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A prisão soldada

Dez anos atrás, no fatídico ataque do PCC e nas rebeliões que se seguiram, diversas histórias marcaram o Estado de São Paulo. Várias se perderam no mar de boatos, conflitos e confusões. Histórias como a de Araraquara, em que a penitenciária Sebastião Martins Silveira, em rebelião, sentiu a mão pesada de Antônio Ferreira Pinto, que acabara de assumir a Secretaria de Administração Penitenciária.

Convidamos o artista Rafael Coutinho para ilustrar uma história frequentemente esquecida, mas que mostra como o Estado de São Paulo estava em regime de exceção em 2006.

 

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A panela de pressão do PCC

A data era propícia. Terminava a noite de Finados de 2009 quando Orlando Motta Júnior, o Macarrão, um dos líderes dos ataques do PCC que paralisaram São Paulo em 2006, ligou desesperado, de dentro de sua cela, para o 190 pedindo socorro: “Querem me matar! Me tirem daqui. Quero ser transferido!”

No dia anterior, um domingo, os “passarinhos” usaram o horário de visitas para levar a ordem (também conhecida como “salve”) da facção aos detentos da Penitenciária 1 de Avaré. Macarrão, então com 36 anos e condenado a 48 anos de reclusão, que cumpria pena em uma das celas do raio 1, deveria morrer. A ordem — acompanhada de uma arma de fogo — era da cúpula do PCC com aval do líder máximo da facção, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola.

Os detentos da P1 de Avaré passaram a segunda-feira serrando as grades e continuaram noite adentro. A intenção era chegar à cela de Macarrão e executá-lo ainda na madrugada de terça-feira. Mas o barulho imprevisível na noite dos mortos acordou a presa que, apavorada e acuada, usou o celular escondido na cela para pedir ajuda. Foi retirado e salvo pelos agentes penitenciários.

macarrao01Segundo uma testemunha mantida em uma penitenciária de segurança máxima do Oeste Paulista, a execução seria em represália a um motim interno da facção promovido por Macarrão no final de 2008. Insatisfeito com a administração de Marcola, Macarrão teria obtido apoio de outros integrantes da Sintonia Final Geral, como é chamada a diretoria da facção, sediada na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, e se rebelado com seu grupo.

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Macarrão era da alta cúpula do PCC. Na década de 1990, tinha cumprido pena na mesma penitenciária de Avaré com Marcola e outros líderes da facção e participado em 1999 da rebelião da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, o Piranhão, onde o PCC foi fundado, em 1993. Depois dos ataques, foi levado junto com Marcola para a Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, unidade em que a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) colocou todos os líderes da facção na esperança de evitar as rebeliões em série e de controlar os criminosos.

Em Venceslau, Macarrão se tornou um dos homens fortes do PCC, responsável pela Sintonia dos Gravatas, a ala dos advogados da facção. E também era uma espécie de porta-voz da Sintonia Final Geral, formada por nove integrantes. No entanto, desentendimentos com Marcola e a prisão de advogadas que prestavam serviços para a facção teriam causado o rompimento da relação.

Em julho de 2008, a polícia prendeu advogadas da facção após escutas feitas no celular de Macarrão. Segundo pessoas envolvidas na ação em conversas com a reportagem do Risca Faca, Marcola se irritou porque um informante do PCC já havia alertado para o monitoramento dos celulares e pediu que ninguém usasse os aparelhos. Macarrão desobedeceu e facilitou com isso a prisão das advogadas. Marcola decidiu que o custo das prisões seria bancado com dinheiro particular de Macarrão. Revoltado com a decisão do chefe da facção, Macarrão tentou derrubá-lo.

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Durante o motim, Marcola teria sido agredido, sendo espancado por alguns companheiros, um deles essa testemunha, de codinome Chocolate, cujo nome é mantido em segredo pelas autoridades do sistema penitenciário. Marcola sofreu ferimentos e, sob ameaça de morte, aceitou repassar o comando para Macarrão e seu grupo. Assim, Macarrão assumiu durante cinco dias a chefia e tomou conhecimento de todas as atividades da facção mais perigosa do Brasil.

No entanto, por falta de controle da situação, Macarrão enfrentou resistência dentro do próprio grupo, que à sua revelia, negociava a volta de Marcola, e acabou expulsando Macarrão da Sintonia Final Geral. A expulsão ocorreu apenas cinco dias depois de Macarrão assumir o comando. Parece pouco, mas foi tempo suficiente para que ele conhecesse as principais informações da facção.

Ao reassumir o controle da Sintonia Final Geral, Marcola aceitou acordo com o grupo dissidente ao prometer não eliminar nenhum dos líderes, mas manteve a sentença de morte para os detentos que o espancaram. Ao ser derrotado e expulso do grupo, Macarrão conseguiu transferência da P2 de Venceslau. Mas só descobriu que também estava jurado de morte na noite de Finados de 2009.

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O caso é mantido em segredo pelas autoridades do sistema e pelo próprio PCC. Há cerca de duas semanas, Chocolate, um dos agressores de Marcola, teve de ser transferido para uma ala mais segura do sistema, porque integrantes do PCC descobriram o presídio onde ele cumpre pena no Seguro – uma ala destinada aos jurados de morte. “Ele está pedido e certamente, cedo ou tarde, será localizado e morto”, disse um agente que participou de sua remoção. Outros detentos que participaram do motim contra Marcola foram distribuídos pelo sistema e não há informação se foram executados ou não.

Atualmente, a localização de Macarrão é desconhecida por grande parte do sistema prisional – ele possivelmente vive agora com outra identidade.

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Isso só foi possível porque, jurado de morte e pressionado pelo PCC, Macarrão tomou uma importante decisão: tornou-se colaborador das autoridades para delatar o PCC, transformando-se na figura mais emblemática da facção após os ataques de 2006. Resguardado por um programa de proteção de testemunhas, o ex-integrante do PCC colaborou com o Ministério Público na maior investigação sobre o crime organizado feita no País, concluída e divulgada em 2013.

A investigação, que durou três anos, produziu um raio X da facção: revelou quantos eram seus principais chefes (8), seu contingente (11,4 mil homens, 7,8 mil em SP), atuação (22 estados e DF), arsenal (100 fuzis, 30 metralhadores, 100 pistolas), movimentação (R$ 120 milhões por ano), planos e resgate de presos, ataques a policiais e nomes dos traficantes que forneciam cocaína e maconha à facção.

Oficialmente, Macarrão começou a colaborar com o Ministério Público em 19 de março de 2010, quando prestou depoimento sobre a morte de sua mulher, Maria Jucinéia da Silva, assassinada a tiros em 7 de setembro de 2009, então com 41 anos.

Na manhã daquele feriado, por volta das 8h30, Néia, como era conhecida, saía para a frente da casa de sua mãe para varrer a calçada, na Rua dos Evangélicos, bairro Campo dos Alemães, na zona sul de São José dos Campos. Distraída com a limpeza, Neia não percebeu que um carro preto se aproximou. Do banco de carona, um homem armado disparou várias vezes. Neia ainda conseguiu correr para dentro de casa, mas não resistiu e caiu, sem vida, no banheiro da residência, atingida por oito tiros.

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O homicídio foi encomendado por um tribunal paralelo do PCC, reunido pela Sintonia Final Geral dentro da P-2 de Venceslau. Na incapacidade de matar Macarrão, a facção optou por executar sua mulher. O Ministério Público obteve a gravação na qual Edilson Borges Nogueira, o Birosca, integrante da Sintonia Final Geral, afirma que o “salve” fora dado por conta de uma traição ocorrida dentro do PCC. Oficialmente, a traição seria a delação de Macarrão, que teria apontado outro integrante do PCC, Elvis Riola de Andrade, o Cantor, como autor dos disparos que mataram o agente Denilson Dantas Jerônimo, no dia 3 de maio de 2009, na cidade de Alvares Machado, próxima a Venceslau.

Considerado linha-dura, Jerônimo era agente do Centro de Readaptação Penitenciária (CRP) em Presidente Bernandes, unidade de internação e isolamento de presos periculosos. Jerônimo foi surpreendido com a namorada, dentro de seu carro, e morto com diversos tiros de pistola calibre 380. A namorada escapou ilesa. Segundo Macarrão, dois líderes da facção, Biroska e Gegê do Mangue (Rogério Jeremias Simone), além de Wagner Martins de Oliveira, o Boca, e José Luís Soares, o Nininho, planejaram o crime. Elvis, o Cantor, era puxador de samba da Gaviões da Fiel e foi preso em 27 de maio de 2010.

O assassinato da mulher de Macarrão agravou a crise interna na facção. O caldeirão começou a ferver. Macarrão prometeu eliminar todos os parentes dos detentos da cúpula do PCC e a facção jurou revidar matando mais parentes de Macarrão. A ameaça de Macarrão fez com que as mulheres dos líderes usassem carros blindados e escoltados com seguranças nas visitas aos maridos na P-2. A movimentação chamava atenção das pessoas que passavam pelo local, com os carrões à prova de bala e dos seguranças. No entanto, recolhido e sob proteção do programa de testemunhas, Macarrão não cumpriu sua promessa.

“Não tínhamos essa noção de que Macarrão pudesse ganhar tanta força dentro da facção”, disse um ex-diretor de inteligência da SAP, especialista em PCC, que participou das ações para frear a facção. “Para nós, ele era apenas o quinto na ordem de importância, embora fosse um organizador de rebeliões, talvez o principal incentivador do PCC, além de porta-voz da diretoria e responsável pelos advogados”, contou. “Mas não duvido de que ele possa ter derrubado Marcola e ficado no comando por alguns dias”, completou a fonte, que foi ameaçada de morte por Macarrão por ter influenciado em decisão que levou o detento a cumprir pena no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) após uma rebelião.

Outra autoridade do sistema confirmou as informações, dizendo que Chocolate, por motivos de segurança, está em uma ala de seguro de uma Penitenciária de Segurança Máxima do interior de São Paulo. “Logicamente, trata-se de um detento que está condenado à morte pelo PCC, que controla grande parte das penitenciárias e por isso há necessidade de muitos cuidados”, disse a autoridade. “A informação que temos é de que ele é procurado pelo PCC por ter espancado Marcola durante um motim interno do PCC.”

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A história da delação de Macarrão colocou em risco anos da construção daquela que é chamada de fase “Paz e Amor” do PCC. Depois dos ataques de 2006, o PCC, influenciado pelos ensinamentos do ex-guerrilheiro chileno Maurício Hernandez Norambuena, sequestrador de Washington Olivetto, mudou sua estratégia de atuação, deixando de praticar grandes assaltos para fazer do tráfico de drogas (maconha e cocaína, principalmente) sua principal fonte de receita. Com isso, em 2010, o PCC já participava de 90% dos pontos de tráfico do Estado de São Paulo.

“Além das bocas que já existiam, o PCC abriu novos pontos em praticamente todas as cidades do Estado, incluindo municípios pequenos, de 10 ou 15 mil habitantes”, diz o juiz corregedor Emerson Sumariva Júnior, da Vara de Execuções Criminais de Araçatuba, responsável por 30 mil processos de 15 mil detentos.

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A intenção era se desfazer da imagem de violência que ficara após os ataques, quando o PCC matou também civis, e reduzir a possibilidade de penas longas ou mesmo a morte de seus integrantes. A estratégia deu certo, auxiliada pelos interesses da segurança pública estadual em ver reduzidos os crimes de homicídios no Estado. “A queda das estatísticas de violência é proporcional ao sucesso da atividade do PCC”, afirma um ex-diretor da SAP, especialista em PCC, que atuou na custódia de líderes da facção e prefere não ter o nome revelado por motivos de segurança.

A facção tem entre seus maiores clientes os detentos do sistema penitenciário do Estado de São Paulo, que abrigava, até dia 9 de maio de 2016, um total de 230.743 detentos em 164 presídios — 90% deles, segundo o Ministério Público Estadual, sob o controle da “família”, como é chamado o PCC entre seus “irmãos”.

Enquanto paralisava as ações midiáticas, o PCC aprimorava a venda de drogas. Passou a entregar maconha e cocaína em consignação, o que fez com que usuários se transformassem em pequenos traficantes. A tática de arrecadação é simples: o PCC entrega a droga, que é vendida em consignação, e depois passa para fazer o recolhimento do dinheiro e ainda cobra uma comissão da venda, o chamado “bicho-papão”. Com isso, na ânsia de vender mais para comprar droga para uso, os novos traficantes passaram a vender indiscriminadamente, atingindo como público crianças de 10 e 11 anos, que até então eram preservadas pelos antigos traficantes.

Além disso, o PCC afrouxou suas regras, dentro e fora dos presídios. “Para se ter uma idéia, a facção incluiu em seu regimento dois artigos em que os tribunais passam a atuar em pequenas causas, como brigas de vizinhos e de marido e mulher, numa tentativa de apaziguar os ânimos”, diz o especialista. “Até mesmo os ‘ratos de mocó’, que são os presos que furtam pertences dos colegas de presídio são perdoados, o que não acontecia antes”, conta.

Outra mudança foi deixar de pressionar os detentos dos presídios controlados pela facção, que antes dos ataques eram obrigados a entrar para a facção. “Hoje não há mais isso, o detento entra para a facção e também colabora só se quiser”, relataram agentes ouvidos pela reportagem. A intenção é deixar a situação calma dentro dos presídios, com os detentos fazendo uso do entorpecente e os traficantes atuando sem ser incomodados. “A automação de presídios possibilitou isso, porque afasta o agente dos detentos. O preso fica de um lado e os agentes de outro”, diz o especialista. Segundo ele, o fim das blitze semanais simultâneas nos presídios, comuns antes de 2006 para impedir as rebeliões em série, também deu mais tranquilidade aos traficantes para vender a droga aos colegas da prisão.

A estratégia “Paz e Amor” do PCC, somado ao constante aumento de consumo de drogas causado pela superpopulação carcerária, deu tão certo que praticamente quadruplicou a receita do crime organizado com o tráfico. O faturamento, que segundo um livro-caixa do PCC era de R$ 4,8 milhões/mês em 2008, saltou para R$ 16 milhões/mês em 2015, de acordo com dados da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário.

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Arte: Rafael Coutinho

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No fim de semana do mais recente Dia das Mãescentenas de mulheres, todas vestidas num único traje — calças legging, camisetas largas e chinelos — subiam a rua que dá acesso à Penitenciária de Valparaíso, onde há dez anos foi iniciada a megarrebelião promovida pelo PCC durante os ataques de maio. Naquele mês, 76 unidades prisionais enfrentaram motins. Desde então a situação está aparentemente calma nos presídios paulistas. Mas só aparentemente.

Carregando grandes sacolas plásticas, com diversos tipos de produtos (de papel higiênico a alimentos preparados horas antes), essas mulheres — algumas com crianças e bebês, filhos de detentos, alguns gerados em visitas íntimas — reclamavam das péssimas condições do presídio. Elas avisavam que os 1.800 detentos da unidade não estão satisfeitos com o tratamento recebido, e que, por isso, voltavam, depois de muitos anos, a falar sobre a possibilidade de ocorrer uma nova “megarrebelião”, independentemente da vontade do crime organizado, que controla 90% dos presídios paulistas.

Cristiane de Oliveira Silva, que mora em São Paulo, gastou cerca de R$ 500,00 em passagens para viajar 1,2 mil km de ida e volta a Valparaíso, mas não pôde visitar o irmão, preso há 20 dias na unidade. “Eles disseram que os documentos que enviei para autorizar minha visita não chegaram, mas meu irmão confirmou o recebimento. Eu ainda telefonei aqui e ninguém me disse nada. Poderiam ter evitado essa despesa para minha família”, disse ela, antes de cair no choro.

A falta de assistência jurídica aos presos é apenas um dos problemas. “Temos de trazer de tudo, desde sabonete e materiais de limpeza a alimentos, porque a comida é pouca. Faltam remédios e até água e papel higiênico”, contava Marizene Pereira Souza, 42 anos, acompanhada da filha, Barbara Souza Rocha, de 18 anos, que saíram na noite de sexta-feira de São Paulo para visitar Marcelo Souza Rocha, filho de Marizene e irmão de Barbara, preso há sete meses em Valparaíso.

A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) negou que haja precariedade nas unidades prisionais do Estado. Em nota, a assessoria da SAP informa que não faltam remédios, produtos de higiene e que a assistência judiciária funciona a contento. Segundo a SAP também não há racionamento de água, “porém é feito um controle (principalmente no horário noturno), visando evitar o desperdício”.

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A precariedade com que vivem os presos no interior das cadeias voltou a acender a panela de pressão do sistema carcerário paulista e pode colocar abaixo a política atual do PCC. Três dias dias antes da visita da reportagem, o serviço de inteligência da SAP havia interceptado mensagens que davam conta de infiltração de armas de fogo no presídio e de ações para promover rebeliões em Valparaíso e Itirapina.

“Recebemos a informação de que haveria ações de fora para dentro e de dentro para fora para quebrar as cadeias”, disse um agente da inteligência. “Então tivemos de chamar a PM e transferir presos”, afirmou. A Força Tática da PM foi chamada, mas não precisou entrar nos presídios. Mesmo assim, cerca de 120 detentos foram transferidos das duas unidades.

As últimas rebeliões nessas unidades foram em 7 de outubro de 2009 em Valparaíso, com dez reféns, e em 15 de julho de 2013 em Itirapina, com 68 reféns e dois detentos mortos. Em um levantamento rápido, a reportagem apurou a ocorrência de dez rebeliões após 2006, metade delas após 2011, embora a SAP informe que desde 2011 não há rebeliões no Estado de São Paulo.

Em Valparaíso a principal reclamação é com a falta de assessoria jurídica, alimentação e falta de espaço para os presos dormirem. “Há um colchão para cada preso, mas por falta de espaço, eles ficam fora da cela. Os presos se viram lá dentro com a quantidade de colchões que conseguem colocar na cela”, disse um agente. Segundo ele, em uma cela para oito presos, convivem 14 ou 16 homens.

“Eles se viram como podem, dois por cama, dividem o chão da cela e em alguns casos dormem até no espaço do banheiro”, disse outro agente. O fornecimento de água é cortado à noite por economia e nos dias quentes, o corte é feito durante o horário do banho de sol para que haja água suficiente para todos tomarem banho e matarem a sede.

O presídio de Valparaíso tem capacidade para 873 presos, mas contava 1.747 na quinta-feira, 12 de maio. Há dez anos, durante a megarrebelião, a unidade estava com 1.161 detentos. A superlotação é praticamente a mesma em todas as unidades. De acordo com dados da SAP, atualmente há cerca de 231 mil detentos em 164 unidades prisionais. Em 2006, eram 121 mil detentos para 144 unidades prisionais. A média subiu de 840 para 1.408 detentos por unidade, um aumento de 70% em dez anos, enquanto o número de unidades aumentou apenas 13%. Reportagem da Ponte sobre o Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, em que mais de 5 mil presos vivem, relata o local como “o novo Carandiru”.

“É um problema do Executivo, que deveria construir mais presídios. O lógico seria educar a população para reduzir os índices de criminalidade, mas a curto prazo somente a construção de novas unidades é que pode amenizar esse problema”, comentou o juiz Emerson Sumariva Júnior, da Vara de Execuções Criminais de Araçatuba.

A SAP diz que as medidas de segurança, aliadas ao trabalho dos agentes penitenciários, “permitem que a SAP opere suas unidades dentro dos padrões de segurança estabelecidos, inclusive sem qualquer registro de motim, rebelião ou fugas ao longo dos últimos cinco anos”.

Se depois de 2006 o PCC manteve-se como um monstro adormecido dentro dos presídios e bocas do Estado de São Paulo, a situação precária do sistema prisional está criando a mais perigosa das situações: a explosão da panela de pressão e a volta de dias de terror, como aqueles vividos há dez anos.

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Quando São Paulo parou

Os policiais estavam com medo, dentro de suas bases, esperando novos ataques ou novas instruções. O que viesse primeiro. Perto do meio-dia, os telejornais vespertinos passavam imagens dos ataques no dia anterior — nos bastidores, os produtores tentavam confirmar o boato de que um tiroteio teria acontecido em Higienópolis, bairro nobre no centro da cidade. Falavam sobre portas de universidades metralhadas. Histórias desencontradas.

A população estava assustada. Três em cada dez estudantes não foram às aulas na manhã daquele dia — e nada menos que 5,5 milhões de pessoas, aproximadamente metade da população da Grande São Paulo, não tinham como chegar ao trabalho por causa da falta de ônibus. Afinal, os motoristas também estavam apavorados. Da 25 de Março à Daslu, o comércio fechou antes do cair do sol.

Por volta das 18 horas daquela segunda-feira, 15 de maio de 2006, São Paulo era uma cidade fantasma.

Passados dez anos dos ataques promovidos pelo Primeiro Comando da Capital em maio de 2006, parece improvável que a facção repita uma ação coordenada capaz de paralisar o Estado, mobilizar todas as forças políticas e deixar um rastro de mortes — foram 493 em nove dias, de acordo com o Instituto Médico Legal. Desde então, especialistas e autoridades buscam entender a motivação dos ataques, com opiniões divergentes.

Uma pesquisa inédita, porém, traz evidências que apontam um novo caminho para compreender por que o PCC resolveu parar São Paulo. E a explicação tem a ver com a queda nos índices de criminalidade. A partir de dados do Disque-Denúncia e da Secretaria de Segurança Pública do Estado, dois economistas e um sociólogo encontraram indícios fortes de que o PCC aproveitou o levante de 2006 para expandir seu domínio territorial sobre as favelas paulistanas.

 

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“Tudo isso não passa de ficção. Em São Paulo, não existe crime organizado”, disse o então secretário de Segurança Pública, Benedicto de Azevedo Marques, em maio de 1997. Ele havia sido confrontado com um suposto estatuto do PCC, divulgado à época. Essa é outra mudança perceptível: após os ataques, declarações de autoridades buscando diminuir o poder da facção praticamente sumiram. Ninguém duvida da autoridade de Marco Willians Herbas Camacho, nome completo de Marcola, chefão do PCC que começou sua carreira criminosa aos 10 anos de idade e hoje, aos 48, é o bandido mais influente do país à exceção de alguns políticos.

Em todos os presídios pelos quais passou, distribuídos por cinco Estados e o Distrito Federal, Marcola causou preocupação às autoridades. Em maio de 2006, o governo paulista decidiu transferir o detento a um presídio de segurança máxima no interior do Estado, no qual seria submetido ao regime disciplinar diferenciado — sem direito a TV, rádio, livros e jornais e com apenas duas horas diárias de banho de sol.

Não saiu como planejado.

Simultaneamente ao início da transferência de 735 presos, que segundo o governo seriam ligados ao PCC, a facção pôs em execução um plano para instaurar o terror em São Paulo. “A ordem para os ataques já tinha sido dada antes de a remoção dos presos ser efetuada”, afirma o procurador de Justiça Criminal Márcio Christino, um dos pioneiros no Ministério Público de São Paulo a investigar o PCC. Uma versão divulgada, mas jamais confirmada, dava conta de que os ataques seriam um revide por Marcola ter sido extorquido por policiais corruptos, sem qualquer relação com as transferências. “A remoção dos presos foi efetuada para tentar evitar que as ordens fossem cumpridas, ou seja, para tentar pressionar ou segurar os atentados”, acrescenta Christino. Os primeiros ataques ocorreram na periferia paulistana e na Grande São Paulo na noite do dia 12 de maio, sexta-feira pré-Dia das Mães, somados a três rebeliões em penitenciárias no interior. Como quem não quer nada, o caos entrou pela porta da frente, puxou uma cadeira e se fez presente, especialmente na capital.

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No sábado, Marcola e outros líderes do PCC chegaram à sede do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), onde deveriam ficar incomunicáveis por até 20 dias, antes de serem finalmente levados à prisão de segurança máxima de Presidente Bernardes. Enquanto isso, lá fora, o levante foi escancarado: ocorreram 63 atentados em 23 cidades, deixando 25 agentes públicos mortos — policiais militares e civis, agentes penitenciários e guardas municipais. À noite, o delegado Godofredo Bittencourt, diretor do Deic, se reuniu com Marcola na tentativa de negociar uma saída. “Agora é tarde”, retrucou o bandido, segundo uma das testemunhas do encontro. Na tentativa de responder à altura, a cúpula do governo paulista se encontrou, já durante a madrugada, para traçar estratégias. O secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, definiu a tática que considerava ideal: “Distribua os armamentos de grosso calibre e vamos partir para cima”, ele afirmou, segundo se recorda o advogado Nagashi Furukawa, então titular da pasta de Administração Penitenciária presente na reunião.

O Dia das Mães passou com a certeza de que a efetividade da Polícia Militar havia aumentado. Ao passo em que o PCC expandiu sua tática de terror, com 80 presídios paralisados a mando da facção e 156 atentados realizados, as mortes causadas pelas ações diminuíram em comparação aos dias anteriores. E, naquele dia, diversos suspeitos foram mortos em combate com a PM. Segundo as informações coletadas nos boletins de ocorrência daquele período, o Dia das Mães apresentou o pico de mortes durante toda a crise — 107 civis foram mortos a tiros num único dia, no Estado de São Paulo.

Na segunda-feira, escolas e comércios fecharam, menos ônibus circularam e a capital paulista ficou deserta. Numa época em que os celulares cumpriam principalmente sua função inicial, as ligações telefônicas em São Paulo atingiram seu recorde histórico. A população, aterrorizada, buscava informações confiáveis em meio a um sem-fim de boatos e das respostas lacônicas do governo paulista. Os ataques e rebeliões cessaram na terça-feira, dia 16, mas mortes ligadas ao levante ocorreram pelo menos até o dia 20. As estimativas de vítimas no período variam de 493, número adotado pelo IML com base em laudos necroscópicos, a 564, quantidade calculada pelo sociólogo Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com base em boletins de ocorrência.

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A possível ação de agentes públicos em grupos de extermínio, durante o período, foi investigada, mas ninguém foi denunciado. O Ministério Público requisitou à PM, judicialmente, os registros dos pedidos de checagem de antecedentes criminais feitos por policiais no período dos ataques. O objetivo era descobrir se algum dos civis mortos e com indícios de execução tiveram seus antecedentes consultados. Em resposta à Justiça, o coronel Ailton Araújo Brandão, comandante da PM à época, disse que o sistema “parou de funcionar por problemas de desgaste natural pelo uso, não mais gravando as comunicações do Centro de Operações da Polícia Militar”. Christino, que tentou investigar o caso pelo Ministério Público, encontrou a mesma situação. “Nós chamamos o fabricante, pedimos para ele fazer uma perícia, e o fabricante disse que havia um defeito na máquina, uma tomada que tinha saído.”

Para Fernando Delgado, advogado e professor de direito na Universidade Harvard, “o Estado tomou uma postura de revide, que teve fortes indícios de execuções sumárias e envolvimento de autoridades estatais em grupos de extermínio”. Ele coordenou uma pesquisa que analisou causas e consequências para os ataques do PCC. Além de equívocos na política prisional e a corrupção de agentes públicos, Delgado aponta a resposta do governo aos ataques como um dos erros cometidos. “Esse revide seria ilegal e não contribuiria para a segurança pública, pelo contrário, alimenta-se um ciclo de violência que está instalado”, argumenta o advogado.

***

Para entender como o PCC foi capaz de executar uma ação articulada de tamanho porte — que ocorreu, lembre-se, com boa parte de seus líderes sob guarda 24 horas da Polícia Civil — é necessário, antes, compreender a origem da facção. A célula inicial do Primeiro Comando da Capital foi formada, em 1993, no anexo da Casa de Custódia de Taubaté, local notório tanto por abrigar detentos perigosos como por suas más condições de habitação. O estado precário do Piranhão, como os detentos chamavam o presídio, foi uma das justificativas para a criação do PCC. Sob o mote “liberdade, justiça e paz”, presente em seu estatuto, a facção dizia lutar “contra as injustiças e a opressão dentro das prisões”.

Conforme os membros fundadores foram transferidos para outras cidades, o PCC se difundiu no sistema prisional. Idemir Carlos Ambrósio saiu do Piranhão em 1994. Mas Sombra, como era conhecido um dos oito integrantes iniciais do PCC, continuou no sistema prisional paulista, transferido para Araraquara. “Com seu espírito de liderança, conquistou rapidamente dezenas de adeptos”, escreve o repórter Josmar Jozino, no livro “Cobras e Lagartos: A Vida Íntima e Perversa nas Prisões Brasileiras”, em que narra a história do Primeiro Comando. “Por ser o primeiro batizado da facção, Sombra sempre teve o direito de batizar novos ‘soldados’ e de dizer quem era ou quem não era ‘irmão’.”

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Passaram-se anos e o PCC manteve-se abaixo do radar das autoridades, crescendo por meio de “batizados” feitos entre “irmãos”. As primeiras menções à facção na imprensa datam de 1997, quatro anos após seu surgimento, e aparecem com pouca frequência. Desde então, as principais fontes de renda do grupo mantiveram-se as mesmas: mensalidades de integrantes — tanto dos que estão presos como dos que estão soltos —, crimes de oportunidade (como roubos a banco e sequestros) e, principalmente, tráfico de drogas. A expansão territorial do PCC aconteceu em duas direções: para dentro das prisões e para cima das bocas de fumo paulistas. De modo geral, em troca de uma parcela dos negócios, o PCC fornece segurança para seus membros. E segurança, quando se atua em um mercado ilegal, é um bem muito importante. Assim, a receita do PCC só fez aumentar desde que a facção foi criada. O procurador Christino estima em “alguns milhões de reais” a receita mensal deles atualmente.

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Especialistas e autoridades concordam que a estrutura capilar estabelecida durante mais de uma década pelo PCC foi crucial para a eficiência do levante, em maio de 2006. As interpretações para entender o que a facção ganhou com os ataques, no entanto, variam. Logo após os atentados, o governo de São Paulo continuou sob críticas pelo descontrole nos presídios do Estado. Uma das respostas foi a demissão do secretário de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, e a nomeação de Antônio Ferreira Pinto, mais alinhado ao titular da Segurança Pública, como seu substituto. Ex-promotor e ex-policial militar, Ferreira Pinto era visto como linha-dura, e a primeira medida de sua gestão determinou que amotinados que destruíssem suas celas não fossem transferidos a outros presídios.

“Com isso, eles entenderam a mensagem de que eram apenas manobrados pela facção, porque os presídios ocupados pelas lideranças sempre permaneceram inteiros, e eles nunca perderam um dia de visita, nunca perderam um dia de sol”, afirma o ex-secretário, hoje aposentado. Ferreira Pinto acredita que os líderes do PCC exercem sua influência para tornar os membros de baixo escalão meros peões, sujeitos somente aos interesses dessas próprias lideranças. Seria uma forma de buscar legitimidade, o que o ex-secretário rechaça. “Nunca nós os dignamos a conversar com eles, bandido é bandido e polícia é polícia”, ele afirma. “Eles não têm status nenhum”, posiciona-se.

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O procurador Christino argumenta no mesmo sentido, mas reconhece que o PCC conseguiu seu lugar à mesa de negociação. “Muito embora eles não tenham nenhum lucro, nenhum ganho patrimonial, eles tiveram um ganho político muito grande, porque se lançaram como uma entidade influente socialmente”, afirma o membro do Ministério Público. A destruição dos presídios, para Christino, também teve influência na definição dos ataques: “O que o PCC pretendia naquela época era inutilizar o presídio que não fosse do agrado deles, para que ele fosse desmobilizado e não fosse mais usado”.

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Uma pesquisa inédita traz dados que sugerem outro motivo para a facção ter realizado os ataques: expansão territorial. O economista João Manoel Pinho de Mello, professor do Insper, investigou a hipótese em parceria com o economista Ciro Biderman e o sociólogo Renato Sérgio de Lima, ambos professores da Fundação Getulio Vargas. A partir de bases de dados do Disque-Denúncia e da Secretaria de Segurança Pública paulista, à qual Mello teve acesso durante uma pesquisa financiada pelo Banco Mundial, o trio estudou como o PCC expandiu seu território nas favelas em São Paulo.

Antes dos ataques, a facção estava presente em pouco mais de 40% das favelas paulistanas, aproximadamente, índice que saltou para mais de 70% até o fim de 2006 — e manteve crescimento estável até pelo menos o fim de 2009, até onde vão os dados da pesquisa. A partir de menções à facção em ligações do Disque-Denúncia e aos dados do governo, os pesquisadores foram capazes de estabelecer uma linha do tempo comparando a entrada do PCC em determinado local e uma possível influência nos índices criminais de lá.

No mesmo período, a tendência geral das ocorrências de tráfico e de porte de entorpecentes foi de queda. Entre 2013 e 2015, de acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública, ambos os tipos de ocorrência variaram pouco: apresentaram queda em 2014, em comparação ao ano anterior, e subiram em 2015, para patamar equivalente ao inicial. O Risca Faca solicitou ao governo de São Paulo uma entrevista com o secretário de Governo, Saulo de Castro Abreu Filho — titular da Segurança Pública durante a crise de 2006 —, para falar sobre o PCC, mas o pedido foi negado.

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Para o ex-secretario Ferreira Pinto, o sucesso comercial do PCC é resultado de uma política de combate às drogas que deixou de atrapalhar: “A facção ganha muito dinheiro no tráfico. Por que eu, pertencente à facção, vou atentar contra o Estado, se o Estado não me incomoda?”, ele critica. Mello, do Insper, coloca o mesmo argumento em outras palavras, a partir de outra perspectiva: “Se o poder público está disposto a ser cínico o suficiente para conviver com o tráfico de drogas, ótimo”, resume o economista.

Esse é um dos mais delicados temas relacionados ao crime organizado. Afinal, uma facção é capaz de atuar por conta própria a fim de diminuir os índices criminais? “O que a gente estima é que o PCC, ao entrar numa favela, comparado com uma favela onde ele não está, causa uma queda nos crimes violentos — homicídio, agressão e homicídio culposo”, afirma Mello em seu escritório na faculdade, buscando uma resposta científica ao problema. “Só que a gente não encontra nenhum efeito sobre crimes contra o patrimônio, que inclusive era mais fácil de encontrar, porque crime contra o patrimônio é uma coisa comum.”

Ele cogitava duas hipóteses para explicar a queda nos índices: a da competição, na qual os crimes violentos caem simplesmente porque o PCC deixa de ter adversários, e a da justiça, na qual o PCC assume o papel de provedor do bem público no lugar do Estado. Como apenas os crimes violentos apresentaram queda, Mello pende a confirmar a primeira hipótese.

O Primeiro Comando da Capital jamais repetiu uma mobilização tão grande quanto a realizada há dez anos. Por quê? “Dentro do paradigma proibicionista, a evidência que está sendo construída é que é melhor enfrentar um grupo só”, analisa o economista. Em outras palavras, enquanto as políticas antidrogas não mudarem, tende a ser melhor para o governo enfrentar um PCC só, em vez de vários cartéis, como ocorre no México. Além disso, a facção conseguiu se manter sem dissidências. “É simples, a liderança que está prevalecendo hoje é uma liderança forte, que está conseguindo se manter”, afirma Christino.

A pesquisa de Mello, do Insper, vai no mesmo sentido. O estudo mostra que há formas de diminuir os crimes causados pelo comércio ilegal de drogas, sem necessariamente acabar com o tráfico. Por exemplo, incentivando a venda apenas em lugares fechados, como bares, para tirar traficantes das ruas, onde tiroteios são mais prováveis. Ou, como cantaram os Racionais MCs: “O movimento dá dinheiro sem problema, e o consumo tá em alta como manda o sistema”.