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História

Carandiru, 1992

O relógio batia por volta das 16h20 naquele 2 de outubro de 1992. Para 111 homens presos no Pavilhão Nove do Carandiru, os ponteiros deslizavam feito foices. A cada milímetro, um segundo mais próximos da hora de sua morte. Quem sobrevivesse, ainda encararia a violência, o medo e a humilhação para se tornar memória do horror.

No perfil @carandiru1992, o Risca Faca voltou o tempo em 24 anos. Em feeds frenéticos de informações tão abundantes quanto diversas, resgatamos lembranças terríveis, desconfortáveis, necessárias. Minuto a minuto, cobrimos os acontecimentos como se aquele dia se descortinasse hoje, diante de nossos olhos.

Os tuítes foram publicados nos horários aproximados em que cada evento do massacre ocorreu: do confronto inicial entre detentos até a contagem dos sobreviventes, ainda olhando duas décadas e meia à frente para um futuro de pouco esclarecimento. Abaixo, reunimos todos eles.

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Cinema

A grande expectativa e ‘O Pequeno Segredo’

“O Pequeno Segredo”, filme escolhido pelo Brasil para disputar uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro em 2017, é inspirado no livro homônimo escrito por Heloisa Schurmann. A obra é dirigida pelo seu filho, David Schurmann. O roteiro retrata, mais uma vez, os Schurmann e sua principal temática é, adivinhe, as relações familiares. Não surpreende que o resultado seja uma pieguice sem fim, tão estimulante quanto uma piada do pavê no almoço de domingo.

O problema nem é tanto o fato de as personagens enfrentarem conflitos já manjados no cinema, mas sim a forma como são apresentados. A garotinha púbere que não se encaixa entre os amigos, a mãe que se preocupa com o bem-estar ameaçado de sua filha, o casal vindo de mundos diferentes que luta pelo amor… É possível retratar angústias comuns de maneiras interessantes. O cinema também serve para isso. Não é um feito que Schurmann consiga.

O roteiro não ajuda por carecer de profundidade ou qualquer graça que fizesse a produção parecer menos monótona. É comum adivinhar o fim da piada antes mesmo de os atores terminarem a fala, ou já saber exatamente as próximas palavras de um diálogo. A obviedade e os clichês tornam difícil não levar a mão à testa em constrangimento. Falta realidade ao filme. Deficiência no mínimo paradoxal, já que estamos falando de uma trama baseada em fatos reais.

Material não faltaria. Enquanto vivência, a história é inegavelmente bonita e emocionante. Aliás, se o filme tem alguma chance de levar a estatueta, é por essa razão. Em meio a um mar de sentimentalismo barato, as cenas que realmente emocionam falam da AIDS e da aceitação do fim que o soropositivo tem de enfrentar. Há tato na maneira com que a doença é retratada. Isso é facilitado pelo elenco talentoso, bem escolhido e fiel aos papéis, encabeçado por Julia Lemmertz. Uma pena artistas de tanta destreza terem de trabalhar com personagens tão mal construídos.

O tempo em que os acontecimentos sucedem não segue linearidade, mas o vaivém é tanto que fica desnecessário e pouco demarcado. O recurso dá vez a furos no roteiro. Em uma cena, por exemplo, a brasileira Jeanne (Maria Flor) e o neozelandês Robert (Erroll Shand) nem se conhecem. Na cena seguinte, o rapaz a persegue por uma rua, ela o confronta, ele pede desculpas e… Pronto, já estão perdidamente apaixonados depois de trocarem literalmente duas frases. É um erro narrativo que pode facilmente ser confundido com o estereótipo da “morena que fisga o gringo”. Perigoso, ainda mais em um filme que faz questão de evidenciar este preconceito entre “civilizados” e “selvagens”. A própria Fionnula Flanagan é colocada para interpretar uma caricatura forçada da estrangeira preconceituosa, que fala em “tribos brasileiras” e “morar na floresta”.

A fotografia lembra papéis de fundo em vídeo de karaokês e aquelas fotos que vêm dentro de porta-retratos novos. Não é esteticamente feio, mas é cafona. Para se ter noção, a primeira cena abre com uma borboleta amarela sobrevoando o oceano. O figurino de Julia Lemmertz frequentemente apresenta estampas ou acessórios com desenhos de aves voando — a vida ao mar, sem amarras, livre como um pássaro.

Dentro da polêmica sobre a indicação à Academia, tudo o que falta de realidade em “O Pequeno Segredo” está presente em “Aquarius”. São filmes com fins diferentes e compará-los soa desastrado. No entanto, analisados em sua singularidade, “Aquarius” tem um enredo instigante, de takes mais originais. Um filme sobretudo inteligente porque esse é seu propósito em uma época marcada por turbulências políticas, embates sociais e crise econômica. A Clara de Sônia Braga tem mais força e vigor que vários personagens de David Schurmann reunidos. Até quando aborda a família, Kleber Mendonça Filho consegue uma perspectiva mais genuína, como na cena da briga entre mãe e filha, na figura da matriarca, nos trabalhadores que são estranhamente agregados como quase-parentes em nossa cultura.

“O Pequeno Segredo”, por sua vez, pode até atrair grandes públicos e fugir da temida categoria de “filme de arte”, mas não tem a autenticidade de tantas outras produções nacionais. Nem em sua missão de querer insistentemente fazer chorar ele é bem sucedido. Quem sabe daqui 20 anos a obra não vira um clássico das tardes televisivas no Brasil.

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Perfil

As mil frutas de Helton

Repousando sobre a relva fofa na sombra do que parece ser uma mangueira apinhada de enormes pêras verdes, Helton Josué Teodoro Muniz toma um punhado de folhas secas na mão como se estivesse erguendo uma batuta. “A natureza funciona como uma orquestra”, ele diz. “Tudo deve ter seu tempo para que o equilíbrio seja alcançado. Se todos os instrumentos tocarem juntos sem harmonia, vira uma zorra.”

Da mesma forma, cada árvore em sua fazenda espera preguiçosamente por sua época de frutar. A variedade é palavra de ordem. Helton caminha por seu pomar como quem dubla Alceu Valença em uma estrofe de “Morena Tropicana”. Sapoti, juá, jaboticaba… Mais de 1.200 espécies de frutíferas convivem pacificamente pelos três hectares. O número deve aumentar com mais 150 variedades que ele planeja semear. Sentado em seu trono forrado de grama-amendoim, ele é o maior frutólogo do Brasil.

As estradas de terra que levam ao Sítio Frutas Raras, em Campina do Monte Alegre, são de um tom ocre-avermelhado. Os pneus voltam de viagem tingidos de uma cor quase de urucum. Se as árvores de Helton são frondosas e fecundas, é muito por causa deste chão chamado latossolo, com traços de areia e argila. A combinação é altamente fértil, e foi uma das responsáveis pela bonança dos barões do café do oeste paulista no século 19. A vegetação que recobre as terras de Helton, dando-lhes um aspecto almofadado, também é grande responsável pelo vigor das mudas livres de agrotóxicos e adubos químicos. A grama-amendoim fixa o nitrogênio no solo, colaborando para a nutrição das raízes, e retém umidade sob suas minúsculas folhas. Na época da roça, a cada três ou quatro meses, pode chegar a 40 centímetros, formando um espesso carpete esverdeado que se estende pela propriedade.

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Helton exibindo uma cabaça. Foto: Luisa Dörr/Risca Faca

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Helton não nasceu ali – é de Piracicaba. Quando veio ao mundo, o oxigênio demorou a chegar em seu cérebro e lhe causou uma disfunção neuromotora. O que os médicos chamam de hipóxia neonatal só lhe permitiu andar ao cinco anos, com a ajuda da fisioterapia. Em sua vida adulta, o quadro compromete alguns movimentos minuciosos e lhe confere certa dislalia, dificuldade em articular sílabas, mas não causa outros impedimentos, não é degenerativo e não afeta seu tempo de vida. Junto à natureza, ele encontrou um estilo de vida que não o limita. “Até quem não tem problema de saúde se sente melhor perto da natureza. Ela é a maior expressão do amor de Deus. Se você trata uma planta com amor, ela vai te retribuir. Da mesma maneira, se você a trata com desleixo, ela vai murchar.”

Helton tem 36 anos. Após viver 14 anos na vizinha Angatuba, mudou-se para o sítio dos avós em 1995, onde permaneceu. Na cidade às margens do rio Paranapanema, os pescadores se embromavam nos cipós que pendiam sobre a correnteza para colher perinhas-do-mato. Era o saputá, como Helton viria a descobrir em sua adolescência, exasperado com o novo mundo de sabores que se descortinava a sua frente. “Como é possível existir tanta fruta e eu só comer laranja e banana?”, ele se inquietava enquanto folheava dicionários em busca de novos nomes ou conversava com senhores sabidos sobre a flora local.

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Algumas das frutas de inverno do sítio. Foto: Luisa Dörr/Risca Faca

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A primeira semente que plantou veio do saputá. E vingou de primeira? “Claro!”, ele replica em tom de obviedade, com o olhar sereno de quem nunca esqueceu de aguar um vasinho de suculentas. O Viveiro Saputá, erguido ao lado de sua casa, foi batizado a partir daquela que lhe deu o gosto pela fruta. As mudas crescem sob o olhar atento de Helton e de sua esposa Emilene Muniz, que o conheceu em um congresso de Testemunhas de Jeová. A equipe conta ainda com dois funcionários. Os pais são vizinhos de poucos metros. Os habitantes mais recentes são Billy, Polly e Nina, cachorros que recebem os visitantes distribuindo lambidas em troca de cócegas na barriga.

Há alguns meses, Helton não agenda mais os tours de três horas que oferecia a R$ 20, normalmente terminando com degustações das frutas da temporada. O sítio se mantém agora através da venda de mudas, que custam em média R$ 25, e de seus dois livros, “Frutas do Mato” e “Colecionando Frutas”, onde dá instruções de plantio e cataloga suas espécies. Uma terceira publicação está sendo escrita em sua biblioteca, que fica anexa à cozinha da casa, onde uma estante de metal guarda diversos potes transparentes cheios de grãos.

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Crédito: Luisa Dörr/Risca Faca

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“Você coloca dinheiro em banco para render. Da mesma forma, meu banco de sementes tem a finalidade de produzir mais plantas.” Para ele, sementes são mais valiosas que tesouros – afinal, cem gramas de ouro não conseguem gerar mais metal precioso. “Isso faz com que eu tenha filhos, netos e bisnetos aqui no pomar. Essas grandes empresas que armazenam sementes têm de pensar também na reprodução. Mas talvez seu interesse não seja guardar, mas ter o monopólio de uma espécie.”

Seus embriões vegetais chegam por correio de colaboradores que possui pelo Brasil afora. A maioria das plantas são nativas do Brasil. Só da região, são 250 espécies. As estrangeiras contam 300, fazendo com que, no pomar, cactos frutíferos encontrados na caatinga brasileira fiquem a poucos passos de um pé de santol, fruta nativa da Malásia. A oferta fácil de sementes, polpas e bagaços atrai quatis, tatus, cotias, capivaras e 120 espécies de aves — Helton afirma que, quando começou o cultivo há dezoito anos, não somavam nem 40.

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Helton e a simpática Nina na calmaria do sítio. Foto: Luísa Dörr/Risca Faca

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O agricultor também aproveita até o caroço o banquete do qual é dono. Como nem toda fruta é boa para comer do pé, algumas são destinadas a chás, geleias, sucos e doces. Sua preferida é o guaimbé, de origem mexicana, cujo gosto ele jura lembrar uma mistura de banana e abacaxi. Helton reivindica para si a criação do doce de azeitona, que, note, não é doce de oliva. “Qual o fruto da oliveira?” Ao se deparar com uma resposta tímida, ele dispara. “É a oliva! Azeitona não é oliva, é o fruto do azeitoneiro!”, diz ele quase irritado, emendando à constatação uma aula sobre as diferenças entre leguminosas, frutas e grãos.

Sua vontade de tornar conhecidas as mais de 4 mil espécies de frutos comestíveis do Brasil lhe atribui um tom ativista. Junto à estação ecológica de Angatuba, ele agora procura patrocinadores para um projeto de cadastramento e instrução de família agricultoras. A intenção é ensinar o cultivo e venda de produtos de origem vegetal, semeando o conhecimento adquirido em uma vida de pesquisa, prática e observação. O título de botânico, para Helton, é mais honorário que acadêmico. “Eu não tenho diploma. Diploma é gostar do que se faz, é se dedicar”, conclui. “Quando alguma pesquisa minha dá resultados, as pessoas me pedem para citar fontes. A fonte é o que eu observei da natureza. A fonte sou eu!”

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Crédito: Luisa Dörr/Risca Faca

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Música

“O silêncio também
faz parte da música” 

Os longuíssimos dreadlocks esbranquiçados que se enrolam por sobre a cabeça de Larissa Baq tem um tom parecido com o de seus olhos claros. Suas frases são embaladas por uma voz mansa de leve sotaque do interior paulista, mas é difícil distinguir se ele foi adquirido em Franca, onde nasceu, ou quando morou em Limeira, Sertãozinho, Campinas, Pedreira e Ribeirão Preto. Mais plural que sua lista de endereços passados são seus talentos para a música. Larissa é cantora, compositora e instrumentista chegada em violão, guitarra, percussão e trompete. Enquanto passa o som para o Festival Concha, ela reserva um tempo para conversar sobre timidez, silêncio e seu álbum VOA, projeto totalmente autoral lançado em abril deste ano.

Larissa Baq se apresenta neste sábado no festa Concha, em São Paulo. Clique aqui para mais detalhes.

Risca Faca: A música começou cedo na sua vida. Você diz que aprendeu violão por influência da sua mãe e que, em casa, ouvia muito rock: Queen, Pink Floyd, Beatles… Você vem de um lar musical?

Larissa Baq: Não muito. Minha mãe toca violão e meu pai toca bateria. Eles tocavam de brincadeira na adolescência, mas ninguém acabou levando muito a sério. Quando eu nasci, e meu irmão depois, não existiam instrumentos em casa. Tinha um violão sem corda em cima do armário há muitos anos. O contato com a música se dava a partir do que eles ouviam, mas era tudo no automático. Não teve catequização da parte deles no sentido de nos fazer ouvir essa ou aquela banda.

Sua primeira composição foi aos 15 anos. Mas você só foi tomar a frente do palco mais tarde, saindo de um lugar mais discreto de compositora e instrumentista. Como foi esse processo?

Foi bem sofrido. Eu sentia a necessidade de ter uma independência porque, como instrumentista, eu só acompanhava outras pessoas. E eu também estava em um local de trás. De repente, eu estava indo para frente do palco e, ainda por cima, para cantar coisas minhas. Foram duas barreironas ao mesmo tempo. Eu queria muito fazer isso, então a vontade me impulsionou.

Você chegou a cursar Audiovisual em Ribeirão Preto. Mas a música sempre foi seu objetivo?

Eu tinha aquelas vontade clássicas. Queria ser veterinária até descobrir como tiravam a temperatura dos cachorros. Eu não tinha o sonho de crescer e ser musicista. A coisa foi tomando conta. Já existia uma predisposição desde muito cedo. Fui amadurecendo essa situação de estar tocando até que senti que existia uma linguagem para eu viver só daquilo. Eu já tinha saído da faculdade, mas mesmo enquanto estudava Audiovisual, eu me dedicava a tocar. Foi tudo paralelo. Mas desde que eu assumi só a música, eu amadureci mil por cento.

Qual foi a cronologia dos instrumentos?

Primeiro o violão, depois guitarra elétrica, aí várias percussões e depois o trompete. Levei a percussão mais a sério, estudando e tocando com outra pessoas, mas acabei largando por causa daquilo que disse: era muito sobre acompanhar outras pessoas e eu queria o meu trabalho. Então, peguei o violão e a guitarra para tocar minhas músicas. Hoje em dia é mais a guitarra que me acompanha nos shows, mas ainda vejo os outros instrumentos com muito carinho. Tenho um trompete tatuado no braço e tudo. Ainda tenho em casa todos os instrumentos que toco e, sempre que tenho um tempinho, pego um deles.

O VOA é seu primeiro álbum, mas você lançou o EP iR antes dele.

Ele está no meu canal do YouTube, no SoundCloud, mas ele fica mais escondido mesmo porque é muito diferente do que eu tenho feito nos últimos três anos. Ele é muito genérico. Eu era muito guiada por várias pessoas com que estava produzindo. Os trabalhos que vieram depois são muito mais eu. E o VOA é mais ainda.

Como você compõe?

Bem desordenadamente. Às vezes vem um início de letra que pode ter um potencial na guitarra, aí eu pego o instrumento e dou vazão ao resto da letra. Às vezes é algo na guitarra que puxa alguma lírica interessante. A letra puxa a melodia automático e vice-versa. Tudo serve de inspiração, mas basicamente relações com pessoas. Não só de amor, mas relações universais minhas e de pessoas que conheço. Tem sentimentos no disco que não necessariamente eram meus. Não gosto muito de escrever só sobre amor, mas não tem como fugir porque ele está em todas as relações. Sobre referências, acabei de passar por uma fase bem Chet Faker. Hoje ouço muito Far From Alaska, PJ Harvey, Thom Yorke, Juana Molina, o pop elétrico de Jack Garratt. Eu tenho uma boa relação com o pop, ouço Coldplay, Radiohead. De brasileiros, Guinga, Gal Costa, Lenine e mais uma porrada de gente.

O VOA veio depois de viagens que você fez se apresentando na Europa, Argentina e Uruguai. A viagem teve influência?

Algumas músicas eu compus viajando. Eu gosto muito de fazer isso porque amadureço muito meu som sozinha. E cheguei em uma identidade muito interessante, principalmente na guitarra.

O VOA foi possível por um projeto de crowdfunding no site Partio. Você disponibilizar o álbum livremente foi reflexo disso?

Enquanto filosofia artística, eu gosto muito que as músicas sejam acessíveis porque não é todo mundo que tem cartão de crédito para pagar dez dólares em um disco no iTunes. Enquanto uma pessoa que se liga no mercado da música, acho que não faz mais sentido a gente deixar as pessoas só ouvirem se elas pagarem. Principalmente aqui no Brasil. Na Alemanha, isso dá certo. As pessoas baixam o disco depois que compram. Aqui não tem como ou porque as pessoas não têm grana, ou porque não têm costume.

Como aconteceram as parcerias com a rapper britânica LyricL e com o músico Pedro Altério?

Fui para Londres em 2011 e conheci a LyricL. Voltei para lá nos dois anos seguintes, depois de lançar o iR, e mantivemos contato. Eu pirei porque ela tem uma voz muito interessante no sentido de se posicionar enquanto mulher e negra dentro da cultura hip hop londrina. Fiz o convite e ela foi uma querida. O Pedro Altério é meu irmão, a gente se conheceu há uns quatro anos, inclusive o estúdio em que gravei VOA é do pai dele. Era muito óbvia a participação dele com o álbum.

Sua música parece ter uma relação boa com o silêncio. É curioso que a primeira faixa se chame Pausa, que justamente é uma ausência de música.

Com certeza. Eu acho que muito disso vem da minha personalidade. Não sou uma pessoa que, uau, chegou e fala alto. Nunca fui muito comunicativa. Eu era aquela criança que se escondia quando chegava visitas em casa. Muito disso também é por causa da frente do palco ter me exposto enquanto compositora. Sofri muito por cantar minhas próprias músicas. Hoje em dia, eu consigo me comunicar, mas tenho bastante vergonha. Cantar na frente das pessoas não é mais um problema. Hoje tenho segurança porque é meu trabalho e sei o que estou fazendo. Eu tinha essa apreensão quanto às coisas darem certo e ao que as pessoas iriam achar. Eu amadureci e liguei o foda-se. Mas a relação com o silêncio vem da minha introspecção. Eu adoro os tempos que não existem. A definição de “música” em alguns dicionários é “sequência de sons e silêncios”. O silêncio também faz parte da música.

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Comportamento

Muito prazer, Lorna Washington

No banheiro de uma boate em Copacabana, o artista Celso Maciel esfrega o rosto com sabão. Batom, delineador e a cera que usa para encobrir as sobrancelhas por baixo da maquiagem escoam ralo abaixo. Pouco sobra de sua aparência de cinco minutos atrás. O que permanece — e não sai nem com água, nem com a incansável passagem dos anos — são os trejeitos teatrais, a sagacidade e o timing humorístico que fazem de Lorna Washington uma figura marcante na noite carioca desde os anos 1980.

Conversar com Lorna é um show à parte. Mesmo fora do personagem, ou “desmontada” em seu vernáculo, suas frases são proferidas cheias de entonação e, não raro, ela declama afinadamente trechos de músicas ou faz imitações pontuais de amigas célebres, como a cantora Alcione e a atriz Rogéria. Em seu indivíduo, criador e criatura se misturam. “Meu nome é Celso, mas ninguém me chama assim. Todo mundo me conhece como Lorna Washington.”

Sua vida virou narrativa do documentário “Lorna Washington — Sobrevivendo a Supostas Perdas”. A obra dos diretores estreantes Leonardo Menezes e Rian Córdova foi lançada neste mês após quatro anos de pesquisa sobre a carreira do transformista. “Conheci Rian depois de uma apresentação”, ela relembra sobre o amigo, que também é cantor. “Perguntei se alguém queria dizer algo no microfone. Ele subiu e disse estar lá por causa da mãe. Estou pulando gerações, é isso?”

O filme lembra episódios de sua vida, como os shows na boate Papagaio e suas viagens pelo Brasil e Estados Unidos, intercalando-os com depoimentos da colega Isabelita dos Patins, do carnavalesco Milton Cunha e, mais uma vez, da atriz Rogéria. A amizade surgiu nos bastidores do teatro Alaska, na época do espetáculo Rio Gay, dirigido por Jorge Fernando. No começo, eram apenas cumprimentos informais. Quando Lorna perdeu a mãe, Rogéria a chamou em seu camarim. “Sente-se. Soube que você perdeu sua mãe. Essa é uma dor que morro de medo de ter”, imita Lorna com a voz inconfudível da atriz. Viraram amigas. Em sua primeira internação, Rogéria foi visitá-la no hospital. “Ela chegou achando que eu estava nas últimas, me encontrou sentada lendo um livro: ‘Eu achei que ia me deparar com a Dama das Camélias e você está bem!’ O pessoal do hospital ficou doido, queriam tirar fotos. De repente, ela para e diz: ‘A acústica daqui é ótima!’ E foi embora pelo corredor cantando em francês.”

Sentada em uma maca no Hospital Federal de Ipanema enquanto seu pé é examinado pela enfermeira, Lorna relata que a doença que a deixou internada por quatro meses surgiu pela primeira vez há onze anos, quando voltava de uma viagem a Nova York. Um machucado em seu pé direito evoluiu para um edema, piorado pela infecção bacteriana da osteomielite e pela diabetes. Há dois anos, essa junção de fatores quase levou sua perna embora. As quatro cirurgias para recuperá-la fizeram com que ela tivesse de descer do salto. Os curativos precisam ser refeitos todos os dias e, quinzenalmente, ela visita o hospital. Na mais recente visita, a enfermagem lhe entrega gaze e pomadas, que ela guarda em uma sacola junto ao figurino que usará em uma apresentação à noite. Traz sempre em sua bolsa comprimidos de ácido fólico para a pressão, sulfato ferroso para a anemia e faz aplicações diárias de insulina em sua casa nos subúrbios da cidade.

Apesar de morar longe do centro, o título de “face of Rio” muito bem poderia ser seu já não fosse de Narcisa Tamborindeguy. Celso nasceu em Copacabana, um dos cinco filhos de um porteiro. Seu quarto ficava na garagem do edifício, onde “dormia no seco e acordava no molhado” quando a maré subia para além da avenida Atlântica, muitas vezes na companhia de ratazanas. Mas foi naqueles andares que se educou, ora tendo aulas de etiqueta à mesa com uma prima de Santos Dumont, ora frequentando a biblioteca de um intelectual da Academia Brasileira de Letras. “Fazer a pobre coitada não é minha cara. Eu nunca me senti à margem das coisas.”

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Lorna circula pela cidade recontando histórias sobre pontos turísticos, apontando casas de famosos e indicando quais caminhos pegar para fugir do trânsito. Seu condutor é um ex-gogo boy que trabalha como motorista de Uber – talvez por isso encare com naturalidade uma drag queen paramentada em seu banco do passageiro. Ele lhe faz descontos nas viagens e, como sua cliente se locomove apenas com o andador, busca-a em domicílio no bairro do Engenho da Rainha. As janelas de Lorna dão vista para o teleférico que sobe o morro do Alemão. A irmã Neide mora nos fundos, enquanto seu quarto fica estrategicamente posicionado à frente para que consiga tomar seu banho de sol da cama. Nas paredes, retratos de suas performances e estatuetas religiosas espíritas e católicas.

Quase despercebida, no canto da sala de estar, há uma porta ao lado de uma Bíblia aberta e encabeçada por um leque chinês. Este é o “quarto de Lorna”. A salinha abafada de poucos metros quadrados é apinhada de vestidos costurados por amigos estilistas, bijuterias da rua 25 de Março e acessórios de cabeça bordados com paetês a uma condição na qual caminhar é impossível. Para escolher o figurino, Lorna se debruça por sobre a bagunça e alcança os cabides com sua bengala. Foi pelo vestuário que assumiu sua homossexualidade para a família, quando uma sobrinha descobriu seu guarda-roupa com trajes femininos. Da mãe Aurora não ouviu sermão, mas conselho: “Tome cuidado e seja feliz”.

Enquanto ajeita uma peruca castanha no espelho, ela ri sozinha: “Estou parecendo uma viúva indo receber o pecúlio do falecido marido”. Sua personagem está no meio-termo entre uma Elizabeth Taylor e aquela tia desbocada no almoço de família. Um equilíbrio entre a elegância midiática, o escracho e a crueza de figuras femininas reais. Seu nome, por exemplo, tem inspiração em Lorna Luft, filha de Judy Garland, mas também em uma amiga norte-americana com quem nunca mais teve contatos. Em busca de um sobrenome, batizou-se com a cidade natal da amiga estrangeira.

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Seus números seguem a escola do escárnio e o improviso de Dercy Gonçalves — ela também abandonara os saltos graças a um problema de saúde. É comum que, no palco, repita tiradas bem humoradas que tivera em conversas no camarim poucos minutos antes de subir ao tablado. Lorna dubla músicas e monólogos com perfeição e sua voz canta bem em português e inglês, sem tropeçar nas palavras graças à época em que era professora da língua. Seu propósito, no entanto, não é só a diversão: ao mesmo tempo em que solta palavrões para falar de sexo anal e “trucar a neca” (esconder o pênis para que não marque nas roupas), também critica a bancada evangélica e o Veículo Leve sobre Trilhos implementado pela prefeitura de Eduardo Paes para as Olimpíadas.

“Eu imagino quantas pessoas não deixaram de morrer de AIDS nos anos 1980 só por causa das piadas dela”, diz o diretor Leonardo Menezes. O trabalho de Lorna sempre esteve ligado à conscientização sobre a segurança sexual. Por seu ativismo, já ganhou título de benemérita pela Assembleia Legislativa do estado. Atualmente, faz parte do grupo Pela VIDDA —assim com dois dês mesmo, significando “Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids”. A organização é fundada por portadores de HIV e se volta a pessoas que convivem com o vírus. “Muita gente acha que sou soropositivo. Chegam a me dizer: ‘Você é uma guerreira por ter aids e estar trabalhando até hoje’. Eu não desminto.”

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É mais que natural que sua imagem também desempenhe papel importante na luta contra a homofobia e o preconceito contra travestis e transexuais. “São os paradoxos da vida. Tem eventos de senhoras idosas em que elas não passam sem um número de drag. Mas vai ver se elas querem ter um neto viado.” Diversas vezes, Lorna gosta de lembrar que é uma prestadora de serviço tendo de lidar com o público. “Eu trabalho como qualquer outra pessoa. Não sou estrela: estrela está no céu. Depois que você fica presa em um leito de hospital dependendo de gente até para limpar sua bunda, você tem uma outra visão sobre a vida.”

Extravagâncias à parte, Lorna não leva uma vida desregrada. Não bebe e diz ter horror a cigarro. Suporta com incômodo a barulheira das boates quando seus números se estendem madrugada adentro. Afinal de contas, é de uma época onde os shows de drag queens eram as atrações principais da noite. Hoje, nem todos na plateia entendem os comentários bem humorados que faz enquanto interpreta a canção “Cabaret”, eternizada na voz de Liza Minnelli em filme homônimo de 1972. A canção menciona a amizade da protagonista Sally Bowles com uma amiga festeira de nome Elsie. Era ela quem lhe havia ensinado que a solidão é desnecessária enquanto há música para ouvir e diversões lá fora. Em verso, Sally também canta sobre a morte de Elsie: o defunto mais feliz que ela já vira. Afinal, ela havia aproveitado a vida como em um cabaré.

Apesar de sua perna, Lorna não aparenta a mínima debilitação. Não geme, não reclama de dores, não encara sua condição de saúde com caretice. No entanto, a morte é tema frequente de suas conversas pessoais e monólogos performáticos. “Eu sempre digo: me dê flores em vida, porque depois que eu morrer, só quero oração”, ela declama no palco e na vida. “Mas fiquem tranquilos que eu não vou morrer agora.” O que se pode afirmar com certeza é que, quando Lorna for, ela não irá como Celso. Irá como Elsie.

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Música

Em outra dimensão

Jaloo tem suas razões para confiar no acaso. Em sua vida, a sucessão de acontecimentos imprevistos já lhe rendeu resultados positivos. Foi em uma dessas eventualidades que veio para São Paulo, chamado para trabalhar em estúdios nas regiões da Vila Curuçá e do Belém. Ali, neste mesmo bairro alguns meses depois, conseguiu conhecer seus ídolos da banda colombiana Bomba Estéreo ao chegar cedo para um show no Sesc Belenzinho. O encontro resultou em uma parceria ainda não divulgada nos estúdios da Red Bull Station.

Hoje, é ele a subir no palco. Antes da apresentação a convite da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, ele se esconde do frio de uma noite de São João na comedoria do local. Sua silhueta esguia se encorpa com um casaco azul da Adidas e se alonga sobre um sapato creepers. A touca não deixa ver, mas os cabelos são longos, fartos, negríssimos e levam um corte que remete a índios amazônicos, cantoras pop, e Judy, a irmã beatnik de Doug Funnie.

“Isso aqui que é inverno. Lá no Pará, a gente só finge que passa frio”, ele recorda com bom humor da época em que lhe chamavam de Jaime Melo pelas ruas de Castanhal. Foi ali, a poucos quilômetros de Belém, que ele viveu a maior parte de seus 28 anos. O restante de sua vida se divide entre as viagens de ônibus para Ananindeua, aonde ia estudar Publicidade e Propaganda, e a vinda para a capital paulista, há quatro anos sua casa.

A biografia de Jaloo não segue um roteiro clichê. Se hoje trabalha com música, ele não a conhecia até o fim da adolescência. Ouvia de rabo de orelha o brega que agradava seus pais e os sons de aparelhagem que a irmã punha para varrer a casa. Da mesma maneira, quem vê sua figura no palco hoje, transitando entre masculino e feminino, não imagina que sua sexualidade era reprimida a ponto de quase não existir. Seu primeiro beijo foi acontecer aos 18 anos.

A alegria era encontrada nas existências virtuais: os videogames. Até hoje, Jaloo sabe enumerá-los por ordem de processador: “Tinha o NES de 8 bits. Aqui no Brasil, o piratão dele era o Dynavision versões 1, 2, 3 e 4… No final, era tudo a mesma coisa. De 16 bits, eu tinha o Super Nintendo. Jogava tudo o que tinha para jogar, mas era louco por RPG, tipo Final Fantasy”. Os chiptunes, sons característicos dos games de primeira geração, hoje fazem parte de suas músicas. Faixas como “Last Dance”, “Ah! Dor!” e “Tanto Faz”, de seu primeiro álbum, trazem batidas que parecem saídas de consoles dos anos 1990.

A estreia de seu disco autoral leva o título de #1, lido como “primeiro”. A cifra foi escolhida por sua internacionalidade, já que o ordinal “1º” não é reconhecido mundo afora. Quem deu a dica foi Carlos Eduardo Miranda, diretor do selo Stereomono e definido por Jaloo como alguém que “está sempre um passo à frente”. O álbum sucede trabalhos que já haviam lhe garantido certa notoriedade pela internet, como o “Female & Brega”, lançado em 2012 com divas pop remixadas em tecnobrega; e o “Couve”, batizado com uma corruptela de “cover” em 2013.

Antes com status de DJ e produtor, agora recebe novos títulos. “Nunca me considerei um cantor”, ele rebate. “Eu acho ‘artista’ melhor, porque abraça todo o cuidado que eu tenho em diversos sentidos, inclusive na voz.” No gogó, diz não fazer nem firula. É dono de um sotaque leve e um vocal suave, do qual tem raiva pela falta de intensidade. Para isso, tem tentado aprender o melisma sozinho. A técnica consiste em imprimir diversas notas em uma mesma sílaba. Sabe a Mariah Carey? Então.

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Crédito: Junior Franch

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Sem autodidatismo, aliás, não existiria Jaloo. Na faculdade, depois de assistir no documentário “Brega S/A”, sobre como as festas de aparelhagens eram produzidas, baixou o software Fruity Loops pirateado e se dedicou a fazer versões de suas músicas preferidas. “É um programa que eu não largo de jeito nenhum. Todo mundo tem preconceito, ficam com essa coisa de Mac. E aí eu faço um disco rodando o Fruity Loops craqueado no Windows e a Apple Music vai lá e me considera o melhor novo artista de 2015”, ironiza.

Jaloo pede para a entrevista continuar no camarim. Lançava olhares inquietos ao salão movimentado. Nervosismo, talvez, já que dali a poucas horas ele se apresentaria. Não era. “Sou virgem com ascendente em capricórnio. É tenso. Virgem é ordeiro, chato”, ele explica. Após nos realocarmos, ele se incomoda novamente com um espelho.

Com seu trabalho não é diferente. “Não deixo ninguém encostar nas minhas coisas. A Grimes, uma das minhas cantoras preferidas, diz uma coisa que eu peguei para mim: ‘Eu não estou pedindo ajuda’. Ser autossuficiente é algo pelo que eu prezo”, afirma. “Eu dirigi meus três clipes. Mas o que mais aparece é gente querendo dirigir vídeo, produzir música para eu cantar. Se você quer minha voz, vai levar todo o pacote também.”

Já o ascendente em capricórnio ele responsabiliza por seu planejamento a longuíssimo prazo — que o faz ter até seu quarto álbum já pensado. “A ideia é lançar um por ano. No começo de 2017 sai o próximo.” E o que ele adianta? “Vai ser bem mais agressivo que o primeiro, principalmente na sonoridade. Quero que seja bem bate-coco.” Comparo com Die Antwoord, ele aprova.

[olho]”No segundo disco, eu pretendo definir mais o gênero da persona e quero que seja muito mais cru”[/olho]

“Outra coisa é que o primeiro disco segue a estética plástica. É um ser que acabou de vir ao mundo, novinho, polido, e que transita entre os gêneros. No segundo, eu pretendo definir mais o gênero da persona e quero que seja muito mais cru”, revela. “Zero Photoshop. Se duvidar, ainda vou puxar mais os defeitos: espinhas, oleosidade de pele, do cabelo. Quero que tudo apareça.”

Assucena Assucena, uma d’as Bahias, irrompe pela sala. Da bolsa, tira peças do figurino que usará no palco. Pergunto sobre o tamanho do salto. Quem responde é Jaloo: “Você acostuma. Quando laceia, não machuca mais”. Sua relação com a moda é próxima e tem se estreitado, com apelo de revistas femininas e figuras como Alexandre Herchcovitch. “Eu não me levo a sério nessa coisa de ícone fashion. Por exemplo, eu adoro repetir roupa. Acho que eles me dão essa atenção pela descontrução que eu faço da próprio moda: ao mesmo tempo que uso figurinos legais, uso moletom surrado no meu dia a dia.”

Sua inspiração artística para as roupas e a música vem de diversos canais, em um exercício de captar algo que ele chama de “tendência invisível”: padrões que se repetem na cultura popular e são identificados antes mesmo de virem à tona. A internet é um campo fértil, descoberto só depois de ganhar seu primeiro computador com 18 anos. Hoje, Jaloo declara paixão a memes em sua profusão de perfis pelas redes sociais, cada vez mais difíceis de administrar sozinho — o Facebook já é responsabilidade de sua assessoria. No visual de sua persona, a paleta de cores rosa e azul e os 3D mal acabados tem referência à onda do vaporwave, originária dos submundos virtuais.

[olho]”Gosto de ser esquisito e parecer um ET”[/olho]

Na música, é apaixonado pelo pop e vidrado em Björk. “Mas escuto muito mais os clássicos do que os trabalhos atuais. Se você for ver, eu ouço mais Ariana Grande”, ele responde em menção a uma fase mais experimental da islandesa. As comparações que tem recebido da imprensa com ela, David Bowie ou Lady Gaga, porém, ele dispensa: “É errado achar que os brasileiros estão chupinhando tudo o que os estrangeiros fazem”.

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Jaloo em ação. Crédito: Fernando Galassi
Jaloo em ação. Crédito: Fernando Galassi

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Da mesma forma em que usa referências populares para criar, Jaloo pretende que suas criações caiam em domínio público em uma espécie de ciclo energético da criatividade. Em apelo aos fãs, pede para que eles postem seus clipes e remixes em seus canais do YouTube. Isso porque o site costuma barrar obras que não possuem direitos autorais, como seu cover de “Baby”, escrita por Caetano Veloso. Afinal, é a partir desse desprendimento inventivo, da pirataria e do sample, que floresceram ritmos como seu tecnobrega nativo.

“O kuduro em Angola, o funk no Rio, o tecnobrega na Amazônia, o bhangra na Índia… São todos feitos com software piratas, são todos distribuídos e consumidos pela periferia, e não se comunicam um com o outro. Eu chamo isso de ‘elo invisível’ entre as periferias e comparo com as pirâmides, que existiam nas civilizações maia e egípcia sem elas nunca terem se encontrado. E aí dizem que os extraterrestres são mediadores disso e eu adoro essa coisa de alienígena. Gosto de ser esquisito e parecer um ET. Eu chamava minha música de sci-fi brega.”

O termo já não é mais usado por Jaloo por receio de que ele engesse sua vontade de estar em constante mudança. Talvez por esse desprendimento de rótulos, ele consiga se aproximar naturalmente de temas que exigem tanto engajamento: maconha, androginia, homossexualidade. “Isso é minha natureza. Não gosto de falar que levanto bandeiras porque não tenho essa pretensão. Ser comparado a uma mulher na juventude me deixava triste. Hoje me fortalece. No fim das contas, é o que sou. Não quero ser uma pauta de programa de TV.”

Jaloo sai apressado sem se despedir. Ainda precisava se maquiar e aprontar o figurino. Quando entra em cena, ele é uma visão em branco com um collant que marca suas costelas. Minutos antes, ainda no camarim, ele dizia que já fora muito julgado por sua origem, sua sexualidade e seu trabalho com batidas eletrônicas e referências populares. Atualmente, ele diz não se incomodar mais por haver encontrado seu público, que neste momento acompanhava-o nos refrões embalados pelos instrumentos da Cozinha Mineira e por sua mesa de som futurística.

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O ‘Rocky’ brasileiro

Marcada por superações, a história do lutador José Aldo da Silva Júnior é daquelas que daria um filme. O campeão das artes marciais mistas, o MMA, venceu sua origem pobre e seu núcleo familiar violento para virar estrela do UFC, evento mundial mais importante da modalidade, em 2010. Seis anos depois, veja só, sua trajetória deu em filme mesmo: “Mais Forte que o Mundo”, de Afonso Poyart (diretor de “Presságios de um Crime”, com Anthony Hopkins), que estreia nesta quinta (16).

É bem verdade que o cinema brasileiro carecia de filmes “de lutador”, levando em conta que somos um “celeiro de craques” do UFC. Em conversa com jornalistas após a pré-estreia, Claudia Ohana até se confundiu: “É o primeiro filme de lutador brasileiro, não é? Para mim, ao menos, é”. Não é, embora seja a produção sobre esse universo mais relevante desde o documentário “Anderson Silva: Como Água”, de 2011. Com o bônus de abordar causas sociais pertinentes: o rincão amazonense nem sempre retratado no cinema, a violência doméstica, a pobreza.

A história começa com um jovem José Aldo, interpretado por José Loreto, frequentando aulas de jiu-jitsu de dia e se divertindo com amigos à noite. A Manaus em que vive é retratada de maneira sombria, e isso nada tem a ver com as chuvas equatoriais diárias — mesmo porque a locação real é a cidade de Santos, berço do diretor. É lá que habitam os demônios de José Aldo: o pai alcoólatra, que espanca a mãe, o inimigo da juventude que humilha sua família.

O tempo abre com sua chegada ao Rio de Janeiro, marcada por uma fotografia mais iluminada. Lá um antigo amigo, interpretado por Rafinha Bastos (uma “escolha polêmica”, como reconhece o diretor), lhe arranja estadia na academia de Dedé Pederneiras, papel de Milhem Cortaz. Para retribuir a hospedagem, o rapaz trabalha na limpeza e espera pelo dia em que o treinador lhe aceitará como pupilo. A semelhança com “Karatê Kid” vira até piada em cena.

 

O garoto finalmente chama a atenção de seu professor ao se meter em uma briga na lanchonete onde faz bicos por tentar proteger Vivianne Oliveira, par romântico de José Aldo, vivido por Cleo Pires. O casal se apaixona durante as aulas de muay thai da moça, o que ilustra bem a relação vindoura de intensidade e atritos. A partir daí, a jornada do herói foca mais em sua construção e conflitos que em seus feitos.

A certa altura, a personagem de Thaila Ayala, namorada do esportista e amigo Tony Mendigo (interpretado por Felipe Titto), diz: “Bom lutador é aquele que sabe brigar consigo mesmo”. A metáfora que dá forma ao conflito psicológico do protagonista surge logo no início do filme, com uma história de seu pai, que adora contar parábolas. Uma delas discorre sobre o abate de um boi por uma sucuri: o mamífero não percebe a serpente se esgueirando enquanto bebe água. A cobra sorrateiramente envolve sua presa, que, quando se dá conta, já é tarde demais.

José tem de lidar constantemente com a figura paterna em sua vida. A atuação de Jackson Antunes como o pai, inclusive, é brilhantemente delicada: não é vilão, mas também não é um herói. O nome não é o único atributo que José Aldo herda do progenitor, um dos principais responsáveis pela raiva destemperada do filho, ao mesmo tempo em que é apontado pelo atleta como seu “maior incentivador”. O ódio é um sentimento dicotômico, a gasolina que pode ser combustível para o sucesso ou explosivo para o fracasso. Essa é preocupação de seu treinador: “Você gosta de brigar, eu quero te ensinar a lutar”. Será José Aldo o boi ou a sucuri?

O diretor calcula que “cerca de 30%” da trama foi inventada. A personagem de Paloma Bernardi, por exemplo, é um dos recursos fictícios usados. A garota é meio amiga, meio caso adolescente do protagonista e serve como ponte entre ele e seu passado. Do lado da realidade, fica a boa ideia de usar o cinturão real na cena de seu triunfo no UFC, artigo emprestado do próprio lutador.  

Cleo Pires em 'Mais Forte que o Mundo'. Crédito: Divulgação
Cleo Pires em ‘Mais Forte que o Mundo’. Crédito: Divulgação

O elenco reúne nomes conhecidos, inclusive em papéis menores, como o humorista Robson Nunes e os atores Thaila Ayala, Jonathan Haagensen e Felipe Titto. As personagens femininas têm importância na trama e são fortes, não tolerando os abusos que sofrem.

O filme tem a intenção de ser um “divisor de águas na carreira de José Loreto”, como profetiza o colega Jackson Antunes. Primeiramente oferecido a Malvino Salvador, a expectativa é de que o papel principal transforme o ator — apesar de pálido demais para viver o manauara— em mais que um rostinho bonito. A direção de Poyart traz a característica violência já conhecida em “2 Coelhos”, com cenas de brigas bem coreografadas, perseguições em automóveis e embates no octógono. O filme funciona em várias camadas: a ação, o romance, o drama. Quem vai ao cinema para assistir a um filme “de lutador” sairá da sala mais que satisfeito.

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O novo mundo de Mahmundi

Marcela Vale trocou os chinelos na areia pelos sapatos no asfalto. Desde sua recente mudança para São Paulo, a cantora carioca está feliz de uma forma diferente. Abre a janela, repara nos prédios, contempla as pessoas e suas relações. A mudança geográfica, afinal, não veio só. Coincidiu com a chegada de seus 30 anos, uma transformação mais íntima – e com o lançamento de seu primeiro álbum.

Mahmundi é seu nome. Tanto do disco, como do projeto, como da cantora. O termo tem diversos significados. “Eu me tornei Mahmundi porque acabei compreendendo melhor quem eu era. Não é a projeção de um personagem”, define. “É um processo de entendimento enquanto indivíduo.”

O álbum nasce dessa autopercepção artística. Em um processo de imersão, sua casa no Rio de Janeiro tomou as formas de um estúdio em janeiro de 2015. A produção foi feita por ela mesma. O resultado é um compilado de canções que lhe agradavam, algumas inclusive já publicadas. “Quase uma mixtape”, em suas palavras.

[olho]“Eu me tornei Mahmundi porque acabei compreendendo melhor quem eu era”[/olho]

A comparação com o retrô das fitas cassetes caseiras é adequada. Isso porque Mahmundi tem uma pegada oitentista que não é intencional, mas é natural dado o ressurgimento dos anos 1980 na cultura pop. Essa é sua inspiração: aquilo que escutava nas rádios ou nos discos que comprava, “de Calypso a Phil Collins, tudo que soa bem, que é confortável, que é bom”.

Foi assim, aliás, que ela aprendeu música: a partir daquilo que era ouvido e cantado pelas pessoas. Desde a descoberta musical com o gospel durante a pré-adolescência no bairro de Marechal Hermes, periferia do Rio; até o trabalho como produtora musical da casa de shows Disco Voador.

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“Não quis direcionar para essa ou aquela época, para São Paulo ou para o Rio de Janeiro. Acho que consegui unificar ali um sentimento do mundo. Tem piano e sintetizador; tem o trap de Wild, a refrescância de Hit, a volta de Calor do Amor”, diz. “Quis fazer canções boas o bastante para você me ligar e batermos esse papo sobre música.”

Sua busca por algo intimista neste primeiro trabalho não foi um processo solitário. Ao contrário, contou com olhares alheios como o de seu amigo Hugo Braga, o Yugo, pesquisador musical que está por trás da direção de seus clipes e do visual do álbum. “Foi alguém que olhou para mim quando eu não me via”, lembra ela.

A grande vitória de Mahmundi, para ela, é que seu som esteja tocando em fones de ouvido mundo afora, sua intenção desde o início. Se, há cinco anos ela começava em sites MySpace e Soundcloud; agora ela lança sua obra em serviços de streaming e no YouTube. Muito disso é possível pela direção artística de Carlos Eduardo Miranda, acostumado a trabalhar com artistas independentes no selo Stereomono.

Marcela, assim, fica livre para desenvolver sua criatividade. E Mahmundi se beneficia disso. Seu processo de composição, por exemplo, é próprio. Como toca mais do que escreve, suas letras vêm depois da composição melódica. Assim, Mahmundi é um álbum que fala de amor, verão e mar de forma polifônica. Tanto na voz quanto na melodia.

“O objetivo do meu trabalho é que ele se comunique com as pessoas. A mudança pra São Paulo me deu esse olhar sobre o indivíduo. Eu posso estar aqui, mas sempre projetei minha música para ser de qualquer lugar.”

Talvez por isso ela diga que sua “alma continua com o pé na areia” mesmo com a chegada do (fraco) inverno paulistano. “Acho bonito como os espaços estão sendo apropriados aqui em São Paulo. Os grafites, os estudantes ocupando as escolas…”

Enquanto descobre uma nova cidade, Marcela não se preocupa com o tempo. Sabe que está em trânsito aqui, ainda quer ir para Portugal, para o Japão, para o Nordeste. Na bagagem, tem material e interesse em novos timbres. “Quem sabe não lanço um disco de pagode”, ela ri. “Mahmundi é caminhada. Mas a música é o centro disso tudo. E, sem música, eu não estaria em nenhum lugar.”

Mahmundi toca no Festival Path, neste fim de semana, em São Paulo. Clique aqui para mais detalhes.