Categorias
Olimpíadas

Olímpicos: David Burnett, o fotógrafo analógico

“Eu nunca posei para tantas selfies com outros fotógrafos.” É o que conta o fotógrafo americano David Burnett, que viralizou, durante as últimas semanas, involuntariamente nas redes sociais. Ele, que já cobriu revoluções e guerras, presidentes e anônimos, esteve em 11 olimpíadas. Mas em nenhuma trocou o papel de observador para observado como na Rio 2016.

Ele aparece em uma foto que rodou a internet nas semanas dos Jogos. É um registro de bastidores, da zona dos fotógrafos em uma das competições. Não é possível saber qual a modalidade, mas uma coisa logo se destaca: um fotógrafo de cabelos brancos aparece no centro da imagem, compenetrado no seu trabalho e munido apenas de uma câmera antiga, destoando totalmente de seus colegas que carregam câmeras ultramodernas.

Não é de hoje que David aposta em máquinas fotográficas analógicas para registrar as Olimpíadas. Ele tem utilizado uma sexagenária câmera Speed Graphic desde os jogos de Atenas, em 2004. E também para registrar outro emblemático evento que acontece de quatro em quatro anos: as eleições presidenciais dos Estados Unidos.

Disputa do salto com vara em 1996 registrada por David Burnett
Disputa do salto com vara em 1996 registrada por David Burnett

“Há uma sensação especial que se passa com as imagens que você tira com essa câmera. É bem diferente da sensação passada pelas câmeras digitais menores, e é o que eu gosto, pois remete a uma época mais antiga e também a uma interpretação pessoal minha”, conta, em entrevista ao Risca Faca.

É visivelmente pessoal a abordagem das fotografias de David em sua cobertura esportiva. São registros de etapas quase diametralmente opostas: os momentos de extrema ação e os de calmaria antes dos eventos. Ambos compõem um de seus livros – “Man Without Gravity” – e podem ser vistos nas fotos dos jogos do Rio 2016 em seu Instagram.

David diz apreciar os instantes de alta tensão, mas que também acha que os de silenciosa reflexão são talvez tão importantes quanto. Para ele, nenhum atleta passa 100% do tempo correndo. Eles pensam em um plano de como vão atuar e são nesses pontos em que surgem as possibilidades de fotos que estão além dos simples registros de ação.

“Eu não sei se isso é aplicável para todos, mas eu procuro por fotos que vão trazer uma reação humana. Algo com personalidade, moção, drama ou até mesmo uma bela composição. São coisas que podem trazer ao espectador a um novo nível de apreciação.”

Nas horas entre seus cliques, David tem observado os jogos no Rio. Ele, que já esteve no Brasil antes, conta que sua maior decepção com a organização foi com a comida das arenas e centros de competição. “Sei o quão gostosa e vibrante é a culinária brasileira, até com pratos simples. Então só ver pão e queijos é um pouco desapontador. A boa notícia é que ainda existem centenas de ótimos restaurantes na cidade.”

No último dia das Olimpíadas no Rio de Janeiro, a repercussão dos jogos começa ser evidente. As obras bilionárias foram entregues e a organização foi posta à prova. A cidade viveu momentos de glórias e tensão. Mais do que isso, foram escritas histórias: as consagrações e decepções dos atletas. De Isaquias, Rafaela, Thiago, Phelps e Bolt. Mas também de Lochte e Lavillenie. David e sua Speed Graphic estiveram lá para registrá-las.

As Olimpíadas do Rio de Janeiro seguiram a mesma tendência que David observou nos últimos trinta anos. Para ele, é normal que questões organizacionais comecem um pouco complicadas e acabem por se resolver no decorrer das semanas.

Prova de mergulho nas Olimpíadas de 1996 registrada por David Burnett
Prova de mergulho nas Olimpíadas de 1996 registrada por David Burnett

E apesar da cobertura alarmante da imprensa internacional e de casos de roubo de equipamentos de outros fotógrafos – que basicamente os impossibilita de cobrir os jogos – David disse ter aproveitado ao máximo sua estadia. “Eu certamente não me senti em perigo ou preocupado e só tive experiências positivas, uma atrás da outra. Fossem elas nas cafeterias ou ônibus da imprensa. No Brasil você pode ir bem longe com um jóia e bom dia, e eu acho que isso ficou evidente nas últimas semanas”, opina.

As décadas de fotorreportagens olímpicas também permitiram que David presenciasse as transformações ocorridas nas cidades-sede. O fotógrafo explica que é difícil saber qual será o impacto em longo prazo. Mas algo que quase sempre acontece é “que há um senso de autoria e propriedade [sobre a realização dos jogos na população local] que acaba sendo positivo, mesmo que apenas em um nível psicológico. E isso é o mais importante.”

Pedimos uma foto recente para David. Ele mandou essa selfie olímpica
Pedimos uma foto recente para David. Ele mandou essa selfie olímpica

Levando em conta a situação política da cidade – que, para além da crise nacional, encara um estado que decretou falência – isso se torna ainda mais essencial. “No fim das contas, eu vi muita positividade entre os cariocas e os visitantes, e em um tempo politicamente tão difícil, eu espero que isso traga um pouco de esperança no futuro para os brasileiros”, diz.

Agora, quase se despedindo do Rio de Janeiro, David continua sendo alvo de muita atenção dos colegas. Um dos poucos fotógrafos a usar câmeras antigas, ele recebe cumprimentos e tapinhas no ombro de outros profissionais da imprensa. “Acho que isso indica que apesar de obrigados a usar câmeras digitais, eles [os colegas] acham ótimo alguém tentar conseguir um visual fotográfico old school. Isso foi muito gratificante.”

Imagem do topo: foto de David Burnett da prova de mergulho em Barcelona, 1992.

Categorias
Perfil

As mil frutas de Helton

Repousando sobre a relva fofa na sombra do que parece ser uma mangueira apinhada de enormes pêras verdes, Helton Josué Teodoro Muniz toma um punhado de folhas secas na mão como se estivesse erguendo uma batuta. “A natureza funciona como uma orquestra”, ele diz. “Tudo deve ter seu tempo para que o equilíbrio seja alcançado. Se todos os instrumentos tocarem juntos sem harmonia, vira uma zorra.”

Da mesma forma, cada árvore em sua fazenda espera preguiçosamente por sua época de frutar. A variedade é palavra de ordem. Helton caminha por seu pomar como quem dubla Alceu Valença em uma estrofe de “Morena Tropicana”. Sapoti, juá, jaboticaba… Mais de 1.200 espécies de frutíferas convivem pacificamente pelos três hectares. O número deve aumentar com mais 150 variedades que ele planeja semear. Sentado em seu trono forrado de grama-amendoim, ele é o maior frutólogo do Brasil.

As estradas de terra que levam ao Sítio Frutas Raras, em Campina do Monte Alegre, são de um tom ocre-avermelhado. Os pneus voltam de viagem tingidos de uma cor quase de urucum. Se as árvores de Helton são frondosas e fecundas, é muito por causa deste chão chamado latossolo, com traços de areia e argila. A combinação é altamente fértil, e foi uma das responsáveis pela bonança dos barões do café do oeste paulista no século 19. A vegetação que recobre as terras de Helton, dando-lhes um aspecto almofadado, também é grande responsável pelo vigor das mudas livres de agrotóxicos e adubos químicos. A grama-amendoim fixa o nitrogênio no solo, colaborando para a nutrição das raízes, e retém umidade sob suas minúsculas folhas. Na época da roça, a cada três ou quatro meses, pode chegar a 40 centímetros, formando um espesso carpete esverdeado que se estende pela propriedade.

[imagem_full]

LD_Helton_08
Helton exibindo uma cabaça. Foto: Luisa Dörr/Risca Faca

[/imagem_full]
Helton não nasceu ali – é de Piracicaba. Quando veio ao mundo, o oxigênio demorou a chegar em seu cérebro e lhe causou uma disfunção neuromotora. O que os médicos chamam de hipóxia neonatal só lhe permitiu andar ao cinco anos, com a ajuda da fisioterapia. Em sua vida adulta, o quadro compromete alguns movimentos minuciosos e lhe confere certa dislalia, dificuldade em articular sílabas, mas não causa outros impedimentos, não é degenerativo e não afeta seu tempo de vida. Junto à natureza, ele encontrou um estilo de vida que não o limita. “Até quem não tem problema de saúde se sente melhor perto da natureza. Ela é a maior expressão do amor de Deus. Se você trata uma planta com amor, ela vai te retribuir. Da mesma maneira, se você a trata com desleixo, ela vai murchar.”

Helton tem 36 anos. Após viver 14 anos na vizinha Angatuba, mudou-se para o sítio dos avós em 1995, onde permaneceu. Na cidade às margens do rio Paranapanema, os pescadores se embromavam nos cipós que pendiam sobre a correnteza para colher perinhas-do-mato. Era o saputá, como Helton viria a descobrir em sua adolescência, exasperado com o novo mundo de sabores que se descortinava a sua frente. “Como é possível existir tanta fruta e eu só comer laranja e banana?”, ele se inquietava enquanto folheava dicionários em busca de novos nomes ou conversava com senhores sabidos sobre a flora local.

[imagem_full]

LD_Helton_01
Algumas das frutas de inverno do sítio. Foto: Luisa Dörr/Risca Faca

[/imagem_full]
A primeira semente que plantou veio do saputá. E vingou de primeira? “Claro!”, ele replica em tom de obviedade, com o olhar sereno de quem nunca esqueceu de aguar um vasinho de suculentas. O Viveiro Saputá, erguido ao lado de sua casa, foi batizado a partir daquela que lhe deu o gosto pela fruta. As mudas crescem sob o olhar atento de Helton e de sua esposa Emilene Muniz, que o conheceu em um congresso de Testemunhas de Jeová. A equipe conta ainda com dois funcionários. Os pais são vizinhos de poucos metros. Os habitantes mais recentes são Billy, Polly e Nina, cachorros que recebem os visitantes distribuindo lambidas em troca de cócegas na barriga.

Há alguns meses, Helton não agenda mais os tours de três horas que oferecia a R$ 20, normalmente terminando com degustações das frutas da temporada. O sítio se mantém agora através da venda de mudas, que custam em média R$ 25, e de seus dois livros, “Frutas do Mato” e “Colecionando Frutas”, onde dá instruções de plantio e cataloga suas espécies. Uma terceira publicação está sendo escrita em sua biblioteca, que fica anexa à cozinha da casa, onde uma estante de metal guarda diversos potes transparentes cheios de grãos.

[imagem_full]

LD_Helton_02
Crédito: Luisa Dörr/Risca Faca

[/imagem_full]

“Você coloca dinheiro em banco para render. Da mesma forma, meu banco de sementes tem a finalidade de produzir mais plantas.” Para ele, sementes são mais valiosas que tesouros – afinal, cem gramas de ouro não conseguem gerar mais metal precioso. “Isso faz com que eu tenha filhos, netos e bisnetos aqui no pomar. Essas grandes empresas que armazenam sementes têm de pensar também na reprodução. Mas talvez seu interesse não seja guardar, mas ter o monopólio de uma espécie.”

Seus embriões vegetais chegam por correio de colaboradores que possui pelo Brasil afora. A maioria das plantas são nativas do Brasil. Só da região, são 250 espécies. As estrangeiras contam 300, fazendo com que, no pomar, cactos frutíferos encontrados na caatinga brasileira fiquem a poucos passos de um pé de santol, fruta nativa da Malásia. A oferta fácil de sementes, polpas e bagaços atrai quatis, tatus, cotias, capivaras e 120 espécies de aves — Helton afirma que, quando começou o cultivo há dezoito anos, não somavam nem 40.

[imagem_full]

LD_Helton_04
Helton e a simpática Nina na calmaria do sítio. Foto: Luísa Dörr/Risca Faca

[/imagem_full]
O agricultor também aproveita até o caroço o banquete do qual é dono. Como nem toda fruta é boa para comer do pé, algumas são destinadas a chás, geleias, sucos e doces. Sua preferida é o guaimbé, de origem mexicana, cujo gosto ele jura lembrar uma mistura de banana e abacaxi. Helton reivindica para si a criação do doce de azeitona, que, note, não é doce de oliva. “Qual o fruto da oliveira?” Ao se deparar com uma resposta tímida, ele dispara. “É a oliva! Azeitona não é oliva, é o fruto do azeitoneiro!”, diz ele quase irritado, emendando à constatação uma aula sobre as diferenças entre leguminosas, frutas e grãos.

Sua vontade de tornar conhecidas as mais de 4 mil espécies de frutos comestíveis do Brasil lhe atribui um tom ativista. Junto à estação ecológica de Angatuba, ele agora procura patrocinadores para um projeto de cadastramento e instrução de família agricultoras. A intenção é ensinar o cultivo e venda de produtos de origem vegetal, semeando o conhecimento adquirido em uma vida de pesquisa, prática e observação. O título de botânico, para Helton, é mais honorário que acadêmico. “Eu não tenho diploma. Diploma é gostar do que se faz, é se dedicar”, conclui. “Quando alguma pesquisa minha dá resultados, as pessoas me pedem para citar fontes. A fonte é o que eu observei da natureza. A fonte sou eu!”

[imagem_full]

LD_Helton_06
Crédito: Luisa Dörr/Risca Faca

[/imagem_full]

Categorias
História

A última família dos índios Juma

De semblante fechado, respostas curtas e simples, pobres de detalhes, mas extremamente ricas em sentimentos, Aruká reflete sobre o que poderia ter feito para não estar na situação em que se encontra hoje. “Meu pensamento é que o Juma aumentasse mais. Como que não tem mais Juma?”, questiona.

Aruká é o último homem do povo Juma. No século 18 eram cerca de 15 mil índios desta etnia, mas hoje só restaram o senhor de 82 anos e suas filhas Maitá, 31 anos, Borehá, 35 anos, e Mandeí, a mais nova, hoje com 28 anos. Como são patrilinear, ou seja, seguem a linhagem paterna, e como não existem mais homens, o futuro dos Juma já está condenado. Esta é a família final.

Os Juma não têm pajé, mas têm cacique – algo raro, um mulher: Mandeí. Assim como as irmãs, é uma pessoa simpática mas de postura firme. Em 2014 ela estava caçando na floresta e foi picada no pé por uma cobra jararaca, cujo veneno pode ser fatal. A cacique aguentou e só foi atendida dois dias depois, sem necroses ou perda de membros. Mandeí é, sem dúvidas, uma mulher forte. Pela organização e rotina da aldeia é claro notar que são as três Juma que tomam a frente e comandam o lugar – afinal, a terra é delas.

A história segue o mesmo triste roteiro de outros povos indígenas do Brasil. Inicialmente dizimados pelos portugueses, os Juma foram arrasados pelas doenças trazidas pelo homem branco e em seguida por seringueiros, garimpeiros e ladrões de terra. Foi um massacre constante, com relatos de chacinas, mas nenhuma condenação. No final da década de 70, um grupo invadiu a aldeia para roubar e matou mais de 60 índios. O caso apareceu no jornal local, mas não apareceram culpados. Ser indígena no Brasil é como ser jovem, negro e favelado, mas com ainda menos programas sociais e menor visibilidade da imprensa ou de organizações de direitos humanos.

[imagem_full]

juma_riscafaca-2
A cacique Mandeí. Crédito: Gabriel Uchida

[/imagem_full]

Não bastasse todo o sofrimento histórico, em 1998 os poucos Juma restantes foram transferidos pela Funai de sua terra para uma aldeia de outra etnia, a Jamari dos Uru-eu-wau-wau – apesar de a Constituição Brasileira proibir a remoção de indígenas de sua área original. Segundo a Funai, eles estavam à mercê de invasores e correndo perigo de vida e já estavam muito reduzidos.

Após perder seus familiares e também sua terra, o que sobrou aos poucos restantes foi a melancolia. Ivaneide Bandeira, de 57 anos, é indigenista da ONG Kanindé e trabalha há mais de 30 anos na Amazônia. Ela acompanha de perto a história dos Juma. “Quando eles viviam com os Jupaú, conhecidos como Uru-eu-wau-wau, estavam tristes sem poder exercer sua própria identidade porque estavam na terra de outro povo, então acabavam tendo que obedecer outras normas e códigos sociais. O Aruká era muito triste porque sempre foi o líder do povo dele e lá não se sentia respeitado como estava acostumado.”

[imagem_full]

juma_riscafaca-9
Aruká e suas três filhas: a última família. Crédito: Gabriel Uchida

[/imagem_full]

Somente em 2013, e com um número ainda mais reduzido, os Juma voltaram para a sua terra – de mais de 38 mil hectares e demarcada e homologada desde 2004. Ivaneide acompanhou o processo: “Quando o Aruká retornou para a sua área, ficou orgulhoso de voltar a liderar o seu povo e de ter sua cultura e identidade Juma valorizadas, ele estava super feliz em construir suas próprias moradias com as filhas”.

Os pais de Aruká morreram há tempos. A mãe padeceu por conta da malária, enquanto o pai foi assassinado por um seringueiro. Aruká sonhava em construir uma nova maloca para seu povo, mas o número reduzido de índios impediu que isso se torna-se realidade. Agora próximos de uma unidade da Funai, o último Juma ainda reluta em sair de sua região. “Não gosto muito da cidade porque tenho rancor do branco. Ele matou meus parentes.”

[imagem_full]

[/imagem_full]

O acesso até o local é difícil. Do município de Humaitá, que fica a 11 horas de carro de Manaus, segue-se pela Transamazônica em uma interminável reta sem asfalto. Dependendo do tempo, os buracos e a terra viram lama que mais parece sabão sob os pneus. Mesmo com uma caminhonete com tração nas quatro rodas é extremamente difícil completar este trecho que leva em torno de 3 horas, dependendo das condições climáticas. Depois disso ainda falta uma hora de barco até a aldeia, que está às margens do rio Assuã. Um pequeno porto é a entrada das embarcações e também o local para o banho. Dali ainda é puxada a água para algumas torneiras improvisadas.

O sofrimento histórico dos Juma é refletido em sua aldeia: diferentemente do que é encontrado em outras terras, ali não tem posto de saúde, nem igreja, nem pajé e nem campo de futebol. Também não tem eletricidade e o único gerador a gasolina está quebrado. São apenas cinco casas, uma construção para a escola que foi montada mas nunca funcionou e um pequeno tapiri tradicional onde os habitantes se reúnem para as refeições. Além dos quatro sobreviventes, também moram no local alguns indígenas de outras etnias ou já misturados. No entorno da aldeia encontra-se mandioca, castanha e milho. Eles mantêm a tradição de caçar e pescar, principal fonte de alimento e também diversão para as crianças.

[imagem_full]juma_riscafaca-4[/imagem_full]

Apesar da idade, o senhor Aruká tem um corpo imponente, anda com firmeza e caça sozinho. Ele fala pouco e quando o faz é breve e apenas na língua indígena – não entende o português. Mas seus olhares são poderosos e ele está sempre atento. Enquanto todos comem, conversam, fazem piadas e fumam tabaco, ele se senta na ponta da mesa e fica calado observando como se estivesse tomando conta de tudo. Aruká não gosta muito de ter sua rotina incomodada.

Aruká sente o peso de ser o último dos seus. “Hoje em dia sinto sozinho e penso muito em antigamente, que tinha muita gente”, desabafa. “A gente era muitos e depois vieram o seringueiro e o garimpeiro para matar o povo Juma todinho.” Enquanto acompanha a vida de suas filhas e toma remédios para dores nas costas, o derradeiro Juma pensa no que já se foi. “Antigamente o Juma era mais feliz… e hoje só tem eu.”


 

Mais fotos da visita de Gabriel Uchida a tribo Jumá:

[imagem_full]juma_riscafaca-3[/imagem_full]

[imagem_full]juma_riscafaca-5[/imagem_full]

[imagem_full]juma_riscafaca-11[/imagem_full]

[imagem_full]juma_riscafaca-6[/imagem_full]

[imagem_full]juma_riscafaca-1[/imagem_full]

[imagem_full]juma_riscafaca-15[/imagem_full]

[imagem_full]juma_riscafaca-14[/imagem_full]

Categorias
Perfil

Um fotógrafo contra as remoções

Em uma quarta-feira de novembro, o fotógrafo Maurício Hora recebia, no amplo salão do Zona Imaginária, uma cooperativa de artes visuais criada por ele na Zona Portuária do Rio de Janeiro, a artista alemã transgênera Tobi Möring, adepta de instalações com materiais descartados. Tobi — ou Miss Tobi, como é conhecida — voltava de um ferro velho da redondeza, os braços repletos de resíduos. Ela foi depositando a matéria prima no chão da sala, ao lado de três esboços de esculturas feitas em papelão, que dias depois seriam revestidas de metal e instaladas ali perto, no alto do Morro da Providência, para festejar o aniversário da mais importante favela da região. Explicitamente contestadoras, as formas desenhavam, com traços quase infantis, um político engravatado falando no microfone, um policial com um fuzil, e um trator – símbolo máximo das remoções que ameaçam a favela.

Em um espanhol um tanto enferrujado, Tobi me explicou que usa os espaços públicos para fazer perguntas pertinentes. No caso da Providência, as esculturas indagavam: para quem são as Olimpíadas do Rio de Janeiro? Quais são as consequências para as pessoas que moram na favela? Quem se beneficia com os Jogos?

Era uma tarde quente. Colocando-se em frente a um velho ventilador de metal, cujas hélices enferrujadas giravam ruidosamente, Maurício observou por um instante a obra de sua colega estrangeira. Depois, balançou a cabeça de leve e soltou uma risadinha. Sua expressão era muito mais de ironia resignada do que de reprovação.

“Acho que isso não vai durar muito lá em cima, não…”, lamentou. “É uma crítica às Olimpíadas. Ele quer fazer um pódio com esses três elementos [o trator, o político e o policial], cada um em uma marcha.”

Perguntei por que a instalação não iria durar. Ele respondeu com naturalidade. “Ah, porque é uma crítica… A prefeitura certamente vai criar um argumento: ‘Isso não pode estar aqui, está atrapalhando um lugar público’.”

Maurício Hora. Crédito: Divulgação
Maurício Hora. Crédito: Divulgação

Maurício sabe do que está falando. Nascido e criado na favela da Providência, onde ainda reside, o fotógrafo sempre negociou seu trabalho com os agentes dominantes do morro: o tráfico, a polícia e o poder público, todos muito sensíveis a qualquer tipo de crítica. Homem baixo, de cabelo preto encaracolado e olhos estreitos, escondidos atrás de óculos de aros enormes, Maurício é descendente de escravos, filho do primeiro chefe de boca de fumo do Rio. Fotógrafo autodidata, foi pioneiro ao retratar o cotidiano cordial e pouco conhecido da favela, longe do clichê da violência: crianças brincando, famílias em seus momentos domésticos, pessoas tentando viver normalmente em meio à pobreza e à vulnerabilidade.

Ao colocar as ruas e as casas da Providência em primeiro plano, suas fotos chamaram a atenção das universidades de arquitetura em todo mundo. Artistas e fotógrafos de outros países passaram a visitar Maurício com regularidade. Em 2005, ele ajudou a criar o projeto Favelité, que colocou o cenário da favela no metrô parisiense. Em 2009, o artista multimídia francês JR, que havia descoberto suas fotos em Paris, viajou ao Rio para conhecê-lo e lhe propôs a parceria em um projeto internacional de intervenção em áreas de conflito. O resultado foi exposto no Centro Cultural da Casa França Brasil no ano seguinte.

[olho]Maurício depende da autorização dos traficantes para fotografar o morro noite adentro[/olho]

Aos 47 anos, Maurício é hoje um verdadeiro embaixador da Providência, com raízes fincadas em sua comunidade e uma abertura invejável fora dela. Mas a permanência em um lugar tão problemático tem seu preço. Conhecido por seu trabalho com longa exposição, que captura cenas noturnas de uma favela etérea e fantasmagórica, Maurício depende da autorização dos traficantes para fotografar o morro noite adentro. Há lugares onde ele simplesmente não pode puxar a câmera — e inúmeras fotos já foram perdidas pela falta de liberdade.

“Através da fotografia, consegui identificar o território: andei por tudo, fotografei o morro todo, conheço muito bem as pessoas”, diz. “Isso me deu uma noção e uma capacidade de discutir o território. Agora, me frustra porque, no fim, vale o que o tráfico determina. Por causa do descaso das administrações, é ele que tem força. O tráfico consegue transformar e fazer ações, às vezes sem pensar, e a comunidade aceita, e até gosta. E eu, que estou ali, não consigo fazer nada. Já aprendi que não posso brigar contra isso.”

O tráfico, contudo, não é o único a impor obstáculos. Apesar de discordar dos novos planos da prefeitura para a favela, Maurício precisa maneirar suas críticas e contar com a boa vontade dos órgãos públicos em patrocinar alguns de seus projetos. Seja no Estado paralelo ou no oficial, a diplomacia é uma questão de sobrevivência.

[imagem_full]

Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora
Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora

[/imagem_full]

O momento é especialmente delicado para Maurício e os residentes da Providência, que, dentro do plano de revitalização da Zona Portuária da cidade, vive um intenso processo de gentrificação. Em junho de 2012, uma quantidade impressionante de obras foi iniciada. Em função do Projeto Porto Maravilha e da megatransformação da região, moradias foram deslocadas e os alugueis inflacionaram, afetando a permanência de alguns dos moradores mais antigos.

Segundo dados da própria prefeitura, até este ano mais de 80 mil pessoas foram tiradas de suas casas em todo o Rio de Janeiro. A urgência das obras das Olimpíadas de 2016 impulsionaram a especulação imobiliária na Zona Portuária, apontam os pesquisadores Lena Azevedo e Lucas Faulhaber, que publicaram este ano o livro “SMH 2016: Remoções no Rio e Janeiro Olímpico” (Mórula Editorial). Não foi diferente com a Providência, que inicialmente previa o reassentamento de 760 famílias. Em 2012, cinquenta e cinco delas já haviam sido deslocadas para empreendimentos em áreas próximas à favela. Segundo os moradores, a Secretaria Municipal de Habitação (SMH) comunicava as desapropriações através de pichações nas paredes das casas.

Originalmente conhecida como Morro da Favela – o nome deu origem ao termo mundialmente difundido – a Providência é o primeiro assentamento urbano informal da cidade. Situado entre os bairros do Santo Cristo e da Gamboa, foi ocupado em 1897 por soldados veteranos da Guerra de Canudos, que regressaram ao Rio para receber casas prometidas pelo governo. Como a promessa não foi cumprida, instalaram-se em construções provisórias no local. Machado de Assis nasceu em um imóvel ao pé do morro, que ainda abriga uma escadaria do século 19 e um capela construída em 1905.

[olho]”A transformação tem que ser pensada pela própria comunidade. Não adianta colocar um teleférico se ele não atinge 5% dos moradores”[/olho]

Mesmo sem o apelo das favelas do Vidigal ou do Chapéu Mangueira, a Providência interessa por seu valor histórico e cultural, somado à espetacular vista para o porto e para o Centro. Muitos moradores se dizem descontentes com os rumos das obras, que estariam mais focadas no futuro potencial comercial e turístico do morro do que com o bem estar dos que vivem lá. Um símbolo do novo projeto é o teleférico inaugurado em julho do ano passado, que liga a Praça Américo Brum, no alto do morro, à Central do Brasil e à Gamboa. Além da pouca utilidade para os moradores – a maioria dos seus usuários, explica Maurício, são pessoas de outros lugares que o utilizam para evitar a travessia a pé do túnel da Central – sua construção eliminou uma quadra de esportes, até então o único espaço recreativo da favela.

“As remoções são cruéis porque não estão sendo pensadas pelos moradores, e sim pelo poder público, que não tem nada a ver com aquilo ali, que não participa, não sabe o que é um tiroteio, não sabe o que é a ação da polícia dentro do morro. É injusto”, desabafa. “A transformação tem que ser pensada pela própria comunidade. Não adianta colocar um teleférico se ele não atinge 5% dos moradores.”

A questão, porém, é complexa. As melhorias da prefeitura foram aprovadas por muitos moradores. Quem tem título de propriedade, por exemplo, anseia em vender sua casa recém-valorizada e se mudar do morro.

“Acho que tudo é uma grande armadilha”, argumenta Maurício. “As pessoas vivem numa ideia de ascensão de vida, de melhorar, de sair de lá. Mas por que não transformar aquilo em um lugar melhor para as pessoas que já estão lá? Se já é uma expectativa da cidade de que isso vire um lugar melhor, por que não transformar para essas pessoas, que seguraram essa onda até agora? É digno que elas permaneçam de uma forma melhor, não que sejam removidas.”

Os artistas locais e visitantes que desejam denunciar essa realidade se apoiam em Maurício. Com seu bom trânsito e conhecimento do local, seu nome sempre pipoca quando pessoas de fora trocam ideias sobre a Providência. Foi assim com Tobi — que ouviu pela primeira vez sobre o fotógrafo ao conversar com uma amiga sobre seu projeto — e com Cecília Cipriano, autora de uma crítica contundente sobre as remoções na favela. Em seu projeto “O corte”, a artista fez uma intervenção em uma das casas marcadas para demolição pela SMH — da construção original, restam hoje apenas as ruínas, mas as fotos da iniciativa estiveram em exposição no Itaú Cultural, em São Paulo. Coube a Maurício fazer a ponte entre Cecília e os moradores.

“Maurício é um líder de grande atuação na luta de melhorias de vida da comunidade do Morro da Providência”, disse-me dias depois Cecília, em entrevista por e-mail. “Participou ativamente na tentativa de criar uma política alternativa de moradia e faz parte da terceira geração de moradores na comunidade, o que o faculta a contribuir intensamente na preservação da memória da toda a Região Portuária. Recebe cordialmente inúmeros visitantes, geralmente críticos do projeto urbanístico da Região Portuária, inclusive eu.”

Os dois conversaram pela primeira vez em 2012. Com a ajuda de Maurício, Cecília foi conhecendo os moradores das casas marcadas pela SMH para a construção de uma suposta “moto-via”, que ligaria a Vila Portuária à praça do teleférico, e também os moradores do topo do morro, no Cruzeiro, onde está localizado o oratório construído em 1902 e tombado pelo Patrimônio Histórico Municipal.

“Nesse local, apesar das marcações das casas, e da demolição de uma delas, o objetivo da desocupação não ficou claro para os moradores e nada foi construído”, diz Cecília. “Alguns moradores acreditavam, inclusive, que seria construído um grande hotel do empresário Eike Batista.”

Localizado em um imóvel de 400 metros quadrados da Rua Pedro Ernesto, no coração do bairro da Gamboa, a própria Zona Imaginária – o espaço criado por Maurício para que artistas urbanos e visuais desenvolvessem seus trabalhos – tem sofrido com os ataques do Rio Olímpico. Com as obras a todo vapor, demolindo e martelando ao longo do dia, a rua mais parece uma zona de guerra ou um cenário de filme apocalíptico. É como se a região sofresse uma autópsia: asfalto aberto como veias e esgoto correndo como sangue. O barulho de obras é constante.

“E olha que agora está bem melhor”, disse Maurício. “Você tinha que ver antes…”

A poeira das obras invadia o salão do imóvel, que Maurício transformou em ateliê. Pelo vidros quebrados das janelas, de frente para a Pedro Ernesto, vê-se a favela da Providência erguer-se desordenadamente por trás dos prédios e uma pequena ponta do Museu José Bonifácio, que sempre expõe obras do fotógrafo. No ateliê improvisado espalham-se sofás e poltronas e uma mesa de trabalho. Encostada em uma das paredes, um amontoado de portas soltas formam uma obra do português Alexandre Farto, o Vhils, que recentemente cravou retratos de moradores nas ruínas das casas demolidas da Providência. Na parede do outro lado, telas da carioca Vanessa Rosa, que transformou fotos de Maurício em pintura.

Zona Imaginária e sua janela quebrada. Crédito: Bolívar Torres
Zona Imaginária e sua janela quebrada. Crédito: Bolívar Torres

Vanessa chegou no espaço logo depois de Tobi. É uma jovem de cabelo preto ondulado e pele branca. Protegia-se do sol da tarde com um largo chapéu. Sua figura contrastava com a de Tobi, germânica esguia e desengonçada, de cabelo loiro longo amarrado em um rabo de cavalo. Tobi vestia uma bermuda masculina estilo tenista. Ao encontrar qualquer pessoa, soltava instintivamente uma risada amistosa e desarmada. Vanessa, que já morou e expôs em Berlim, foi apresentada a Tobi e trocou algumas palavras com ela em alemão.

Maurício interrompeu a conversa em tom de brincadeira. “Quantas línguas você fala, Vanessa?” Ao descobrir que ela também se virava em francês, inglês e espanhol, ele se voltou para mim: “Aí é outra coisa. Classe média…”

Vanessa escolheu recriar fotos bastante representativas do universo de Maurício. Pendurada em cima da entrada do estúdio, aos fundos do espaço, uma tela mostrava duas crianças negras – uma menina de vestido e um menino de bico na boca e mão dentro da bermuda – posando em frente a um barraco. Um vira lata passa faceiro na rua ao lado deles, como se quisesse voluntariamente ser registrado na cena.

Dias antes, Vanessa levara o quadro debaixo do braço até a Providência para mostrá-lo aos moradores. Os pedestres a olharam com curiosidade ao longo do trajeto entre o Zona Imaginária e a favela, e alguns até a pararam para perguntar sobre a obra. Daí veio a ideia de um futuro projeto: trazer as telas para a Providência e fotografá-las nos espaços que elas retratam, evidenciando a passagem do tempo e possibilitando um novo enquadramento.

“Toda minha relação com a Providência é através do Maurício”, contou-me Vanessa. “Como alguém que vem de fora, acho difícil se inteirar completamente com a região, interpretar todos os seus códigos. É um pouco como se eu passasse a entender a região pelos olhos do Maurício. Não fosse assim, a gente [os artistas de fora] fica muito invasivo.”

Ela vê Maurício como um grande articulador, que não apenas consegue se comunicar com grupos diferentes, como também sabe “valorizar a estética além do entendimento social”.

[olho]”Eu sou o primeiro favelado, em 116 anos, a ir a Canudos”[/olho]

“Acho difícil para alguém de fora ter uma compreensão das dificuldades que esta região passou nesses anos todos”, continua Vanessa. “O Maurício tem um olhar particular da política interna, de saber o posicionamento de pessoas ligadas ao tráfico, pessoas que conviveram com ele desde pequeno, ou de ter que negociar com a associação de moradores, com o policial, com a prefeitura… Mas ele também tem uma visão do externo, do mundo da fotografia, do contexto artístico, tendo contato com artistas de fora da Providência e com eventos de movimentos sociais do mundo todo.”

Nascida em uma família de editores, Vanessa está ajudando Maurício na preparação editorial de seu mais novo livro, “Morro da Favela à Providência de Canudos”, um ensaio fotográfico que mostra as relações entre Canudos e a Providência. Com patrocínio master da Fundação Ford, Maurício viajou ao Nordeste Baiano e fotografou as ruínas da antiga Canudos, que apareceram após a seca.

“Eu sou o primeiro favelado, em 116 anos, a ir a Canudos”, observou Maurício, sem esconder seu orgulho. “Você imagina que os primeiros ocupantes da Providência foram soldados de Canudos. Os caras passaram os maiores massacres. Degolar pessoas era uma prática comum. Foram essas pessoas que vieram para cá… É algo interessante quando se pensa a origem da violência na favela.”

[imagem_full]

Um dos cenários de Canudos. Crédito: Maurício Hora
Um dos cenários de Canudos. Crédito: Maurício Hora

[/imagem_full]

Na Providência, Maurício foi testemunha privilegiada de uma história de extremos: viu de perto a gênese do tráfico nos anos 60 e teve um papel ativo, a partir dos anos 90, na formação de uma cena cultural e artística no morro. A atípica trajetória pessoal fascinou o desenhista André Diniz, que publicou uma biografia em quadrinhos do fotógrafo. Lançada em 2011, a graphic novel “Morro da favela” (Barba Negra) é uma espécie de romance de formação de um morador da favela. Através das memórias de Maurício, retrata as dificuldades de se viver no morro, desde a falta de recursos aos abusos da polícia e à proximidade com os grupos criminosos. Mas também tenta, assim como as fotos de Maurício, divulgar uma outra favela: a dos afetos familiares, da solidariedade e da joie de vivre.

A obra responde a uma pergunta que o biografado já está cansado de ouvir: por que não ir embora da favela e de seus perigos? Porque ele não vê nada de diferente lá embaixo, porque ele é e sempre será um fotógrafo favelado, e porque nem todo favelado é “bagunceiro e ladrão”, responde Maurício logo na abertura do livro. Embora essa visão generosa seja apenas uma entre as milhões possíveis de cada morador, Diniz acredita que ela ajuda a desmistificar as certezas criadas a partir das manchetes de jornais – o retrato monocromático que a população do “asfalto” já se habituou a ver na mídia.

“Ao longo de alguns meses, encontrei com Maurício diversas vezes no alto da Providência”, contou-me Diniz, alguns dias antes, por email. “Sou carioca e morei no Rio até os meus 28 anos e, no entanto, foi minha primeira vez em uma favela. Entrei lá a primeira vez zerando qualquer expectativa ou ideia pré-concebida, dentro do que me era possível. Eu queria que o livro fosse de fato a visão de Maurício e só dele. Ao longo dos meses e das visitas, claro, fui formando também a minha visão, que de fato me fez crescer muito e a entender que falarmos “o favelado” é tão impreciso como falarmos “o europeu”. Não há “o favelado”, há o Maurício, há o Antonio, há a Maria, há a Daniele. Cada um é um, cada pessoa é diferente, tem a sua própria história.”

[olho]”Antes, as pessoas vendiam em casa. O meu pai também vendia em casa, mas foi preso porque um dos fregueses era policial e denunciou ele.”[/olho]

Publicado na França e em Portugal, o livro também joga luz sobre a evolução do tráfico na cidade. Na década de 60, o pai de Maurício, Seu Luizinho, inaugurou, segundo o fotógrafo, a primeira boca de fumo do Rio. Era ainda o tempo romântico do tráfico: pouca fiscalização da polícia e bandidos malandros.

“O tráfico mais antigo é o da Providência”, afirmou Maurício. “Antes, as pessoas vendiam em casa. O meu pai também vendia em casa, mas foi preso porque um dos fregueses era policial e denunciou ele. O que também acontecia muito era o freguês ser preso e contar onde comprou. Então, quando o meu pai sai da prisão, ele decide vender na rua. Fixaram um ponto para vender. Mas marginal na época não era o tráfico, era o jogo de ronda. Polícia subia o morro por causa do jogo.”

Aos poucos, o cenário começou a mudar. Seu Luizinho foi preso pela segunda vez e, ao sair da prisão nove meses depois, decidiu abandonar o crime. Dedicou-se à pacata vida de estivador, enquanto o tráfico tomava outros caminhos, com a adoção da artilharia pesada e a formação do crime organizado. Um rumo que Luizinho lamentou até a sua morte, em 2014, de câncer.

“Na segunda vez que o meu pai foi preso ia ser uma pena pesada”, lembrou ele. “Mas como os policiais roubaram o que ele tinha, o promotor acreditou na história dele e, na acusação, incriminou os policiais também. Dos quinze policiais, só cinco apareceram no tribunal e meu pai foi absolvido por falta de provas. Eu tinha dez anos e aquilo me fez entender como funcionava um tribunal. Antes do julgamento o promotor foi lá, cumprimentou meu pai, desejou boa sorte… Durante o julgamento, não parou de malhar ele.”
Maurício nunca se meteu com tráfico. Herói de infância, seu irmão, Jorge, começou praticando crimes leves e logo entrou no pesado negócio do assalto a bancos. Aos 27 anos, desapareceu. A família descobriu que ele havia sido preso em Botafogo, mas não o encontrou por lá. Tempos depois, uma ossada com 19 corpos foi descoberta em Sumaré. Maurício acredita que um deles era o do irmão, mas nunca conseguiu comprovar.

Formado em um ambiente em que traficantes não raro ajudam a comunidade e em que os policiais muitas vezes roubam e forjam flagrantes, Maurício aprendeu desde cedo que a noção de “bandido” podia ter muitas nuances. Ele, porém, nunca se meteu com crime. Na adolescência, arranjou um emprego como ourives. Na oficina com 21 funcionários, ele era o único que não usava drogas. Um dia, ao visitar um cliente, bateu o olho em uma câmera Pentax. Comprou a máquina com o dinheiro das joias e nunca mais parou de fotografar.

“Meu pai tinha uma vida muito tranquila na adolescência, era um cara que estudou legal. Mas [a Providência] era um lugar muito marginal. Imagina se você tiver que morar hoje na Central do Brasil. Cara, você vai se marginalizar. Talvez você não mude o seu caráter, mas você vai ter que ser malandro.”

[imagem_full]

Um clique noturno do Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora
Um clique noturno do Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora

[/imagem_full]

Ao mesmo tempo em que ajuda artistas de fora a se localizar e se familiarizar com a comunidade, Maurício também ajuda os jovens moradores a entrar em contato com o mundo cultural fora dela. Mistura de antropólogo, historiador e assistente social, ele ministra oficinas e coordena uma cooperativa de fotógrafos, que usa o estúdio montado nos fundos do imóvel do Zona Imaginária. Composta principalmente de aspirantes da periferia que não conseguem evoluir na carreira por falta de dinheiro, a organização permite o compartilhamento de equipamentos caros. Além do Zona Imaginária, Maurício também toca a Casa Amarela, um espaço cultural e de aprendizado situado no alto da Providência.

Todas as ações estão ligadas ao Instituto Favelarte, criado em 2010 por Maurício e por seu sócio Renato Barbosa para fomentar uma política de progresso nas comunidades carentes e superar a exclusão social. Na graphic novel de André Diniz, uma cena chama atenção: é quando um garoto problemático, que tinha muita vergonha de sua casa humilde, se emociona ao vê-la fotografada por Maurício. A transformação pela arte foi tão forte, que a sua vergonha sumiu instantaneamente.

Maurício me levou até a Casa Amarela, uma construção de dois andares em frente à praça em que Tobi iria instalar suas esculturas. Com todas as portas e janelas fechadas, ela parecia estar abandonada. Na verdade, o espaço vinha sendo pouco utilizado desde que o Zona Imaginário passou a monopolizar as energias do Favelarte. Atrás do portão da entrada, resíduos jogados em uma caixa exalavam um cheiro forte. Havia lixo espalhado por todo pátio. Lá dentro, algumas das peças estavam sem luz. Maurício foi me mostrando o espaço de leitura, no segundo andar. Os livros estavam jogados pelos cantos, como se alguém tivesse feito uma varredura.

De fato, a polícia invadiu o local recentemente. Em uma de suas batidas na favela, arrombou portas e foi embora sem deixar aviso. Durante três dias, a casa ficou abandonada, toda aberta. A garotada do morro aproveitou para invadir. Comeram os biscoitos da provisão, roubaram lápis e caneta e bagunçaram o espaço.

“Nesse tempo em que a casa ficou aberta, ninguém tocou em nenhum objeto de valor” ressaltou Maurício. “Eu tinha máquina fotográfica, tinha equipamentos caros, e eles deixaram tudo lá, direitinho.”

Ex-aluno da Casa Amarela, Diego de Deus da Conceição, conheceu Maurício aos 15 anos. Hoje com 27 anos, ele trabalha como office boy no Museu de Arte do Rio – um dos mais ambiciosos investimentos culturais na Zona Portuária. Durante uma folga em seu trabalho no museu, ele me encontrou na esquina da rua Sacadura Cabral com a Pedra do Sal, núcleo simbólico da antiga Pequena África do Rio. Diego foi iniciado por Maurício na fotografia, ganhou prêmios com um trabalho sobre as Unidades Pacificadoras, e agora está tentando trabalhar com vídeo. Seu projeto é fazer um documentário centrado na figura do morador Eron César dos Santos, que vive há mais de 40 anos na Providência.

Responsável pela igreja de Nossa Senhora da Conceição, no alto do morro, Eron reúne contos e lendas sobre a favela, estudando, através do pouco conhecido folclore local, outras visões da história dela.

“Você ouve muitos coletivos artísticos baseados na favela dizendo muita coisa, mas fazendo pouco”, lamentou Diego. “Tem muito mais para ser trabalhado e muito mais gente a ser atingida. No próprio morro onde fico, no ponto mais alto, ali no Largo do Cruzeiro e na Praça Américo Brum, tem uma quantidade significativa de crianças que não estão fazendo nada. Maurício mudou muito meu olhar sobre a comunidade, e agora quero mudar o olhar dessas crianças. Quero trazê-las para os nossos projetos, mas nem todo mundo tem a mesma curiosidade, o mesmo olhar. Acho que falta uma maior união. Vejo muita gente trabalhando fechada em si próprio, levando o nome da Providência para fora, mas nunca para dentro.”

Crédito: Maurício Hora
Crédito: Maurício Hora

Menos de uma semana depois, com o pódio de Miss Tobi já instalado na Providência e imune — até o momento — a qualquer restrição da prefeitura (“Acho que o pessoal não entendeu”, brincou Maurício), descubro que o Zona Imaginária foi assaltado. No dia em que as esculturas foram inauguradas, ladrões entraram no espaço, roubaram equipamentos e o dinheiro do patrocínio do livro sobre Canudos. “Levaram muita coisa, mas tudo bem”, me disse Maurício por telefone, em uma voz conformada.

Dias antes, Maurício havia me confidenciado: “Sempre briguei pela favela, porque acho que tenho uma divida com a comunidade. Eu tenho uma divida por conta do meu pai. A coisa do tráfico é tão importante na favela… Não que eu seja importante aqui dentro, não é nada disso. E talvez nem seja tanto uma questão de culpa, talvez seja de pertencimento. Aquilo ali, o morro, também é meu. Eu me sinto tão parte daquilo que tenho uma pretensão, talvez idiota, de achar que eu possa ajudar. Tento unir os jovens, fazer eles entenderem o território, deslocá-los por diferentes partes da comunidade… Acho que isso é importante para eles.”