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A ressurreição de Augusto Ruschi

Em janeiro de 1986, onze anos depois de ter sido envenenado por um sapo da espécie dendrobata, o naturalista Augusto Ruschi se viu condenado. O veneno, acreditava ele, havia contaminado 95% de seu fígado. Nos últimos meses, o naturalista acelerara o ritmo de trabalho para concluir os dois livros que estava escrevendo, mas suas forças diminuíam a cada dia. Ele ofegava, dormia mal, sofria com febres e hemorragias nasais. Depois de uma vida desbravando as florestas e matas do país, já não conseguia percorrer longas distâncias.

Temendo pelo pior, chamou um de seus amigos mais próximos, o jornalista Rogério Medeiros, e lhe fez um último pedido. Queria ser enterrado na Reserva Biológica de Santa Lúcia, a mata de 279 hectares cobertas de orquídeas e bromélias que ajudou a tombar.

“Mas tem que ser aqui?”, questionou Medeiros, argumentando que, no Brasil, “não se enterra ninguém fora do cemitério”. Ruschi foi irredutível. Era lá, no paraíso das plantas e dos pássaros, que havia realizado a maior parte de sua obra. A outro grande amigo, o cronista Rubem Braga, confidenciara: depois da morte, sonhava em ser carregado pelos beija-flores.

O naturalista já não tinha perspectivas de curar sua doença, quando recebeu um telefonema de Brasília. Então repórter do Jornal do Brasil, Medeiros estava com Ruschi no dia da ligação.

“Era um ministro do [então presidente] José Sarney, não lembro qual…”, conta o jornalista por telefone, do Espírito Santo, onde mora atualmente. “Eles falaram: conseguimos a ajuda dos índios… O Ruschi adorou a ideia e aceitou se tratar com eles.”

A ligação apenas oficializou um desejo acalentado pela opinião pública à época. Diante daquela doença desconhecida, prestes a matar uma das mais ilustres figuras científicas do país, o governo e a sociedade brasileira buscaram, na tradição de seus índios, uma solução mágica. Sem outra alternativa, o Brasil recorreu às suas próprias raízes. E descobriu, entre deslumbramento e desespero, um processo autóctone, até então desprezado em seu sonho de desenvolvimento.

***

Aos 70 anos, Augusto Ruschi acumulava uma longa lista de serviços prestados para o meio ambiente. Como botânico e ornitólogo, catalogou centenas de espécies de plantas e animais, em especial orquídeas e beija-flores. Como ativista ecológico, foi dos poucos a enfrentar a Ditadura Militar contra o desmatamento da Amazônia. Ganhou notoriedade ao ameaçar com uma espingarda o ex-governador do Espírito Santo, Élcio Álvares, quando este tentou destruir a estação biológica de Santa Lúcia para plantar palmito.

Visionário, Ruschi alertou desde cedo para os perigos dos agrotóxicos e da monocultura de eucalipto. Ainda em 1951, previu, em um congresso na ONU, que as reservas ecológicas se transformariam nos bancos genéticos e habitats do futuro. Seus esforços tinham sido recompensados com medalhas e condecorações no Brasil e no exterior, mas só então, com os dias contados, o cientista ganhava a merecida atenção da imprensa nacional.

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O beija-flor Loddigesia mirabilis, redescoberto por Augusto Ruschi. Ilustração: John Gould
O beija-flor Loddigesia mirabilis, redescoberto por Augusto Ruschi. Ilustração: John Gould

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Em 1975, Ruschi buscava novos exemplares de beija-flores, seu animal fetiche, na Serra do Navio, Amapá, quando se deparou com dezenas de dendrobatas, pequenos sapos coloridos e, consequentemente, venenosos. Pediu ajuda aos índios que o acompanhavam para capturá-los, mas estes se recusaram. O naturalista não os imitou. Um dia depois de apanhar sozinho trinta sapos, foi internado de Macapá com o coração acelerado.

[olho]”Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”[/olho]

Ruschi estava contaminado. Ano após ano, silenciosamente, a peçonha foi corroendo sua saúde. O fato permaneceu desconhecido do grande público até ser revelado pelo Jornal do Brasil, no dia 12 de janeiro de 1986. Assinada por Rogério Medeiros, a reportagem soava como uma espécie de obituário antecipado. Uma chamada estrondosa na capa daquele edição dominical anunciava que o fígado do “defensor intransigente das florestas” já se encontrava “irremediavelmente comprometido”.

Três dias depois, foi a vez do colunista Affonso Romano de Sant’Anna escrever uma crônica emocionada, que mobilizaria os governantes do país.

“Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”, anunciava o poeta e ensaísta.

Sant’Anna foi o primeiro a colocar os índios na jogada. Seu texto conclamava as autoridades a buscarem uma cura para aquele que ele definia como um “monumento nacional”. Se os laboratórios mais sofisticados não a tivessem, sugeria o colunista, talvez os povos da Amazônia, conhecedores da letalidade dos dendrobatas, encontrassem uma alternativa.

“Mas não podemos assistir a essa tragédia tropical achando que Édipo tem mesmo que matar seu pai e Antígona seus filhos”, continuava. “Não podemos ler assim impotentes a crônica de uma morte anunciada, como se fosse uma novela de García Márquez. Alguém tem que ter um remédio.”

O texto sensibilizou a opinião pública. De uma hora para outra, todos queriam ajudar. Homeopatas ofereceram seus serviços e admiradores imploravam por uma intervenção do Palácio do Planalto. Especializada em retratar a flora amazônica, a pintora inglesa Margaret Mee embarcou aos Estados Unidos para informar botânicos americanos sobre o estado de saúde do naturalista.

Augusto Ruschi em Teresa, ES em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi em Teresa, ES em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

Em Brasília, o texto caiu nas mãos do então presidente José Sarney, que enxergou uma oportunidade para ganhar simpatia da opinião pública. Em seu segundo ano no cargo, o maranhense sofria para administrar um país destroçado por 20 anos de Ditadura Militar. Mesmo concorrendo com planos de congelamento de preços e denúncias de corrupção, o caso Ruschi dominava rádios e jornais. Todos os dias, uma nova notícia sobre o cientista ilustrava a capa do Jornal do Brasil.

Sarney não perdeu tempo: no avião em que voltava de Manaus, pediu ao Ministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, que a Funai procurasse a ajuda dos índios. Em um primeiro momento, o órgão indigenista se ofereceu para contatar os Waiapi, povo indígena da Serra do Navio, onde Ruschi havia sido contaminado, em busca de um antídoto. Finalmente, receberam no Palácio do Planalto o cacique Raoni, já internacionalmente reconhecido por sua luta pela preservação da Amazônia, e acordaram uma pajelança.

“Mas por que ele não avisou antes?”, perguntou o cacique, ao ser informado da doença que acometia Ruschi. Raoni encomendou o colhimento de uma raiz da selva chamada atorokon, cuja maceração e cozimento serviria de antídoto para o veneno. “Primeiro, bate a raiz e põe na água quente; quando vira água, pinga no olho; depois bebe um pouco; depois toma banho”, explicou. Um avião da FAB saiu de Brasília com destino ao Parque Nacional de Xingu para buscar o pajé Sapaim, que iria auxiliar Raoni no tratamento.

Cacique dos Txucarramães, Raoni havia sido tema de um documentário premiado com o Oscar, em 1978, e narrado por Marlon Brando. Nascido em 1930 no Mato Grosso e pertencente a um dos ramos da etnia caiapó, aprendera português aos 20 e poucos anos com os célebres indigenistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Boas. Um dos irmãos de Raoni também fora envenenado por um sapo dendrobata, e o cacique garantia agora conhecer o seu antítodo. Ele, porém, não era reconhecido como pajé, nem mesmo entre os caiapós. Como o tratamento exigia um pajé, convocaram também Sapaim, um kamayurá do Alto Xingu, considerado um dos maiores xamãs dos povos indígenas, inciado e consagrado pelo espírito Mamaé.

A passagem dos dois índios pelo Rio de Janeiro, onde iriam tratar Ruschi, foi um prato cheio para a mídia da época. Com seu disco de madeira no lábio inferior, Raoni era uma figura fácil de marcar. O jeito enigmático de Sapaim, que pela primeira vez saía de sua aldeia para visitar uma cidade, também foi motivo de folclore. A mídia acabou focando nos aspectos mais superficiais da cultura indígena. Como o interesse de Sapaim pela música da banda RPM, cuja fita-cassete levou para o Xingu (“Quero ouvir muito o som dessa fita, muito boa”). Ou o comportamento informal de Raoni, que não se conteve e soltou um estrondoso “grito de Tarzan” durante um encontro no Palácio do Planato, não se sabe bem por quê (ao seu lado, o ministro Costa Couto ficou envergonhado e resolveu sair às pressas).

Jornalistas do mundo inteiro vieram cobrir o episódio. Nas disputadas coletivas, os repórteres repetiam a mesma pergunta: como homem de ciência, o naturalista acreditava na fé dos índios? Não estaria ele se rendendo ao “curanderismo”? Ruschi, que já conhecia bem os povos do Xingu, tentou desfazer a oposição ciência/medicina popular. Em suas respostas, sempre enfatizava o conhecimento dos poderes das plantas pelos índios, lembrando que a medicina deles tinha dois mil anos, “muito mais tempo do que a nossa”.

“Até agora enfrentamos problemas com soro antiofídico, com gente morrendo todo dia em decorrência de picada de cobra. No entanto, nesses 50 anos de vida na Amazônia, vi os índios ingerirem chás e serem curados de veneno”, afirmou o naturalista em uma entrevista coletiva no Rio de Janeiro, às vésperas da pajelança.

[olho]Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”[/olho]

“Houve uma cultura sensacionalista, que, aliás, ainda é atual”, lembra o biólogo André Ruschi, segundo dos três filhos de Augusto, em entrevista por e-mail. “Uma parte da mídia foi interessante e prestou significativos serviços. Mas ainda muito superficial. Pouco investigativa. Havia alguns interesses comerciais que estavam sendo mobilizados formando-se um jogo comercial no mercado, oculto do público, da grande mídia.”

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Augusto Ruschi e o cacique Raoni, da tribo Txucarramãe, no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi e o cacique Raoni, da tribo Txucarramãe, no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

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Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”, diagnosticou. Para o cacique, era preciso urgentemente “tirar o sapo” de dentro de seu paciente. A Sarney, contou ter visto Ruschi em sonho, numa lagoa cheia de anfíbios: “Ele já virou um sapo, mas esse sonho pode ser um bom presságio”. Os jornais reproduziram as palavras do cacique sem nenhum contexto, ignorando qualquer cosmologia por trás delas. Também pouco falaram do papel dos espíritos e dos sonhos na cura.

“O pajé fala com o doente de dia e de noite vai dormir. Quando sonha, sai do corpo e acompanha o espírito-guia, que no caso de Sapaim se chama Ypotramaé [mamaé da flor, ‘ipoty + mamaé’]”, explica o médico e antropólogo Wesley Aragão, que acompanhou Sapaim em suas pesquisas de campo. “O mamaé-guia do pajé o leva para uma floresta, em ‘viagem fora do corpo’, e lhe mostra quais ervas deve usar e que procedimento deve tomar, no dia seguinte, com o paciente. O pajé ao estilo de Sapaim age sempre desta forma. Todos têm o seu espírito guia com quem conversam de dia, em clarividência suposta, ou de noite, no sonho. No rito de cura, este sonho terapeutico com o espírito é determimante. Inclusive em termos de prognóstico”.

Segundo Wesley, o pajé é apenas um médium — quem realmente cura é o espírito, no caso Mamaé. Daí a importância do sonho.

“É o Mamaé quem diz tudo: se o doente vai viver, se vai sarar definitivamente ou temporariamente, o que ele deve fazer, o que o pajé deve fazer como e por quanto tempo. Tudo é o Mamaé quem diz. E o sonho é o momento de melhor comunicação entre aqui e o além, onde vive o Mamaé [no Mamaéretam, a terra dos espíritos]”.

***

Às 9h da manhã do dia 23 de janeiro de 1986, os índios chegaram pintados com tinta de jenipapo, como manda a tradição. O ritual aconteceria no casarão do Parque Lage, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro, e iria durar três dias e três noites. De manhã, durante a primeira sessão, os índios cobriram-se de urucum e sopraram a fumaça de um charuto de folhas de trinta centímetros no corpo do naturalista. Vinte minutos mais tarde, Raoni inclinou-se sobre ele, massageou-o com unguento e foi tirando, a partir de seu pescoço, uma substância escura e mal-cheirosa. Era, segundo Raoni, o veneno do dendrobata.

Na segunda sessão, à tarde, Raoni e Sapaim preparam um chá com a raiz de atorokon. A erva foi fervida e espalhada sobre Ruschi. Depois, os índios fumaram novamente o charuto e retiraram mais uma vez a substância. A cada sessão, ela vinha mais clara e em menor quantidade.

Ainda há controvérsias sobre a s funções exercidas por Raoni e Sapaim. Em suas entrevistas mais recentes, este último afirma que, por não ser pajé, Raoni não sabia os procedimentos de pajé.

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Augusto Ruschi (segundo da esq. para a dir.), o cacique Raoni (quarto da esq. para a dir.) e o pajé Sapaim (à dir.), no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress
Augusto Ruschi (segundo da esq. para a dir.), o cacique Raoni (quarto da esq. para a dir.) e o pajé Sapaim (à dir.), no Rio de Janeiro, em 1986. Crédito: Rogério Carneiro/Folhapress

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“O que Sapaim me disse é que Raoni só quis aparecer perante os brancos como pajé para mostrar sua pessoa, seu povo, impor sua autoridade”, revela Wesley. “Em decorrência disto, Raoni na ocasião disse muitas coisas sem sentido, e fez algumas ‘performances’ para simular a condição de pajé”.

[olho]”Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo”[/olho]

Entre todos os jornalistas, Rogério Medeiros foi o único autorizado a presenciar os rituais. No dia 24 de janeiro, ele publicou um relato no qual descrevia a última sessão:

“No encerramento, Sapaim disse que o veneno já estava diminuindo muito no corpo de Ruschi. E Ruschi, com a voz mais firme, muito tranquilo, sem dor — o que ressaltou logo — disse para mim, com os olhos muito acesos — o que não fazia há meses: ‘Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo’.”

Aos repórteres, Augusto Ruschi afirmava estar totalmente recuperado. Os sangramentos haviam parado e seu intestino voltara a funcionar normalmente, algo que não acontecia há anos. Também dormia melhor — e até sonhava. “Estou sentindo um gosto de vida”, disse a Medeiros. Mas, apesar das manchetes e entrevistas otimistas, o naturalista ainda sofria de insuficência hepática grave, causada por uma cirrose. A retirada tardia do veneno pela pajelança lhe ajudou a recuperar forças, mas não trouxe a cura. Ele morreria quatro meses depois, aos 71 anos, em Vitória, de cirrose viriótica.

A autópsia não revelou nenhum traço de veneno. Para os médicos, tudo indica que a cirrose foi derivada pelo consumo excessivo de remédios contra a malária — e não pelos sapos. A morte por hepatite C, inoculada em coleta de sangue normal para exames de rotina, foi confirmada pelo seu médico particular e assessor de pesquisas, o cardiologista Pedro José de Almeida. Segundo André Rushi, o óbito não foi devidamente esclarecido na época por causa de um desentendimento entre Ruschi e Almeida.

Sapaim, por outro lado, acreditava que o naturalista estava enfraquecido por um câncer, conta Wesley Aragão.

“O que Sapaim me contou é que o envenenamento de Rushi não teve nada a ver com Mamaé, que é um envenanamento físico de fato, que o ‘sapo mijou nele’ e que o ‘veneno entrou nele’ e estava matando ele aos poucos”, relembra o antropólogo. “O que Sapaim diz ter feito foi ‘tirar o veneno do sapo do corpo de Ruschi’. Segundo Sapaim, este se encontrava ‘muito mal’, ‘quase morrendo’, ‘nao tinha voz, não aguentava andar e sangrava pelo nariz’. Quando ele tirou o veneno, Ruschi voltou a andar, a falar normal e parou de sangrar. Perguntei uma vez a Sapaim por que, então, Ruschi morreu alguns meses depois. Ele me respondeu que ‘a parte dele foi feita, ele tirou o veneno, mas Ruschi morreu de câncer porque estava já enfraquecido’.”

***

Em seu ato final, Ruschi fez o Brasil abrir os olhos para a medicina indígena. A intensa — e sensacionalista — exposição de seu tratamento trouxe uma visibilidade inédita, ainda que fugaz, para a ciência dos povos do Xingu. Raoni e Sapaim sabiam que o que estava em jogo ia muito além da saúde do cientista: “Nós dois temos que curar direito, senão o branco não acredita e brinca com índio”, declarou o cacique.

Em uma sociedade descrente, paralisada no labirinto da Década Perdida, o termo “pajelança” ganhou a boca do povo, como uma solução mágica para todos os males do momento. Se o xamanismo indígena podia salvar um dos mais ilustres brasileiros, por que não resolveria os outros problemas do Brasil? O banqueiro Marcílio Marques Moreira chegou a afirmar que o país precisa de “uma pajelança econômica”. E até o jogador Sócrates, que enfrentava uma lesão aparentemente incurável, cogitou chamar Raoni para dar um jeito em seu tornozelo.

“Curado”, Ruschi fez elogios públicos aos indígenas, à “cultura linda” que o havia socorrido. E foi pessoalmente agradecer José Sarney pela intervenção. Já o antropólogo Darcy Ribeiro e o político Mário Juruna — primeiro e único deputado federal indígena do país — acusaram o presidente de usar politicamente os índios. Ribeiro, aliás, também temia que o episódio provocasse uma corrida de brancos a aldeias indígenas, em busca de tratamento.

Sua preocupação tinha fundamento. Graças ao episódio, Raoni e Sapaim alcançaram status de celebridade, fazedores de milagre. Durante a pajelança, pacientes brancos correram ao Parque da Cidade pedindo à dupla que os examinassem. Houve até quem temesse que o local se tornasse um local de romaria: “A fama dos pajés está se espalhando, começa a aparecer gente pedindo informações”, disse um guarda. Assediado enquanto passeava no Centro do Rio, Raoni ouviu de uma senhora: “Esse aí tem que ser ministro da saúde”.

“Durante os dias de pajelança, Raoni e Sapaim ficaram concentrados no Parque da Cidade, não saíram de lá, e os jornalistas se instalaram ali por perto, esperando novidades”, lembra o fotógrafo Custodio Coimbra, do jornal “O Globo”, que na época cobriu o episódio pelo “Jornal do Brasil”. “Quando o tratamento acabou, os índios saíram para fazer compras na Casa Turuna [tradicional loja de fantasias do Rio] e toda a imprensa foi atrás, porque eles tinham virado uma atração na cidade.”

Em um dos seus plantões no Parque da Cidade, o fotógrafo ganhou um charuto de Sapaim, feito provavelmente com as mesmas ervas usadas na pajelança.

“Vi ele de longe, e fiz um sinal. Ele me chamou e deu o charuto de presente. O pessoal queria experimentar ali mesmo, mas eu preferi fumar em casa. Na época era comum fazermos projeções lá na minha casa, e em duas delas fumamos o charuto. Fazia uma fumaceira danada. E até dava um barato.”

[olho]”O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”[/olho]

Em sua coluna, Affonso Romano de Sant’Anna chegou a sugerir a exploração de uma farmacopeia que unisse “a sabedoria indígena e o que há de mais avançado na indústria química”. Raoni, porém, descartou qualquer possibilidade de industrializar a raiz atorokon. “A raiz não pode vender para o branco. Os brancos já têm seus remédios”, enfatizou.

“O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”, diz a antropóloga Gisela Macambira Villacorta, especializada em antropologia da religião e da saúde, e professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. “A repercussão na mídia trouxe à tona algo que já estava ocorrendo no cotidiano: a redescoberta, por não-indígenas, dos sistemas de cura tradicionais. Isso acontece em função da crise da saúde no país, mas também da crise da medicina ocidental, da relação entre paciente e médico, que era e ainda é de muita distância. Na relação com o pajé, o paciente participa mais da cura, ambos são protagonistas, vivem junto o processo.”

No dia 26 de janeiro daquele ano, uma reportagem no “Jornal do Brasil” mostrava que o caso Ruschi havia devolvido o prestígio das ervas medicinais, com a busca de remédios naturais crescendo a cada dia. Um movimento superficial e momentâneo, mas que deixou marcas, acredita André Ruschi. Ele conta que, quando foi delegado do Conselho Estadual de Saúde do E. ES nas Plenárias Nacionais de Saúde, entre 1999 e 2006, conseguiu a aprovação do reconhecimento oficial das terapias alternativas, que foram incluídas no SUS e no ensino oficial dos cursos de medicina. A referência ao nome “Ruschi”, segundo ele, ajudou a fortalecer os argumentos junto aos delegados.

“A ciência médica é produto da coleta de informações populares que vão sendo confirmadas de maneira técnica para que possamos reproduzi-las de maneira consciente”, diz ele. “Portanto, [o caso] trouxe à luz, de maneira mais evidente, como ocorre este processo de assimilação de conhecimentos e desenvolvimento cultural.”

Quase três décadas após a pajelança, Raoni se tornou um ícone da preservação ambiental e da cultura ancestral, mas não deu continuidade a sua experiência como pajé. Sapaim se tornou conhecido especialmente entre pessoas brancas, urbanas, ligadas a movimentos new age, e continua atendendo pacientes famosos, como Leonardo DiCaprio e Gisele Bünchen. Já os alertas de Augusto Ruschi, que no dia 12 de dezembro de 2015 completaria 100 anos, nunca estiveram tão atuais.

“A ausência de política florestal leva o país a um desastre ambiental permanente com desertificação na maior parte do território nacional. Ele sempre advertiu sobre esta tendência. O combate aos agrotóxicos, a rejeição à monocultura, a política de criação de Unidades de Conservação são legados universais do pensamento de Ruschi, amplamente aceitos e adotados em todas as nações”, enumera André, que continua o trabalho do pai na Estação Biologia Marinha Ruschi, uma escola de ecologia dedicada à pesquisa, educação e cultura. Ele lamenta, no entanto, que a instituição continue sofrendo perseguições políticas e lutando contra a falta de apoio governamental.

Após a morte de Ruschi, não demorou um mês para o que o Espírito Santo começasse a sofrer uma nova onda de desmatamentos, que atingiu até sua terra natal, Santa Teresa, na região serrana Estado. Rogério Medeiros, que em 1995 escreveu o livro “Ruschi — o agitador ecológico” (Editora Record), lamenta que o legado do naturalista ainda não seja devidamente reconhecido em sua própria região.

“O mundo respeita Ruschi, mas o Estado inteiro do Espírito Santo, da Academia aos políticos, o odeia. Porque tudo que ele falou que ia acontecer no Estado já está acontecendo. Os estragos das mineradoras, a natureza se vingando, a situação do Rio Doce… Ele previu tudo isso.”

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Perfil

Um fotógrafo contra as remoções

Em uma quarta-feira de novembro, o fotógrafo Maurício Hora recebia, no amplo salão do Zona Imaginária, uma cooperativa de artes visuais criada por ele na Zona Portuária do Rio de Janeiro, a artista alemã transgênera Tobi Möring, adepta de instalações com materiais descartados. Tobi — ou Miss Tobi, como é conhecida — voltava de um ferro velho da redondeza, os braços repletos de resíduos. Ela foi depositando a matéria prima no chão da sala, ao lado de três esboços de esculturas feitas em papelão, que dias depois seriam revestidas de metal e instaladas ali perto, no alto do Morro da Providência, para festejar o aniversário da mais importante favela da região. Explicitamente contestadoras, as formas desenhavam, com traços quase infantis, um político engravatado falando no microfone, um policial com um fuzil, e um trator – símbolo máximo das remoções que ameaçam a favela.

Em um espanhol um tanto enferrujado, Tobi me explicou que usa os espaços públicos para fazer perguntas pertinentes. No caso da Providência, as esculturas indagavam: para quem são as Olimpíadas do Rio de Janeiro? Quais são as consequências para as pessoas que moram na favela? Quem se beneficia com os Jogos?

Era uma tarde quente. Colocando-se em frente a um velho ventilador de metal, cujas hélices enferrujadas giravam ruidosamente, Maurício observou por um instante a obra de sua colega estrangeira. Depois, balançou a cabeça de leve e soltou uma risadinha. Sua expressão era muito mais de ironia resignada do que de reprovação.

“Acho que isso não vai durar muito lá em cima, não…”, lamentou. “É uma crítica às Olimpíadas. Ele quer fazer um pódio com esses três elementos [o trator, o político e o policial], cada um em uma marcha.”

Perguntei por que a instalação não iria durar. Ele respondeu com naturalidade. “Ah, porque é uma crítica… A prefeitura certamente vai criar um argumento: ‘Isso não pode estar aqui, está atrapalhando um lugar público’.”

Maurício Hora. Crédito: Divulgação
Maurício Hora. Crédito: Divulgação

Maurício sabe do que está falando. Nascido e criado na favela da Providência, onde ainda reside, o fotógrafo sempre negociou seu trabalho com os agentes dominantes do morro: o tráfico, a polícia e o poder público, todos muito sensíveis a qualquer tipo de crítica. Homem baixo, de cabelo preto encaracolado e olhos estreitos, escondidos atrás de óculos de aros enormes, Maurício é descendente de escravos, filho do primeiro chefe de boca de fumo do Rio. Fotógrafo autodidata, foi pioneiro ao retratar o cotidiano cordial e pouco conhecido da favela, longe do clichê da violência: crianças brincando, famílias em seus momentos domésticos, pessoas tentando viver normalmente em meio à pobreza e à vulnerabilidade.

Ao colocar as ruas e as casas da Providência em primeiro plano, suas fotos chamaram a atenção das universidades de arquitetura em todo mundo. Artistas e fotógrafos de outros países passaram a visitar Maurício com regularidade. Em 2005, ele ajudou a criar o projeto Favelité, que colocou o cenário da favela no metrô parisiense. Em 2009, o artista multimídia francês JR, que havia descoberto suas fotos em Paris, viajou ao Rio para conhecê-lo e lhe propôs a parceria em um projeto internacional de intervenção em áreas de conflito. O resultado foi exposto no Centro Cultural da Casa França Brasil no ano seguinte.

[olho]Maurício depende da autorização dos traficantes para fotografar o morro noite adentro[/olho]

Aos 47 anos, Maurício é hoje um verdadeiro embaixador da Providência, com raízes fincadas em sua comunidade e uma abertura invejável fora dela. Mas a permanência em um lugar tão problemático tem seu preço. Conhecido por seu trabalho com longa exposição, que captura cenas noturnas de uma favela etérea e fantasmagórica, Maurício depende da autorização dos traficantes para fotografar o morro noite adentro. Há lugares onde ele simplesmente não pode puxar a câmera — e inúmeras fotos já foram perdidas pela falta de liberdade.

“Através da fotografia, consegui identificar o território: andei por tudo, fotografei o morro todo, conheço muito bem as pessoas”, diz. “Isso me deu uma noção e uma capacidade de discutir o território. Agora, me frustra porque, no fim, vale o que o tráfico determina. Por causa do descaso das administrações, é ele que tem força. O tráfico consegue transformar e fazer ações, às vezes sem pensar, e a comunidade aceita, e até gosta. E eu, que estou ali, não consigo fazer nada. Já aprendi que não posso brigar contra isso.”

O tráfico, contudo, não é o único a impor obstáculos. Apesar de discordar dos novos planos da prefeitura para a favela, Maurício precisa maneirar suas críticas e contar com a boa vontade dos órgãos públicos em patrocinar alguns de seus projetos. Seja no Estado paralelo ou no oficial, a diplomacia é uma questão de sobrevivência.

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Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora
Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora

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O momento é especialmente delicado para Maurício e os residentes da Providência, que, dentro do plano de revitalização da Zona Portuária da cidade, vive um intenso processo de gentrificação. Em junho de 2012, uma quantidade impressionante de obras foi iniciada. Em função do Projeto Porto Maravilha e da megatransformação da região, moradias foram deslocadas e os alugueis inflacionaram, afetando a permanência de alguns dos moradores mais antigos.

Segundo dados da própria prefeitura, até este ano mais de 80 mil pessoas foram tiradas de suas casas em todo o Rio de Janeiro. A urgência das obras das Olimpíadas de 2016 impulsionaram a especulação imobiliária na Zona Portuária, apontam os pesquisadores Lena Azevedo e Lucas Faulhaber, que publicaram este ano o livro “SMH 2016: Remoções no Rio e Janeiro Olímpico” (Mórula Editorial). Não foi diferente com a Providência, que inicialmente previa o reassentamento de 760 famílias. Em 2012, cinquenta e cinco delas já haviam sido deslocadas para empreendimentos em áreas próximas à favela. Segundo os moradores, a Secretaria Municipal de Habitação (SMH) comunicava as desapropriações através de pichações nas paredes das casas.

Originalmente conhecida como Morro da Favela – o nome deu origem ao termo mundialmente difundido – a Providência é o primeiro assentamento urbano informal da cidade. Situado entre os bairros do Santo Cristo e da Gamboa, foi ocupado em 1897 por soldados veteranos da Guerra de Canudos, que regressaram ao Rio para receber casas prometidas pelo governo. Como a promessa não foi cumprida, instalaram-se em construções provisórias no local. Machado de Assis nasceu em um imóvel ao pé do morro, que ainda abriga uma escadaria do século 19 e um capela construída em 1905.

[olho]”A transformação tem que ser pensada pela própria comunidade. Não adianta colocar um teleférico se ele não atinge 5% dos moradores”[/olho]

Mesmo sem o apelo das favelas do Vidigal ou do Chapéu Mangueira, a Providência interessa por seu valor histórico e cultural, somado à espetacular vista para o porto e para o Centro. Muitos moradores se dizem descontentes com os rumos das obras, que estariam mais focadas no futuro potencial comercial e turístico do morro do que com o bem estar dos que vivem lá. Um símbolo do novo projeto é o teleférico inaugurado em julho do ano passado, que liga a Praça Américo Brum, no alto do morro, à Central do Brasil e à Gamboa. Além da pouca utilidade para os moradores – a maioria dos seus usuários, explica Maurício, são pessoas de outros lugares que o utilizam para evitar a travessia a pé do túnel da Central – sua construção eliminou uma quadra de esportes, até então o único espaço recreativo da favela.

“As remoções são cruéis porque não estão sendo pensadas pelos moradores, e sim pelo poder público, que não tem nada a ver com aquilo ali, que não participa, não sabe o que é um tiroteio, não sabe o que é a ação da polícia dentro do morro. É injusto”, desabafa. “A transformação tem que ser pensada pela própria comunidade. Não adianta colocar um teleférico se ele não atinge 5% dos moradores.”

A questão, porém, é complexa. As melhorias da prefeitura foram aprovadas por muitos moradores. Quem tem título de propriedade, por exemplo, anseia em vender sua casa recém-valorizada e se mudar do morro.

“Acho que tudo é uma grande armadilha”, argumenta Maurício. “As pessoas vivem numa ideia de ascensão de vida, de melhorar, de sair de lá. Mas por que não transformar aquilo em um lugar melhor para as pessoas que já estão lá? Se já é uma expectativa da cidade de que isso vire um lugar melhor, por que não transformar para essas pessoas, que seguraram essa onda até agora? É digno que elas permaneçam de uma forma melhor, não que sejam removidas.”

Os artistas locais e visitantes que desejam denunciar essa realidade se apoiam em Maurício. Com seu bom trânsito e conhecimento do local, seu nome sempre pipoca quando pessoas de fora trocam ideias sobre a Providência. Foi assim com Tobi — que ouviu pela primeira vez sobre o fotógrafo ao conversar com uma amiga sobre seu projeto — e com Cecília Cipriano, autora de uma crítica contundente sobre as remoções na favela. Em seu projeto “O corte”, a artista fez uma intervenção em uma das casas marcadas para demolição pela SMH — da construção original, restam hoje apenas as ruínas, mas as fotos da iniciativa estiveram em exposição no Itaú Cultural, em São Paulo. Coube a Maurício fazer a ponte entre Cecília e os moradores.

“Maurício é um líder de grande atuação na luta de melhorias de vida da comunidade do Morro da Providência”, disse-me dias depois Cecília, em entrevista por e-mail. “Participou ativamente na tentativa de criar uma política alternativa de moradia e faz parte da terceira geração de moradores na comunidade, o que o faculta a contribuir intensamente na preservação da memória da toda a Região Portuária. Recebe cordialmente inúmeros visitantes, geralmente críticos do projeto urbanístico da Região Portuária, inclusive eu.”

Os dois conversaram pela primeira vez em 2012. Com a ajuda de Maurício, Cecília foi conhecendo os moradores das casas marcadas pela SMH para a construção de uma suposta “moto-via”, que ligaria a Vila Portuária à praça do teleférico, e também os moradores do topo do morro, no Cruzeiro, onde está localizado o oratório construído em 1902 e tombado pelo Patrimônio Histórico Municipal.

“Nesse local, apesar das marcações das casas, e da demolição de uma delas, o objetivo da desocupação não ficou claro para os moradores e nada foi construído”, diz Cecília. “Alguns moradores acreditavam, inclusive, que seria construído um grande hotel do empresário Eike Batista.”

Localizado em um imóvel de 400 metros quadrados da Rua Pedro Ernesto, no coração do bairro da Gamboa, a própria Zona Imaginária – o espaço criado por Maurício para que artistas urbanos e visuais desenvolvessem seus trabalhos – tem sofrido com os ataques do Rio Olímpico. Com as obras a todo vapor, demolindo e martelando ao longo do dia, a rua mais parece uma zona de guerra ou um cenário de filme apocalíptico. É como se a região sofresse uma autópsia: asfalto aberto como veias e esgoto correndo como sangue. O barulho de obras é constante.

“E olha que agora está bem melhor”, disse Maurício. “Você tinha que ver antes…”

A poeira das obras invadia o salão do imóvel, que Maurício transformou em ateliê. Pelo vidros quebrados das janelas, de frente para a Pedro Ernesto, vê-se a favela da Providência erguer-se desordenadamente por trás dos prédios e uma pequena ponta do Museu José Bonifácio, que sempre expõe obras do fotógrafo. No ateliê improvisado espalham-se sofás e poltronas e uma mesa de trabalho. Encostada em uma das paredes, um amontoado de portas soltas formam uma obra do português Alexandre Farto, o Vhils, que recentemente cravou retratos de moradores nas ruínas das casas demolidas da Providência. Na parede do outro lado, telas da carioca Vanessa Rosa, que transformou fotos de Maurício em pintura.

Zona Imaginária e sua janela quebrada. Crédito: Bolívar Torres
Zona Imaginária e sua janela quebrada. Crédito: Bolívar Torres

Vanessa chegou no espaço logo depois de Tobi. É uma jovem de cabelo preto ondulado e pele branca. Protegia-se do sol da tarde com um largo chapéu. Sua figura contrastava com a de Tobi, germânica esguia e desengonçada, de cabelo loiro longo amarrado em um rabo de cavalo. Tobi vestia uma bermuda masculina estilo tenista. Ao encontrar qualquer pessoa, soltava instintivamente uma risada amistosa e desarmada. Vanessa, que já morou e expôs em Berlim, foi apresentada a Tobi e trocou algumas palavras com ela em alemão.

Maurício interrompeu a conversa em tom de brincadeira. “Quantas línguas você fala, Vanessa?” Ao descobrir que ela também se virava em francês, inglês e espanhol, ele se voltou para mim: “Aí é outra coisa. Classe média…”

Vanessa escolheu recriar fotos bastante representativas do universo de Maurício. Pendurada em cima da entrada do estúdio, aos fundos do espaço, uma tela mostrava duas crianças negras – uma menina de vestido e um menino de bico na boca e mão dentro da bermuda – posando em frente a um barraco. Um vira lata passa faceiro na rua ao lado deles, como se quisesse voluntariamente ser registrado na cena.

Dias antes, Vanessa levara o quadro debaixo do braço até a Providência para mostrá-lo aos moradores. Os pedestres a olharam com curiosidade ao longo do trajeto entre o Zona Imaginária e a favela, e alguns até a pararam para perguntar sobre a obra. Daí veio a ideia de um futuro projeto: trazer as telas para a Providência e fotografá-las nos espaços que elas retratam, evidenciando a passagem do tempo e possibilitando um novo enquadramento.

“Toda minha relação com a Providência é através do Maurício”, contou-me Vanessa. “Como alguém que vem de fora, acho difícil se inteirar completamente com a região, interpretar todos os seus códigos. É um pouco como se eu passasse a entender a região pelos olhos do Maurício. Não fosse assim, a gente [os artistas de fora] fica muito invasivo.”

Ela vê Maurício como um grande articulador, que não apenas consegue se comunicar com grupos diferentes, como também sabe “valorizar a estética além do entendimento social”.

[olho]”Eu sou o primeiro favelado, em 116 anos, a ir a Canudos”[/olho]

“Acho difícil para alguém de fora ter uma compreensão das dificuldades que esta região passou nesses anos todos”, continua Vanessa. “O Maurício tem um olhar particular da política interna, de saber o posicionamento de pessoas ligadas ao tráfico, pessoas que conviveram com ele desde pequeno, ou de ter que negociar com a associação de moradores, com o policial, com a prefeitura… Mas ele também tem uma visão do externo, do mundo da fotografia, do contexto artístico, tendo contato com artistas de fora da Providência e com eventos de movimentos sociais do mundo todo.”

Nascida em uma família de editores, Vanessa está ajudando Maurício na preparação editorial de seu mais novo livro, “Morro da Favela à Providência de Canudos”, um ensaio fotográfico que mostra as relações entre Canudos e a Providência. Com patrocínio master da Fundação Ford, Maurício viajou ao Nordeste Baiano e fotografou as ruínas da antiga Canudos, que apareceram após a seca.

“Eu sou o primeiro favelado, em 116 anos, a ir a Canudos”, observou Maurício, sem esconder seu orgulho. “Você imagina que os primeiros ocupantes da Providência foram soldados de Canudos. Os caras passaram os maiores massacres. Degolar pessoas era uma prática comum. Foram essas pessoas que vieram para cá… É algo interessante quando se pensa a origem da violência na favela.”

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Um dos cenários de Canudos. Crédito: Maurício Hora
Um dos cenários de Canudos. Crédito: Maurício Hora

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Na Providência, Maurício foi testemunha privilegiada de uma história de extremos: viu de perto a gênese do tráfico nos anos 60 e teve um papel ativo, a partir dos anos 90, na formação de uma cena cultural e artística no morro. A atípica trajetória pessoal fascinou o desenhista André Diniz, que publicou uma biografia em quadrinhos do fotógrafo. Lançada em 2011, a graphic novel “Morro da favela” (Barba Negra) é uma espécie de romance de formação de um morador da favela. Através das memórias de Maurício, retrata as dificuldades de se viver no morro, desde a falta de recursos aos abusos da polícia e à proximidade com os grupos criminosos. Mas também tenta, assim como as fotos de Maurício, divulgar uma outra favela: a dos afetos familiares, da solidariedade e da joie de vivre.

A obra responde a uma pergunta que o biografado já está cansado de ouvir: por que não ir embora da favela e de seus perigos? Porque ele não vê nada de diferente lá embaixo, porque ele é e sempre será um fotógrafo favelado, e porque nem todo favelado é “bagunceiro e ladrão”, responde Maurício logo na abertura do livro. Embora essa visão generosa seja apenas uma entre as milhões possíveis de cada morador, Diniz acredita que ela ajuda a desmistificar as certezas criadas a partir das manchetes de jornais – o retrato monocromático que a população do “asfalto” já se habituou a ver na mídia.

“Ao longo de alguns meses, encontrei com Maurício diversas vezes no alto da Providência”, contou-me Diniz, alguns dias antes, por email. “Sou carioca e morei no Rio até os meus 28 anos e, no entanto, foi minha primeira vez em uma favela. Entrei lá a primeira vez zerando qualquer expectativa ou ideia pré-concebida, dentro do que me era possível. Eu queria que o livro fosse de fato a visão de Maurício e só dele. Ao longo dos meses e das visitas, claro, fui formando também a minha visão, que de fato me fez crescer muito e a entender que falarmos “o favelado” é tão impreciso como falarmos “o europeu”. Não há “o favelado”, há o Maurício, há o Antonio, há a Maria, há a Daniele. Cada um é um, cada pessoa é diferente, tem a sua própria história.”

[olho]”Antes, as pessoas vendiam em casa. O meu pai também vendia em casa, mas foi preso porque um dos fregueses era policial e denunciou ele.”[/olho]

Publicado na França e em Portugal, o livro também joga luz sobre a evolução do tráfico na cidade. Na década de 60, o pai de Maurício, Seu Luizinho, inaugurou, segundo o fotógrafo, a primeira boca de fumo do Rio. Era ainda o tempo romântico do tráfico: pouca fiscalização da polícia e bandidos malandros.

“O tráfico mais antigo é o da Providência”, afirmou Maurício. “Antes, as pessoas vendiam em casa. O meu pai também vendia em casa, mas foi preso porque um dos fregueses era policial e denunciou ele. O que também acontecia muito era o freguês ser preso e contar onde comprou. Então, quando o meu pai sai da prisão, ele decide vender na rua. Fixaram um ponto para vender. Mas marginal na época não era o tráfico, era o jogo de ronda. Polícia subia o morro por causa do jogo.”

Aos poucos, o cenário começou a mudar. Seu Luizinho foi preso pela segunda vez e, ao sair da prisão nove meses depois, decidiu abandonar o crime. Dedicou-se à pacata vida de estivador, enquanto o tráfico tomava outros caminhos, com a adoção da artilharia pesada e a formação do crime organizado. Um rumo que Luizinho lamentou até a sua morte, em 2014, de câncer.

“Na segunda vez que o meu pai foi preso ia ser uma pena pesada”, lembrou ele. “Mas como os policiais roubaram o que ele tinha, o promotor acreditou na história dele e, na acusação, incriminou os policiais também. Dos quinze policiais, só cinco apareceram no tribunal e meu pai foi absolvido por falta de provas. Eu tinha dez anos e aquilo me fez entender como funcionava um tribunal. Antes do julgamento o promotor foi lá, cumprimentou meu pai, desejou boa sorte… Durante o julgamento, não parou de malhar ele.”
Maurício nunca se meteu com tráfico. Herói de infância, seu irmão, Jorge, começou praticando crimes leves e logo entrou no pesado negócio do assalto a bancos. Aos 27 anos, desapareceu. A família descobriu que ele havia sido preso em Botafogo, mas não o encontrou por lá. Tempos depois, uma ossada com 19 corpos foi descoberta em Sumaré. Maurício acredita que um deles era o do irmão, mas nunca conseguiu comprovar.

Formado em um ambiente em que traficantes não raro ajudam a comunidade e em que os policiais muitas vezes roubam e forjam flagrantes, Maurício aprendeu desde cedo que a noção de “bandido” podia ter muitas nuances. Ele, porém, nunca se meteu com crime. Na adolescência, arranjou um emprego como ourives. Na oficina com 21 funcionários, ele era o único que não usava drogas. Um dia, ao visitar um cliente, bateu o olho em uma câmera Pentax. Comprou a máquina com o dinheiro das joias e nunca mais parou de fotografar.

“Meu pai tinha uma vida muito tranquila na adolescência, era um cara que estudou legal. Mas [a Providência] era um lugar muito marginal. Imagina se você tiver que morar hoje na Central do Brasil. Cara, você vai se marginalizar. Talvez você não mude o seu caráter, mas você vai ter que ser malandro.”

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Um clique noturno do Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora
Um clique noturno do Morro da Providência. Crédito: Maurício Hora

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Ao mesmo tempo em que ajuda artistas de fora a se localizar e se familiarizar com a comunidade, Maurício também ajuda os jovens moradores a entrar em contato com o mundo cultural fora dela. Mistura de antropólogo, historiador e assistente social, ele ministra oficinas e coordena uma cooperativa de fotógrafos, que usa o estúdio montado nos fundos do imóvel do Zona Imaginária. Composta principalmente de aspirantes da periferia que não conseguem evoluir na carreira por falta de dinheiro, a organização permite o compartilhamento de equipamentos caros. Além do Zona Imaginária, Maurício também toca a Casa Amarela, um espaço cultural e de aprendizado situado no alto da Providência.

Todas as ações estão ligadas ao Instituto Favelarte, criado em 2010 por Maurício e por seu sócio Renato Barbosa para fomentar uma política de progresso nas comunidades carentes e superar a exclusão social. Na graphic novel de André Diniz, uma cena chama atenção: é quando um garoto problemático, que tinha muita vergonha de sua casa humilde, se emociona ao vê-la fotografada por Maurício. A transformação pela arte foi tão forte, que a sua vergonha sumiu instantaneamente.

Maurício me levou até a Casa Amarela, uma construção de dois andares em frente à praça em que Tobi iria instalar suas esculturas. Com todas as portas e janelas fechadas, ela parecia estar abandonada. Na verdade, o espaço vinha sendo pouco utilizado desde que o Zona Imaginário passou a monopolizar as energias do Favelarte. Atrás do portão da entrada, resíduos jogados em uma caixa exalavam um cheiro forte. Havia lixo espalhado por todo pátio. Lá dentro, algumas das peças estavam sem luz. Maurício foi me mostrando o espaço de leitura, no segundo andar. Os livros estavam jogados pelos cantos, como se alguém tivesse feito uma varredura.

De fato, a polícia invadiu o local recentemente. Em uma de suas batidas na favela, arrombou portas e foi embora sem deixar aviso. Durante três dias, a casa ficou abandonada, toda aberta. A garotada do morro aproveitou para invadir. Comeram os biscoitos da provisão, roubaram lápis e caneta e bagunçaram o espaço.

“Nesse tempo em que a casa ficou aberta, ninguém tocou em nenhum objeto de valor” ressaltou Maurício. “Eu tinha máquina fotográfica, tinha equipamentos caros, e eles deixaram tudo lá, direitinho.”

Ex-aluno da Casa Amarela, Diego de Deus da Conceição, conheceu Maurício aos 15 anos. Hoje com 27 anos, ele trabalha como office boy no Museu de Arte do Rio – um dos mais ambiciosos investimentos culturais na Zona Portuária. Durante uma folga em seu trabalho no museu, ele me encontrou na esquina da rua Sacadura Cabral com a Pedra do Sal, núcleo simbólico da antiga Pequena África do Rio. Diego foi iniciado por Maurício na fotografia, ganhou prêmios com um trabalho sobre as Unidades Pacificadoras, e agora está tentando trabalhar com vídeo. Seu projeto é fazer um documentário centrado na figura do morador Eron César dos Santos, que vive há mais de 40 anos na Providência.

Responsável pela igreja de Nossa Senhora da Conceição, no alto do morro, Eron reúne contos e lendas sobre a favela, estudando, através do pouco conhecido folclore local, outras visões da história dela.

“Você ouve muitos coletivos artísticos baseados na favela dizendo muita coisa, mas fazendo pouco”, lamentou Diego. “Tem muito mais para ser trabalhado e muito mais gente a ser atingida. No próprio morro onde fico, no ponto mais alto, ali no Largo do Cruzeiro e na Praça Américo Brum, tem uma quantidade significativa de crianças que não estão fazendo nada. Maurício mudou muito meu olhar sobre a comunidade, e agora quero mudar o olhar dessas crianças. Quero trazê-las para os nossos projetos, mas nem todo mundo tem a mesma curiosidade, o mesmo olhar. Acho que falta uma maior união. Vejo muita gente trabalhando fechada em si próprio, levando o nome da Providência para fora, mas nunca para dentro.”

Crédito: Maurício Hora
Crédito: Maurício Hora

Menos de uma semana depois, com o pódio de Miss Tobi já instalado na Providência e imune — até o momento — a qualquer restrição da prefeitura (“Acho que o pessoal não entendeu”, brincou Maurício), descubro que o Zona Imaginária foi assaltado. No dia em que as esculturas foram inauguradas, ladrões entraram no espaço, roubaram equipamentos e o dinheiro do patrocínio do livro sobre Canudos. “Levaram muita coisa, mas tudo bem”, me disse Maurício por telefone, em uma voz conformada.

Dias antes, Maurício havia me confidenciado: “Sempre briguei pela favela, porque acho que tenho uma divida com a comunidade. Eu tenho uma divida por conta do meu pai. A coisa do tráfico é tão importante na favela… Não que eu seja importante aqui dentro, não é nada disso. E talvez nem seja tanto uma questão de culpa, talvez seja de pertencimento. Aquilo ali, o morro, também é meu. Eu me sinto tão parte daquilo que tenho uma pretensão, talvez idiota, de achar que eu possa ajudar. Tento unir os jovens, fazer eles entenderem o território, deslocá-los por diferentes partes da comunidade… Acho que isso é importante para eles.”