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A invasão do K-Pop

 

“AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”

Se tem uma coisa que você precisa saber sobre K-pop, a música pop produzida na Coreia do Sul, é que o fanatismo obcecado dos fãs se expressa em gritos. É início de noite da quinta-feira, 21 de julho, e o Teatro Gazeta, na avenida Paulista, está lotado de adolescentes, sobretudo meninas, segurando um mar de varinhas de neon.

No palco, sucedem-se 17 grupos covers de dança e canto selecionados para o 3º Korean Pop Festival. O prêmio geral é cinco mil reais e o de cada categoria, três mil. Mais importante: os vencedores poderão disputar uma vaga para competir na final mundial na Coreia do Sul.

Cada artista que pisa no palco, “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”, cada grupo, “AAAAAAAAAAAAAAAAA!”, cada mensagem dos apresentadores “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”, é respondida com uma manifestação ululante das fãs.

No palco tem uma menina que, meu Deus!, o que é isso? É a Pammie interpretando Arirang Alone, da cantora So Hyang, com uma voz tão imponente que se impõe sobre o grito da plateia, atingindo uns agudos lá pra cima na escala. Gente, ela é tudo! Canta em coreano, apesar de não ter completado nem o primeiro módulo do idioma. Ela não é nem cantora profissional, mas auxiliar administrativa em uma empresa que vende doces e salgados. Se não fosse o K-pop, o nome dado ao fenômeno cultural coreano, ela não estaria cantando. E esse prêmio é importante, porque ela ganhou o geral do ano passado, mas não foi pra Coreia, embora merecesse muito! Todos ali sabem quem é Pamella Raihally.

Sabia que o Brasil já teve uma banda que tentou imitar o pop coreano? Era a Champs, que apareceu na Ana Maria Braga (ela chamou de Champers, ai…), ganhou 600 mil likes no Facebook, mas acabou e um integrantes do grupo virou YouTuber e já tem 70 mil seguidores. O Iago, lindo!, virou ex-Champs, seguiu dançando e tem uma banda cover chamada Allyance, que está agora reunida nas coxias de teatro. A apresentação da cantora Mônica Neo, que veio depois da Pammie, está acabando. Eles estão ali há um minuto abraçados e, de repente… o “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA” invade as coxias. O nome da banda está no telão. Todos sabem que é a banda de Iago Aleixo.

O grito, aqui, não é o símbolo do desespero, mas da tomada de assalto da cultura coreana em segmentos dos jovens brasileiros, num fenômeno chamado Hallyu — a nova onda avassaladora que veio da Ásia e abocanhou os jovens da classe C.

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Crédito: Anna Mascarenhas

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A infiltração do K-pop no Brasil pode estar à margem da sua rede de contatos e até da sua timeline, mas ela é a parte mais expressiva do soft power sul-coreano por aqui. Pelo leste da Ásia, os produtos culturais do país se espalharam com a força de uma política de Estado que deu certo. O termo Hallyu precisou ser criado por jornalistas chineses para explicar a influência cultural do Estado vizinho.

Por falta de acesso aos mercados dominados pelas grandes gravadoras e incapazes de enfrentar a pirataria na China, as empresas coreanas abdicaram do CD e apostaram no que acabou por se tornar a MTV dos anos 2010, o YouTube. Deu certo? Bom, lembra do Psy? A música Gangnam Style, que explodiu em 2012, não passava de uma piada interna, uma ironia a uma cultura musical bem estabelecida — até hoje nenhum vídeo superou sua marca de dois bilhões de visualizações.

Os clipes das bandas mais famosas entre os fãs costumam ter um ar mais romântico, a um só tempo atrativo e infantil, no qual a beleza dos artistas parece ter saído de um anime. Existe um grau de sexualidade latente, mas sublimada nas atitudes dos músicos jovens: sempre educadinhos e fofos; nunca machos alfa pegadores.

Pouco a pouco, via YouTube e bordas da cultura anime, o K-pop começou a fincar raízes bem no momento em que a classe C se expandia no Brasil e procurava novas referências culturais. Mesmo exóticas, elas se acomodaram a valores mais conservadores, evangélicos, acompanhadas por sonhos de luxo e glamour. Alessandra Vinco começou como fã em 2011 e agora pesquisa o tema pela Universidade Federal Fluminense. Para ela, K-pop é um gênero híbrido: se apropria de elementos globais, mas preserva valores confuncionistas, como a preservação da família, o respeito ao próximo e o resguardo da vida sexual.

Uma pesquisa do centro cultural coreano apontou que o número de fãs no Brasil era 220 mil pessoas. A sensação é que o número é bem maior. A maior prova, para além dos diversos sites e festivais que cultivam o nicho, é que o programa do Raul Gil vai estrear um quadro chamado “Quem sabe, dança K-pop” no dia 13 de agosto. “Nesta nova atração”, diz o locutor do vídeo promocional, “atravessamos o planeta para trazer um gênero musical repleto de batidas emocionantes e coreografias absolutamente viciantes”. Grupos cover podem se inscrever no site do SBT. O prêmio será de 10 mil reais.

Já os aspectos demográficos têm dados um pouco melhores. Em 2015, Tiago Canário, um doutorando no departamento de Cultura Visual da Korea University, fez uma pesquisa online na qual 2.764 pessoas responderam a um questionário sobre o cultura corena no Brasil. Dessas, 91,3% se identificaram como mulheres, 8,36% como homens. No total, 95% dos fãs de K-pop tinham entre 10 e 29 anos. Apenas 18 pessoas se identificaram como descendentes de coreanos.

Ricardo Pagliuso Regatieri, um pesquisador brasileiro do departamento de sociologia da Korea University, escreveu em artigo ainda não publicado que os fãs paulistas vêm de regiões periféricas e semiperiféricas da cidade e arredores. Resultados preliminares de outra pesquisa online feita com 635 pessoas mostra que 37% dos fãs têm renda familiar entre R$1.751 e R$3.500 por mês e 26% têm renda familiar mensal de até R$1.750. Ou seja, boa parte se enquadra dentro da nova classe C brasileira.

No artigo, Regatieri oferece uma interpretação do fenômeno: o K-pop se conecta ao processo de mobilidade social, usando a popularidade da internet no país como principal combustível. No processo, os fãs do estilo no país buscam uma ruptura com os modelos culturais de seus pais e avós. A fábrica de sonhos do K-pop, ele escreve, oferece um repertório de modernidade centrado nos prazeres do consumo, da moda e do glamour da vida na cidade.

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Pammie em ação. Crédito: Anna Mascarenhas

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Pammie e Iago — a cantora e o youtuber — são parte dos dois mundos. Moradora do limite entre São Paulo e Diadema, ela começou a cantar pequena, nos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus. Logo, o talento foi reconhecido e começou a ser chamada para se apresentar, de graça, em casamentos dos fiéis. Em 2010, no último ano da escola, viu o primeiro clipe de K-pop pela internet — era GARAGARA GO!!, da BIGBANG.

“O K-pop foi natural pra mim. Cheguei a mostrar para algumas amigas, mas elas não ficaram tão fãs como eu. A gente ensaiava numa sala vazia para se apresentar nas festas da escola”, me disse por telefone durante o seu intervalo do almoço na empresa onde trabalha como auxiliar administrativa, no Morumbi.

Pamella, 23, é um tipo de talento natural. Chegou a fazer aulas de canto depois que alguns professores elogiaram sua performance ao interpretar uma música da Rihanna em coreano. Não chegou a concluir o curso, contudo. Eram tempos de IPI reduzido. “Na época, meu pai queria comprar um carro. Como era ele que pagava pra mim, e a escola era muito boa e cara, eu sacrifiquei a minha aula para podermos comprar. Depois, não voltei mais.”

Uma das juradas do 3º K-pop Festival, a cantora lírica Cecília Massa, acha que Pammie tem potencial para ser uma cantora de jazz. “Vejo nela um altíssimo nível vocal, capaz de fazer variações muito rápidas na voz. A primeira vez que a escutei ela me lembrou da Whitney Houston”, me disse numa tarde do final de julho em um café em Santa Cecília.

Para ela, Pamella está escutando um repertório com melodias simples e harmonia básica. “Ela tem um material maravilhoso, mas é uma escolha dela”, disse sem nenhum tom professoral. “Seguir cantando é uma felicidade que ela pode ter e dar ao outros”.

Acontece que Pammie fica num cruzamento em termos de mercado e talento. É boa demais para o que faz sucesso na televisão, mas tem poucas referências de caminhos a seguir e cantoras em quem se inspirar. “Você não consegue viver da música aqui no Brasil”, me disse Pammie. “Já pensei em seguir mas é difícil. Acho que se eu não tivesse conhecido o K-pop, hoje não estaria cantando.” Uma vitória no concurso é o estímulo para fazê-la seguir o que lhe dá mais prazer.

As empresas coreanas conseguiram criar uma tecnologia cultural capaz de criar boys e girls bands em uma sequência quase industrial. Os futuros artistas entram como trainees por volta dos 15 anos e saem capazes de atuar, cantar, dançar etc. Existe o V-pop (Vietnã), o T-pop (Tailândia) e J-pop (Japão). E por pouco não vingou por aqui um B-pop.

Iago Aleixo, hoje com 20 anos, foi uma cobaia da tentativa de reproduzir o modelo no Brasil. Aos 17, foi selecionado por um produtor coreano e passou a morar com mais cinco pessoas no centro de São Paulo. Nascido no Rio, hoje ele mora com a mãe em Osasco.

Nos encontramos no café do Centro Cultural São Paulo, que se tornou o ponto de encontro dos k-poppers, um pouco antes de um ensaio da sua banda, a Allyance, para o festival que ocorreria na semana seguinte. Antes da conversa, ele entrou no bar e saiu com uma garrafa de 600ml de refrigerante. Tentou abri-la; não conseguiu. Deixou-a sobre a mesa e contou sobre sua experiência no processo de se tornar um b-popper em 2013.

[olho]”As meninas têm que te querer e os meninos têm que querer ser você”[/olho]

“Era um projeto da JS Entertainment, empresa coreana com foco no Brasil. Depois da seleção, tive que deletar as redes sociais e criar novas como se eu fosse uma nova pessoa. Praticamente, nascer de novo. Eu tinha muitos tweets antigos, então, tipo, se a pessoa fosse nos arquivos poderia ver alguma possível besteira que falei quando era pequeno. Daí isso pesaria agora. Eles excluem toda nossa vida passada, só deixam a mostra o que querem.” Tentou abrir novamente a garrafa. Não conseguiu.

“Na Champs, eu era o mais novo, por isso tinha que mostrar uma pureza. Tinha que ser um fofinho, sem barba, meu cabelo tinha que ser liso, jogado à Justin Bieber. Não podia usar óculos, pra visualmente ficar mais bonito, e tinha que ser um corpo definido pra criar mais interesse. Ou seja, tinha que ser um menino perfeito. A empresa cria a ideia do desejo. Eu fiz parte disso, desse meio. Nosso empresário falava ‘vocês têm que fazer a menina desejar vocês para se elas se tornarem fãs. As meninas têm que te querer e os meninos têm que querer ser você’”. Mais uma tentativa com a garrafa. Nada.

De óculos, com uma barba ruiva de poucos dias, ele fala com empolgação do treinamento. De seus lábios saem palavras que relembram a antiga rotina com um leve sotaque carioca: de segunda a domingo, da manhã à noite, musculação, canto, coreografias, aulas de hip-hop, ballet e jazz. Sábado era dia de treino livre e teatro. Domingo o ensaio era até as 15h, depois vinha a folga. Fora moradia, não recebia nada. “Querendo ou não, ele [o empresáio] tava gastando bastante dinheiro.”

Por fim, gravaram o clipe na Coreia e estrearam no Brasil. Receberam boa cobertura da imprensa, mas a Champs não deu certo naquele momento. Iago acha que foi má administração. Porém, o sistema do K-pop se baseia em baixas margens de lucro. Como a música é distribuída de graça pelo YouTube, o sistema de vídeos do Google fica com a maior parte do dinheiro da publicidade online. Se a base de fãs não dispara, os shows e outros produtos não compensam o investimento.

Quando viu que não daria certo, fez o que boa parte dos jovens deseja hoje em dia: criou um canal no YouTube. Começou com duas mil pessoas e agora tem 70 mil seguidores. Espera acabar o ano com 100 mil. Diz que não está mais vendendo um personagem, mas o Iago real.

“O Iago do Champs era uma pessoa para ser desejável e eu não quero ser desejável. Quero ser admirado. Quero que as pessoas olhem pra mim e falem ‘caraca, olha o que ele tá fazendo com estilo que eu gosto’. Não quero ser o estrelinha, o famosinho. Quero ser uma pessoa que é parada na rua por alguém dizendo que gosta do meu trabalho.” Ele pega a garrafa, crava os dentes molares na tampa verde. Contrai os olhos, gira a garrafinha com as mãos e tssssss. Consegue abri-la. Toma um gole e vai encontrar os colegas para o ensaio da música Fly, da banda GOT7.

Para ele, vencer o festival significa, além do gosto do prazer de se sentir um k-popper e do prêmio para pagar os custos figurino, faz parte de uma estratégia para voltar à Coreia do Sul e ajudar a turbinar seu canal no YouTube.

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Iago (à frente, de óculos) e sua trupe do Allyance. Crédito: Anna Mascarenhas

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Na longa fila que se forma nos arredores do Teatro Gazeta, centenas de adolescentes aguardam para entrar no festival de covers de K-pop. Um dos poucos adultos, o guarda civil Hélio Marques, 52, acompanha as três filhas. “Vim por causa da minha menina, que escuta muito, muito. Ela sabe até o que o menino come”, diz sem brincar.

Antes do show, encontro com Pamella e Iago. Ela, bem maquiada, de vestido longo floreado e Havaianas, está insegura, com um pouco de medo por causa da dificuldade da música. Ele, mais profissional, ainda está sem o figurino. Conta que no último ensaio, dois dias antes, repetiram toda a dança 25 vezes. Eles tiram fotos e voltam para acabar de se arrumar.

O teatro está lotado. Os cerca de 50 competidores ficam no mezanino, à esquerda de quem encara o palco. Dá pra sentir a expectativa e a tensão. Iago, já com o figurino, fica filmando e tirando fotos com os amigos. Há grupo de cinco meninas vestidas com o que parece ser um uniforme das paquitas. Duas delas ensaiam alguns passos juntas. Pamella está sentada com o celular na mão, de cabelo solto. Está ao lado de outra cantora, com a qual troca algumas palavras. Fala com outras pessoas, mas a vida de cantora parece mais solitária.

Não só pela música, mas todos estão agitados, afinal é o principal momento pelo qual esperaram e treinaram. A recompensa é grande. Pelas regras do evento, há duas vagas para disputar a chance de ir pra Coreia. Se, por exemplo, o canto vencer o prêmio principal, a outra vaga é de quem vencer na dança.

Os participantes têm camarins, garrafas de 1,5 litro de água e esfihas do Habibs à vontade.

O primeiro competidor, Davi Nogueira, senta num banquinho e com violão em mãos, apresentada uma música de Roy Kim.

“Boa noite”, diz. A plateia responde: “AAAAAAAAAA!”

Antes de começar a tocar, uma menina atrás de mim grita: “Arrasa, viado!”

Na sequência, várias bandas e competidores tomam o palco. Os momentos mais sexualizados das coreografias são os que arrancam mais gritos. Por vezes, os berros são tão fortes, constantes e esganiçados que se sobrepõem à voz das apresentadoras.

Os artistas se sucedem até que às 20h14 chega a vez de Pammie.

Perto dos demais, ela parece uma cantora de ópera. Das coxias, dá pra ver que ela transpira presença de palco, segura o microfone com uma mão e despeja toda sua potência sonora. É uma apresentação elegante — recebe mais aplausos do que gritos. Ao sair, bebe três copos d’água. As mãos tremem. Não consegue dizer muito além de “tô nervosa”.

Em seguida, há outra apresentação. O grupo de Iago fica na lateral do palco e se prepara para entrar. Todos os membros se abraçam e formam um círculo. Iago fala algumas palavras de motivação. Ficam assim por mais ou menos um minuto. A cantora que está no palco, Mônica Neo, encerra a apresentação. Iago está sem óculos. O círculo se desfaz e eles se dão uns tapinhas de apoio. O nome do grupo aparece no telão e eles entram no palco para atender ao chamado da orquestra de berros. Do backstage, de uma visão lateral, a coreografia parece perfeita. Ao final, os gritos, sempre eles, invadem a coxia. Os integrantes saem em duplas em silêncio. Recebem elogios dos grupos que esperam para se apresentar. Iago põe os óculos.

Longe do palco, depois de um longa escadaria que leva a um espaço atrás no mezanino, um dos dançarinos, Paulo Fraga, chora muito. Toma água tremendo. Iago reúne todos, formam um novo círculo e ele diz: “A galera não parou de gritar! Não importa quem errou. Tô muito orgulhoso desses quatro meses de trabalho”.

Crédito: Anna Mascarenhas
Allyance no palco. Crédito: Anna Mascarenhas

Eu volto para a plateia e sento em outro lugar. A menina ao meu lado, de blusa e meia calça preta, saia rosa um palco acima do joelho, usa óculos redondo de acetato. Ela pula na cadeira, chacoalha a varinha de neon, grita com força, descansa e se abana.

O anúncio dos prêmios sai pouco tempo depois da última apresentação. No palco, estão reunidos todos os competidores. Das coxias, o áudio fica abafado, mas descubro que a Pammie é a número um do canto. O Allyance ganha na dança. Venus, um cover de dança de 10 meninas, é o primeiro geral. Iago ganha o dinheiro, mas não terá a chance de competir na Coreia. Todos se abraçam, perdedores e vencedores. Mas quem fica para a foto são só os vencedores.

Mais calma, Pammie diz que o retorno do áudio estava distante e por isso não conseguia saber se tinha ido bem. No olho escuro, negro, quase sem diferença entre íris e pupila, só se vê o brilho do reflexo das luzes. Várias pessoas a parabenizam. Alguém comenta: “Agora tem que deixar as amiguinhas ganharem”. Ela sorri amarelo — é uma menina tímida, não uma artista.

Conversa com Cecília Massa, uma das quatro juradas. Ela está dizendo que a música é muito difícil, mas que existem caminhos profissionais, com mais consciência vocal. Fala de um jeito educado, preocupado.

“Você faz aula?”, pergunta a jurada.

“Não.”

“Você canta música brasileira?”

“Não, mais internacional.”

“Você tem presença, mas tem que ouvir grandes intérpretes internacionais e nacionais.”

“Se não fosse o K-pop, eu não estaria cantando.”

“Mas tem um mercado, sim. Não é o da TV ou que aparece na grande imprensa, mas existe um outro mercado. Na internet, em editais…”

A seguir, encontro com Iago. Está sério, mas age como um profissional. Elogia as concorrentes, fala do esforço do grupo do prêmio, mas sabe que não ganhou o que queria. Assim que para de falar comigo diz a um colega: “Nossa!, que raiva, velho. Vídeo filho da puta!” Ele atribui a derrota ao vídeo enviado na pré-seleção dos competidores.

Os demais integrantes do Allyance reforçam que ficaram felizes pelas concorrentes da Venus, o que parece sincero. Mas há uma melancolia no ar. Iago está com o espírito desinflado, o olho abaixou, o sorriso ficou mais profissional. É uma vitória manca.

Todos saem do mezanino e vão para o saguão do teatro, onde artistas e público se misturam. Dezenas de jovens estão chupando Melona, aquele picolé retangular verde, que é coreano, vendido na Liberdade, e que foi distribuído de graça no final do evento. No saguão, Iago tira fotos com várias fãs sempre da mesma maneira. Sem sorrir, faz um gesto comum entre coreanos — um V lateral com a mão esquerda, a mesma que segura um pacote de salgadinhos.

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A confraria do pinball

A primeira coisa que Iure Gomes fez ao abrir as portas do Pinball Clube de São Paulo, no bairro do Cambuci, foi dar as boas-vindas e, antes que eu formulasse qualquer pergunta, disparou escada acima. Fazendo um gesto de “vem comigo”, bradou: “É aqui que acontece a mágica”, e novamente desembestou a andar entre as fileiras de máquinas de pinball alinhadas pelo espaço. A cada dois ou três metros, sempre falante, ele parava, ligava uma ou outra máquina, fazia demonstrações e até removia o tampão de vidro para revelar detalhes de cada peça. Em poucos minutos percorremos todo o imóvel enquanto Gomes se empenhava na meta de transmitir o máximo de informações possível a respeito daquela cultura. Aos 44 anos, o diretor comercial de uma empresa de TI é um dos sócios fundadores do clube, inaugurado em 2003. Atualmente, a agremiação conta com 25 sócios e 120 máquinas.

“O clube é fechado para os sócios”, explica. “Nós nos encontramos todas as terças, quintas e sábados, e isso aqui é como se fosse a nossa confraria. O nosso refúgio.” O acesso restrito ilustra o fato de que a prática do pinball, no passado hábito corriqueiro dos bairros populares, com seus fliperamas disputados por office boys e estudantes a matarem aula, nos últimos anos virou uma espécie de hobby de luxo. A maioria dos sócios do Pinball Clube de São Paulo, na faixa dos 40 anos, é um pessoal tão empolgado quanto Iure. Colecionadores de notável poder aquisitivo, já que essas máquinas, bem como sua manutenção, demandam um belo investimento. Para se ter ideia, uma máquina nova custa em torno de R$ 35 mil, e pode chegar até mais de R$ 50 mil, dependendo do modelo. Já uma máquina restaurada, antiga, custa em torno de R$ 22 mil. Cada integrante do clube tem, no mínimo, uma dezena delas.

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Iure Gomes entre duas de suas máquinas. Crédito: Guilherme Santana
Iure Gomes entre duas de suas máquinas. Crédito: Guilherme Santana

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Quando chega alguém novo querendo ser sócio, espera-se que o aspirante coloque pelo menos duas máquinas lá dentro. Fora isso, todos devem colaborar com os gastos de manutenção do lugar, do aluguel ao IPTU. O uso dos equipamentos é compartilhado livremente entre eles. Gomes, por exemplo, disponibiliza nove máquinas no clube. Segundo ele, a obrigação de cada membro é manter as suas funcionando e em bom estado, “para não virar depósito”. “Não existe intenção de ganhar dinheiro com o clube. Não queremos que o lugar fique lotado, e sim reunir um grupo de pessoas com um interesse em comum para bater papo. No final das contas, vira uma família”, observa o nosso cicerone. E complementa: “O perfil do pessoal é bem heterogêneo. Aqui você vai encontrar piloto de avião, assessor de imprensa, advogado, executivo, empreendedor, engenheiro. Todos unidos por essa paixão em comum que é o pinball.”

O modelo do Pinball Clube de São Paulo é replicado em outras cidades. Atualmente, funcionam outras duas células no estado do Rio de Janeiro – uma na capital e outra em Petrópolis – e mais duas no estado de São Paulo, em Boituva e no ABC paulista. Gomes revela que há iniciativas de expandir para Belo Horizonte, Porto Alegre e Caruaru, e explica: “Quando falamos em filial, não significa que o sócio tem a chave de acesso aos outros clubes, mas existe uma política muito legal de boa vizinhança. Só se paga para entrar quando temos as etapas do Campeonato Brasileiro, que passa por Petrópolis, ABC e São Paulo, onde rola a final. Ou, duas vezes por ano, sem data certa, quando abrimos para o público”. Os eventos open house aos quais ele se refere são anunciados nas redes sociais.

São recorrentes entre os membros do clube as declarações de que a nostalgia funciona como o maior atrativo da retomada do pinball. O próprio Iure Gomes teve contato com o pinball aos quatro anos de idade e nunca mais parou. “Meus pais me colocavam numa cadeirinha, eu botava o queixo naquela barra de metal do vidro da máquina, estendia os braços, e jogava completamente esticado. Eu também pirava naqueles pequenos arcades: Space Invaders, Asteróide, Bazuca, e por aí afora. Tem foto minha, bem pequeno, jogando”, relembra. O advogado Cid Rudis, de 41 anos, foi tragado por este universo aos sete anos. “Eu sou carioca. Morava em Copacabana e lá tinha um fliperama. Eu me lembro até hoje da primeira máquina que chegou com voz. Quando eles tiraram da caixa e ela emitiu o som de fala, foi um negócio inacreditável”, conta. Isso foi em 1981.

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Crédito: Guilherme Santana
Uma das máquinas de ‘Star Wars’. Crédito: Guilherme Santana

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Rudis é da geração das máquinas Taito, que dominaram o mercado nacional entre 1972-85 com franquias como Cavaleiro Negro, Fire Action e Oba Oba. “A Oba Oba eu jogava com meu pai, ele era amigo do [Osvaldo] Sargentelli, dono da casa de shows Oba Oba, no Rio. Meu pai já morreu. Me lembro até hoje do dia que reencontrei uma Oba Oba depois de 30 anos. Chorei. Veio aquele mar de recordações”, comenta sem conseguir esconder a emoção. “Foi quando senti que precisava trazer o pinball de volta para a minha vida.” Treze das máquinas mantidas no clube paulistano são dele. Fora isso, Rudis é dono de mais cinco arcades (máquinas multijogos) e outras duas máquinas de pinball, que estão em sua casa.

Das 220 máquinas que ocupam os dois andares do clube carioca, 70 pertencem ao seu fundador, o gerente de TI Mário Sérgio da Rocha, 40 anos. “Tudo no pinball me fascina”, discorre ele sobre os maiores atrativos da prática. “Mas a nostalgia tem um peso maior. Faz eu me recordar da época de infância e adolescência, quando as preocupações da minha vida eram ganhar uma bola extra ou um novo crédito com aquela fichinha comprada com o dinheiro suado. As economias do lanche da escola ou do ônibus.” Ele também chama a atenção para a jogabilidade física das máquinas. “A bola nunca traça o mesmo caminho. Por isso, cada partida é uma partida. Duas máquinas iguais, lado a lado, vão te oferecer um jogo totalmente diferente. Isso tem a ver com a elevação do playfield, o estado das borrachas, entre outros fatores.” Na ativa desde 2003, o clube do Rio hoje conta com 20 sócios.

A história de Ricardo Kobe é menos emoção e mais fissura. Aos 52 anos, ele é dono de uma loja voltada ao público geek. Como todo nerd, Kobe curte colecionar uma variedade de artigos que remetem à cultura pop. E o pinball, para ele, é parte desse barato. Hoje, ele é dono de onze máquinas, mas conta que já chegou a ter 56 – vendeu para investir na abertura da loja. A primeira aquisição foi em 1989, uma Fire Action da Taito. “O que eu mais gosto no pinball são os temas das máquinas. Tipo a Tommy, do The Who. Essa máquina é fantástica”, comenta. “Às vezes você acha algo muito raro e sabe que, se não fizer a doideira de comprar, vai perder a oportunidade.” Uma dessas “doideiras” ele cometeu na feirinha da 13 de maio. “A certo ponto da caminhada olhei para o lado e vi uma máquina de 1957. Sem minha mulher perceber, dei meu cartão para o cara e falei: ‘Amigo, essa máquina é minha. Cubra ela e me ligue amanhã. Só não levo para casa agora porque minha mulher não pode saber’.” Por muitos anos, a mulher de Kobe achou que ele possuía apenas três máquinas, enquanto ele já tinha investido em mais de trinta.

O analista de sistemas Marcelo Pereira Batista, 48 anos, é o fundador do clube de Petrópolis (Imperial Pinball Clube) e acaba de faturar o título de Campeão Brasileiro de Pinball. Em abril, ele vai para os Estados Unidos disputar o mundial. Segundo MPBola, como é chamado no âmbito do pinball competitivo, “existe uma cena mundial forte no mundo atualmente, porém restrita a colecionadores, já que não temos mais fliperamas por aí como nos anos 80”. Inaugurado em 2013, o clube de Petrópolis já conta com 40 máquinas, em sua maioria adquiridas em sites de compra na internet. “Algumas nós tivemos que mandar restaurar. Outras, ainda estão em seu estado original, mas em perfeitas condições de uso”, informa. Diferente do clube de Petrópolis, a coleção de máquinas que deu vida às unidades do Rio e de São Paulo guarda um aventureiro histórico de caça ao tesouro.

Muitos exemplares raros funcionando em perfeito estado, como a Ace High, criação da Gottlieb de 1957, as eletromecânicas Drakor, lançadas pela Taito em 79, a clássica máquina Tommy, inspirada na ópera rock do The Who, lançada pela Data East em 90, correram o risco de virar entulho. “Na hora de se desfazer delas, a única opção que o cara tinha era desmontar ou destruir. Então a gente começou a fazer um resgate”, explica MPBola. Nesse sentido, o conceito que deu vida aos clubes pode ser entendido como o de um museu, mesmo não se tratando de uma organização formal. “É a gente que salva as máquinas”, frisa Iure Gomes. “Pegamos aquelas que estão para ser destruídas e conseguimos recuperá-las. Tem muita história de resgate de máquina que estava para ser queimada. Em alguns casos, vimos lugares onde as máquinas já estavam queimadas, restando apenas os metais”, lamenta.

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Nikolaos Mbakirtzis fuçando as entranhas de uma das máquinas. Crédito: Guilherme Santana
Nikolaos Mbakirtzis fuçando as entranhas de uma das máquinas. Crédito: Guilherme Santana

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O Brasil já teve diversos fabricantes de pinball. Um dos últimos fabricantes foi a Taito, a marca mais bem-sucedida e dona de uma produção gigantesca no período de atuação. As atividades da empresa se encerraram no azul, sem dívidas. Ela simplesmente saiu do país e não recolheu o ativo. Então, quem tinha um fliperama com máquinas da Taito, passou a ser dono. E foi isso que tornou as coisas interessantes para os colecionadores. As máquinas permaneciam nesses lugares, mas os técnicos que geralmente faziam as visitas de manutenção, deixaram de ir. “Os caras começaram a dar um jeito de consertá-las diretamente com os técnicos que foram dispensados. Mas depois de um tempo, pararam também, porque deixou de ser interessante”, detalha Gomes. “Sumiram as peças de reposição, coisas do tipo. O interessante disso tudo é exatamente a possibilidade que foi aberta no mercado de uma hora para a outra. Alguns profissionais que existem hoje são oriundos justamente desse buraco que se abriu no mercado. Há casos antigos de máquinas que nos foram doadas. O cara falava: ‘Tira esse negócio daqui, porque isso é um trambolho que está tomando meu espaço’. Era pura verdade. No fim das contas, aquilo num bar ocupa o espaço de duas mesas”, reflete.

Na missão de resgatar máquinas antigas da destruição ou do ostracismo, os integrantes do clube do Rio conseguiram recuperar todas as máquinas um dia pertencentes a um antigo e gigantesco fliperama em Nova Friburgo. Mário Sérgio não mede esforços. Ele teve a ousadia de alugar um caminhão e passar em todos os depósitos recolhendo máquinas. Dessa vez, retornou com cerca de 20 exemplares e isso virou história na cidade. Mas ele tem uma extensa lista de outras histórias para contar: “Já desci máquina usando cordas, roldadas e a força de um caminhão, do segundo andar de um depósito que não tinha escadas. Já passei um carnaval em Búzios acompanhando o leilão de um exemplar raro pela internet, sem ir à praia. Quando ainda era solteiro e morava com minha mãe e avó, povoei a sala de estar com cinco máquinas. E já fiquei um dia inteiro sem comer para poder receber um lote de raridades”.

Em outra ocasião, eles subiram os morros das favelas correndo atrás de máquinas. Assim, conseguiram salvar duas e toparam com os destroços de mais três ou quatro. “O sujeito disse que ateou fogo porque não aguentava mais. Vimos somente os metais retorcidos e alguns vidros. O caixote de madeira e o playfield tinham virado estatística”, conta Gomes. “Uma das máquinas foi encontrada pelo pessoal do Rio num sítio do interior, no meio de um galinheiro, sendo usada como poleiro. Uma Shock, que hoje é raríssima”, comenta Cid Rudis. E prossegue: “Aqui, em São Paulo, já rolou de fazer comboio pelo interior, correndo atrás dos sítios e chácaras. E aí você encontrava máquina até na chuva. Infelizmente a maioria dos exemplares dos anos 80 veio nesse estado”.

A mania do pinball no mundo teve duas fases de ouro. A primeira foi no final da Segunda Guerra, entre 1945-55, quando dispararam as vendas e o número de fabricantes. A segunda, foi entre os anos 1980-90. Atualmente, até encontra-se gente que atua na restauração de equipamentos de ambos os períodos no Brasil, como a JSW, mas fabricante mesmo, não. Nessa nova fase em que o pinball virou culto, a fabricante norte-americana Stern dominou o mercado. Apostando na temática classic rock, a marca tem investido em máquinas licenciadas por bandas como AC/DC, Kiss, Rolling Stones e Metallica, além de séries, como The Walking Dead, Game of Thrones, Star Trek, e filmes, tipo Indiana Jones e Thron. Recentemente, eles fizeram uma edição comemorativa aos 50 anos do carro Mustang.

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Um típico encontro da confraria. Crédito: Guilherme Santana
Um típico encontro da confraria em São Paulo. Crédito: Guilherme Santana

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A concorrente direta da Stern é a Jersey Jack Pinball, que lançou as máquinas do Mágico de Oz e de O Hobbit. “Eles deram uma sacudida no mercado”, comemora Iure Gomes. “A Stern estava com uma qualidade muito baixa nos produtos, e isso fez com que ela arrumasse mais investidores para melhorar as máquinas. Aumentou muito a qualidade, para bater de frente com a Jack Jersey. E isso foi, sinceramente, maravilhoso para o pinball no mundo. Abriu portas para outros fabricantes, muito pequenos, que estão buscando investimento para tentar entrar no mercado”, avalia.

O fetiche dos sócios do clube, no entanto, continua sendo pelas máquinas vintage. Por isso, vários colecionadores acabam aprendendo os macetes de manutenção e restauração. “Basicamente a manutenção das máquinas é simples”, explica o engenheiro eletrônico e sócio do clube de São Paulo, Nikolaos Mbakirtzis, 50 anos. Durante todo o tempo em que a reportagem esteve no local, ele não jogou nem ficou de bobeira papeando, bebendo ou comendo churrasco, como os seus colegas da “confraria”. Naquela noite, zanzava de um ambiente anexo à garagem até o piso superior, onde ficam as máquinas. Ia e voltava repetindo o trajeto com ferramentas e peças na mão. Fez isso diversas vezes.

De perto, foi possível notar que, naquele ambiente, o clube acolhe uma impressionante oficina de restauração improvisada. “Em vários momentos você tem que trocar peças. Todas as máquinas têm conserto”, diz Nikolaos, empenhado em fazer funcionar uma delas. “Você tem que botar peças novas. É como se fosse um carro: quebrou uma peça, tem que trocar. Não adianta você tentar ficar só consertando.” Observando de esguelha, Gomes continua animado. Conversa com todos ao mesmo tempo e ainda joga. Ele não se contém. Interrompe a fala do colega e crava, no bom humor: “Tirando os exageros é tudo verdade! Temos aqui pessoas que pegam uma máquina caindo aos pedaços e a deixam zero bala. Tipo os Mestres da Restauração”. Já é tarde da noite, a maioria dos presentes começa a se despedir. Semana que vem tem mais.

 

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O movimento anti-Renoir

Para Max Geller, o pintor Pierre-Auguste Renoir é péssimo. Ele acha que Renoir é tão ruim, mas tão ruim, que criou uma conta no Instagram com o nome Renoir Sucks at Painting (em tradução livre, algo como Renoir é uma droga como pintor), que angariou fãs pelo mundo até se tornar um movimento, com direito a manifestações em portas de museus com cartazes dizendo coisas como “Deus odeia Renoir”. Sua demanda: remover pinturas do francês das paredes dos museus. Max é o primeiro a admitir que usa humor em suas ações, mas por trás da fachada cômica tem uma crítica de verdade. O Renoir Sucks at Painting quer, na verdade, discutir a diversidade nas artes plásticas.

Como exemplo, ele cita o Brasil, com seus museus construídos numa terra “roubada por colonizadores europeus, que hoje penduram arte europeia que nem é tão boa dentro deles”. “Especialmente no contexto do Brasil, Renoir Sucks at Painting é uma acusação contra o eurocentrismo”, afirma. “O movimento pode ser tão sério quanto você está disposto a levá-lo. Acho que falar sobre quem vai a museus e quem fica de fora é muito importante. Não é uma piada. Não é uma piada falar de como mulheres e pessoas que não são brancas são mal representadas. Seria louco sugerir no Brasil que os únicos artistas bons são homens brancos europeus. Mas se você for a um museu, pode sair achando isso. Esse é o problema.”

[olho]”Seria louco sugerir no Brasil que os únicos artistas bons são homens brancos europeus. Mas se você for a um museu, pode sair achando isso. Esse é o problema.”[/olho]

Outros pintores brancos e europeus poderiam ter sido escolhidos para representar o movimento, Max confessa. Mas há algo de especial em Renoir, em sua opinião. Os dedos que ele pinta parecem tentáculos, a pele das pessoas é cadavérica e ele retrata mulheres da mesma forma como pinta flores e prédios. “Ele literalmente objetifica as mulheres. Ele não dá a elas nenhum tipo de agência, elas só existem sob seu olhar masculino e isso é uma droga”, afirma. Também critica a participação de Renoir no projeto colonizador francês. “Ele foi para a Argélia e voltou com quadros que mitificam e facilitam a dominação colonial. Isso é uma bosta. E é uma bosta também porque seus cenários parecem vegetação podre e não árvores.”

Tirar todas as obras de Renoir de circulação é uma meta surreal e não é isso que o movimento almeja. “Um objetivo realista é incluir pessoas que costumam ficar de fora das conversas. Não estou interessado em ser o cara que diz ‘esse Renoir é ok’ e ‘esses cem são péssimos e não deviam estar em museus’. Eu quero democratizar a conversa sobre arte e incluir mais vozes. Especialmente vozes que não são de homens brancos descendentes de europeus”, diz.

A repercussão do movimento o surpreendeu. Semanas atrás era só um cara com uma conta no Instagram, e agora diz ter falado com mais de 200 pessoas de países diferentes sobre suas ideias. Há grupos em diferentes cidades americanas organizando suas próprias manifestações e Max conta ter visto recentemente uma foto de um protesto em Tel-Aviv, em Israel, em que pessoas reclamavam de Renoir e dos museus voltados à arte europeia. “É um problema no mundo todo, com colônias importando arte da Europa como monumento à dominação ocidental. Não é bom, na minha opinião.”

Um dos motivos para os grandes museus exibirem tanta arte de homens europeus, em sua opinião, é que as pessoas que tomam essas decisões não representam todos na sociedade. “Não somos fortes o suficiente para forçar diretores de museus a contratar tipos de pessoas diferentes, mas somos fortes o suficiente para fazer nossa presença sentida. O ato de protestar em museus e aumentar a conscientização a respeito do acesso a eles é o primeiro passo.”

Protesto do Renoir Sucks at Painting na frente do Met, em Nova York
Protesto do Renoir Sucks at Painting na frente do Met, em Nova York

MERITOCRACIA

Nem todo o mundo vê o movimento com bons olhos. Uma herdeira de Renoir, por exemplo, deixou um comentário pouco amistoso em dos primeiros posts de Max no Instagram. “Quando seu tataravô pintar qualquer coisa que valha US$ 78,1 milhões (o que seria US$ 143,9 milhões hoje) você vai poder criticar. Enquanto isso, dá pra dizer que o livre mercado falou e Renoir NÃO é uma droga como pintor”. “Ela ficou muito chateada e usou, na minha opinião, um argumento muito insano sobre o livre mercado. O que, pra mim, foi ótimo”, conta Max.

Ela não foi a primeira nem a última a dizer que devemos deixar o mercado livre para decidir o valor das coisas e que,se Renoir está nos museus, é porque merece e o mercado reconheceu. “Acho ótimo que essa seja a melhor resposta que os críticos tenham, porque é patético. Olhe ao seu redor. Se você ler o jornal hoje vai ver que todas as histórias terríveis que estão lá foram causadas pelo livre mercado”, diz. “Não é uma surpresa que as pessoas que escolham os indicados ao Oscar sejam majoritariamente brancas. Da mesma forma, não é uma surpresa que os curadores de museus sejam majoritariamente homens. É um problema estrutural. É racista e misógino dizer que é uma questão de mérito e não de acesso.”

Outros dizem que pedir para tirar Renoir dos museus é uma forma de censura. Ninguém poderia afirmar que algo não merece estar exposto. “Censura é uma questão de poder e o movimento literalmente não tem nenhum. Não estamos em posição de censurar. Eu acuso os museus de censurar arte que não seja de um europeu. Porque eles podem colocar outro tipo de arte lá e não colocam. Somos um movimento que tenta pressionar museus a serem mais inclusivos.”

Ok, mas e o valor histórico? Supondo que se concorde com as posições do Renoir Sucks at Painting, não valeria a pena manter as pinturas de Renoir na parede pelo que elas representam na história da arte? Max reflete. “Não estou dizendo para tirarmos toda a arte europeia dos museus. Digo que devemos pensar melhor no que vai nas paredes. Tem que ter menos, mas não tirar tudo. Alguns museus têm 15 Renoirs. Pra que tanto? Especialmente quando eles não têm nenhum quadro de mulher ou de um negro.”

Seus planos são ousados. Além de continuar os protestos nas portas de museus, o movimento quer começar uma campanha de financiamento coletivo para tentar comprar um quadro de Renoir e queimá-lo ao vivo. Sério? “Tentar fazer isso vai levar a uma discussão que estou interessado em ter. Conseguir comprar a pintura não é tão importante quanto dar início a essa conversa”, afirma. “Você tem que entender, se eu pareço ambicioso é porque semanas atrás eu só tinha um perfil no Instagram e agora isso deu a volta ao mundo. O céu é o limite.”

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A ressurreição de Augusto Ruschi

Em janeiro de 1986, onze anos depois de ter sido envenenado por um sapo da espécie dendrobata, o naturalista Augusto Ruschi se viu condenado. O veneno, acreditava ele, havia contaminado 95% de seu fígado. Nos últimos meses, o naturalista acelerara o ritmo de trabalho para concluir os dois livros que estava escrevendo, mas suas forças diminuíam a cada dia. Ele ofegava, dormia mal, sofria com febres e hemorragias nasais. Depois de uma vida desbravando as florestas e matas do país, já não conseguia percorrer longas distâncias.

Temendo pelo pior, chamou um de seus amigos mais próximos, o jornalista Rogério Medeiros, e lhe fez um último pedido. Queria ser enterrado na Reserva Biológica de Santa Lúcia, a mata de 279 hectares cobertas de orquídeas e bromélias que ajudou a tombar.

“Mas tem que ser aqui?”, questionou Medeiros, argumentando que, no Brasil, “não se enterra ninguém fora do cemitério”. Ruschi foi irredutível. Era lá, no paraíso das plantas e dos pássaros, que havia realizado a maior parte de sua obra. A outro grande amigo, o cronista Rubem Braga, confidenciara: depois da morte, sonhava em ser carregado pelos beija-flores.

O naturalista já não tinha perspectivas de curar sua doença, quando recebeu um telefonema de Brasília. Então repórter do Jornal do Brasil, Medeiros estava com Ruschi no dia da ligação.

“Era um ministro do [então presidente] José Sarney, não lembro qual…”, conta o jornalista por telefone, do Espírito Santo, onde mora atualmente. “Eles falaram: conseguimos a ajuda dos índios… O Ruschi adorou a ideia e aceitou se tratar com eles.”

A ligação apenas oficializou um desejo acalentado pela opinião pública à época. Diante daquela doença desconhecida, prestes a matar uma das mais ilustres figuras científicas do país, o governo e a sociedade brasileira buscaram, na tradição de seus índios, uma solução mágica. Sem outra alternativa, o Brasil recorreu às suas próprias raízes. E descobriu, entre deslumbramento e desespero, um processo autóctone, até então desprezado em seu sonho de desenvolvimento.

***

Aos 70 anos, Augusto Ruschi acumulava uma longa lista de serviços prestados para o meio ambiente. Como botânico e ornitólogo, catalogou centenas de espécies de plantas e animais, em especial orquídeas e beija-flores. Como ativista ecológico, foi dos poucos a enfrentar a Ditadura Militar contra o desmatamento da Amazônia. Ganhou notoriedade ao ameaçar com uma espingarda o ex-governador do Espírito Santo, Élcio Álvares, quando este tentou destruir a estação biológica de Santa Lúcia para plantar palmito.

Visionário, Ruschi alertou desde cedo para os perigos dos agrotóxicos e da monocultura de eucalipto. Ainda em 1951, previu, em um congresso na ONU, que as reservas ecológicas se transformariam nos bancos genéticos e habitats do futuro. Seus esforços tinham sido recompensados com medalhas e condecorações no Brasil e no exterior, mas só então, com os dias contados, o cientista ganhava a merecida atenção da imprensa nacional.

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O beija-flor Loddigesia mirabilis, redescoberto por Augusto Ruschi. Ilustração: John Gould
O beija-flor Loddigesia mirabilis, redescoberto por Augusto Ruschi. Ilustração: John Gould

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Em 1975, Ruschi buscava novos exemplares de beija-flores, seu animal fetiche, na Serra do Navio, Amapá, quando se deparou com dezenas de dendrobatas, pequenos sapos coloridos e, consequentemente, venenosos. Pediu ajuda aos índios que o acompanhavam para capturá-los, mas estes se recusaram. O naturalista não os imitou. Um dia depois de apanhar sozinho trinta sapos, foi internado de Macapá com o coração acelerado.

[olho]”Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”[/olho]

Ruschi estava contaminado. Ano após ano, silenciosamente, a peçonha foi corroendo sua saúde. O fato permaneceu desconhecido do grande público até ser revelado pelo Jornal do Brasil, no dia 12 de janeiro de 1986. Assinada por Rogério Medeiros, a reportagem soava como uma espécie de obituário antecipado. Uma chamada estrondosa na capa daquele edição dominical anunciava que o fígado do “defensor intransigente das florestas” já se encontrava “irremediavelmente comprometido”.

Três dias depois, foi a vez do colunista Affonso Romano de Sant’Anna escrever uma crônica emocionada, que mobilizaria os governantes do país.

“Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”, anunciava o poeta e ensaísta.

Sant’Anna foi o primeiro a colocar os índios na jogada. Seu texto conclamava as autoridades a buscarem uma cura para aquele que ele definia como um “monumento nacional”. Se os laboratórios mais sofisticados não a tivessem, sugeria o colunista, talvez os povos da Amazônia, conhecedores da letalidade dos dendrobatas, encontrassem uma alternativa.

“Mas não podemos assistir a essa tragédia tropical achando que Édipo tem mesmo que matar seu pai e Antígona seus filhos”, continuava. “Não podemos ler assim impotentes a crônica de uma morte anunciada, como se fosse uma novela de García Márquez. Alguém tem que ter um remédio.”

O texto sensibilizou a opinião pública. De uma hora para outra, todos queriam ajudar. Homeopatas ofereceram seus serviços e admiradores imploravam por uma intervenção do Palácio do Planalto. Especializada em retratar a flora amazônica, a pintora inglesa Margaret Mee embarcou aos Estados Unidos para informar botânicos americanos sobre o estado de saúde do naturalista.

Augusto Ruschi em Teresa, ES em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi em Teresa, ES em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

Em Brasília, o texto caiu nas mãos do então presidente José Sarney, que enxergou uma oportunidade para ganhar simpatia da opinião pública. Em seu segundo ano no cargo, o maranhense sofria para administrar um país destroçado por 20 anos de Ditadura Militar. Mesmo concorrendo com planos de congelamento de preços e denúncias de corrupção, o caso Ruschi dominava rádios e jornais. Todos os dias, uma nova notícia sobre o cientista ilustrava a capa do Jornal do Brasil.

Sarney não perdeu tempo: no avião em que voltava de Manaus, pediu ao Ministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, que a Funai procurasse a ajuda dos índios. Em um primeiro momento, o órgão indigenista se ofereceu para contatar os Waiapi, povo indígena da Serra do Navio, onde Ruschi havia sido contaminado, em busca de um antídoto. Finalmente, receberam no Palácio do Planalto o cacique Raoni, já internacionalmente reconhecido por sua luta pela preservação da Amazônia, e acordaram uma pajelança.

“Mas por que ele não avisou antes?”, perguntou o cacique, ao ser informado da doença que acometia Ruschi. Raoni encomendou o colhimento de uma raiz da selva chamada atorokon, cuja maceração e cozimento serviria de antídoto para o veneno. “Primeiro, bate a raiz e põe na água quente; quando vira água, pinga no olho; depois bebe um pouco; depois toma banho”, explicou. Um avião da FAB saiu de Brasília com destino ao Parque Nacional de Xingu para buscar o pajé Sapaim, que iria auxiliar Raoni no tratamento.

Cacique dos Txucarramães, Raoni havia sido tema de um documentário premiado com o Oscar, em 1978, e narrado por Marlon Brando. Nascido em 1930 no Mato Grosso e pertencente a um dos ramos da etnia caiapó, aprendera português aos 20 e poucos anos com os célebres indigenistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Boas. Um dos irmãos de Raoni também fora envenenado por um sapo dendrobata, e o cacique garantia agora conhecer o seu antítodo. Ele, porém, não era reconhecido como pajé, nem mesmo entre os caiapós. Como o tratamento exigia um pajé, convocaram também Sapaim, um kamayurá do Alto Xingu, considerado um dos maiores xamãs dos povos indígenas, inciado e consagrado pelo espírito Mamaé.

A passagem dos dois índios pelo Rio de Janeiro, onde iriam tratar Ruschi, foi um prato cheio para a mídia da época. Com seu disco de madeira no lábio inferior, Raoni era uma figura fácil de marcar. O jeito enigmático de Sapaim, que pela primeira vez saía de sua aldeia para visitar uma cidade, também foi motivo de folclore. A mídia acabou focando nos aspectos mais superficiais da cultura indígena. Como o interesse de Sapaim pela música da banda RPM, cuja fita-cassete levou para o Xingu (“Quero ouvir muito o som dessa fita, muito boa”). Ou o comportamento informal de Raoni, que não se conteve e soltou um estrondoso “grito de Tarzan” durante um encontro no Palácio do Planato, não se sabe bem por quê (ao seu lado, o ministro Costa Couto ficou envergonhado e resolveu sair às pressas).

Jornalistas do mundo inteiro vieram cobrir o episódio. Nas disputadas coletivas, os repórteres repetiam a mesma pergunta: como homem de ciência, o naturalista acreditava na fé dos índios? Não estaria ele se rendendo ao “curanderismo”? Ruschi, que já conhecia bem os povos do Xingu, tentou desfazer a oposição ciência/medicina popular. Em suas respostas, sempre enfatizava o conhecimento dos poderes das plantas pelos índios, lembrando que a medicina deles tinha dois mil anos, “muito mais tempo do que a nossa”.

“Até agora enfrentamos problemas com soro antiofídico, com gente morrendo todo dia em decorrência de picada de cobra. No entanto, nesses 50 anos de vida na Amazônia, vi os índios ingerirem chás e serem curados de veneno”, afirmou o naturalista em uma entrevista coletiva no Rio de Janeiro, às vésperas da pajelança.

[olho]Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”[/olho]

“Houve uma cultura sensacionalista, que, aliás, ainda é atual”, lembra o biólogo André Ruschi, segundo dos três filhos de Augusto, em entrevista por e-mail. “Uma parte da mídia foi interessante e prestou significativos serviços. Mas ainda muito superficial. Pouco investigativa. Havia alguns interesses comerciais que estavam sendo mobilizados formando-se um jogo comercial no mercado, oculto do público, da grande mídia.”

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Augusto Ruschi e o cacique Raoni, da tribo Txucarramãe, no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi e o cacique Raoni, da tribo Txucarramãe, no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

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Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”, diagnosticou. Para o cacique, era preciso urgentemente “tirar o sapo” de dentro de seu paciente. A Sarney, contou ter visto Ruschi em sonho, numa lagoa cheia de anfíbios: “Ele já virou um sapo, mas esse sonho pode ser um bom presságio”. Os jornais reproduziram as palavras do cacique sem nenhum contexto, ignorando qualquer cosmologia por trás delas. Também pouco falaram do papel dos espíritos e dos sonhos na cura.

“O pajé fala com o doente de dia e de noite vai dormir. Quando sonha, sai do corpo e acompanha o espírito-guia, que no caso de Sapaim se chama Ypotramaé [mamaé da flor, ‘ipoty + mamaé’]”, explica o médico e antropólogo Wesley Aragão, que acompanhou Sapaim em suas pesquisas de campo. “O mamaé-guia do pajé o leva para uma floresta, em ‘viagem fora do corpo’, e lhe mostra quais ervas deve usar e que procedimento deve tomar, no dia seguinte, com o paciente. O pajé ao estilo de Sapaim age sempre desta forma. Todos têm o seu espírito guia com quem conversam de dia, em clarividência suposta, ou de noite, no sonho. No rito de cura, este sonho terapeutico com o espírito é determimante. Inclusive em termos de prognóstico”.

Segundo Wesley, o pajé é apenas um médium — quem realmente cura é o espírito, no caso Mamaé. Daí a importância do sonho.

“É o Mamaé quem diz tudo: se o doente vai viver, se vai sarar definitivamente ou temporariamente, o que ele deve fazer, o que o pajé deve fazer como e por quanto tempo. Tudo é o Mamaé quem diz. E o sonho é o momento de melhor comunicação entre aqui e o além, onde vive o Mamaé [no Mamaéretam, a terra dos espíritos]”.

***

Às 9h da manhã do dia 23 de janeiro de 1986, os índios chegaram pintados com tinta de jenipapo, como manda a tradição. O ritual aconteceria no casarão do Parque Lage, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro, e iria durar três dias e três noites. De manhã, durante a primeira sessão, os índios cobriram-se de urucum e sopraram a fumaça de um charuto de folhas de trinta centímetros no corpo do naturalista. Vinte minutos mais tarde, Raoni inclinou-se sobre ele, massageou-o com unguento e foi tirando, a partir de seu pescoço, uma substância escura e mal-cheirosa. Era, segundo Raoni, o veneno do dendrobata.

Na segunda sessão, à tarde, Raoni e Sapaim preparam um chá com a raiz de atorokon. A erva foi fervida e espalhada sobre Ruschi. Depois, os índios fumaram novamente o charuto e retiraram mais uma vez a substância. A cada sessão, ela vinha mais clara e em menor quantidade.

Ainda há controvérsias sobre a s funções exercidas por Raoni e Sapaim. Em suas entrevistas mais recentes, este último afirma que, por não ser pajé, Raoni não sabia os procedimentos de pajé.

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Augusto Ruschi (segundo da esq. para a dir.), o cacique Raoni (quarto da esq. para a dir.) e o pajé Sapaim (à dir.), no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi (segundo da esq. para a dir.), o cacique Raoni (quarto da esq. para a dir.) e o pajé Sapaim (à dir.), no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

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“O que Sapaim me disse é que Raoni só quis aparecer perante os brancos como pajé para mostrar sua pessoa, seu povo, impor sua autoridade”, revela Wesley. “Em decorrência disto, Raoni na ocasião disse muitas coisas sem sentido, e fez algumas ‘performances’ para simular a condição de pajé”.

[olho]”Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo”[/olho]

Entre todos os jornalistas, Rogério Medeiros foi o único autorizado a presenciar os rituais. No dia 24 de janeiro, ele publicou um relato no qual descrevia a última sessão:

“No encerramento, Sapaim disse que o veneno já estava diminuindo muito no corpo de Ruschi. E Ruschi, com a voz mais firme, muito tranquilo, sem dor — o que ressaltou logo — disse para mim, com os olhos muito acesos — o que não fazia há meses: ‘Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo’.”

Aos repórteres, Augusto Ruschi afirmava estar totalmente recuperado. Os sangramentos haviam parado e seu intestino voltara a funcionar normalmente, algo que não acontecia há anos. Também dormia melhor — e até sonhava. “Estou sentindo um gosto de vida”, disse a Medeiros. Mas, apesar das manchetes e entrevistas otimistas, o naturalista ainda sofria de insuficência hepática grave, causada por uma cirrose. A retirada tardia do veneno pela pajelança lhe ajudou a recuperar forças, mas não trouxe a cura. Ele morreria quatro meses depois, aos 71 anos, em Vitória, de cirrose viriótica.

A autópsia não revelou nenhum traço de veneno. Para os médicos, tudo indica que a cirrose foi derivada pelo consumo excessivo de remédios contra a malária — e não pelos sapos. A morte por hepatite C, inoculada em coleta de sangue normal para exames de rotina, foi confirmada pelo seu médico particular e assessor de pesquisas, o cardiologista Pedro José de Almeida. Segundo André Rushi, o óbito não foi devidamente esclarecido na época por causa de um desentendimento entre Ruschi e Almeida.

Sapaim, por outro lado, acreditava que o naturalista estava enfraquecido por um câncer, conta Wesley Aragão.

“O que Sapaim me contou é que o envenenamento de Rushi não teve nada a ver com Mamaé, que é um envenanamento físico de fato, que o ‘sapo mijou nele’ e que o ‘veneno entrou nele’ e estava matando ele aos poucos”, relembra o antropólogo. “O que Sapaim diz ter feito foi ‘tirar o veneno do sapo do corpo de Ruschi’. Segundo Sapaim, este se encontrava ‘muito mal’, ‘quase morrendo’, ‘nao tinha voz, não aguentava andar e sangrava pelo nariz’. Quando ele tirou o veneno, Ruschi voltou a andar, a falar normal e parou de sangrar. Perguntei uma vez a Sapaim por que, então, Ruschi morreu alguns meses depois. Ele me respondeu que ‘a parte dele foi feita, ele tirou o veneno, mas Ruschi morreu de câncer porque estava já enfraquecido’.”

***

Em seu ato final, Ruschi fez o Brasil abrir os olhos para a medicina indígena. A intensa — e sensacionalista — exposição de seu tratamento trouxe uma visibilidade inédita, ainda que fugaz, para a ciência dos povos do Xingu. Raoni e Sapaim sabiam que o que estava em jogo ia muito além da saúde do cientista: “Nós dois temos que curar direito, senão o branco não acredita e brinca com índio”, declarou o cacique.

Em uma sociedade descrente, paralisada no labirinto da Década Perdida, o termo “pajelança” ganhou a boca do povo, como uma solução mágica para todos os males do momento. Se o xamanismo indígena podia salvar um dos mais ilustres brasileiros, por que não resolveria os outros problemas do Brasil? O banqueiro Marcílio Marques Moreira chegou a afirmar que o país precisa de “uma pajelança econômica”. E até o jogador Sócrates, que enfrentava uma lesão aparentemente incurável, cogitou chamar Raoni para dar um jeito em seu tornozelo.

“Curado”, Ruschi fez elogios públicos aos indígenas, à “cultura linda” que o havia socorrido. E foi pessoalmente agradecer José Sarney pela intervenção. Já o antropólogo Darcy Ribeiro e o político Mário Juruna — primeiro e único deputado federal indígena do país — acusaram o presidente de usar politicamente os índios. Ribeiro, aliás, também temia que o episódio provocasse uma corrida de brancos a aldeias indígenas, em busca de tratamento.

Sua preocupação tinha fundamento. Graças ao episódio, Raoni e Sapaim alcançaram status de celebridade, fazedores de milagre. Durante a pajelança, pacientes brancos correram ao Parque da Cidade pedindo à dupla que os examinassem. Houve até quem temesse que o local se tornasse um local de romaria: “A fama dos pajés está se espalhando, começa a aparecer gente pedindo informações”, disse um guarda. Assediado enquanto passeava no Centro do Rio, Raoni ouviu de uma senhora: “Esse aí tem que ser ministro da saúde”.

“Durante os dias de pajelança, Raoni e Sapaim ficaram concentrados no Parque da Cidade, não saíram de lá, e os jornalistas se instalaram ali por perto, esperando novidades”, lembra o fotógrafo Custodio Coimbra, do jornal “O Globo”, que na época cobriu o episódio pelo “Jornal do Brasil”. “Quando o tratamento acabou, os índios saíram para fazer compras na Casa Turuna [tradicional loja de fantasias do Rio] e toda a imprensa foi atrás, porque eles tinham virado uma atração na cidade.”

Em um dos seus plantões no Parque da Cidade, o fotógrafo ganhou um charuto de Sapaim, feito provavelmente com as mesmas ervas usadas na pajelança.

“Vi ele de longe, e fiz um sinal. Ele me chamou e deu o charuto de presente. O pessoal queria experimentar ali mesmo, mas eu preferi fumar em casa. Na época era comum fazermos projeções lá na minha casa, e em duas delas fumamos o charuto. Fazia uma fumaceira danada. E até dava um barato.”

[olho]”O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”[/olho]

Em sua coluna, Affonso Romano de Sant’Anna chegou a sugerir a exploração de uma farmacopeia que unisse “a sabedoria indígena e o que há de mais avançado na indústria química”. Raoni, porém, descartou qualquer possibilidade de industrializar a raiz atorokon. “A raiz não pode vender para o branco. Os brancos já têm seus remédios”, enfatizou.

“O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”, diz a antropóloga Gisela Macambira Villacorta, especializada em antropologia da religião e da saúde, e professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. “A repercussão na mídia trouxe à tona algo que já estava ocorrendo no cotidiano: a redescoberta, por não-indígenas, dos sistemas de cura tradicionais. Isso acontece em função da crise da saúde no país, mas também da crise da medicina ocidental, da relação entre paciente e médico, que era e ainda é de muita distância. Na relação com o pajé, o paciente participa mais da cura, ambos são protagonistas, vivem junto o processo.”

No dia 26 de janeiro daquele ano, uma reportagem no “Jornal do Brasil” mostrava que o caso Ruschi havia devolvido o prestígio das ervas medicinais, com a busca de remédios naturais crescendo a cada dia. Um movimento superficial e momentâneo, mas que deixou marcas, acredita André Ruschi. Ele conta que, quando foi delegado do Conselho Estadual de Saúde do E. ES nas Plenárias Nacionais de Saúde, entre 1999 e 2006, conseguiu a aprovação do reconhecimento oficial das terapias alternativas, que foram incluídas no SUS e no ensino oficial dos cursos de medicina. A referência ao nome “Ruschi”, segundo ele, ajudou a fortalecer os argumentos junto aos delegados.

“A ciência médica é produto da coleta de informações populares que vão sendo confirmadas de maneira técnica para que possamos reproduzi-las de maneira consciente”, diz ele. “Portanto, [o caso] trouxe à luz, de maneira mais evidente, como ocorre este processo de assimilação de conhecimentos e desenvolvimento cultural.”

Quase três décadas após a pajelança, Raoni se tornou um ícone da preservação ambiental e da cultura ancestral, mas não deu continuidade a sua experiência como pajé. Sapaim se tornou conhecido especialmente entre pessoas brancas, urbanas, ligadas a movimentos new age, e continua atendendo pacientes famosos, como Leonardo DiCaprio e Gisele Bünchen. Já os alertas de Augusto Ruschi, que no dia 12 de dezembro de 2015 completaria 100 anos, nunca estiveram tão atuais.

“A ausência de política florestal leva o país a um desastre ambiental permanente com desertificação na maior parte do território nacional. Ele sempre advertiu sobre esta tendência. O combate aos agrotóxicos, a rejeição à monocultura, a política de criação de Unidades de Conservação são legados universais do pensamento de Ruschi, amplamente aceitos e adotados em todas as nações”, enumera André, que continua o trabalho do pai na Estação Biologia Marinha Ruschi, uma escola de ecologia dedicada à pesquisa, educação e cultura. Ele lamenta, no entanto, que a instituição continue sofrendo perseguições políticas e lutando contra a falta de apoio governamental.

Após a morte de Ruschi, não demorou um mês para o que o Espírito Santo começasse a sofrer uma nova onda de desmatamentos, que atingiu até sua terra natal, Santa Teresa, na região serrana Estado. Rogério Medeiros, que em 1995 escreveu o livro “Ruschi — o agitador ecológico” (Editora Record), lamenta que o legado do naturalista ainda não seja devidamente reconhecido em sua própria região.

“O mundo respeita Ruschi, mas o Estado inteiro do Espírito Santo, da Academia aos políticos, o odeia. Porque tudo que ele falou que ia acontecer no Estado já está acontecendo. Os estragos das mineradoras, a natureza se vingando, a situação do Rio Doce… Ele previu tudo isso.”

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A surpresa e o óbvio no Globo de Ouro

Acompanhar as indicações do Globo de Ouro para a televisão é sempre uma surpresa. Diferente do Emmy, em que é mais ou menos fácil prever a lista, o prêmio, que divulgou hoje (10) seus candidatos, é mais favorável a séries iniciantes, às vezes troca quase todos os indicados em uma categoria de um ano para o outro e olha com carinho para as séries originais dos serviços de vídeo sob demanda — e não só para as já figurinhas fáceis “House of Card”, “Orange Is the New Black” e “Transparent”.

Nesse ano não foi diferente. Foi um bom ano para o Netflix. “Narcos” concorre a dois dos prêmios principais: melhor série de drama e melhor ator em série de drama, com Wagner Moura (grande surpresa, mas infelizmente ele disputa com o favorito Jon Hamm, pelo fim de “Mad Men”). “Master of None” e “Better Call Saul” tiveram seus protagonistas, Aziz Ansari e Bob Odenkirk, indicados a melhor ator. “Orange Is the New Black” tem duas indicações, “House of Cards” e “Grace & Frankie”, uma. Até no cinema o Netflix foi indicado, com Idris Elba disputando o prêmio de melhor ator coadjuvante. Quase todas suas séries foram contempladas.

A Amazon também foi surpreendentemente bem. “Transparent” já é barbada, costuma concorrer e ganhar em todas as premiações de TV. Neste ano não foi diferente e tem a chance de repetir os prêmios de 2015 de melhor série de comédia e melhor ator em série de comédia e ainda concorre em melhor atriz coadjuvante. Mas nesse ano o serviço ainda conseguiu duas indicações para a pouco comentada “Mozart in the Jungle”, protagonizada por Gael García Bernal. E talvez a maior surpresa de todas: “Casual”, série do Hulu, também concorre a melhor série cômica.

É uma felicidade ver “Modern Family”, “The Big Bang Theory”, “Homeland” ou Maggie Smith (boa, mas chega, né?) completamente fora da disputa. Ou mesmo não ter ganhadores do ano passado, como a série “The Affair”, a atriz Ruth Wilson (da mesma série), ou Kevin Spacey (“House of Cards”). O Globo de Ouro fez escolhas menos óbvias, indicando “Scream Queens”, “Crazy Ex-Girlfriend”, “The Grinder”, “Blunt Talk” e “Mr. Robot”. Até Lady Gaga disputa um prêmio, como atriz de filme para a TV ou minissérie, por “American Horror Story: Hotel”.

Como todo bom prêmio, o Globo de Ouro também cometeu algumas injustiças. Indicar “Game of Thrones”, em sua pior temporada, no lugar de “Mad Men” é um insulto. “UnREAL”, uma das melhores estreias do ano, ou “The Americans”, que teve um ano incrível, seriam alternativas melhores. E se era para escolher um medalhão, que fosse “House of Cards”. “Game of Thrones” não fez por merecer. E quantas personagens Tatiana Maslany tem que interpretar para ser indicada pela série sobre clones “Orphan Black”? Na comédia, “Master of None” e “You’re the Worst” mereceriam uma indicação como melhor série também. Mas o Globo de Ouro é tão louco que quem sabe eles entrem no ano que vem.

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Leonardo DiCaprio em 'O Regresso'
Leonardo DiCaprio em ‘O Regresso’

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NA GRANDE TELA

No cinema, a situação se inverte um pouco e as surpresas são poucas. Como na maioria das categorias tem uma divisão entre filmes de comédia e de drama, quase todos os favoritos encontram uma vaga. Jennifer Lawrence, por exemplo, foi ignorada pelo sindicato de atores pelo filme “Joy”. Mas como as favoritas (Brie Larson, Cate Blanchett e Saoirse Ronan) vão se digladiar na disputa no drama, ela tem boas chances na comédia (Amy Schumer e Melissa McCarthy são algumas das concorrentes). Nessas categorias ainda tem o fato de que Oscar e Globo de Ouro discordam em relação a que prêmio certas atrizes devem disputar. No Oscar, Rooney Mara (“Carol”) e Alicia Vikander (“A Garota Dinamarquesa”) vão tentar como coadjuvantes, onde têm mais chance. No Globo de Ouro, concorrem ao prêmio principal mesmo.

O mesmo acontece na disputa de melhor ator. Matt Damon, até essa semana onipresente na lista de favoritos a ganhar uma indicação ao Oscar pelo sucesso “Perdido em Marte”, ficou de fora pelo sindicato dos atores. Como ator de comédia, também tem grandes chances, favorecido pelo fato de que Steve Carell e Christian Bale podem se anular na briga ao concorrer pelo mesmo filme, “A Grande Aposta”.

Talvez o grande esnobado tenha sido Johnny Depp, por “Aliança do Crime”. É o tipo de papel perfeito para premiações: envolve uma transformação física, é uma história real e ele interpreta um psicopata. Ficou um pouco mais fácil para Leonardo DiCaprio, que pode finalmente ganhar seu Oscar em 2016 (seu papel também é perfeito para prêmios, já que ele comeu fígado cru de bisão e dormiu pelado na carcaça de um animal). Outra ausência: “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, considerado candidato a uma indicação ao Oscar, não entrou na lista de filmes estrangeiros.

Pensando no número inclusivo de candidatos, talvez a lista de melhor diretor seja a mais significativa, já que une as duas categorias em uma só. Lenny Abrahamson, de “O Quarto de Jack”, e David O. Russell, de “Joy: O Nome do Sucesso”, por exemplo, ficaram de fora e perderam o lugar para George Miller, de “Mad Max: Estrada da Fúria”. De qualquer forma, tem sido raro o diretor vencedor do Globo levar o troféu no Oscar — Richard Linklater, que ganhou por “Boyhood” neste ano, que o diga.

Com todo o mundo incluído, a lista de indicados ao Globo de Ouro no cinema não é muito polêmica e nem é o melhor termômetro para o Oscar. Nem os resultados significam muita coisa, aliás, já que frequentemente os resultados das premiações divergem (DiCaprio tem dois Globos de Ouro, por exemplo). De qualquer forma, o prêmio é divertido. Com os atores bebendo em mesas grandes, como num casamento, e apresentadores com menos medo de forçar a barra nas piadas, o Globo de Ouro é uma ótima parada na longa temporada anual de premiações.

 

Jacob Tremblay e Brie Larson em 'O Quarto de Jack'
Jacob Tremblay e Brie Larson em ‘O Quarto de Jack’

A lista completa de indicados:

CINEMA

FILME DE DRAMA
“Carol”
“Mad Max: Estrada da Fúria”
“O Regresso”
“O Quarto de Jack”
“Spotlight – Segredos Revelados”

FILME DE COMÉDIA
“A Grande Aposta”
“Joy: O Nome do Sucesso”
“Perdido em Marte”
“A Espiã que Sabia de Menos”
“Descompensada”

DIRETOR
Todd Haynes, “Carol”
Alejandro Iñárritu, “O Regresso”
Tom McCarthy, “Spotlight – Segredos Revelados”
George Miller, “Mad Max: Estrada da Fúria”
Ridley Scott, “Perdido em Marte”

ATRIZ EM DRAMA
Cate Blanchett, “Carol”
Brie Larson, “O Quarto de Jack”
Rooney Mara, “Carol”
Saoirse Ronan, “Brooklyn”
Alicia Vikander, “A Garota Dinamarquesa”

ATRIZ EM COMÉDIA
Jennifer Lawrence, “Joy: O Nome do Sucesso”
Melissa McCarthy, “A Espiã que Sabia de Menos”
Amy Schumer, “Descompensada”
Maggie Smith, “A Senhora da Van”
Lily Tomlin, “Grandma”

ATRIZ COADJUVANTE
Jane Fonda, “Youth”
Jennifer Jason Leigh, “Os Oito Odiados”
Helen Mirren, “Trumbo”
Alicia Vikander, “Ex-Machina: Instinto Artificial”
Kate Winslet, “Steve Jobs”

ATOR EM DRAMA
Bryan Cranston, “Trumbo
”
Leonardo DiCaprio, “O Regresso”
Michael Fassbender, “Steve Jobs”
Eddie Redmayne, “A Garota Dinamarquesa”
Will Smith, “Um Homem entre Gigantes”

ATOR EM COMÉDIA
Christian Bale, “A Grande Aposta”
Steve Carell, “A Grande Aposta”
Matt Damon, “Perdido em Marte”
Al Pacino, “Não Olhe para Trás”
Mark Ruffalo, “Sentimentos que Curam”

ATOR COADJUVANTE
Paul Dano, “Love & Mercy”
Idris Elba, “Beasts of No Nation”
Mark Rylance, “A Ponte dos Espiões”
Michael Shannon, “99 Homes”
Sylvester Stallone, “Creed: Nascido para Lutar”

ROTEIRO
Emma Donoghue, “O Quarto de Jack”
Tom McCarthy, Josh Singer, “Spotlight – Segredos Revelados”
Charles Randolph, Adam McKay, “A Grande Aposta”
Aaron Sorkin, “Steve Jobs”
Quentin Tarantino, “Os Oito Odiados”

FILME DE ANIMAÇÃO
“Anomalisa
”
“O Bom Dinossauro”
“Divertida Mente”
“Snoopy & Charlie Brown: Peanuts, o Filme”
“Shaun: O Carneiro”

CANÇÃO ORIGINAL
“Love Me Like You Do”, “Cinquenta Tons de Cinza”
“One Kind of Love”, “Love & Mercy”
“See You Again”, “Velozes & Furiosos 7”
“Simple Song No. 3”, “Youth”
“Writing’s on the Wall”, “007 Contra Spectre”

FILME ESTRANGEIRO
“The Brand New Testament”
“The Club”
“The Fencer”
“Cinco Graças”
“O Filho de Saul”

TELEVISÃO

SÉRIE DE DRAMA
“Empire”
“Game of Thrones”
“Mr. Robot”
“Outlander”
“Narcos”

ATOR EM SÉRIE DE DRAMA
Jon Hamm, “Mad Men”
Rami Malek, “Mr. Robot”
Wagner Moura, “Narcos”
Bob Odenkirk, “Better Call Saul”
Liev Schreiber, “Ray Donovan”

ATRIZ EM SÉRIE DE DRAMA
Caitriona Balfe, “Outlander”
Viola Davis, “How to Get Away With Murder”
Eva Green, “Penny Dreadful”
Taraji P. Henson, “Empire”
Robin Wright, “House of Cards”

SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
“Casual”
“Mozart in the Jungle”
“Orange Is the New Black”
“Silicon Valley”
“Transparent”
“Veep”

ATRIZ EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
Rachel Bloom, “Crazy Ex-Girlfriend”
Jamie Lee Curtis, “Scream Queens”
Julia Louis-Dreyfus, “Veep”
Gina Rodriguez, “Jane the Virgin”
Lily Tomlin, “Grace & Frankie”

ATOR EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
Aziz Anzari, “Master of None”
Gael García Bernal, “Mozart in the Jungle”
Rob Lowe, “The Grinder”
Patrick Stewart, “Blunt Talk”
Jeffrey Tambor, “Transparent”

MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
“American Crime”
“American Horror Story: Hotel”
“Fargo”
“Flesh & Bone”
“Wolf Hall”

ATOR EM MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
Idris Elba, “Luther”
Oscar Isaac, “Show Me a Hero”
David Oyelowo, “Nightingale”
Mark Rylance, “Wolf Hall”
Patrick Wilson, “Fargo”

ATRIZ EM MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
Lady Gaga, “American Horror Story: Hotel”
Sarah Hay, “Flesh & Bone”
Felicity Huffman, “American Crime”
Queen Latifah, “Bessie”
Kristen Dunst, “Fargo”

ATRIZ COADJUVANTE EM TV
Uzo Aduba, “Orange Is the New Black”
Joanne Froggatt, “Downton Abbey”
Regina King, “American Crime”
Judith Light, “Transparent”
Maura Tierney, “The Affair”

ATOR COADJUVANTE EM TV
Alan Cumming, “The Good Wife”
Damien Lewis, “Wolf Hall”
Ben Mendelsohn, “Bloodline”
Tobias Menzies, “Outlander”
Christian Slater, “Mr. Robot”

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Comportamento

Magic: The Gathering ainda tem o poder

Quinze anos depois de entrar pela última vez em uma loja de card games, me vejo novamente rumo a um desses oásis perdidos de jogos analógicos, ainda tão escondidos do grande público. A mochila nas costas, dessa vez, não abriga uma imensa pasta cheia de cards e decks, mas a mente já se encontra tentando emular os mesmos sentimentos daquela época. Magic: The Gathering esteve na minha vida entre 1995 e 2000 – joguei, colecionei, troquei cards, participei de torneios e até mesmo tive alguns cards roubados. Tanto tempo depois o jogo continua firme e forte, mas algo mudou.

Magic: The Gathering é um Trading Card Game (TCG), ou jogo de cartas colecionáveis, no qual cada jogador tem um baralho de cartas, chamado “deck”, que ele próprio constrói a partir de uma coleção imensa de cartas já lançadas. As cartas fazem o papel de mágicas de diversos tipos (criaturas, encantamentos, feitiços), que juntas em um deck formam uma estratégia, com o objetivo de reduzir os pontos de vida do adversário a zero. Pelo menos era assim há quinze anos, e provável que regras assim, tão essenciais, não tenham mudado tanto. Mas os cabelos…

É essa a missão que me fez ir até a Bazar de Bagdá, loja de card games na Zona Norte de São Paulo. A intenção era a de acompanhar um torneio chamado PPTQ – Preliminary Pro Tour Qualifier, que qualifica jogadores (ou “duelistas”, bem mais legal) para os Pro Tour Qualifiers, que por sua vez dão vaga para os Pro Tour, torneios profissionais de nível mundial, que acontecem quatro vezes ao ano. Claro que tudo isso me foi explicado bem depois – tudo o que eu conhecia de torneios até então era o sistema suíço, “fantasmas” (quando o número de jogadores é ímpar alguém sempre tem a sorte de ficar de bobeira em uma rodada).

Assim que abri a porta da loja, revivi uma cena bastante comum na minha adolescência: jovens com pastas, mochilas nas costas, todos escorados no balcão da loja, esperando o início do torneio, conversando e trocando cards – pelo menos essa última eu imaginei que estivessem fazendo, o que se provou errado logo depois. “Vai jogar o torneio?”, alguém sacou na minha direção, como um Raio (um mana vermelho, três de dano em qualquer alvo). “Não, vou só acompanhar”, respondi já sem nenhuma atenção voltada para mim, como se esperassem pela resposta.

Um novo mundo de Magic

Posso dizer com segurança que, na época em que joguei, não havia um décimo da quantidade e variedade de produtos ligados a Magic que vi naquela loja. Lembro-me bem de pastas decoradas e deck shields, “plastiquinhos” individuais para proteger os cards, itens que não eram fáceis de serem adquiridos com o dinheiro do lanche da escola convertido em nerdices. O que eu vi na Bazar foi uma miríade de pastas, cases, protetores, dados marcadores de pontos de vida, “playmats” (um “tapetinho” que se usa para cobrir um dos lados da mesa onde se joga), e várias outras coisas coloridas que chamam muita atenção.

E não foi só no vasto universo dos acessórios que Magic se transformou num mundo estranho e terra de novas maravilhas. A gama de produtos oficiais aumentou muito de quinze anos para cá, e pobre de nós que comprávamos apenas “boosters” e “decks”. O duelista hoje tem acesso a baralhos pré-montados (bons e ruins, segundo relatos), caixas promocionais com brindes, edições especiais, de colecionadores, além de cards avulsos vendidos pelas lojas, chamados de “singles”.

Magic: The Gathering foi lançado em 1993 pela Wizards of the Coast, então uma empresa de garagem com poucos jogos no portfólio. Uma simples e rápida pesquisa mostra que hoje a WotC tem hoje em suas prateleiras os dois maiores bastiões quando se fala em jogos analógicos: Dungeons & Dragons, o mais famoso e jogado dos RPGs (Role-Playing Games), e Magic – além de ser uma subsidiária da gigante dos brinquedos Hasbro. “Bala na agulha” é a palavra que eu buscava e que representa bem o momento da empresa, que nos últimos anos investiu pesado em marketing e desenvolvimento de novos produtos e estratégias para os jogos.

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Um típico cenário de Magic nos anos 90: um joguinho para virar a noite com os amigos. Crédito: Abbamouse/Flickr
Um típico cenário de Magic nos anos 90: um joguinho para virar a noite com os amigos. Crédito: Abbamouse/Flickr

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“Atenção, duelistas do segundo PPTQ da Bazar de Bagdá! A lista de jogos da primeira rodada já está disponível! Tomem seus lugares e aguardem o sinal dos juízes para dar início ao duelo!” – soou nos auto-falantes da loja Leonardo “Estranho” Martins, o juiz principal de um time de três árbitros responsáveis pelo torneio, todos eles vestidos a rigor – sapato, calça social e uma camisa com o bordado oficial, indicando que eram, afinal, juízes oficiais. Isso eu realmente nunca tinha visto: um nível de profissionalismo, excelência e seriedade que não era comum naquele Magic que eu jogava entre amigos, “na zoeira”. Nítida também era a questão da idade dos duelistas – todos certamente na fase dos “vinte e poucos”, a maioria nos “vinte e muitos”. Com vinte, ninguém mais da minha antiga turma ainda tinha um card sequer.

Informação é a chave

O que melhor explica as mudanças em muitos (quase todos, aliás) setores da sociedade é a universalização da o acesso à informação. Claro que o Magic se beneficiou disso e abraçou a causa. “A disseminação da informação foi o que mais mudou no Magic de quinze ou vinte anos para cá, e com a internet, o jogo e suas estratégias foram se difundindo muito mais”, explica Estranho. Faz sentido: sem a internet, pouca ou nenhuma informação chegava até nós, sempre por meio de informativos ou revistas que cobriam eventos e torneios internacionais, com meses de atraso. “Hoje, dá para acompanhar torneios de alta competitividade e em nível mundial, como o Pro Tour, em tempo real, via streaming”, comenta.

Eduardo Beraldo, o “Dudão”, um dos sócios da Bazar de Bagdá, lembra um período no qual a internet engatinhava e, para o Magic, as revistas eram o principal baluarte de dados para trocas. “No começo, nossa referência para cartas e informações de forma geral era a Duelist, revista que só conseguíamos em bancas de importados”, conta. A grande referência para trocas e eventuais vendas de cards veio depois: a InQuest, com quase metade das páginas dedicadas a imensas listas de preços de referências de cards. “Ninguém vendia ou trocava cards de uma coleção nova sem antes conferir seus valores na InQuest.”

A informação de qualidade estratégica também foi um dos grandes diferenciais que a disseminação digital trouxe ao jogo, melhorando a experiência dos duelistas. “Foi na época da InQuest que começaram a sair os artigos sobre arquétipos (tipos de estratégias de deck e de jogo), e ao mesmo tempo torneios internacionais como os Pro Tour, Mundial e Latino-Americanos começaram a ter grande importância”, revela Dudão. A internet, ainda segundo o lojista e jogador (Dudão venceu o PPTQ mencionado acima), fomentou essa busca dos jogadores por informações a respeito de arquétipos e estratégias. “Dias atrás tivemos um torneio aqui na loja e, ao mesmo tempo, passava no telão o streaming do primeiro torneio oficial da nova coleção, “Battle for Zendikar”. Todo mundo colado na tela, vendo as novas cartas, novas estratégias e os novos decks que ela trouxe”, completa.

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Leonardo "Estranho" Martins. Crédito: Flávio Alfonso Jr
Leonardo “Estranho” Martins. Crédito: Flávio Alfonso Jr

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Embora o Magic seja um jogo de alta complexidade (a comparação com o xadrez é recorrente no meio), ele hoje se mostra simples e de fácil acesso para o iniciante, diminuindo o fator de intimidação que a complexidade traz e, por consequência, afasta o jogador novato. Para completar, Magic já virou jogo para computador, tablet e celular, indo além das mesas e angariando mais e mais jogadores – que, pelas versões de software e aplicativos, têm mais facilidade em entender as regras. “Hoje, é fácil entrar no Magic, mas dominá-lo é outra história”, emenda Estranho.

A profissionalização

Torneios oficiais, mundiais, estabelecimento de estratégias e um mercado (oficial e paralelo) sólido são elementos cruciais para a germinação de um ambiente profissional e de duelistas profissionais. E foi o que aconteceu. Magic: The Gathering completou 20 anos em 2013 contando com uma massa fiel de duelistas “federados” de todos os níveis, uma ampla rede de lojas onde se realiza torneios oficiais e não-oficiais, e torneios de nível mundial nos quais se paga (muito) bem. O último Pro Tour, que aconteceu em Milwaukee, EUA, premiou seus vencedores com a soma de 250 mil dólares. Dá para viver.

Um dos melhores representantes brasileiros da atualidade nesse mundo é Willy Edel, carioca eleito para a turma de 2015 do Hall of Fame do Magic, segundo brasileiro a conquistar o feito (o primeiro foi Paulo Vitor Damo da Rosa, em 2012). Willy foi campeão do Pro Tour de Toronto, em 2012, e campeão brasileiro no ano seguinte, tendo ainda se classificado “Top-8” em diversos outros Pro Tour e Grand Prix. Toda essa trajetória fez com que Willy fosse indicado e conquistasse o cobiçado anel do Hall of Fame – sim, é como no Super Bowl.

Para Willy, o Magic está bem diferente hoje em comparação com os primeiros anos, e acabou se tornando referência para muitos outros jogos que foram surgindo ao longo do tempo. “Mudou completamente. Antigamente, 99% do público era casual, havia pouquíssimas lojas, poucos torneios, basicamente nada que favorecia a vertente competitiva. Hoje há vários incentivos, e para muitos o Magic virou profissão”, explica.

Se o jogo se profissionalizou, podemos comprovar também que os ambientes seguiram o mesmo caminho? Em toda a minha trajetória no Magic, tive como “base de atuação” uma locadora de games que vendia decks e boosters como alternativa para os jogos eletrônicos – e lá jogávamos de maneira bem casual, trocávamos cartas e muito raramente comprávamos um do outro. Isso também mudou? Para Willy, sim. “A troca de cartas ainda existe, mas é bastante rara nas lojas, e não sem motivo: por que limitar seus ‘parceiros de troca’ se hoje todas as lojas têm um estoque bastante amplo de cards avulsos para vender? A vida hoje é mais simples e fácil”, esclarece.

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Um torneio de Magic em São Paulo. Crédito: Flávio Alfonso Jr
Um torneio de Magic em São Paulo. Crédito: Flávio Alfonso Jr

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Apesar do contexto profissional no qual o jogo se encontra hoje, trilhar o caminho “sério” não é nada fácil. Praticamente todos os torneios grandes são fora do Brasil, e a rotina de treinos, viagens e hospedagem pode ser assustadora para a maioria dos duelistas que iniciam nessa vida. Para ajudar esses duelistas profissionais de primeira viagem, Willy presta auxílio com relação a todos os fatores envolvidos nessas jornadas rumo aos grandes torneios. “Quando sou procurado, ensino os primeiros passos, desde marcar a passagem a reservar hotel. Se a pessoa está disposta a treinar sério para o evento, eu tento incluí-la no meu grupo de treinos. É muito difícil entrar no circuito profissional, então esta pode ser a única oportunidade desta pessoa, por isso tento ajudar no que posso e mostrar que tem que ser algo levado a sério”, revela Willy, conhecido no meio por essa atitude como “Godfather” do Magic.

Magic é um jogo de muitas possibilidades, inclusive de carreira. Leo “Estranho” Martins é um árbitro de nível 2, credenciado e graduado pela própria Wizards of the Coast. Se ele “apita” por hobby? “Somente em 2015, já viajei quase dez vezes para o exterior para ser juiz em grandes eventos”, conta. Estranho abandonou a graduação em Filosofia na Unifesp e um cargo público na Secretaria Estadual da Educação para se dedicar apenas ao ofício de árbitro de Magic.

O papel das lojas

Desde seu início, a cultura do Magic esteve ligada de forma íntima às lojas que comercializam os cards e outros produtos relacionados. A loja está para o Magic assim como o campinho de bairro está para o futebol, nas devidas proporções. E se nos primeiros anos esses ambientes eram simples pontos de encontro e espaço para duelos (além da venda de produtos), hoje as lojas de Magic são verdadeiras “células” que agregam jogadores em um ambiente profissionalizado.

É nas lojas que o jogador conhece pessoas e tem contato físico, real e presencial com cartas, decks e o principal: joga Magic com diferentes pessoas. Willy emenda: “Em lojas o jogador faz amigos, joga torneios, compra suas cartas e tem chance de começar ali uma carreira profissional”.

Em uma busca no site LigaMagic, um agregador de torneios e lojas, encontrei mais de 50 lojas na cidade de São Paulo e um total de 230 estabelecimentos no estado. No site é possível também fazer busca por torneios a serem realizados – localizei 49 torneios durante todo o mês de novembro de 2015, só na cidade de São Paulo. No próprio site da Wizards of the Coast o duelista pode usar o localizador de lojas e torneios, que também retorna dezenas de resultados para a cidade de São Paulo. Ou seja: opções não faltam para o duelista iniciante, intermediário e experiente. “O jogo se chama Magic: The Gathering, e para mim o “Gathering” (“reunião”) é a grande razão do seu sucesso”, completa Willy.

Fora do circuito

Apesar da força e relativa importância da rede de lojas e da comunidade de jogo que as envolve, alguns duelistas de longa data preferem se manter à parte de todo o esquema. É o caso do também carioca radicado em São Paulo Rodrigo Esper – seu ambiente de jogo, na verdade, é a sala do apartamento que divide com amigos também duelistas na região central de São Paulo.

A experiência de Esper com o jogo – começou nos primórdios, com a jurássica Quarta Edição, que saiu no Brasil em 1995 – sem dúvida o credenciaria para estar entre alguns dos mais proeminentes duelistas da comunidade. Mas, por opção, se manteve em círculos restritos de jogo, bem no estilo “entre amigos”. “Comecei como todo mundo, na lojinha de bairro que era meio locadora, meio loja de coisas nerds, mas logo me mantive em grupinhos mais restritos, sem me envolver muito em comunidades”, conta. Esper considera que o clima de intensa disputa que permeia o ambiente do Magic de forma geral tem conotação negativa. “Não queria competir, só jogar entre amigos mesmo. Todo mundo se conhecia e sabia das cartas e dos decks de cada um”, revela.

Entendi bem o que ele quis dizer, e compartilho de certas aflições que vivi quando adolescente em ambientes assim. Há uma certa insegurança em se lidar com alguns tipos de nerds, em epecial os mais “hardcore”. “Tem um tipo de nerd que é bem difícil de se lidar, são arrogantes, chatos, não compartilham conhecimento, te desprezam. Isso faz perder totalmente o prazer na coisa”, confessa.

Esper chegou a parar de jogar em determinado momento, quando viveu uma experiência traumática: “Roubaram meu deck, o principal deck. Desanimei”. Um bom deck de Magic, com 60 cartas, diversas raras, pode ser vendido de forma avulsa por boas centenas de reais (dependendo do deck, pode chegar na casa dos quatro dígitos). Ao mesmo tempo, segundo ele, muitos dos seus amigos duelistas também paravam de jogar e vendiam as cartas. Fiz a mesma coisa em 2000, quando parei e vendi minhas cartas (e recuperei quase tudo que investi), acompanhando a tendência de todos os outros da turma. Estávamos crescendo, indo para a faculdade e “virando adultos”.

Claro, adultos não jogam Magic – ou pelo menos não gostam muito de admitir isso. Jogam futebol, sinuca e tomam cerveja, mas não jogam Magic. Como bem postulou Esper, “jogar magic não é maneiro”. Eu mesmo, na época em que jogava, mantinha minhas atividades em segredo dos amigos de escola, que preferiam andar na rua e jogar futebol. Duelos, trocas e papos de Magic só com quem também jogava e via aquilo como uma coisa legal demais, mas entendia que a maioria das pessoas não absorvia facilmente.

O hiato de Esper com o Magic durou bons anos, pontuados por uma ou outra aquisição esporádica. “Não contava para ninguém, não era uma coisa bem vista, estava velho.” Estamos velhos. A vida, também conhecida como “convenções sociais absurdas”, travestida de consciência/responsabilidade, nos cobra se aparecermos em casa com um deck turbinado para torneio, ou com aquele combo imbatível que inventamos. Não há espaço e não é maneiro. Mas a verdade é que o mundo mudou nas duas últimas décadas: o que era tido como estranho, nerd e esquisito virou cultura popular — a tal cultura pop — e jogar esse tipo de jogo, e também jogos de tabuleiro, se transformou em uma forma de entender que podemos gostar daquilo que nos agrada sem preocupações. E isso, por consequência, transformou o ato de gostar de Magic em algo cool.

A história do Esper ajuda a comprovar isso. Fotógrafo profissional e sócio de uma agência, Esper cobria eventos, festas e shows no Rio. “Foi quando descobri uma galera que jogava escondido. Cara de banda, advogado – e a gente ficava de cara, porque aquele cara era muito maneiro para jogar Magic!”. Que “a vida” me perdoe, mas se um cara de banda joga Magic e tudo bem, não sei o que eu estou fazendo da minha vida. Jogar Pokémon, quem sabe? Já joguei e foi maneiraço.

Jogo Magic e sou maneiro, sim

A imersão no mundo do Magic a que me submeti nas últimas semanas foi altamente revigorante, mesmo descobrindo o quanto o jogo mudou desde que o abandonei – principalmente porque as mudanças parecem mesmo ter sido feitas de forma consciente, planejada e visando a oferecer ao duelista diferentes formas de abordagem e de encarar o jogo como um todo.

Em 2015, Magic The Gathering completa 22 anos de existência, gozando de boa popularidade (a quantidade de lojas e torneios disponíveis não deixa mentir), mas ainda permanece oculto de boa parte do público, sendo para a maioria das pessoas que o conhece uma vaga lembrança da adolescência – ou apenas “aquele joguinho de cartas estranho que fulano brincava na escola”. Essa lembrança distante ajuda a manter o jogo no “submundo” e em níveis de popularidade bem inferiores aos que o videogame, por exemplo, alcançou nos últimos anos.

Por outro lado, Magic parece estar em um patamar bem consolidado, com sinais claros de que não vai definhar e cair no limbo dos jogos ultra alternativos – pelo menos não em um futuro próximo. Bora, então, montar um deck e jogar uns torneios?

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Cultura

Entre os muros da escola de música

Em uma estreita rua no bairro do Ipiranga, já perto de Heliópolis, um prédio grande chama a atenção entre as vendinhas e casas. Crianças não param de entrar: sozinhas, em duplas, acompanhadas pelos pais, ou vindas de um grande ônibus amarelo que para ali na frente de tempos em tempos, levando e trazendo crianças do bairro, passando pela entrada da favela até chegar ali. É lá que fica, desde 2005, o Instituto Baccarelli, que dá aulas gratuitas de música para 1.300 jovens, boa parte vindos da comunidade vizinha.

O Instituto, criado em 1996 pelo maestro Silvio Baccarelli, é inspiração para o filme “Tudo que Aprendemos Juntos”, que estreia hoje (3). Nele, Lázaro Ramos é um violinista talentoso que trava na hora de uma importante audição para a Osesp e, sem outro trabalho, aceita dar aulas na favela de Heliópolis para um grupo de 25 adolescentes que se prepara para uma apresentação para uma ONG.

Não é propriamente um filme “baseado em fatos reais”, mas tem uma proximidade grande com o trabalho do Instituto. Parte dos jovens atores vem, inclusive, de suas salas de aula, escolhidos através de testes. É o caso de Thais Plastina, contrabaixista de 22 anos, e Lucas Andrade, flautista de 20, que hoje fazem parte da Orquestra Sinfônica de Heliópolis e fazem sua estreia no cinema. Os dois eram estudantes do Instituto quando a equipe do diretor Sérgio Machado passou por lá fazendo testes, já que queria que todos os atores fossem músicos da comunidade — Lucas mora em Heliópolis e Thais, no Jardim Patente, ali perto.

 

Coral do Instituto Baccarelli
Coral do Instituto Baccarelli

O primeiro contato de Thais com a música foi por meio de um teclado dado pelo avô, que o pegou depois que alguém o jogou fora. Era tão pequenininha que nem se lembra ao certo de quando foi. Só diz que aquilo nunca foi um hobby. Desde que encostou num instrumento, soube que era aquilo que queria fazer, apesar de não ter nenhum músico na família. “Foi um susto pra eles, mas dei a cara a tapa. Era isso que eu queria.”

Ainda criança começou a cantar na igreja. Aos 14 anos, uma amiga da escola falou do Instituto, que dava aulas gratuitas de música. “Eu nem acreditei. Precisei vir ver”, diz, um dia antes da estreia do filme numa sala de aula do Instituto. Ela queria aprender a tocar cello, mas não passou no teste. A mesma amiga sugeriu que ela tocasse contrabaixo como ela, já que seu professor tinha vagas. “Pensei que depois mudaria de instrumento, mas depois você se apega. Gostei da frequência grave. Brinco que o contrabaixo me escolheu.” Para pagar seu instrumento, vendeu trufas durante um ano no Instituto.

Lucas entrou no Instituto ainda mais novo, aos oito anos — há aulas de musicalização para crianças desde os quatro anos de idade –, quando a sede ainda ficava na Vila Mariana, na casa de Silvio Baccarelli. Ele dedilhava um violão encostado em casa, até que o levaram ao Instituto. Começou na percussão e odiou. Pensou em deixar as aulas, até que ouviu uma aula de flauta e se apaixonou. Hoje, toca flauta transversal e piccolo, também da família das flautas.

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FOGO EM HELIÓPOLIS

No filme de Sérgio Machado, o professor de violino que desperta nos alunos da comunidade a paixão pela música chega lá a contragosto e não tem intenção de criar raízes. Seu objetivo é ganhar tempo enquanto não passa em outra audição para a Osesp. Na vida, foi diferente. O Instituto foi criado pelo maestro depois de um incêndio ter atingido Heliópolis. Ele viu aquilo pela televisão e quis ajudar a comunidade de alguma forma. Procurou uma escola pública da região e passou a ensinar instrumentos de orquestra a um grupo de 36 alunos em seu próprio imóvel.

Anos mais tarde, a Prefeitura lhe cedeu um terreno. A organização Pró-Vida construiu o primeiro prédio, com três andares e salas de aula e ensaio. Suas paredes são levemente curvas, o que é quase imperceptível aos olhos, para que a acústica seja a melhor possível. Um segundo prédio foi construído pela Eletrobras.

Hoje, os corredores andam cheios de crianças, que correm em grupos pelos corredores. Até chegar na porta da sala de aula. Enquanto cerca de cem jovens — de pequeninos a já adolescentes — ensaiam uma apresentação do coral com músicas de Natal para a Catedral da Sé, três meninas quietinhas olham pelo vidro e se perguntam se podem entrar, só para assistir.

Dentro das salas, as aulas são levadas a sério. Em um momento, o maestro interrompe a apresentação, quando o coral já está acompanhado por uma orquestra, e aponta para um grupo: “Ou vocês me ajudam ou saem. Não é a primeira vez que vejo vocês dando risada”. Filmados para um canal de TV, os músicos falham. O maestro para o ensaio: “Não tem TV aqui. Somos só nós aqui”. A concentração volta.

Mais de mil alunos hoje são de Heliópolis. Há dois jeitos de entrar no Instituto: para aqueles que estão iniciando e querem aprender um instrumento, é preciso ser morador da região e estar matriculado em uma escola pública. Quem tem um nível avançado de algum instrumento sinfônico pode fazer um teste para as Orquestras Juvenil e Sinfônica de Heliópolis, as únicas que permitem membros de fora da comunidade. Regida por Isaac Karabtchevsky é composta por alunos avançados do Instituto. Pelo quinto ano consecutivo, a Orquestra teve uma temporada regular de concertos na Sala São Paulo.

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DEDICAÇÃO TOTAL

Quem toca nas orquestras continua tendo aulas no Instituto e a rotina, dizem Thais e Lucas, é puxada. Há uma aula individual semanal de instrumento, há aulas de naipes e ensaios com a Orquestra. A partir de uma idade é preciso escolher entre levar o instrumento a sério e fazer outras atividades. Lucas dançava num grupo em São Caetano e o largou — assim como as aulas de computação e o futebol. O único momento em que deixaram os estudos um pouco de lado foi durante a gravação do filme, em 2012.

Todos os membros do elenco tiveram de fazer aulas no Instituto. Lucas também passou por algumas dificuldades, já que em “Tudo que Aprendemos Juntos” ele toca viola, e não flauta. “Nunca tinha tocado. Como a gente é músico, tem uma noção. Mas foi punk aprender”, conta. Hoje diz que só pega o instrumento de vez em quando. Para Thais, uma das dificuldades foi “dublar” seu instrumento. As músicas eram gravadas previamente em estúdio, pelas orquestras do Instituto, e ela tinha que fingir tocar em cena, sem encostar nas cordas. “Só fazendo aquela cara de quem está tocando”, brinca Lucas.

Embora o Instituto Baccarelli não apareça no filme, os dois dizem que ele está lá o tempo todo. As músicas foram tocadas por seus alunos, os professores deram aulas a todos do elenco (inclusive ao diretor, que diz ter sido um desastre como músico) e há muito deles mesmos ali. Tem um pouco de improviso? “Um pouco?”, Thais gargalha. “A gente não tinha roteiro!”, completa Lucas. Eles explicam um pouco melhor: Sérgio Machado tinha alguma ideia de como a cena iria se passar, mas a partir disso a bola estava com ele.

Em uma cena, Laerte, o personagem de Lázaro, pega um papel que circula entre os alunos e vê que ali estão escritas as notas da música, não como notas numa partitura, que eles não sabiam ler, mas por extenso: dó, ré, mi… Ele pergunta o que é aquilo. “O Joabe estava lá só pra acompanhar e diz: ‘ué, são notas, professor’. A gente queria dar risada, mas não podia”, lembra Lucas. Também em uma cena de sala de aula, Laerte diz que eles passarão a ter aulas de sábado. Os alunos debatem: alguns trabalham, outros têm que ajudar em casa, nem todo o mundo pode… Até que uma das meninas faz um desabafo emocionado sobre a importância daquelas aulas em sua vida. Tudo verdade, tudo espontâneo.

Lucas diz que todos os meninos do filme viraram irmãos. Ver o resultado nas telas foi o momento mais emocionante de sua vida, conta. “A gente se emociona muito com a mensagem. É um trabalho muito bonito. E se ver num trabalho desses…”, diz Thais. “A pena é que a gente vai concorrer com ‘Star Wars’.”

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Cultura

As fanfics da vida real

Anna Todd, 25, parece uma americana como qualquer outra. Às 11h já está de cílios postiços e entra na sala com um copo de Starbucks na mão e um vestido de mangas compridas num calor paulistano de 32ºC (“Vim preparada pro frio, é inverno aqui, não?”). Como outras tantas garotas, começou a publicar alguns textos na internet, escritos no celular, sem grandes pretensões. Mas o motivo da visita de Anna ao Brasil em setembro é pouco comum: lançar um dos volumes de sua série de livros — aqueles digitados no telefone –, fenômeno juvenil que vai virar filme e lhe deu um contrato de milhões de dólares. Livros eróticos com os membros da boy band One Direction.

Na internet, o cantor Harry Styles é um stalker. É também um garoto mimado num mundo distópico. Tem um caso com o companheiro de boyband Louis Tomlinson. É ainda um jovem punk, um rebelde sem causa, um apresentador de TV, um psicopata. O cantor Harry Styles é, em suma, uma tela em branco para suas fãs projetarem suas fantasias em fanfics publicadas na internet. A única semelhança entre a maioria das histórias é: Harry Styles é um deus do sexo.

Há uma quantidade absurda de textos de ficção com os cantores da banda — principalmente Harry, o mais conhecido — por aí. Dá para achar os tradicionais textos de comédia romântica, mas também de terror, ficção científica, ação ou religiosos. Nenhuma novidade aí: ler e publicar fanfics na internet é comum entre pré-adolescentes desde pelo menos o início dos anos 2000, auge da era Harry Potter. Mas agora a moda é escrever sobre ídolos reais. E mais: essas ficções, vistas como gênero literário menor, mostram que podem virar livros best-sellers.

A trama de Anna Todd, “After”, era só mais uma nesse mar de histórias e — sucesso à parte — é um caso clássico de como funciona o universo das fanfics. Anna era uma fã da banda, leitora de outras fanfics, que começou a escrever sem grandes planos, um capítulo de cada vez, contando com os comentários de outros leitores. Mas sua história foi crescendo, crescendo, até ser visualizada mais de 1 bilhão de vezes no site de autopublicação Wattpad.

“Há tantas fanfics de One Direction. Até mais que de ‘Crepúsculo’”, diz Anna, citando outro fênomeno juvenil que inspirou, por exemplo, “Cinquenta Tons de Cinza”, de E.L. James. Ela era uma leitora ávida até que se encontrou sem novos capítulos das histórias que acompanhava e resolveu começar sua própria trama. “Eu escrevia ‘imagines’, sabe?”, conta, falando tão rápido que digo que sim antes mesmo de pensar a respeito. Para os não iniciados, uma pequena explicação: são histórias curtas, às vezes de um parágrafo, publicadas no Instagram ou no Tumblr.

Quando teve uma ideia para uma história maior, migrou para o Wattpad. “As ideias surgiam enquanto eu ia escrevendo, eu não tinha noção de para onde estava indo”, diz. Logo Anna passou a escrever loucamente em seu celular (digita mais rápido no telefone do que no computador, afirma) por até seis horas ao dia. “Eu não fazia mais nada. Meu marido me perguntava se eu queria ir ao cinema e eu dizia que estava ocupada. E ele não sabia o que eu estava fazendo, só achou que eu fosse obcecada por meu telefone.”

Anna tentou manter a atividade em segredo, pois tinha medo do que as pessoas diriam se descobrissem que ela passava tanto tempo escrevendo ficção sobre One Direction. Diz que fanfics já não têm tanto prestígio, e que mesmo entre essas ficções os textos sobre a boyband são malvistos. Foi só quando começaram a fazer matérias sobre ela que resolveu contar para o marido e amigos. E, para sua surpresa, ninguém ligou.

 

Anna Todd. Crédito: JD Witkowski/Divulgação
Anna Todd. Crédito: JD Witkowski/Divulgação

CHRISTIAN STYLES

Sua premissa é bem simples e lembra bastante, em certos pontos, a de “Cinquenta Tons de Cinza”, que teve trajetória parecida com a sua — saiu na internet, foi publicada por uma editora e depois virou filme. Tessa é uma jovem virgem, super careta, que deixa a casa da mãe para ir à faculdade. No primeiro dia por lá, conhece Harry Styles, estudante punk, todo tatuado, do tipo difícil e que não cultiva relacionamentos — até conhecer Tessa (Christian Grey, é você?).

Os capítulos publicados no Wattpad são curtos, para ler em cinco minutos. Quem encarou “Cinquenta Tons” sabe mais ou menos o que esperar: diálogos que beiram o constrangedor e cenas de sexo que não são lá super sexy, mas algo te leva a seguir em frente. Quando você vê, gastou duas horas do seu dia com o casal Hessa, como a dupla ficou conhecida entre os fãs.

Anna diz que demorou para perceber o sucesso que tinha em mãos, apesar de os números não pararem de crescer. O baque veio quando descobriu que haviam criado contas nas redes sociais para seus personagens. Havia o perfil de Tessa, o perfil de Harry, e os dois conversavam como se existissem de verdade. “Como uma fã da banda, sei que quando essas contas aparecem o negócio é grande”, diz. “A conta do Harry no Instagram tinha 25 mil seguidores e eles atualizavam a cada capítulo. Foi aí que vi que os leitores estavam se dedicando à história.”

No Wattpad, pessoas se identificando como agentes literários começaram a procurá-la. “Podia ser real, mas eu pensava: que tipo de pessoa louca iria publicar uma fanfic de One Direction? Eu não respondia, simplesmente ignorava”, lembra. Mas, nos comentários, viu que alguns leitores estavam imprimindo a história para ler no papel e pensou em fazer exemplares para quem quisesse, cobrando apenas o preço de custo. Comunicou a decisão no Twitter e 24 horas depois funcionários do Wattpad mandaram uma mensagem, dizendo que queriam entrar no negócio. Falaram com algumas editoras, Anna foi a Nova York e optou por uma. “Achei que todos os escritores tivessem o privilégio de escolher. Não é verdade.”

MULTIDÃO DE EDITORES

A única exigência que Anna fez foi manter a versão virtual no ar. “A maioria das pessoas tira suas histórias da internet [quando o livro é publicado por uma editora]. A E.L. James tirou. Respeito totalmente essa decisão, cada um tem suas razões, mas acho que o único motivo para o livro ter ficado tão grande foi o fato de que as pessoas estavam lendo. Seria estranho tirar do ar”, diz. “Meu contrato com a editora me permite postar uma parte dos meus próximos quatro livros no Wattpad. As pessoas devem pagar por livros, mas muita gente não pode. Acho importante que eles estejam disponíveis de graça.”

Escrever no Wattpad, em sua opinião, tem como vantagem dar ao escritor uma multidão de editores, fazendo comentários sobre a trama e apontando pequenas discrepâncias que ela não tinha notado — como a cor do carro de Tessa, que era diferente em vários pontos da história. “Geralmente o livro passa pelo editor. O meu foi direto para o público. Eu gostei, porque eu meio que sabia o que estava fazendo, mas não o tempo todo”, ri.

O Wattpad é uma das poucas redes sociais em que quase todos os comentários são positivos, avalia. “Mesmo que fosse algo negativo, normalmente as intenções são boas. Às vezes aparecem uns loucos, mas isso acontece em todo lugar”, diz. “Todo o mundo está lá porque ama ler e escrever. Então não tive medo.”

Quando o texto passou por um editor de verdade, várias pequenas coisas tiveram de mudar para deixar o texto mais com cara de livro e menos com cara de ficção de fã. “Em fanfic você tem liberdade para colocar coisas que não importam para a estrutura da história”, diz. O livro tem mais sexo e “linguagem vulgar”, porque no site crianças poderiam parar ali sem querer. E o fim é diferente, já que ela tinha odiado o desfecho da internet. “Felizmente pude fazer tudo de novo.”

HARRY PUNK

Entre todos os garotos da banda, Harry Styles é o protagonista mais recorrente das fanfics. Por que Harry? “Não faço ideia, de verdade! Geralmente quando leio ficção de One Direction eu prefiro Zayn [Malik]. Mas quando comecei, por alguma razão, ninguém mais me veio à cabeça. Foi estranho.” E, mais importante, por que um Harry punk? “Na época estava na moda a edição punk. As pessoas pegavam fotos dos caras da banda e colocavam tatuagens. Isso antes de eles se cobrirem de tatuagem na vida real. Hoje Harry tem um monte, mas lá atrás só tinha umas duas”, lembra.

Além de achar que ele ficava gato daquele jeito, pensou que teria uma liberdade maior como autora se o personagem não fosse tão parecido com o Harry da vida real. “Eu gosto de fanfics de universos alternativos. Com uma versão oposta, como um Harry punk, posso ser mais criativa. Ele poderia ser totalmente louco por ser tão diferente do Harry real”, explica.

Os textos de fãs sobre One Direction frequentemente deixam de lado a personalidade dos cantores, que são usados apenas pelas suas características físicas. Diferente, por exemplo, das ficções de Harry Potter: apesar de haver algumas mudanças em relação à história de J.K. Rowling (Draco Malfoy gay era uma versão popular), a essência dos personagens era geralmente parecida com a dos livros.

Na versão impressa de “After”, inclusive os nomes dos personagens foram trocados por razões legais. Embora seja permitido criar histórias fictícias sobre celebridades, não se pode vender mercadorias com o nome delas sem sua autorização. Enquanto Anna não ganhava dinheiro, publicando na internet, não havia problema. Mas não poderia usar o nome Harry Styles no livro.

A questão do uso de pessoas reais em livros de ficção não diz respeito só a escritores de livros juvenis. Recentemente, a atriz Scarlett Johansson se envolveu em uma disputa legal pelo uso de seu nome em um livro do francês Grégoire Delacourt. Em “La Première Chose Qu’on Regarde” (a primeira coisa que vemos), o protagonista conhece uma mulher que acredita ser Scarlett. Não se trata, entretanto, da atriz, e sim de uma sósia, com a qual ele começa um relacionamento. Na França, o livro vendeu mais de 140 mil exemplares.

A atriz processou o escritor no ano passado, afirmando que o livro era uma exploração fraudulenta e ilegal de seu nome, sua reputação e sua imagem, e que havia afirmações difamatórias sobre sua vida pessoal. Seu objetivo era impedir a tradução do texto ou uma adaptação para o cinema. Em agosto, porém, suas demandas foram rejeitadas e o livro pôde ser traduzido para o inglês. O juiz concedeu que houve um ataque à sua imagem quando o autor cita dois relacionamentos que ela não teve na vida real e, por isso, ganhou 2.500 euros e uma nova edição do livro sem esses trechos. Delacourt, por sua vez, afirmou que a referência à atriz foi bem-intencionada.

Para evitar esse tipo de problema, Anna tirou os nomes dos cantores, embora toda a publicidade do livro tenha girado em torno do fato de que ele falava do One Direction. Mesmo com essa omissão, alguns fãs da banda não gostaram de ver seu ídolo Harry Styles retratado como um cara tão problemático. “No começo, quase todos os fãs da banda gostavam. Foram eles que fizeram o livro o que é. Mas quando eu fui ficando famosa, eles passaram a se voltar contra mim”, afirma. “Mas são pessoas muito jovens. E não levo as críticas a sério, porque antes elas gostavam e só pararam de gostar porque era ‘cool’ não gostar. Os fãs de One Direction são conhecidos por serem maus na internet.”

Agora, Anna vive o mundo viajando, escrevendo outros livros (inclusive uma versão da história sob o ponto de vista de Harry, tal qual E.L. James fez com “Cinquenta Tons de Cinza”) e acompanhando a versão cinematográfica — na qual não tem direito de palpitar, apesar de agradecer a roteirista por deixar que ela o faça mesmo assim.

Em cada lugar diz ter uma experiência bem diferente. Na Alemanha, por exemplo, seus fãs são homens mais velhos. “Não sei por quê. Cheguei numa sessão de autógrafos e achei que eles fossem pais das meninas, mas não.” Nos países latinos também encontra mais garotos. “Tem uns dez meninos em cada sessão. Nos Estados Unidos tem sempre só um.” E, para provar que fanfic de celebridade não é só coisa de garota, na França encontrou um rapaz de 25 anos que disse imaginar Taylor Swift como Tessa, assim como as meninas veem o protagonista como Harry Styles. “Achei demais.”

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Televisão

As heroínas estão chegando

Em meio aos e-mails sigilosos da Sony Pictures vazados no ano passado, um datado de 7 de agosto listava três exemplos de filmes de super-heroínas que haviam sido um fracasso: “Elektra” (“péssima ideia com resultado muito, muito ruim”), “Mulher-Gato” (“desastre”) e “Supergirl” (“outro desastre”). Com o assunto “filmes femininos”, o e-mail de um executivo para outro procurava provar que, no mundo dos super-heróis, mulheres devem se limitar a papéis coadjuvantes.

Pouco mais de um ano depois, porém, o jogo virou. Este mês, em que o feminismo é o tema do momento no Brasil, marcou a estreia de duas séries praticamente opostas protagonizadas por super-heroínas: “Supergirl”, no ar na Warner, e “Marvel’s Jessica Jones”, que estreou recentemente no Netflix.

Em comum, as duas produções têm uma característica: embora as mulheres se apaixonem (Supergirl) e façam muito sexo (Jessica Jones), seus mundos não giram em torno de homens. Há romance, mas elas estão bem longe de ser comédias românticas. De resto, as duas produções atendem a diferentes tipos de público. Enquanto “Supergirl” é solar, feita para ser vista comendo pipoca num domingo à tarde (algo como “The Flash”, também da Warner), “Jessica Jones” é soturna e super tensa (não por acaso, mais parecida com “Demolidor”, também do Netflix).

Das duas, “Supergirl” é quem faz mais questão de explicitar seu feminismo. Kara (Melissa Benoist) é prima de Clark Kent, o Super-Homem, e foi enviada à Terra com ele para protegê-lo quando ele ainda era um bebê. Sua viagem espacial, no entanto, dá errado e ela passa 24 anos vagando em uma zona na qual o tempo não passa. Quando ela finalmente chega, Clark já é adulto, enquanto ela ainda tem 13 anos. Os papéis se invertem e é ele quem, para ajudá-la, a coloca em uma família humana para que ela viva uma vida normal.

Kara arruma um emprego de assistente em uma grande empresa de mídia cuja dona (fato raro na vida real) é uma mulher: a casca-grossa Cat (Calista Flockhart), uma aprendiz de Meryl Streep em “O Diabo Veste Prada”. “Achei que seria legal trabalhar para uma figura feminina poderosa”, diz Kara logo no início, na primeira de várias frases que exaltam o poder de mulheres fortes de influenciar as outras.

Quando Kara vê na televisão que o avião em que viaja sua irmã está prestes a cair, ela resolve usar seus poderes depois de anos para salvá-la. Ao se dar conta do que é capaz de fazer com suas habilidades, ela sorri, legitimamente contente por ter feito o bem. Já é tarde para proteger Clark, pensa ela, mas há um planeta todo cheio de pessoas indefesas a quem ela pode ajudar.

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Na escolha do uniforme, a série não deixa de alfinetar as tradicionais produções de super-heróis e suas mulheres espremidas em roupas justíssimas, pouco funcionais para lutar. “Eu não usaria isso nem para ir pra praia”, responde Kara quando lhe apresentam um uniforme que lembra a clássica roupa da Mulher Maravilha, mas com mais pele à mostra. Kara também questiona o nome “supergirl” (super menina, vejam bem, e não mulher). Obviamente a série não poderia trocar o nome da personagem, então explicam a escolha assim: se você acha que uma menina é algo menos que incrível, o problema é você.

Outras questões feministas são abordadas logo no primeiro capítulo: a novidade que é finalmente ter uma super-heroína forte para meninas se espelharem, o fato de mulheres não serem levadas a sério por alguns homens e às vezes temerem ser assertivas para não desagradar ninguém — como Jennifer Lawrence declarou recentemente em uma carta explicando como se sentiu após descobrir que ganhava menos que seus colegas homens.

Não se trata, porém, de uma série que bate somente na tecla da desigualdade de gêneros. De cara Kara se interessa pelo fotógrafo James Olsen (Mehcad Brooks), preenchendo o campo “romance” inevitável nessas séries mais leves. Há também boas sequências de ação, indispensáveis para uma produção do gênero. No episódio de estreia Kara descobre que uma nave cheia dos alienígenas mais perigosos do espaço caiu na Terra quando ela chegou. A série dá a entender que seguirá o esquema “vilão da semana”, com a Supergirl enfrentando um antagonista diferente a cada episódio.

É muito cedo para dizer se “Supergirl” será um sucesso, mas os primeiros resultados de audiência nos Estados Unidos mostram que nada impede que uma série protagonizada por uma super-heroína dê certo. Na primeira semana, foi a série nova mais vista da temporada, com 12,95 milhões de espectadores. Na semana seguinte, houve uma queda e 8,86 milhões a assistiram, mas ainda é um número longe do desastre previsto pelos executivos da Sony.

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Jessica Jones e sua amiga Trish Walker. Crédito: Divulgação

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FORÇA BRUTA

Enquanto “Supergirl” afima com todas as letras que está ali, sim, para discutir questões de gênero, “Jessica Jones” adota uma abordagem menos literal. “Supergirl” é o primeiro passo. Precisa ser tão didática e reforçar o tempo todo como é pouco usual ter uma super-heroína? O ideal é que no futuro isso seja tão normal que não seja mais uma questão e que esse “quer que eu desenhe” seja desnecessário. Mas por enquanto, a série tem suas razões.

Jessica Jones” é o próximo passo. Em nenhum momento alguém estranha o fato de Jessica conseguir parar um carro em movimento ou alcançar a varanda de um prédio com um pulo. Ninguém se espanta por ela ser mulher, ela não reforça sua feminilidade e seu gênero não é mencionado uma só vez. Mas é impossível ver a série e não ter certeza de que mulheres podem ser tão fortes, em todos os sentidos, quanto homens.

LEIA MAIS: Jessica Jones, a anti-heroína que merecemos

Nos quadrinhos da Marvel, Jessica Jones é uma personagem que atuou como a heroína Safira, fazendo uma pequena participação no grupo dos Vingadores. Depois de atacar a Feiticeira Escarlate a mando de Kilgrave (o Homem-Púrpura), que a controlava mentalmente, ela é agredida  e entra em coma. Após despertar, ela larga a vida de heroína e abre uma agência de investigações e procura levar uma vida normal.

A série traz algumas mudanças em relação aos quadrinhos e acompanha a rotina de Jessica (Krysten Ritter) após seu período como super-heroína. Ela toca seu negócio de investigação sofrendo de transtorno do estresse pós-traumático depois de Kilgrave ter feito com que ela cometesse atos horríveis. Depois de descobrir, no episódio de estreia, que ele não está morto como ela pensava, Jessica resolve que sua missão será encontrá-lo e acabar com ele.

Diferente da Supergirl, que é doce e só quer fazer o bem, Jessica é perturbada pelo passado, enche a cara, transa com desconhecidos, e se pudesse cairia fora dali para levar uma vida normal. Jessica é uma mulher como outra qualquer, cheia de defeitos, mas calhou de ter super-poderes. O fato de não ser perfeita a torna ainda mais interessante. Se é comum vermos homens complexos como Don Draper (“Mad Men”) e Walter White (“Breaking Bad”), o mesmo não se podia dizer, até pouco tempo, das mulheres. Jessica é um refresco.

As cenas de luta também diferem bastante das de “Supergirl”. Lá, a heroína voa, enxerga através de portas, ouve tudo, solta raios pelos olhos, tem uma força descomunal. Tudo nela é “super”. As batalhas são cheias de efeitos e fica claro que aquilo nunca, nunca aconteceria no mundo real. Jessica é mais vulnerável. Ela é extremamente forte, mas basta uma bala para pará-la. Suas brigas são no corpo a corpo e embora a gente saiba que a vantagem dela, há uma sensação de que tudo pode acontecer.

Basicamente, as duas séries têm pouco em comum. “Supergirl” é daquelas que você pode passar um mês sem ver e retomar depois, tranquilamente, quando quiser se divertir um pouco. Já “Jessica Jones” é tão eletrizante que dá para ser vista toda num fim de semana. São séries para públicos e momentos distintos, o que é bom. Tanto uma quanto outra provam que a Sony se equivocou. Desde que seja bem feita, não importa se a produção tem um super-herói ou uma super-heroína.

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Bem-vindos ao Risca Faca!

Chega mais. Hoje é um dia de festa pra gente, e queremos que seja para vocês também.

O Risca Faca é o novo site de cultura e comportamento da F451. A gente sabe que a internet é grande e já tem muita coisa rolando por aí, mas acreditamos que há espaço para certos conteúdos que sentimos falta em nosso cotidiano: jornalismo aprofundado, grandes histórias, personagens interessantes, análises incomuns. Sim, a internet é enorme, mas sempre há histórias incríveis que ainda não foram contadas.

Queremos fugir da cobertura que somente acompanha o ritmo das redes sociais. E queremos mostrar novas histórias, e novas formas de contá-las – pode ser em áudio, em quadrinhos, em vídeo. E ao mesmo tempo, como o nome sugere, não queremos ser sisudos nem cabeçudos – a gente curte um forró às 6h da manhã no Largo da Batata e isso também é uma forma de explicar o que queremos por aqui.

Para fazer isso, contamos com uma rede de colaboradores de várias partes do Brasil, de todos os tipos e estilos, que estão produzindo matérias e histórias que nos deixaram bastante orgulhosos. Leandro Demori, Peu Araújo, Taís Toti e Bolívar Torres são alguns dos jornalistas que você vai encontrar nos primeiros dias do Risca Faca. Assim como os fotógrafos Felipe Larozza e Lucas Lima, a artista Barbara Scarambone e o ilustrador Issao Nakabachi.

De cara, recomendo a leitura do nosso dossiê sobre a febre dos trenzinhos. O repórter Felipe Maia e o fotógrafo Felipe Larozza viajaram pelo interior de São Paulo para entender, e explicar, esse fenômeno que gera comoção entre as pessoas e, ao mesmo tempo, é pouco conhecido para muita gente. Na entrevista da Fernanda Reis, Lourenço Mutarelli conta como começou a acreditar em sereias. E também temos os conteúdos que já foram publicadas no Gizmodo Brasil, nosso site-irmão-mais-velho – recomendamos esta sobre nudez e o mergulho do repórter Marcelo Daniel pelo mundo de League of Legends.

Ficamos bem felizes também com o visual do site: imagens grandes, fonte boa para leitura e sem muita firula. Nessa seara, agradecemos bastante o trabalho da Datadot e da Haste, e também da Casa Rex, que assina nossa identidade visual – sem esquecer, claro, toda a equipe da F451.

Tem muita coisa boa na manga e esperamos que vocês aproveitem. O site ainda não tem comentários porque não encontramos a ferramenta ideal, e estamos esperando o surgimento de uma, tipo o Civil Comments. Enquanto isso, toda e qualquer sugestão, crítica, elogio, bate-papo, GIF animado, pode ser enviada pra mim: leo@riscafaca.com.br. Isso também se estende a ideias de pauta.

Sem mais blábláblá: seja bem-vindo! E não esqueça da canção popular: “foi no Risca Faca que eu te conheci”.

De bar em bar,
De mesa em mesa
Bebendo cachaça,
Tomando cerveja.

Foi assim, que eu,
Te conheci…

Olha que foi no Risca Faca,
Que eu te conheci
Dançando, enchendo a cara,
Fazendo farra,
Tô nem aí

Foi no risca faca,
Que eu te conheci
Dançando, enchendo a cara,
Fazendo farra, tô nem aí…

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Cultura

MC Soffia, 11: “Duro é seu preconceito”

São 15h10 de uma terça-feira e cerca de 200 pessoas estão acomodadas num auditório da Fábrica de Cultura da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, enquanto o rapper Thaíde se apresenta. O show vai bem, o cantor caminha pela plateia, há um clima meio família no ar. Mas a coisa esquenta mesmo quando Thaíde diz, depois de três músicas, que tem uma convidada. “Quem vem aí?”, pergunta ele. E o público urra em coro: “Soffia!”.

Em meio a palmas e gritinhos, Thaíde fala: “É uma honra apresentar… Apresentar não, porque ela já é conhecida. Mas é uma honra ter aqui a MC Soffia!”. Parte do público — maioria de crianças e pré-adolescentes — fica de pé para receber Soffia, menina de 11 anos que entra no palco como se o fizesse há anos. Com um laço azul no cabelo black power, MC Soffia chega comandando a massa: “Todo o mundo de pé, família!”. Seu pedido é prontamente atendido.

MC Soffia é diferente dos também jovens MCs Pedrinho, Brinquedo, Pikachu e Melody, que cantam um funk mais pesadão, com citação a uma penca de drogas e muita putaria. O negócio de Soffia é hip hop, com rimas feministas que exaltam a cultura negra. Antes de chamar Soffia ao palco, Thaíde diz que cantar é divertido, mas que é um trabalho “responsa”. A música tem que ter algo positivo, algo a dizer que as pessoas precisem ouvir. Soffia tem a mesma filosofia.

Seus primeiros versos são “joga a mão pra cima pra entrar no clima” e depois vêm “na escola eu apavoro e só tiro dez”, “represento as crianças e o público feminino”, “África, onde tudo começou, África, onde está meu coração”, “eu sou negra e tenho orgulho da minha cor”. As crianças na plateia respondem dançando, cantando junto e tirando fotos enquanto Thaíde e os MCs que o acompanham ficam ao fundo do palco, fazendo backing vocal, claramente se divertindo enquanto Soffia manda suas rimas. “Eu me encho de alegria ao ver uma menina dessa idade falando da sua negritude”, diz ele.

Aí vem o hit de Soffia, “Menina Pretinha”, cujo refrão resume sua mensagem: “Menina pretinha, você não é bonitinha. Você é uma rainha”. Nessa hora, a cantora chama “quem tiver coragem” para subir no palco e dançar com ela. Entre os voluntários há meninos e meninas, que acompanham a rapper até o fim da canção. Thaíde toma de novo a frente e diz que o que falta no mundo hoje é respeito e o reconhecimento de que todos somos iguais. O show continua, mas Soffia sai do palco e o assédio do público começa.

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Crédito: Rodrigo Esper

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No caminho para o camarim, algumas crianças pedem para tirar selfies com ela. Sorridente, atende todos. Chega então uma mulher, que diz que só tirou na vida fotos com dois cantores antes dela: Chico César e Luiz Melodia. Ela fala para Soffia que só quer registro de artistas que admira. Diz ainda que tem um projeto educacional e adoraria que a cantora falasse com seus alunos, já que ela tem tanto a dizer.

Na fila para falar com ela tem também um fotógrafo, que pede para fazer só quatro fotos, prometendo que é rápido. O tempo é curto, ela tem mais gente para atender (entrevistas, fãs, outros fotógrafos), mas ela topa, desde que seja ali mesmo no camarim. Sorri e faz pose de modelo — apoia o pé na parede e coloca as mãos na cintura. “Ergue o queixo”, pede o fotógrafo. Ela ajusta a pose rapidamente e se senta para conversar.

Começa a responder a primeira pergunta quando abrem a porta do camarim: “Soffia, o Thaíde está te chamando pra voltar pro palco. Desce lá um minutinho?”. Ela pede licença e continua a jornada de trabalho. E era só o começo da semana: ela ainda se apresentaria com Thaíde até a outra segunda, com folga apenas no sábado, em outras Fábricas de Cultura — Capão Redondo, Brasilândia, Jardim São Luís e Jaçanã — e em Araras, no interior de São Paulo.

CRIANÇAS DO HIP HOP

De volta ao camarim Soffia conta que sempre gostou de música. “Meu biso tocava vários instrumentos de corda, e eu comecei a cantar quando tinha seis anos”, diz. Como ídolos musicais, cita várias mulheres negras: Beyoncé, Nicki Minaj, Rihanna, Jennifer Lopez, Karol Conká, Flora Matos, Divas do Hip Hop. “Gosto de todas as mulheres que cantam”, resume, depois de pensar um pouco. Entre homens cita Dexter, Racionais, Jay Z.

Sua mãe, Camila Pimentel, foi quem a apresentou ao hip hop. “Eu frequentava os eventos. Trabalhava na Coordenadoria dos Assuntos da População Negra [da Prefeitura de São Paulo] e procurava levar a Soffia. Sempre levei em shows, eventos culturais de hip hop”, conta.

Soffia sempre gostou de cantar. “Mas não assim, em lugares. Cantava em casa.” Foi quando fez uma oficina do projeto Futuro do Hip Hop — que dá aulas de MC, DJ, dança break — que começou a fazer isso em público. Viu seu amigo Tum Tum, outro MC mirim, cantando e quis fazer o mesmo. Aos sete anos, tomou gosto pela coisa.

[citacao credito=”Mc Soffia” ]Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito[/citacao]

Depois, entrou para o coletivo Hip Hop Kidz — formado por sua mãe –, que desenvolve o intercâmbio cultural com crianças e jovens da periferia e que conta com seis rappers mirins. “Nas periferias tem muitas crianças sem perspectiva, que não têm oportunidades, referências ou acesso à cultura”, diz Camila. “Criei esse projeto com algumas crianças que eu já conhecia, trabalhando os quatro elementos do hip hop. Fui contemplada por um edital e fizemos um circuito pelas periferias de São Paulo. Mas não consegui mais incentivo e eu preciso disso pra transporte, alimentação, ajuda de custo.”

Na plateia dos shows, conta Camila, havia uma maioria de crianças, sempre interessadas. “Elas viam uma possibilidade de um futuro diferente, uma outra possibilidade de vida na periferia.” Às vezes o grupo ainda faz shows, mas não com tanta frequência. “Está meio parado, já mandei o projeto pra dois editais. Mas é acertar na loteria, não é garantido.”

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Crédito: Rodrigo Esper

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Com o Hip Hop Kidz, Soffia começou a fazer seus primeiros shows. Só recentemente passou a se apresentar sozinha. Foi se apresentando com o grupo, inclusive, que conheceu Thaíde. “Fiz um show na Praça das Artes e encontrei com ele. A gente começou a conversar. A mulher dele ligou depois pra minha mãe pra falar desse show. Vai ter a semana inteira”, diz, animada.

Antes de subir no palco sente “muito, muito medo”. Quando está lá, porém, o nervosismo passa. “No palco é normal”, afirma. Minutos antes havia mostrado que tem mesmo jeito pra coisa: pedia para a galera ficar de pé e bater palmas, apontava o microfone para a plateia na hora de seus refrões e puxava coros.

Está se acostumando à rotina cheia, às sessões de foto e às entrevistas. “Fui na Fátima agora”, conta, referindo-se ao programa “Encontro com Fátima Bernardes”, na Globo, para o qual foi chamada em setembro. Naquele mês, também foi a Brasília ao ser convidada pelo Ministério da Educação para abrir um seminário internacional de direitos humanos e desenvolvimento inclusivo.

DURO É SEU PRECONCEITO

No começo, as letras de Soffia eram escritas nas oficinas. Agora já começa a compor suas próprias rimas sozinha. “Estou fazendo uma que diz que não tem essa de brincadeira de menino e de menina”, conta. As letras exaltam o estudo, falam do empoderamento feminino e da cultura negra. Quando era mais nova, Soffia sofreu racismo na escola e disse para a mãe que queria ser branca. Camila conversou com ela e hoje Soffia exibe orgulhosa o cabelo black power. “Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito” é a resposta da menina para racistas.

O feminismo também tem o dedo da mãe. Elas estavam em Maceió quando se depararam com um livro sobre mulheres que fizeram história no Brasil, do qual ela não se lembra o nome. “Ela leu o livro e eu disse que ela poderia aproveitar e fazer uma pesquisa mais aprofundada sobre alguma dessas mulheres”, diz Camila. “Falei: ‘Você escolhe algumas delas pra citar na sua música’. Ela pesquisou algumas e agora está pesquisando sobre outras.”

Os estudos sempre foram estimulados em casa. “Crianças da periferia não costumam ter esse incentivo. Sempre incentivei ela a ler, a interpretar texto. Fiz isso dentro de casa até perceber que ela tinha criado o gosto. A professora dela diz que ela é uma das poucas alunas que faz as pesquisas e depois dá seu parecer”, conta a mãe. “Ainda hoje eu falo pra ela: vamos pegar um livro aí.”

A matéria favorita de Soffia na escola, não por acaso, é história, diz ela sem titubear. “Estudo bastante, gosto muito de pesquisar.” E só tira dez como diz na música? “Aham”, sorri. Ela confirma o depoimento da mãe e conta que gosta de pesquisar particularmente a história de mulheres negras. “Estudo Anastácia, Clementina de Jesus, Carolina de Jesus, Chica da Silva, Cleópatra. Já pesquisei sobre todas elas” — todas as mulheres são citadas em suas canções. Na escola, diz, é só Soffia e não MC Soffia. Todo o mundo sabe que ela canta e faz shows, mas lá é uma criança como as outras.

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Crédito: Rodrigo Esper

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Agora, Soffia faz uma campanha na internet para arrecadar fundos para seu primeiro disco, chamado “Menina Pretinha”. Entre seus planos para o futuro mais distante está continuar a cantar, mas também quer ser médica e trabalhar como modelo e atriz. “Agora eu falo tudo isso, mas vamos ver quando eu crescer”, ri. Por enquanto quer estudar medicina para poder ajudar as pessoas, e quer atender especialmente negros e índios. “Eu quero dar medicamentos, fazer hospitais melhores. Quero ser uma médica negra.”

A essa altura da conversa, Thaíde e o resto dos músicos já estão no camarim e Soffia tem muito o que fazer. Vai posar para fotos com os companheiros de palco e depois atender as crianças que fazem fila para dar um oi para ela. Antes de a porta se fechar, ainda dá tempo de ouvir Thaíde elogiar a garota. “Mandou ver, hein, Soffia!”

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As mil faces de Lourenço Mutarelli

Lourenço Mutarelli é um homem de múltiplas identidades. Neste ano, foi homenageado no prêmio HQ Mix por seu trabalho como quadrinista, interpretou um artista plástico no filme “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, e lançou o romance “O Grifo de Abdera” — que gira justamente em torno da multiplicidade de identidades de Lourenço Mutarelli.

No livro, Mutarelli é pseudônimo (e anagrama) de Mauro Tule Cornelli, escritor que contrata Raimundo Maria Silva, presença habitual no boteco que frequenta, para ser o “rosto” de Mutarelli. Mauro escreve, Raimundo aparece em fotografias e dá entrevistas. Depois de ganhar em circunstâncias misteriosas uma moeda antiquíssima — conhecida como o Grifo de Abdera –, Mauro descobre que “é” também o professor e quadrinista Oliver Mulato. Uma conexão entre os dois permite que Mauro entre nos pensamentos de Oliver e observe sua vida à distância. No “Grifo”, o Mutarelli que conhecemos é composto por essas várias facetas. Publicado pela Companhia das Letras, o livro é, aliás, assinado por ele com Mauro, Raimundo e Oliver.

“O Grifo de Abdera” é pura autoficção. Há ali muita coisa que vem realmente da biografia de Mutarelli: os quadrinhos que desenhou, os romances que escreveu, viagens que fez, e até algumas de suas peculiaridades, como um gosto por pornografia dos anos 1970. A moeda grega com um grifo em uma das faces também é real e deu origem à história toda. “Eu a encontrei numa feira de antiguidades, sem saber o que era, pesquisei e achei interessante. Basicamente foi isso”, conta, sobre sua ideia inicial.

Outra grande parte é fantasia. Mutarelli é uma pessoa real, e o escritor não consegue entrar na mente de ninguém — pelo menos até que se prove o contrário. Para quem não o conhece bem, porém, reconhecer o que é o que é um desafio. O próprio Mutarelli confessa, rindo, ter dificuldades em precisar o quanto de si colocou nos personagens — Mauro, o escritor em crise existencial, Oliver, o acomodado numa vida miserável, Raimundo, o bêbado narcisista. “Vou descobrindo conforme escrevo. O Mauro Tule foi ganhando uma dimensão muito grande, muito interessante. Ele é muito diferente de mim em muitos aspectos. Mas a gente está muito misturado, ao mesmo tempo”, reflete. “Tem verdades no meio de tudo isso.”

Dividido em três partes, o livro contempla duas das facetas de Mutarelli: o quadrinista e o escritor. O terço do meio é preenchido por uma história em quadrinhos que, na ficção, é uma obra de Oliver. Personagem e autor compartilham inclusive o método de trabalho. Como Oliver, Mutarelli assistia a um filme, congelava uma cena, a esboçava muito rapidamente, ouvindo música (como faz sempre para desenhar), tentando escrever algo sem pensar muito.

“O quadrinho era uma experimentação que eu queria transformar em texto de alguma forma”, diz. Começou a fazê-lo antes mesmo de saber que escreveria um romance. Acabou gostando do resultado e resolveu publicá-la como quadrinho mesmo, como uma história dentro da história. O resto do volume é escrito como se fosse uma história de Mauro Tule, que desempenha o papel do romancista.

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Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

REALIDADE E PRAZER

Na ficção, nem o romancista nem o quadrinista são plenamente realizados. Já para Mutarelli, não há dúvidas: entre as duas atividades, a literatura é que lhe dá mais prazer. “O processo, a pesquisa, o pré-livro. Começar a pensar e esboçar isso. Gosto muito mais. Não tenho mais essa disposição de trabalhar tantas horas pra fazer quadrinhos. Faço alguns, como fiz esse [do livro], mas coisas muito experimentais, pra mim. Nem pretendo publicar a maioria.”

[olho]”Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido”[/olho]

Mutarelli conta que a vontade de escrever romances nasceu depois de ler “Capão Pecado”, de Ferréz. “Ele escrevia de uma maneira simples e tocante. Aquilo que eu estava lendo era o que mais se aproximava da realidade, pra mim. Mais até que o cinema. É a ilusão que a gente busca”, diz. “Me deu muita vontade de tentar evocar imagens através da palavra, construir essa atmosfera. Quando escrevo literatura vou muito mais fundo do que quando trabalho com quadrinhos.”

Em “O Grifo de Abdera”, Mauro impressiona Oliver dizendo ser impossível viver de livros no Brasil, já que escritores levam apenas 10% do preço de capa de cada volume vendido. É uma questão real que Mutarelli, que dá oficinas de quadrinhos, enfrenta. “Tenho vários amigos escritores. Tipo Paulo Lins, Marcelino [Freire], Marçal [Aquino], Ferréz. Nomes importantes. Não conheço nenhum que viva da literatura. Todos vivem de oficina, de escrever pra algum lugar, geralmente na Globo ou em algum canal, produzindo roteiros ou alguma coisa assim”, afirma.

Viver de quadrinhos é ainda mais difícil. “O valor é o mesmo, mas a quantidade de trabalho é absurdamente maior. Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido.”

Desde que começou a publicar HQs, nos anos 1980, o mercado mudou, avalia, mas de maneira ilusória. “Antigamente tinha muitas revistas, era muito mais fácil começar a publicar. Publicavam histórias curtas de autores novos. Então você ia firmando seu nome, experimentando”, lembra. “Hoje em dia as histórias foram para a livraria. O pessoal acha que é por respeito, mas não é. É que as tiragens são muito menores. Deram uma glamourizada.”

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Crédito: Rafael Roncato / Revista da Cultura

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HIATO

Embora tenha a literatura como atividade favorita, o autor não publicava um romance desde “Nada Me Faltará”, de 2010. O motivo do hiato é curioso. “Uma vez o Luiz Schwarcz [publisher da Companhia das Letras] falou pro meu editor que eu produzia demais e que seria bom eu parar um pouco. Achei muito estranho quando ouvi isso, mas resolvi experimentar”, conta. “Fiquei três anos sem escrever e foi muito bom pra mim. Deu pra dar uma assentada, renovar algumas ideias, ter muita vontade de voltar. Foi muito bom esse silêncio.”

Cada vez que escreve um livro, Mutarelli mergulha profundamente no projeto e deixa todo o resto de lado. “Tenho cadernos que uso como laboratório, onde faço desenhos muito rápidos e escrevo frases sem sentido. Mas quando estou escrevendo um livro paro de desenhar e de usar os cadernos”, afirma. “Não porque eu quero. Interrompo porque é outra frequência pra mim.”

A empreitada da vez é um livro da coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras, que levou 17 escritores a diferentes cidades do mundo para servir de cenário para histórias de amor. Uma primeira versão do livro encomendado foi entregue em 2009, mas a editora não gostou. “Era um livro ruim, como eu mesmo justifico nesse livro [“O Grifo”]. Mas não me importava que fosse um livro ruim. E ficou encostado. Há dois anos eu retomei, partindo de outra ideia, e estou adorando”, conta. Da primeira versão, sobrou só um suicídio na trama. “O resto eu falo que vai ser um livro póstumo, pra quando eu morrer.”

“É um livro muito trabalhoso, uma experimentação muito contrária à minha forma de escrever. É muito difícil, um trabalho muito elaborado, de muita pesquisa”, diz. Seu plano inicial era terminar o romance ainda neste ano. “Mas acho que não vai dar tempo.” Depois, quer começar uma história ambientada em São Paulo. “Tem sido muito importante falar do meu bairro, dos meus percursos, de São Paulo. Nesse [“Amores”], os personagens não podem ser brasileiros, tem que se passar em Nova York. Isso é uma coisa meio frustrante.”

Para ele, escrever é a forma mais profunda de pensar sobre algo. O que o atrai são pequenos desafios e experimentações. “Conforme você vai escrevendo, vai usando um monte de observações que vai colecionando pela vida, pelos últimos tempos, pequenas obsessões. É isso que me leva”, afirma.

No caso do “Grifo”, trouxe de sua vida a moeda. Em “Amores”, foi um documentário sobre sereias que viu no Discovery. “Pensei: ‘Não, sereias não dá’. Mas aí vi o primeiro, depois vi a continuação. Enquanto eu via, acreditei naquilo. É possível. Fiquei muito fascinado. Pensei em escrever um livro sobre algo que eu ache ridículo”, conta. “Estou escrevendo um livro sobre reptilianos, aqueles seres do espaço. Eu não acredito, o narrador não acredita e o protagonista não acredita neles. Minha tentativa é criar uma mínima dúvida.”

NAS TELAS

Dois anos atrás, Mutarelli afirmou em entrevistas que não tinha mais prazer em atuar. O escritor lembra-se da afirmação, mas faz uma ressalva. “Na época eu falava que só ia trabalhar com a Anna Muylaert. Eu sempre trabalho com a Anna. É a exceção porque é maravilhoso trabalhar com ela”, diz. “Ela fala: ‘Não quero ouvir uma palavra do roteiro na sua boca’. Eu já entendi o roteiro e vou interpretar, brincar com isso.”

Ele conta que Anna escreveu o personagem, o dono da casa onde trabalha a empregada Val (Regina Casé), pensando nele e que a experiência foi muito legal. Hoje, ampliou o leque de exceções e tem topado outros convites. “Quando é muito interessante, se tenho agenda, acabo pegando. Fiz ‘O Escaravelho do Diabo’, que deve estrear em dezembro ou janeiro, que foi fantástico de trabalhar. Tenho tido prazer nisso de novo.”

O filme de Muylaert é o indicado pelo Brasil para disputar uma vaga no Oscar de filme estrangeiro no ano que vem, mas, para Mutarelli, prêmios não significam muita coisa. Neste ano, o prêmio HQ Mix homenageou o quadrinista, esculpindo seu personagem Diomedes no troféu. “Não sei se nesse ano ou no ano passado, recebi um prêmio em Minas por uma peça minha que montaram. O menino queria me mandar o troféu. Eu escrevi que poderia parecer muito deselegante, mas não queria”, conta. “Não me toca, não tenho porque pendurar, guardar. Fica tudo socado num armário, só ocupando espaço. Mas aí ele falou que tinha um prêmio em dinheiro. Eu falei que isso eu aceitava. Dinheiro é muito bom.”

E de todas as identidades de Mutarelli, qual é aquela que ele coloca ao preencher o campo profissão num formulário? “Eu botava manicure. Algumas vezes fiz isso. Mas agora ponho escritor. Faço isso já há algum tempo.”