira, hoje. Mesmo prevista para circular em janeiro de 1967, já estava certo que as bancas a receberiam ainda no mês de dezembro. A revista Realidade, em seu primeiro número, registrou 250 mil exemplares vendidos em poucos dias. Em tempos de rádio e com a televisão ainda em crescimento no país, a publicação chegou a ter 450 mil exemplares impressos. Atualmente, segundo os últimos dados da Associação Nacional de Editores e Revistas (ANER), a revista Claudia, maior publicação mensal em circulação, tem 420 mil exemplares impressos.

A edição foi pensada e desenhada para falar exclusivamente e, de uma forma inédita, sobre a mulher no Brasil. “Não sei como surgiu a decisão [da edição], mas acho que foi a consequência natural do que a revista vinha fazendo”, relembra o então repórter José Carlos Marão.

A capa. Crédito: Divulgação
A capa. Crédito: Reprodução

Nos últimos meses, o conteúdo da revista vinha abordando, de forma mais pontual, o universo feminino. A edição número quatro foi encartada com um cartão-resposta, que perguntava o que os brasileiros pensavam do divórcio. A revista trazia depoimentos sobre filhos não reconhecidos, viúvas sem herança e casos de discriminação com a situação jurídica das separações. O retorno foi animador para a redação: cerca de 15 mil respostas. “Naquele tempo, sem computadores, o resultado da pesquisa foi tabulado ‘na unha’, só sairia na edição 8, onde pela primeira vez, pelo que eu saiba, foi publicada uma pesquisa completa, com resultados por sexo, idade, escolaridade”, conta Marão.

A “evolução” do tema em pautas da revista, segundo o jornalista, teria motivado a elaboração da Edição Especial – A mulher brasileira, hoje.

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Hoje já clássica, a capa da edição veio toda em azul. O desenho de uma lupa focava no rosto de uma mulher, registrada pelo fotógrafo norte-americano George Love (1937-1995). O sumário explicava a opção pelo design de capa: “Uma mulher colocada sob a lente de aumento sintetiza o espírito desta edição especial: mostrar como é a mulher brasileira”.

Em uma carta ao leitor sob o título O trabalho que elas deram, o então diretor Roberto Civita explica que a proposta da edição surgiu, seis meses antes, numa longa conversa ao pé da lareira. “Falamos da revolução tranquila e necessária – mas nem por isso menos dramática – que a mulher brasileira estava realizando.”

Um dos eixos da edição estava baseado na publicação de uma pesquisa nacional sobre o sexo feminino, que teve suas conclusões – algumas surpreendentes para os editores – publicadas na íntegra.

Durante 40 dias no ano de 1966, a revista espalhou dez pesquisadores pelo Brasil com o objetivo de entrevistar 1,2 mil mulheres e ouvir o que elas tinham a dizer sobre temas como família, consumo e sexo. Os dados foram computados pelo Instituto Nacional de Estudos Sociais e Econômicos (Inese) e os resultados apresentados na íntegra em seis páginas da publicação.

Dentre os números reunidos havia, por exemplo, que 97% das mulheres ouvidas dizia acreditar em Deus – sendo que 11% já haviam duvidado. Que 40% das entrevistadas achavam que a mulher é mais inteligente que o homem; 59% respondeu que não e 1% preferiu não responder. E sobre sexo, 67% das entrevistadas continuam achando que a mulher deve casar virgem; 81% das analfabetas tiveram essa opinião; 54% entre as de nível universitário.

[olho]“Ao afirmar ter orgulho de ser mãe solteira, ela foi pioneira do movimento de vanguarda de libertação da mulher dos grilhões medievais”[/olho]

As reportagens abordavam temas como saúde, comportamento, humor, artes, religião, revelando mulheres fortes, batalhadoras, inovadoras e marginalizadas. Apesar de a maioria dos textos serem assinados pelo time de jornalistas da casa, quase todos homens, algumas mulheres foram convidadas para integrar a equipe. Daisy Carta realizou uma pesquisa para uma pauta sobre a “superioridade natural das mulheres”; Carmen da Silva teve contato com milhares de cartas para elaborar um artigo sobre “consultórios sentimentais”, e Gilda Grillo escreveu uma impactante entrevista com uma anônima mãe solteira.

A entrevista dada a Gilda Grilo. Crédito: Reprodução
A entrevista dada a Gilda Grilo. Crédito: Reprodução

Gilda havia voltado recentemente para o Brasil. Ainda na juventude tinha viajado para estudar na França e Nova York onde conheceu pessoalmente nomes como Greta Garbo, Marilyn Monroe, Simone de Beauvoir, François Truffaut, Catherine Deneuve. “A entrevista com a mãe solteira foi marcante para mim pela enorme coragem que ela teve, naquele tempo”, recorda Gilda, hoje vivendo no Rio de Janeiro, há 30 anos atuando como terapeuta. A autora da reportagem lembra que a mulher recusou-se a casar com o pai da criança se o motivo fosse apenas o filho, o que, na visão da terapeuta, era fora do comum para a época. “Ela foi pioneira do movimento de vanguarda de libertação da mulher dos grilhões medievais.”

Exemplares recolhidos

No entanto, a maior polêmica sobre a revista viria do talento de uma outra mulher, a fotógrafa Claudia Andujar. Nascida na Suíça, chegou ao Brasil nos anos 1950 e realizou trabalhos para a editora Abril. Foi casada com o fotógrafo Love, autor da capa. Posteriormente, sua atuação com as comunidades indígenas ficaria mundialmente conhecida – hoje, há um pavilhão inteiro sobre sua obra no Inhotim, em Minas Gerais. No número dez de Realidade, ela acompanhou o repórter Narciso Kalili em Bento Gonçalves (RS), para registrar o trabalho de uma parteira, publicado em sete páginas.

A foto da parteira dona Odila, de luvas, no momento exato em que acompanha o nascimento do bebê, com a mãe deitada em uma cama de lençóis amarrotados, uma imagem que foi dividida na dobra entre as páginas 72 e 73, motivou uma decisão judicial inusitada.

O Curador de Menores do Estado de São Paulo, Luiz Santana Pinto, requereu ao Juiz de Menores, Arthur de Oliveira Costa, a “imediata e sumária apreensão desta publicação, onde seja encontrada à venda nesta comarca”. O requerimento foi feito no mesmo dia em que a revista chegou às bancas, 30 de dezembro de 1966. O magistrado aceitou e despachou a ordem que os serviços de vigilância e rondas especiais recolhessem os exemplares.

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As fotos de Claudia Andujar. Crédito: Reprodução

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“A revista foi apreendida por ordem de um Juiz de Menores!”, exclama José Hamilton Ribeiro, à época na redação de Realidade e na ativa até hoje, aos 80 anos, no programa Globo Rural. “Começa aí o absurdo de um governo totalitário: a censura pode vir de qualquer canto, a ditadura se espraia pelas cabeças de todos que têm um pouquinho de poder”, prossegue. O Brasil iniciava o segundo ano de uma ditadura militar que começou com o Golpe de 1964 e que se prolongaria por 21 anos.

Em uma publicação no Diário Oficial, o juiz classificava que a revista tinha “algumas reportagens obscenas e profundamente ofensivas à dignidade e à honra da mulher, ferindo o pudor e, ao mesmo tempo, ofendendo a moral comum, com graves inconvenientes e incalculáveis prejuízos para a moral e os bons costumes”.

No dia seguinte, como descreve a historiadora Rosana Ulhôa Botelho, em seu artigo “Golpes contra a Realidade“, foi a vez do Juiz de Menores da Guanabara, Cavalcanti de Gusmão, adotar medida semelhante. Cerca de 200 mil exemplares já estavam à venda nas bancas. Por volta de 230 mil ainda estavam na gráfica da editora e foram retidos.

“Vista hoje, essa proibição fica ainda mais ridícula, é de dar risada, censurar fotos de um momento glorioso da vida humana, feitas com apuro artístico!”, reforça Ribeiro. “Só mesmo a mente equivocada de uma ‘otoridade’ para ver assim”, brinca.

“A gente sabia que alguns pontos [da edição], como a foto do parto, provocariam discussões”, afirma José Carlos Marão. “A gente esperava boa repercussão de alguns dos temas, como o divórcio. Mas, quando a notícia chegou na redação, a reação foi de perplexidade”, lembra. O jornalista conta que o departamento comercial foi o primeiro a saber.

Segundo Marão, a “venda da revista era tão rápida que não conseguiram apreender muitas – e jornaleiros espertos, percebendo um bom negócio, também esconderam seus exemplares, para a venda futura”.

Em 2011, Roberto Civita (1936-2013), diretor editorial do Grupo Abril, contou para o Jornal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) que “só depois descobrimos que os magistrados tinham sido incitados por um telefonema do Governador de São Paulo (Laudo Natel) que, por sua vez, havia recebido uma ligação indignada do cardeal da arquidiocese (Dom Agnelo Rossi, 1913-1995)”.

A edição seguinte, de fevereiro de 1967, trouxe todo o conteúdo da acusação dos magistrados, bem como a defesa, em forma de reportagem. A capa continha uma ironia: uma foto do renomado fotógrafo americano David Drew Zingg (1923-2000), com o rosto dela, Gilda Grillo. “O Victor Civita então aproveitou para rir da cara da censura, colocando uma moça dando um grande sorriso com o rosto coberto de purpurina. Essa moça era eu”, conta Gilda.

Gilda na capa da edição de fevereiro. Crédito: Reprodução
Gilda na capa da edição de fevereiro. Crédito: Reprodução

Uma decisão judicial favorável à revista seria dada 21 meses depois, mas os exemplares recolhidos já haviam sido destruídos.

Para Marão, o episódio com a Justiça, dois anos antes do rigoroso Ato Institucional nº 5, deixava claro que os holofotes estavam voltados à Realidade. “O que deu para sentir foi o quanto aquela revista nova, que estava ainda na sua edição número 10, já era muito importante no País”, diz.

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Não é preciso explicar muito o quão diferenciada era a redação de Realidade. Basta ler o primeiro parágrafo da reportagem que causou a apreensão das revistas nas bancas, vindas da Studio 44, máquina de escrever portátil da Olivetti, operada por Narciso Kalili.

A cidade de Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, vive no fundo de um vale cercado por montanhas cobertas de trigo, cevada e parreiras verde-brilhante. O povo fala alto e os gestos acompanham as palavras – a colonização foi feita por imigrantes italianos. Chamam-se a si mesmos gringos embora tenham nascido, em sua maioria, no Brasil. As casas são de madeira e há muitas flôres em seus jardins. O pão é feito em casa e em tôdas as mesas estão o galetto e a polenta. Depois que a indústria começou a sustituir a agricultura, êles fixaram-se na cidade e transformaram-se em operários e comerciantes. Os hospitais foram surgindo e o progresso acabou com muitas tradições, uma delas a parteira que atendia a domicílio. Mas muita gente de Bento Gonçalves ainda não troca a dona Odila pelo médico. Esta é a história de um de seus partos.

“O destino me colocou ali, naquele momento em que diversas circunstâncias históricas se confluíram para gerar um fenômeno jornalístico reconhecido em sua época”, explica José Hamilton Ribeiro, que afirma ainda reconhecer “certas facetas de nosso jornalismo”, especialmente às propostas voltadas à pesquisa, investigação e ao apuro em relação ao texto.

[olho]“A mulher hoje é, sim, bem menos perseguida e tem direito à voz de uma forma que naquele tempo poucas mulheres se arrogaram a ter”[/olho]

E ao utilizar dessas virtudes jornalísticas para falar das mulheres, a revista deu de cara com os rigorosos valores e costumes da época. “Fico imaginando como seria se, naquele tempo, alguém falasse em união de gays ou casais em seu segundo ou terceiro casamento e que, apesar disso, criam os filhos com amor e harmonia”, reflete José Carlos Marão, que ouviu três mulheres divorciadas que optaram por usar nomes fictícios na edição. “O que chamavam de ‘divórcio’ era, para muitos, coisa do demônio e, para outros, uma imoralidade.”

Mas, e se colocada em perspectiva, qual o impacto de uma publicação como a Edição Especial – A mulher brasileira, hoje, passados cinquenta anos? Gilda Grillo, apesar de ter vivido grande parte desse período fora, afirma que a realidade da mulher mudou drasticamente. “A mulher hoje é, sim, bem menos perseguida e tem direito à voz de uma forma que naquele tempo poucas mulheres se arrogaram a ter”, diz.

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Sérgio carrega o sobrenome de seu pai, Narciso Kalili, repórter que assinou a tão comentada reportagem “Nasceu!”. O filho conta que o autor não falava muito sobre o assunto. “Meu pai não gostava muito de viver do passado, de falar do passado. Estava sempre ligado no presente. Era uma característica dele. Sempre com muitos projetos, sempre em ebulição”, lembra.

Lamenta, também, não ter tido tanto tempo para tratarem desse tema. “Ele morreu muito cedo (em 1992). Não deu tempo de conversar muito sobre o passado”, diz.

Sua homenagem ao legado do pai – e de toda equipe – virá em formato audiovisual. Ao lado de Marcelo Souza, filho do então editor de texto, Sérgio de Souza (1934-2008), pretendem produzir uma série e um documentário sobre “a turma que fez Realidade e que, posteriormente, continuou na imprensa alternativa”. Os trabalhos estão em andamento e alguns depoimentos já foram gravados.

“Meu pai gostava de dizer que o tempo passou, mas que ele não havia se corrigido. Dizia que era um jornalista fora de moda”, lembra Sérgio, ao dizer que o pai continuava humano, companheiro, idealista, sensível e buscando trazer justiça com a profissão para os mais pobres. Kalili também dizia que “jornalismo imparcial não existe”. Seu último texto escrito antes de partir foi o prefácio da primeira edição de Rota 66 (Record), de 1992, livro-reportagem de Caco Barcellos. “Lá ele disse que jornalista tem lado e que Caco escolheu o lado do povo. Ele estava falando dele também.”

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Cinema

‘Cassiopéia’, 20 anos

Bem antes de “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu, ser indicado ao Oscar, uma animação brasileira disputava outro importante título internacional. Pouco mais de vinte anos atrás, “Cassiopéia”, de Clóvis Vieira, brigava com “Toy Story” pelo reconhecimento de primeira animação 100% digital. O filme começou a ser produzido antes e com bem menos recursos, mas foi lançado alguns meses depois do longa da Disney. Mesmo assim, há uma controvérsia em torno da primazia de “Toy Story”, já que o longa usou escaneamento de bonecos modelados em argila, enquanto o filme brasileiro foi feito completamente no computador, sem usar imagens ou modelos feito fora dele.

Depois do lançamento, os dois filmes seguiram trajetórias completamente diferentes: enquanto “Toy Story”, lançado em dezembro de 1995, virou uma franquia de sucesso pelo mundo, com um quarto filme em fase de pré-produção, “Cassiopéia”, que saiu em 1996, encontrou dificuldades na distribuição, não conseguiu ser exibido no exterior e teve sua continuação cancelada por falta de dinheiro. Hoje em dia pouco se fala do filme brasileiro pioneiro, que pode ser visto inteiramente no YouTube, com a aprovação do diretor, que trabalha agora no filme espírita “Deixe-me Viver”. Até imagens do filme são escassas.

Cena de "Cassiopéia"
Cena de ‘Cassiopéia’

Mas um lugar não se esqueceu de “Cassiopéia”. Duas décadas depois de seu lançamento, um cartaz de “Cassiopéia” ainda enfeita um dos salões do restaurante Nello’s, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Foi por ali que o filme começou a tomar forma, quando Clóvis Vieira conheceu Nello De Rossi, dono do restaurante e, na época, também da produtora NDR. Nello era um ator italiano que havia se mudado para o Brasil em 1973 e que, mesmo com um restaurante de sucesso, não conseguia se afastar do cinema, sua grande paixão. “Quando papai abriu a produtora, foi um êxodo do restaurante. Todo mundo foi trabalhar lá”, lembra Patricia De Rossi, filha de Nello, numa conversa no restaurante. “Minha mãe dizia que aqui era o pão de cada dia. A gente trabalhava de dia lá e de noite ajudava aqui. Todo o mundo preferia trabalhar na produtora.”

Clóvis, que animava filmes de publicidade e fazia vinhetas desde os anos 1970, conheceu Nello nos anos 1980, quando o italiano produzia o filme “Jeitosa, um Assunto Muito Particular”, com Lúcia Veríssimo e John Herbert, cujo cartaz também enfeita o restaurante. “Meu estúdio também prestava serviços para longas, fazia coisas como efeitos especiais e letreiros de apresentação. O Nello gostou do meu projeto do ‘Pifft’ e queria produzir, mas naquela época era muito caro e não foi para frente”, conta Clóvis, referindo-se ao seu projeto de animação sobre um morcego chamado Pifft, que acabou não virando filme. “Em 1991 sugeri substituir o projeto do ‘Pifft’ pelo ‘Cassiopéia’, devido à diminuição dos custos. A introdução da imagem digital viria a nos beneficiar.”

Segundo Patricia, que foi assistente de montagem de “Cassiopéia”, Nello se apaixonou pela nova história de Clóvis — ambientada num planeta na constelação de Cassiopéia, que vive em paz até a chegada de invasores que sugam sua energia vital — apesar de não entender nada de animação ou computadores. “Durante a produção ele dizia: ‘Nossa senhora, eu gostei da ideia, apostei no Clóvis, mas nunca mais vou me envolver numa coisa que eu não sei’.” Era uma tecnologia nova e que Nello, morto em 2013, não entendia. Mas esse nem foi o maior dos problemas. No making of do filme, também disponível no YouTube, ele diz ter feito uma coisa que nunca se deve fazer no cinema: começar um filme sem saber como financiar o filme até o último fotograma.

Quando Nello entrou no projeto, “Cassiopéia” era só um embrião, ainda sem roteiro. Foi ele quem apresentou a Clóvis a roteirista Robin Geld, que se juntou a uma equipe formada por Aloisio de Castro e José Feliciano. “Trocávamos ideias. O filme foi sendo feito sem roteiro. Na medida que avançávamos, criávamos as situações, como nas novelas. Um dia a Robin me disse: ‘Sonhei com uma lua, o filme precisa ter uma lua’. Então criei a cena da Lua que foi o desfecho do filme”, diz o diretor.

INVESTIMENTO E ROUBO

A produção começou com um investimento do próprio Nello em 1992. No ano seguinte, foi aprovada a Lei do Audiovisual, que dá incentivos fiscais para quem direciona recursos a projetos audiovisuais, e com ela, conta Clóvis, a equipe conseguiu captar por volta de R$ 700 mil. O filme todo foi feito no Brasil, enviado para os Estados Unidos apenas para ser transposto para película cinematográfica no laboratório DuArt, em Nova York. Por volta de seis meses antes da finalização do filme, houve uma invasão na produtora e alguns CDs com o trabalho de “Cassiopéia” foram roubados. “Isso atrasou o lançamento”, lembra Patrícia. Até hoje não se sabe direito o que aconteceu. “Foi proposital pra Disney dizer que lançou [um filme 100% digital] antes. Os americanos gostam de fazer primeiro. A gente acredita que foi uma sabotagem intencional”, diz ela.

[olho]”A gente acredita que foi uma sabotagem intencional”[/olho]

As dificuldades não acabaram por aí. Depois de pronto, conta Patricia, foi complicado arrumar uma distribuidora para levar o filme às salas de cinema. “É a segunda parte do drama. ‘Cassiopéia’ foi lançado pela PlayArte na época da Olimpíada. Queimou nossa primeira semana, porque o foco era totalmente a Olimpíada. O filme morre”, afirma. “E era um filme importante, o primeiro todo digitalizado no Brasil, e não deram a atenção necessária. A distribuição foi ruim e, por consequência, a repercussão foi morosa, triste.” Clóvis concorda: “O filme foi mal lançado, no dia da abertura da Olimpíada de Atlanta. Os distribuidores queimaram o filme. Mas em vídeo foi bem lançado, havia lista de espera nas locadoras”, diz. Por causa da distribuidora, diz, “Toy Story” chegou aos cinemas antes mesmo tendo começado a ser produzido depois.

Personagens de 'Cassiopéia'
Personagens de ‘Cassiopéia’

Ainda que tenha sido lançado depois de “Toy Story”, há quem diga que “Cassiopéia” é o primeiro filme totalmente digital por não ter feito o escaneamento dos bonecos. Clóvis não liga muito para o título ou para a polêmica. “Isso não tem muita importância. O que vale no mundo é o marketing e a data do lançamento nos cinemas”, diz o diretor. “Contudo, nós saímos na frente. A Disney soube que estávamos fazendo um filme totalmente digital. Quando perceberam que estávamos na frente, correram para a Pixar, de Steve Jobs, que tinha projetos na área. Então a Disney jogou US$ 30 milhões no colo de Jobs para terminar antes que nós. Pessoalmente, fico feliz em fazer a Disney e Jobs terem corrido atrás de nós por algum tempo. Hoje perdemos de mil a zero. Mas essa disputa fez bem a ambas as partes.”

NO EXTERIOR

Fora do Brasil, “Cassiopéia” também não emplacou. “Conseguimos distribuição nos Estados Unidos, mas precisaríamos investir na dublagem em inglês. Fomos à Ancine pedir autorização para captar R$ 400 mil. Negaram dizendo que o Nello não era naturalizado brasileiro, só residente. Ele ficou desgostoso depois de tanto fazer pelo cinema brasileiro. Então desistimos do projeto”, diz Clóvis.

[olho]”Durmo feliz sabendo que um dia rivalizei com Steve Jobs e a Disney”[/olho]

Patricia diz que Nello esperava ganhar dinheiro com produtos relacionados a “Cassiopéia” — brinquedos, roupas, mochilas e outras mercadorias com a imagem de seus personagens — e que não quis que ceder esse lucro de licenciamento a distribuidoras estrangeiras que manifestaram interesse no filme. “Se alguém investe no filme, tem que ter a certeza de que pode fazer o merchandising e ganhar pela venda”, diz ela. “Todo mundo conversava com o pai pra ele ser mais flexível, mas ele não queria abrir mão da possibilidade do lucro do merchandising. Ele não entendia que no primeiro filme ele tinha que ceder. No segundo filme, se o primeiro for um sucesso, você pode ditar regras. Isso papai não entendeu.”

Uma continuação de “Cassiopéia” chegou a ser anunciada, mas por falta de financiamento o projeto foi engavetado. Depois disso, a NDR fechou as portas. “Foi nossa última produção. Mas papai viveu com o cinema dentro dele a vida toda”, diz Patricia. Apesar dos pesares, ela conta que Nello ficou feliz com o resultado. Clóvis segue a mesma linha: diz que sempre assiste ao filme e que não mudaria nada em toda sua trajetória. “Tínhamos limitações técnicas, pois a tecnologia de hardware e software estava nos primórdios. Tiramos leite de pedra. Fizemos o máximo que alguém no Brasil faria nas mesmas condições”, afirma. “Não rendeu dinheiro, mas durmo feliz sabendo que um dia rivalizei com Steve Jobs e a Disney.”

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Afinal, quão bom é ‘Star Wars’?

A estreia de um novo “Star Wars” mexe com as pessoas. No começo, foi fácil resistir a entrar no clima. Mas aí vieram os trailers, os comentários alucinados no Facebook, os pôsteres e — o golpe final — o fofíssimo robô BB-8. De repente, a internet estava cheia de discussões sobre a verdadeira natureza de Jar Jar Binks, o personagem mais chato da galáxia. Depois de três filmes meia-boca, porém, fica a dúvida: vale tanta animação? Quão bom é de fato “Star Wars”? Quais são os melhores filmes? Depois de muita análise, o nosso veredicto é simples: a franquia é boa. Mas nem tudo relacionado a seu universo é automaticamente bom. Longe disso.

Alguns livros e filmes além de criar personagens e uma trama, criam todo um universo, o que permite que novas histórias, antes e depois da original, sejam criadas. “Harry Potter”, por exemplo, vai ganhar spin-offs no cinema e no teatro. Nas telas, Eddie Redmayne será o magizoólogo Newt Scamander em “Animais Fantásticos e Onde Habitam”, ambientada décadas antes de “Harry Potter”, mas com o mesmo universo de bruxos.

Mas a possibilidade de criar novas histórias não significa que elas sejam necessariamente tão boas quanto as originais. O que tornou “Harry Potter” e a trilogia original de “Star Wars” produtos de sucesso é o conjunto da obra: universos interessantes com bons personagens e boas tramas. Ambientar um livro num futuro distópico, numa escola de magia ou numa galáxia muito, muito distante, por si só, não é garantia de nada. Quando se espera algo tão legal quanto o original, a decepção pode ser grande. A expectativa é cruel.

A trilogia original de “Star Wars” é muito boa. O primeiro filme, o mais fraco dos três, já é interessante. O trio de mocinhos protagonista é excelente: um garoto que só tem bondade no coração, um cafajeste charmoso e uma princesa que não tem nada de donzela em apuros. Há uma boa trama política, uma história de amor, ação, um alívio cômico que aparece na medida certa (C3-PO) e um vilão antológico. Nos filmes seguintes, com a descoberta de que — alerta de spoiler para quem viveu numa bolha nos últimos 30 anos — Luke Skywalker e Leia Organa são irmãos e filhos de Darth Vader, a trilogia ganha ainda um elemento de drama familiar e fica ainda melhor. Tudo deu certo.

O trio Luke, Leia e Han Solo
O trio Luke, Leia e Han Solo

Na teoria, a trilogia iniciada nos anos 90 também poderia ser boa. A premissa, pelo menos, é ótima: mostrar como o jedi Anakin Skywalker foi para o lado negro da força e virou o vilão Darth Vader, como os jedis foram dizimados, a formação do Império, o nascimento de Luke e Leia. Tem muito material. A execução é que foi ruim. George Lucas pegou vários dos mesmos elementos que deram certo nos três primeiros filmes, mas fez tudo errado com eles.

Como na trilogia original, tem política. Mas é tudo tão mais complicado que, para pessoas estreando no universo “Star Wars” ou há muito tempo afastadas dele, umas consultas ao Google ajudam. Há também uma história de amor, mas muito ruim. No primeiro filme, é estranho ver o romance nascente entre uma rainha, ainda que adolescente, e uma criança. Nos seguintes, Anakin força a barra com Padmé e não consegue entender que “não” significa não. Também não ajuda o fato de Hayden Christensen, o Anakin, ser um péssimo ator e Natalie Portman estar longe de seu melhor momento.

O alívio cômico, Jar Jar Binks, em vez de fazer rir, provoca em iguais medidas constrangimento, irritação e ímpetos violentos. E um vilão do calibre de Vader faz falta (Darth Maul? Pffff, por favor. Só seu sabre de luz, com duas pontas, é legal). Nem a transformação de Anakin em Vader é lá essas coisas. Falta sutileza: desde o começo ele é desobediente, irritadiço, com tendências ditatoriais, e um chato que só reclama. Yoda devia ter seguido seu primeiro instinto e se recusado a treiná-lo.

Pode parecer estranho dizer que os efeitos especiais dos filmes dos anos 1970/80 envelheceram melhor que os dos anos 1990/2000, mas é verdade. Na trilogia original, as estranhas criaturas espaciais são representadas por bonecos ora fofos — como Yoda –, ora curiosamente bizarros — escolha qualquer um no bar em que Luke conhece Han Solo. De qualquer forma, os bonecos são simpáticos. Nos filmes mais recentes, muitas criaturas são digitais, e os efeitos evoluíram muito de lá pra cá, e os efeitos envelheceram mal. Novamente Jar Jar Binks é o exemplo negativo. Mesmo Yoda é computadorizado no final, perdendo boa parte do seu charme.

Luke com o Yoda em versão boneco
Luke com o Yoda em versão boneco

Vale o mesmo para os livros de “Star Wars”. São muitos, escritos por vários autores e ambientados em épocas diferentes. São histórias tão diferentes que é impossível generalizar e dizer que os livros, como um todo, são bons ou ruins. Há dezenas de livros de “Star Wars” disponíveis, que contam histórias de antes da era da velha república, da época dos filmes e depois de “O Retorno de Jedi”. Alguns livros giram em torno de um só personagem (grande, como Han Solo, ou menor, ou do oficial Wilhuff Tarkin, comandante da Estrela da Morte).

Entre todos, “Marcas da Guerra”, de Chuck Wendig, é o único ambientado após “O Retorno de Jedi” que pertence ao cânone — coleção de livros oficiais, que existem no mesmo universo dos filmes. A maioria dos livros tem o selo “Legends”: são histórias que não têm impacto no que acontece no cinema e não dão pistas para o que vem por aí. Mesmo assim, esses volumes têm seus fãs.

Os mais populares da coleção são os da trilogia Thrawn, de Timothy Zahn. Publicada nos anos 1990, entre as trilogias cinematográficas, foi responsável por uma nova onda de interesse pelo universo de George Lucas. A história de Zahn se passa após a derrocada do Império e ganhou o selo “Legends” quando um novo filme foi anunciado. No livro, por exemplo, Leia engravida de gêmeos e Luke se casa. Vai saber o que acontece nos filmes.

Mas “Marcas da Guerra” é o único livro a dar pistas do que vem pela frente. Como os personagens do livro e do novo filme não são os mesmos e os dois foram feitos por pessoas diferentes, não dá para usá-lo como base para especular como será “O Despertar da Força”, só para sentir o clima de como andam as coisas na galáxia distante. O autor conta histórias de diferentes personagens, alguns do lado do Império, outros do lado da Nova República. Tem menos ação do que um fã da série está acostumado — é como se fosse um prólogo mesmo, um mosaico de como a galáxia está após a morte de Darth Vader e do Imperador (spoiler: não está nada bem, aqueles Ewoks começaram a dançar antes da hora).

Pelo menos, o livro mostra que ainda existem boas histórias para contar: diferente do que o final de “O Retorno de Jedi” dá a entender, com a festa de ewoks comemorando a morte do Imperador e de Darth Vader, a paz não foi alcançada na galáxia. O Império foi enfraquecido, mas a guerra está só começando.

O casal Anakin Skywalker e Padmé Amidala
O casal Anakin Skywalker e Padmé Amidala

Resta saber onde o sétimo filme se encaixará no ranking de melhores filme da série, que, por enquanto, está assim:

6) Episódio 1: A Ameaça Fantasma

Tão bom quanto uma visita ao dentista. O mundo estava certo ao dizer que Jar Jar Binks era o pior personagem de toda a série. Sem graça, irritante, é só ele aparecer em cena (e pior, abrir a boca) pra você sentir uma vontade súbita de ir ao banheiro sem pausar o filme. O ator que faz o Anakin Skywalker, coitado, é péssimo — e nunca mais fez outro trabalho como ator. Nada de emocionante acontece e a corrida de pod racers é maçante e poderia ser cortada facilmente. A luta de sabres de luz entre Darth Maul, Qui-Gon Jinn e Obi-Wan Kenobi é o único bom momento — e acontece só no final. Até lá é um suplício. Se a história for justa, esse filme será esquecido e virará apenas uma memória apagada na mente de todos nós.

5) Episódio 2: Ataque dos Clones

A boa notícia: outro ator faz Anakin. A má notícia: ele talvez seja pior que o primeiro. Impressionante, é “Star Wars”, eles podiam escalar qualquer ator do mundo, e escolheram Hayden Christensen. A química dele com Natalie Portman (Padmé Amidala) é praticamente inexistente e é difícil torcer pelo romance deles, que é o que leva Anakin ao lado negro da força. Ver Yoda como computação gráfica dá uma tristeza. Pelo menos tem menos Jar Jar e a trama de Obi-Wan investigando o exército de clones é até que legal. Se o filme se centrasse nele, talvez fosse melhor.

4) Episódio 3: A Vingança dos Sith

Hayden Christensen ainda está mal, mas melhora como Anakin. Dos filmes da trilogia nova, é o mais cheio de acontecimentos. O motivo que leva Anakin ao lado negro da força é um pouco idiota: convencido de que se juntar a Palpatine pode impedir a morte de Padmé, ele se volta contra os jedi. Mas ele não se deu conta de que ele ia perdê-la justamente por isso? E no fim das contas ela morre mesmo, o que é bem frustrante. Pelo menos o final, com a luta entre Obi-Wan (o melhor personagem da trilogia) e Anakin, é bom. E nem que seja por pura curiosidade, é legal descobrir o que aconteceu para Vader precisar daquela máscara e armadura e finalmente ver a transformação do vilão.

3) Episódio 4: Uma Nova Esperança

Não ter o romance entre Padmé e Anakin e Jar Jar Binks já faz do episódio 4 melhor que os três filmes da trilogia nova. Mas ainda não tem o mestre Yoda e como não se sabe que Darth Vader é pai de Luke e Leia há menos coisa em jogo. Para quem já sabia desse fato ao ver o filme, o clima de romance e azaração entre Luke e Leia é bem esquisito. É uma boa introdução para a história e a destruição da Estrela da Morte é legal, mas a história melhora quando Luke se torna um jedi.

2) Episódio 6: O Retorno de Jedi

Em “How I Met Your Mother” uma teoria é apresentada: quem nasceu antes de 1973 e já era grandinho no lançamento do filme não gosta dos ewoks. Quem nasceu depois, os adora. Talvez seja verdade. Como alguém que só viu a trilogia nova no cinema: eles são fofíssimos. O filme tem momentos divertidos (o resgate de Han Solo, preso por Jabba), boas lutas e um desfecho emocionante entre Darth Vader/Anakin e Luke.

1 ) Episódio 5: O Império Contra-Ataca

Ganha do “Retorno de Jedi” por ter Yoda montado nas costas de Luke, aprendiz de jedi. É, aliás, a primeira aparição de Yoda, forte candidato e melhor personagem da série. Tem também o momento mais famoso de “Star Wars”, a revelação de que Darth Vader é pai de Luke (pra quem viu o filme sem saber o spoiler, deve ter sido um momento e tanto). Como se não bastasse, tem outra frase clássica: depois de ouvir uma declaração de amor de Leia, Han Solo responde com “eu sei”. Grandes momentos em um grande filme.

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A ressurreição de Augusto Ruschi

Em janeiro de 1986, onze anos depois de ter sido envenenado por um sapo da espécie dendrobata, o naturalista Augusto Ruschi se viu condenado. O veneno, acreditava ele, havia contaminado 95% de seu fígado. Nos últimos meses, o naturalista acelerara o ritmo de trabalho para concluir os dois livros que estava escrevendo, mas suas forças diminuíam a cada dia. Ele ofegava, dormia mal, sofria com febres e hemorragias nasais. Depois de uma vida desbravando as florestas e matas do país, já não conseguia percorrer longas distâncias.

Temendo pelo pior, chamou um de seus amigos mais próximos, o jornalista Rogério Medeiros, e lhe fez um último pedido. Queria ser enterrado na Reserva Biológica de Santa Lúcia, a mata de 279 hectares cobertas de orquídeas e bromélias que ajudou a tombar.

“Mas tem que ser aqui?”, questionou Medeiros, argumentando que, no Brasil, “não se enterra ninguém fora do cemitério”. Ruschi foi irredutível. Era lá, no paraíso das plantas e dos pássaros, que havia realizado a maior parte de sua obra. A outro grande amigo, o cronista Rubem Braga, confidenciara: depois da morte, sonhava em ser carregado pelos beija-flores.

O naturalista já não tinha perspectivas de curar sua doença, quando recebeu um telefonema de Brasília. Então repórter do Jornal do Brasil, Medeiros estava com Ruschi no dia da ligação.

“Era um ministro do [então presidente] José Sarney, não lembro qual…”, conta o jornalista por telefone, do Espírito Santo, onde mora atualmente. “Eles falaram: conseguimos a ajuda dos índios… O Ruschi adorou a ideia e aceitou se tratar com eles.”

A ligação apenas oficializou um desejo acalentado pela opinião pública à época. Diante daquela doença desconhecida, prestes a matar uma das mais ilustres figuras científicas do país, o governo e a sociedade brasileira buscaram, na tradição de seus índios, uma solução mágica. Sem outra alternativa, o Brasil recorreu às suas próprias raízes. E descobriu, entre deslumbramento e desespero, um processo autóctone, até então desprezado em seu sonho de desenvolvimento.

***

Aos 70 anos, Augusto Ruschi acumulava uma longa lista de serviços prestados para o meio ambiente. Como botânico e ornitólogo, catalogou centenas de espécies de plantas e animais, em especial orquídeas e beija-flores. Como ativista ecológico, foi dos poucos a enfrentar a Ditadura Militar contra o desmatamento da Amazônia. Ganhou notoriedade ao ameaçar com uma espingarda o ex-governador do Espírito Santo, Élcio Álvares, quando este tentou destruir a estação biológica de Santa Lúcia para plantar palmito.

Visionário, Ruschi alertou desde cedo para os perigos dos agrotóxicos e da monocultura de eucalipto. Ainda em 1951, previu, em um congresso na ONU, que as reservas ecológicas se transformariam nos bancos genéticos e habitats do futuro. Seus esforços tinham sido recompensados com medalhas e condecorações no Brasil e no exterior, mas só então, com os dias contados, o cientista ganhava a merecida atenção da imprensa nacional.

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O beija-flor Loddigesia mirabilis, redescoberto por Augusto Ruschi. Ilustração: John Gould
O beija-flor Loddigesia mirabilis, redescoberto por Augusto Ruschi. Ilustração: John Gould

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Em 1975, Ruschi buscava novos exemplares de beija-flores, seu animal fetiche, na Serra do Navio, Amapá, quando se deparou com dezenas de dendrobatas, pequenos sapos coloridos e, consequentemente, venenosos. Pediu ajuda aos índios que o acompanhavam para capturá-los, mas estes se recusaram. O naturalista não os imitou. Um dia depois de apanhar sozinho trinta sapos, foi internado de Macapá com o coração acelerado.

[olho]”Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”[/olho]

Ruschi estava contaminado. Ano após ano, silenciosamente, a peçonha foi corroendo sua saúde. O fato permaneceu desconhecido do grande público até ser revelado pelo Jornal do Brasil, no dia 12 de janeiro de 1986. Assinada por Rogério Medeiros, a reportagem soava como uma espécie de obituário antecipado. Uma chamada estrondosa na capa daquele edição dominical anunciava que o fígado do “defensor intransigente das florestas” já se encontrava “irremediavelmente comprometido”.

Três dias depois, foi a vez do colunista Affonso Romano de Sant’Anna escrever uma crônica emocionada, que mobilizaria os governantes do país.

“Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”, anunciava o poeta e ensaísta.

Sant’Anna foi o primeiro a colocar os índios na jogada. Seu texto conclamava as autoridades a buscarem uma cura para aquele que ele definia como um “monumento nacional”. Se os laboratórios mais sofisticados não a tivessem, sugeria o colunista, talvez os povos da Amazônia, conhecedores da letalidade dos dendrobatas, encontrassem uma alternativa.

“Mas não podemos assistir a essa tragédia tropical achando que Édipo tem mesmo que matar seu pai e Antígona seus filhos”, continuava. “Não podemos ler assim impotentes a crônica de uma morte anunciada, como se fosse uma novela de García Márquez. Alguém tem que ter um remédio.”

O texto sensibilizou a opinião pública. De uma hora para outra, todos queriam ajudar. Homeopatas ofereceram seus serviços e admiradores imploravam por uma intervenção do Palácio do Planalto. Especializada em retratar a flora amazônica, a pintora inglesa Margaret Mee embarcou aos Estados Unidos para informar botânicos americanos sobre o estado de saúde do naturalista.

Augusto Ruschi em Teresa, ES em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi em Teresa, ES em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

Em Brasília, o texto caiu nas mãos do então presidente José Sarney, que enxergou uma oportunidade para ganhar simpatia da opinião pública. Em seu segundo ano no cargo, o maranhense sofria para administrar um país destroçado por 20 anos de Ditadura Militar. Mesmo concorrendo com planos de congelamento de preços e denúncias de corrupção, o caso Ruschi dominava rádios e jornais. Todos os dias, uma nova notícia sobre o cientista ilustrava a capa do Jornal do Brasil.

Sarney não perdeu tempo: no avião em que voltava de Manaus, pediu ao Ministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, que a Funai procurasse a ajuda dos índios. Em um primeiro momento, o órgão indigenista se ofereceu para contatar os Waiapi, povo indígena da Serra do Navio, onde Ruschi havia sido contaminado, em busca de um antídoto. Finalmente, receberam no Palácio do Planalto o cacique Raoni, já internacionalmente reconhecido por sua luta pela preservação da Amazônia, e acordaram uma pajelança.

“Mas por que ele não avisou antes?”, perguntou o cacique, ao ser informado da doença que acometia Ruschi. Raoni encomendou o colhimento de uma raiz da selva chamada atorokon, cuja maceração e cozimento serviria de antídoto para o veneno. “Primeiro, bate a raiz e põe na água quente; quando vira água, pinga no olho; depois bebe um pouco; depois toma banho”, explicou. Um avião da FAB saiu de Brasília com destino ao Parque Nacional de Xingu para buscar o pajé Sapaim, que iria auxiliar Raoni no tratamento.

Cacique dos Txucarramães, Raoni havia sido tema de um documentário premiado com o Oscar, em 1978, e narrado por Marlon Brando. Nascido em 1930 no Mato Grosso e pertencente a um dos ramos da etnia caiapó, aprendera português aos 20 e poucos anos com os célebres indigenistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Boas. Um dos irmãos de Raoni também fora envenenado por um sapo dendrobata, e o cacique garantia agora conhecer o seu antítodo. Ele, porém, não era reconhecido como pajé, nem mesmo entre os caiapós. Como o tratamento exigia um pajé, convocaram também Sapaim, um kamayurá do Alto Xingu, considerado um dos maiores xamãs dos povos indígenas, inciado e consagrado pelo espírito Mamaé.

A passagem dos dois índios pelo Rio de Janeiro, onde iriam tratar Ruschi, foi um prato cheio para a mídia da época. Com seu disco de madeira no lábio inferior, Raoni era uma figura fácil de marcar. O jeito enigmático de Sapaim, que pela primeira vez saía de sua aldeia para visitar uma cidade, também foi motivo de folclore. A mídia acabou focando nos aspectos mais superficiais da cultura indígena. Como o interesse de Sapaim pela música da banda RPM, cuja fita-cassete levou para o Xingu (“Quero ouvir muito o som dessa fita, muito boa”). Ou o comportamento informal de Raoni, que não se conteve e soltou um estrondoso “grito de Tarzan” durante um encontro no Palácio do Planato, não se sabe bem por quê (ao seu lado, o ministro Costa Couto ficou envergonhado e resolveu sair às pressas).

Jornalistas do mundo inteiro vieram cobrir o episódio. Nas disputadas coletivas, os repórteres repetiam a mesma pergunta: como homem de ciência, o naturalista acreditava na fé dos índios? Não estaria ele se rendendo ao “curanderismo”? Ruschi, que já conhecia bem os povos do Xingu, tentou desfazer a oposição ciência/medicina popular. Em suas respostas, sempre enfatizava o conhecimento dos poderes das plantas pelos índios, lembrando que a medicina deles tinha dois mil anos, “muito mais tempo do que a nossa”.

“Até agora enfrentamos problemas com soro antiofídico, com gente morrendo todo dia em decorrência de picada de cobra. No entanto, nesses 50 anos de vida na Amazônia, vi os índios ingerirem chás e serem curados de veneno”, afirmou o naturalista em uma entrevista coletiva no Rio de Janeiro, às vésperas da pajelança.

[olho]Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”[/olho]

“Houve uma cultura sensacionalista, que, aliás, ainda é atual”, lembra o biólogo André Ruschi, segundo dos três filhos de Augusto, em entrevista por e-mail. “Uma parte da mídia foi interessante e prestou significativos serviços. Mas ainda muito superficial. Pouco investigativa. Havia alguns interesses comerciais que estavam sendo mobilizados formando-se um jogo comercial no mercado, oculto do público, da grande mídia.”

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Augusto Ruschi e o cacique Raoni, da tribo Txucarramãe, no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi e o cacique Raoni, da tribo Txucarramãe, no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

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Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”, diagnosticou. Para o cacique, era preciso urgentemente “tirar o sapo” de dentro de seu paciente. A Sarney, contou ter visto Ruschi em sonho, numa lagoa cheia de anfíbios: “Ele já virou um sapo, mas esse sonho pode ser um bom presságio”. Os jornais reproduziram as palavras do cacique sem nenhum contexto, ignorando qualquer cosmologia por trás delas. Também pouco falaram do papel dos espíritos e dos sonhos na cura.

“O pajé fala com o doente de dia e de noite vai dormir. Quando sonha, sai do corpo e acompanha o espírito-guia, que no caso de Sapaim se chama Ypotramaé [mamaé da flor, ‘ipoty + mamaé’]”, explica o médico e antropólogo Wesley Aragão, que acompanhou Sapaim em suas pesquisas de campo. “O mamaé-guia do pajé o leva para uma floresta, em ‘viagem fora do corpo’, e lhe mostra quais ervas deve usar e que procedimento deve tomar, no dia seguinte, com o paciente. O pajé ao estilo de Sapaim age sempre desta forma. Todos têm o seu espírito guia com quem conversam de dia, em clarividência suposta, ou de noite, no sonho. No rito de cura, este sonho terapeutico com o espírito é determimante. Inclusive em termos de prognóstico”.

Segundo Wesley, o pajé é apenas um médium — quem realmente cura é o espírito, no caso Mamaé. Daí a importância do sonho.

“É o Mamaé quem diz tudo: se o doente vai viver, se vai sarar definitivamente ou temporariamente, o que ele deve fazer, o que o pajé deve fazer como e por quanto tempo. Tudo é o Mamaé quem diz. E o sonho é o momento de melhor comunicação entre aqui e o além, onde vive o Mamaé [no Mamaéretam, a terra dos espíritos]”.

***

Às 9h da manhã do dia 23 de janeiro de 1986, os índios chegaram pintados com tinta de jenipapo, como manda a tradição. O ritual aconteceria no casarão do Parque Lage, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro, e iria durar três dias e três noites. De manhã, durante a primeira sessão, os índios cobriram-se de urucum e sopraram a fumaça de um charuto de folhas de trinta centímetros no corpo do naturalista. Vinte minutos mais tarde, Raoni inclinou-se sobre ele, massageou-o com unguento e foi tirando, a partir de seu pescoço, uma substância escura e mal-cheirosa. Era, segundo Raoni, o veneno do dendrobata.

Na segunda sessão, à tarde, Raoni e Sapaim preparam um chá com a raiz de atorokon. A erva foi fervida e espalhada sobre Ruschi. Depois, os índios fumaram novamente o charuto e retiraram mais uma vez a substância. A cada sessão, ela vinha mais clara e em menor quantidade.

Ainda há controvérsias sobre a s funções exercidas por Raoni e Sapaim. Em suas entrevistas mais recentes, este último afirma que, por não ser pajé, Raoni não sabia os procedimentos de pajé.

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Augusto Ruschi (segundo da esq. para a dir.), o cacique Raoni (quarto da esq. para a dir.) e o pajé Sapaim (à dir.), no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi (segundo da esq. para a dir.), o cacique Raoni (quarto da esq. para a dir.) e o pajé Sapaim (à dir.), no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

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“O que Sapaim me disse é que Raoni só quis aparecer perante os brancos como pajé para mostrar sua pessoa, seu povo, impor sua autoridade”, revela Wesley. “Em decorrência disto, Raoni na ocasião disse muitas coisas sem sentido, e fez algumas ‘performances’ para simular a condição de pajé”.

[olho]”Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo”[/olho]

Entre todos os jornalistas, Rogério Medeiros foi o único autorizado a presenciar os rituais. No dia 24 de janeiro, ele publicou um relato no qual descrevia a última sessão:

“No encerramento, Sapaim disse que o veneno já estava diminuindo muito no corpo de Ruschi. E Ruschi, com a voz mais firme, muito tranquilo, sem dor — o que ressaltou logo — disse para mim, com os olhos muito acesos — o que não fazia há meses: ‘Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo’.”

Aos repórteres, Augusto Ruschi afirmava estar totalmente recuperado. Os sangramentos haviam parado e seu intestino voltara a funcionar normalmente, algo que não acontecia há anos. Também dormia melhor — e até sonhava. “Estou sentindo um gosto de vida”, disse a Medeiros. Mas, apesar das manchetes e entrevistas otimistas, o naturalista ainda sofria de insuficência hepática grave, causada por uma cirrose. A retirada tardia do veneno pela pajelança lhe ajudou a recuperar forças, mas não trouxe a cura. Ele morreria quatro meses depois, aos 71 anos, em Vitória, de cirrose viriótica.

A autópsia não revelou nenhum traço de veneno. Para os médicos, tudo indica que a cirrose foi derivada pelo consumo excessivo de remédios contra a malária — e não pelos sapos. A morte por hepatite C, inoculada em coleta de sangue normal para exames de rotina, foi confirmada pelo seu médico particular e assessor de pesquisas, o cardiologista Pedro José de Almeida. Segundo André Rushi, o óbito não foi devidamente esclarecido na época por causa de um desentendimento entre Ruschi e Almeida.

Sapaim, por outro lado, acreditava que o naturalista estava enfraquecido por um câncer, conta Wesley Aragão.

“O que Sapaim me contou é que o envenenamento de Rushi não teve nada a ver com Mamaé, que é um envenanamento físico de fato, que o ‘sapo mijou nele’ e que o ‘veneno entrou nele’ e estava matando ele aos poucos”, relembra o antropólogo. “O que Sapaim diz ter feito foi ‘tirar o veneno do sapo do corpo de Ruschi’. Segundo Sapaim, este se encontrava ‘muito mal’, ‘quase morrendo’, ‘nao tinha voz, não aguentava andar e sangrava pelo nariz’. Quando ele tirou o veneno, Ruschi voltou a andar, a falar normal e parou de sangrar. Perguntei uma vez a Sapaim por que, então, Ruschi morreu alguns meses depois. Ele me respondeu que ‘a parte dele foi feita, ele tirou o veneno, mas Ruschi morreu de câncer porque estava já enfraquecido’.”

***

Em seu ato final, Ruschi fez o Brasil abrir os olhos para a medicina indígena. A intensa — e sensacionalista — exposição de seu tratamento trouxe uma visibilidade inédita, ainda que fugaz, para a ciência dos povos do Xingu. Raoni e Sapaim sabiam que o que estava em jogo ia muito além da saúde do cientista: “Nós dois temos que curar direito, senão o branco não acredita e brinca com índio”, declarou o cacique.

Em uma sociedade descrente, paralisada no labirinto da Década Perdida, o termo “pajelança” ganhou a boca do povo, como uma solução mágica para todos os males do momento. Se o xamanismo indígena podia salvar um dos mais ilustres brasileiros, por que não resolveria os outros problemas do Brasil? O banqueiro Marcílio Marques Moreira chegou a afirmar que o país precisa de “uma pajelança econômica”. E até o jogador Sócrates, que enfrentava uma lesão aparentemente incurável, cogitou chamar Raoni para dar um jeito em seu tornozelo.

“Curado”, Ruschi fez elogios públicos aos indígenas, à “cultura linda” que o havia socorrido. E foi pessoalmente agradecer José Sarney pela intervenção. Já o antropólogo Darcy Ribeiro e o político Mário Juruna — primeiro e único deputado federal indígena do país — acusaram o presidente de usar politicamente os índios. Ribeiro, aliás, também temia que o episódio provocasse uma corrida de brancos a aldeias indígenas, em busca de tratamento.

Sua preocupação tinha fundamento. Graças ao episódio, Raoni e Sapaim alcançaram status de celebridade, fazedores de milagre. Durante a pajelança, pacientes brancos correram ao Parque da Cidade pedindo à dupla que os examinassem. Houve até quem temesse que o local se tornasse um local de romaria: “A fama dos pajés está se espalhando, começa a aparecer gente pedindo informações”, disse um guarda. Assediado enquanto passeava no Centro do Rio, Raoni ouviu de uma senhora: “Esse aí tem que ser ministro da saúde”.

“Durante os dias de pajelança, Raoni e Sapaim ficaram concentrados no Parque da Cidade, não saíram de lá, e os jornalistas se instalaram ali por perto, esperando novidades”, lembra o fotógrafo Custodio Coimbra, do jornal “O Globo”, que na época cobriu o episódio pelo “Jornal do Brasil”. “Quando o tratamento acabou, os índios saíram para fazer compras na Casa Turuna [tradicional loja de fantasias do Rio] e toda a imprensa foi atrás, porque eles tinham virado uma atração na cidade.”

Em um dos seus plantões no Parque da Cidade, o fotógrafo ganhou um charuto de Sapaim, feito provavelmente com as mesmas ervas usadas na pajelança.

“Vi ele de longe, e fiz um sinal. Ele me chamou e deu o charuto de presente. O pessoal queria experimentar ali mesmo, mas eu preferi fumar em casa. Na época era comum fazermos projeções lá na minha casa, e em duas delas fumamos o charuto. Fazia uma fumaceira danada. E até dava um barato.”

[olho]”O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”[/olho]

Em sua coluna, Affonso Romano de Sant’Anna chegou a sugerir a exploração de uma farmacopeia que unisse “a sabedoria indígena e o que há de mais avançado na indústria química”. Raoni, porém, descartou qualquer possibilidade de industrializar a raiz atorokon. “A raiz não pode vender para o branco. Os brancos já têm seus remédios”, enfatizou.

“O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”, diz a antropóloga Gisela Macambira Villacorta, especializada em antropologia da religião e da saúde, e professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. “A repercussão na mídia trouxe à tona algo que já estava ocorrendo no cotidiano: a redescoberta, por não-indígenas, dos sistemas de cura tradicionais. Isso acontece em função da crise da saúde no país, mas também da crise da medicina ocidental, da relação entre paciente e médico, que era e ainda é de muita distância. Na relação com o pajé, o paciente participa mais da cura, ambos são protagonistas, vivem junto o processo.”

No dia 26 de janeiro daquele ano, uma reportagem no “Jornal do Brasil” mostrava que o caso Ruschi havia devolvido o prestígio das ervas medicinais, com a busca de remédios naturais crescendo a cada dia. Um movimento superficial e momentâneo, mas que deixou marcas, acredita André Ruschi. Ele conta que, quando foi delegado do Conselho Estadual de Saúde do E. ES nas Plenárias Nacionais de Saúde, entre 1999 e 2006, conseguiu a aprovação do reconhecimento oficial das terapias alternativas, que foram incluídas no SUS e no ensino oficial dos cursos de medicina. A referência ao nome “Ruschi”, segundo ele, ajudou a fortalecer os argumentos junto aos delegados.

“A ciência médica é produto da coleta de informações populares que vão sendo confirmadas de maneira técnica para que possamos reproduzi-las de maneira consciente”, diz ele. “Portanto, [o caso] trouxe à luz, de maneira mais evidente, como ocorre este processo de assimilação de conhecimentos e desenvolvimento cultural.”

Quase três décadas após a pajelança, Raoni se tornou um ícone da preservação ambiental e da cultura ancestral, mas não deu continuidade a sua experiência como pajé. Sapaim se tornou conhecido especialmente entre pessoas brancas, urbanas, ligadas a movimentos new age, e continua atendendo pacientes famosos, como Leonardo DiCaprio e Gisele Bünchen. Já os alertas de Augusto Ruschi, que no dia 12 de dezembro de 2015 completaria 100 anos, nunca estiveram tão atuais.

“A ausência de política florestal leva o país a um desastre ambiental permanente com desertificação na maior parte do território nacional. Ele sempre advertiu sobre esta tendência. O combate aos agrotóxicos, a rejeição à monocultura, a política de criação de Unidades de Conservação são legados universais do pensamento de Ruschi, amplamente aceitos e adotados em todas as nações”, enumera André, que continua o trabalho do pai na Estação Biologia Marinha Ruschi, uma escola de ecologia dedicada à pesquisa, educação e cultura. Ele lamenta, no entanto, que a instituição continue sofrendo perseguições políticas e lutando contra a falta de apoio governamental.

Após a morte de Ruschi, não demorou um mês para o que o Espírito Santo começasse a sofrer uma nova onda de desmatamentos, que atingiu até sua terra natal, Santa Teresa, na região serrana Estado. Rogério Medeiros, que em 1995 escreveu o livro “Ruschi — o agitador ecológico” (Editora Record), lamenta que o legado do naturalista ainda não seja devidamente reconhecido em sua própria região.

“O mundo respeita Ruschi, mas o Estado inteiro do Espírito Santo, da Academia aos políticos, o odeia. Porque tudo que ele falou que ia acontecer no Estado já está acontecendo. Os estragos das mineradoras, a natureza se vingando, a situação do Rio Doce… Ele previu tudo isso.”