Não havia horário para o fim do expediente no 12º andar do imponente edifício que ocupa, de forma triangular, as esquinas das ruas João Adolfo e Álvaro de Carvalho, a poucos metros da Avenida 9 de Julho, centro velho de São Paulo. Há 50 anos, no mês de abril de 1966, era lançada a edição inaugural da revista Realidade.
Naquele andar do prédio, antiga sede da então novíssima Editora Abril, estavam homens com idade entre 25 e 30 anos, bem alinhados em camisa, gravata e terno de tergal e, também, bem pagos – em comparação com profissionais da época na mesma função. Essa era a turma de 66, uma equipe de jovens jornalistas escolhida a dedo para compor essa nova proposta editorial, uma revista mensal, com textos e fotos que exibissem o Brasil (e o mundo) de uma forma única e, até então, inédita em solo nacional.
Os últimos dias de 1966 eram de ansiedade para esses repórteres e editores – era assim a cada fechamento de edição. No caso, a próxima capa era a de número dez, chamada de Edição Especial – A mulher brasileira, hoje. Mesmo prevista para circular em janeiro de 1967, já estava certo que as bancas a receberiam ainda no mês de dezembro. A revista Realidade, em seu primeiro número, registrou 250 mil exemplares vendidos em poucos dias. Em tempos de rádio e com a televisão ainda em crescimento no país, a publicação chegou a ter 450 mil exemplares impressos. Atualmente, segundo os últimos dados da Associação Nacional de Editores e Revistas (ANER), a revista Claudia, maior publicação mensal em circulação, tem 420 mil exemplares impressos.
A edição foi pensada e desenhada para falar exclusivamente e, de uma forma inédita, sobre a mulher no Brasil. “Não sei como surgiu a decisão [da edição], mas acho que foi a consequência natural do que a revista vinha fazendo”, relembra o então repórter José Carlos Marão.
Nos últimos meses, o conteúdo da revista vinha abordando, de forma mais pontual, o universo feminino. A edição número quatro foi encartada com um cartão-resposta, que perguntava o que os brasileiros pensavam do divórcio. A revista trazia depoimentos sobre filhos não reconhecidos, viúvas sem herança e casos de discriminação com a situação jurídica das separações. O retorno foi animador para a redação: cerca de 15 mil respostas. “Naquele tempo, sem computadores, o resultado da pesquisa foi tabulado ‘na unha’, só sairia na edição 8, onde pela primeira vez, pelo que eu saiba, foi publicada uma pesquisa completa, com resultados por sexo, idade, escolaridade”, conta Marão.
A “evolução” do tema em pautas da revista, segundo o jornalista, teria motivado a elaboração da Edição Especial – A mulher brasileira, hoje.
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Hoje já clássica, a capa da edição veio toda em azul. O desenho de uma lupa focava no rosto de uma mulher, registrada pelo fotógrafo norte-americano George Love (1937-1995). O sumário explicava a opção pelo design de capa: “Uma mulher colocada sob a lente de aumento sintetiza o espírito desta edição especial: mostrar como é a mulher brasileira”.
Em uma carta ao leitor sob o título O trabalho que elas deram, o então diretor Roberto Civita explica que a proposta da edição surgiu, seis meses antes, numa longa conversa ao pé da lareira. “Falamos da revolução tranquila e necessária – mas nem por isso menos dramática – que a mulher brasileira estava realizando.”
Um dos eixos da edição estava baseado na publicação de uma pesquisa nacional sobre o sexo feminino, que teve suas conclusões – algumas surpreendentes para os editores – publicadas na íntegra.
Durante 40 dias no ano de 1966, a revista espalhou dez pesquisadores pelo Brasil com o objetivo de entrevistar 1,2 mil mulheres e ouvir o que elas tinham a dizer sobre temas como família, consumo e sexo. Os dados foram computados pelo Instituto Nacional de Estudos Sociais e Econômicos (Inese) e os resultados apresentados na íntegra em seis páginas da publicação.
Dentre os números reunidos havia, por exemplo, que 97% das mulheres ouvidas dizia acreditar em Deus – sendo que 11% já haviam duvidado. Que 40% das entrevistadas achavam que a mulher é mais inteligente que o homem; 59% respondeu que não e 1% preferiu não responder. E sobre sexo, 67% das entrevistadas continuam achando que a mulher deve casar virgem; 81% das analfabetas tiveram essa opinião; 54% entre as de nível universitário.
[olho]“Ao afirmar ter orgulho de ser mãe solteira, ela foi pioneira do movimento de vanguarda de libertação da mulher dos grilhões medievais”[/olho]
As reportagens abordavam temas como saúde, comportamento, humor, artes, religião, revelando mulheres fortes, batalhadoras, inovadoras e marginalizadas. Apesar de a maioria dos textos serem assinados pelo time de jornalistas da casa, quase todos homens, algumas mulheres foram convidadas para integrar a equipe. Daisy Carta realizou uma pesquisa para uma pauta sobre a “superioridade natural das mulheres”; Carmen da Silva teve contato com milhares de cartas para elaborar um artigo sobre “consultórios sentimentais”, e Gilda Grillo escreveu uma impactante entrevista com uma anônima mãe solteira.
Gilda havia voltado recentemente para o Brasil. Ainda na juventude tinha viajado para estudar na França e Nova York onde conheceu pessoalmente nomes como Greta Garbo, Marilyn Monroe, Simone de Beauvoir, François Truffaut, Catherine Deneuve. “A entrevista com a mãe solteira foi marcante para mim pela enorme coragem que ela teve, naquele tempo”, recorda Gilda, hoje vivendo no Rio de Janeiro, há 30 anos atuando como terapeuta. A autora da reportagem lembra que a mulher recusou-se a casar com o pai da criança se o motivo fosse apenas o filho, o que, na visão da terapeuta, era fora do comum para a época. “Ela foi pioneira do movimento de vanguarda de libertação da mulher dos grilhões medievais.”
Exemplares recolhidos
No entanto, a maior polêmica sobre a revista viria do talento de uma outra mulher, a fotógrafa Claudia Andujar. Nascida na Suíça, chegou ao Brasil nos anos 1950 e realizou trabalhos para a editora Abril. Foi casada com o fotógrafo Love, autor da capa. Posteriormente, sua atuação com as comunidades indígenas ficaria mundialmente conhecida – hoje, há um pavilhão inteiro sobre sua obra no Inhotim, em Minas Gerais. No número dez de Realidade, ela acompanhou o repórter Narciso Kalili em Bento Gonçalves (RS), para registrar o trabalho de uma parteira, publicado em sete páginas.
A foto da parteira dona Odila, de luvas, no momento exato em que acompanha o nascimento do bebê, com a mãe deitada em uma cama de lençóis amarrotados, uma imagem que foi dividida na dobra entre as páginas 72 e 73, motivou uma decisão judicial inusitada.
O Curador de Menores do Estado de São Paulo, Luiz Santana Pinto, requereu ao Juiz de Menores, Arthur de Oliveira Costa, a “imediata e sumária apreensão desta publicação, onde seja encontrada à venda nesta comarca”. O requerimento foi feito no mesmo dia em que a revista chegou às bancas, 30 de dezembro de 1966. O magistrado aceitou e despachou a ordem que os serviços de vigilância e rondas especiais recolhessem os exemplares.
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“A revista foi apreendida por ordem de um Juiz de Menores!”, exclama José Hamilton Ribeiro, à época na redação de Realidade e na ativa até hoje, aos 80 anos, no programa Globo Rural. “Começa aí o absurdo de um governo totalitário: a censura pode vir de qualquer canto, a ditadura se espraia pelas cabeças de todos que têm um pouquinho de poder”, prossegue. O Brasil iniciava o segundo ano de uma ditadura militar que começou com o Golpe de 1964 e que se prolongaria por 21 anos.
Em uma publicação no Diário Oficial, o juiz classificava que a revista tinha “algumas reportagens obscenas e profundamente ofensivas à dignidade e à honra da mulher, ferindo o pudor e, ao mesmo tempo, ofendendo a moral comum, com graves inconvenientes e incalculáveis prejuízos para a moral e os bons costumes”.
No dia seguinte, como descreve a historiadora Rosana Ulhôa Botelho, em seu artigo “Golpes contra a Realidade“, foi a vez do Juiz de Menores da Guanabara, Cavalcanti de Gusmão, adotar medida semelhante. Cerca de 200 mil exemplares já estavam à venda nas bancas. Por volta de 230 mil ainda estavam na gráfica da editora e foram retidos.
“Vista hoje, essa proibição fica ainda mais ridícula, é de dar risada, censurar fotos de um momento glorioso da vida humana, feitas com apuro artístico!”, reforça Ribeiro. “Só mesmo a mente equivocada de uma ‘otoridade’ para ver assim”, brinca.
“A gente sabia que alguns pontos [da edição], como a foto do parto, provocariam discussões”, afirma José Carlos Marão. “A gente esperava boa repercussão de alguns dos temas, como o divórcio. Mas, quando a notícia chegou na redação, a reação foi de perplexidade”, lembra. O jornalista conta que o departamento comercial foi o primeiro a saber.
Segundo Marão, a “venda da revista era tão rápida que não conseguiram apreender muitas – e jornaleiros espertos, percebendo um bom negócio, também esconderam seus exemplares, para a venda futura”.
Em 2011, Roberto Civita (1936-2013), diretor editorial do Grupo Abril, contou para o Jornal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) que “só depois descobrimos que os magistrados tinham sido incitados por um telefonema do Governador de São Paulo (Laudo Natel) que, por sua vez, havia recebido uma ligação indignada do cardeal da arquidiocese (Dom Agnelo Rossi, 1913-1995)”.
A edição seguinte, de fevereiro de 1967, trouxe todo o conteúdo da acusação dos magistrados, bem como a defesa, em forma de reportagem. A capa continha uma ironia: uma foto do renomado fotógrafo americano David Drew Zingg (1923-2000), com o rosto dela, Gilda Grillo. “O Victor Civita então aproveitou para rir da cara da censura, colocando uma moça dando um grande sorriso com o rosto coberto de purpurina. Essa moça era eu”, conta Gilda.
Uma decisão judicial favorável à revista seria dada 21 meses depois, mas os exemplares recolhidos já haviam sido destruídos.
Para Marão, o episódio com a Justiça, dois anos antes do rigoroso Ato Institucional nº 5, deixava claro que os holofotes estavam voltados à Realidade. “O que deu para sentir foi o quanto aquela revista nova, que estava ainda na sua edição número 10, já era muito importante no País”, diz.
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Não é preciso explicar muito o quão diferenciada era a redação de Realidade. Basta ler o primeiro parágrafo da reportagem que causou a apreensão das revistas nas bancas, vindas da Studio 44, máquina de escrever portátil da Olivetti, operada por Narciso Kalili.
A cidade de Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, vive no fundo de um vale cercado por montanhas cobertas de trigo, cevada e parreiras verde-brilhante. O povo fala alto e os gestos acompanham as palavras – a colonização foi feita por imigrantes italianos. Chamam-se a si mesmos gringos embora tenham nascido, em sua maioria, no Brasil. As casas são de madeira e há muitas flôres em seus jardins. O pão é feito em casa e em tôdas as mesas estão o galetto e a polenta. Depois que a indústria começou a sustituir a agricultura, êles fixaram-se na cidade e transformaram-se em operários e comerciantes. Os hospitais foram surgindo e o progresso acabou com muitas tradições, uma delas a parteira que atendia a domicílio. Mas muita gente de Bento Gonçalves ainda não troca a dona Odila pelo médico. Esta é a história de um de seus partos.
“O destino me colocou ali, naquele momento em que diversas circunstâncias históricas se confluíram para gerar um fenômeno jornalístico reconhecido em sua época”, explica José Hamilton Ribeiro, que afirma ainda reconhecer “certas facetas de nosso jornalismo”, especialmente às propostas voltadas à pesquisa, investigação e ao apuro em relação ao texto.
[olho]“A mulher hoje é, sim, bem menos perseguida e tem direito à voz de uma forma que naquele tempo poucas mulheres se arrogaram a ter”[/olho]
E ao utilizar dessas virtudes jornalísticas para falar das mulheres, a revista deu de cara com os rigorosos valores e costumes da época. “Fico imaginando como seria se, naquele tempo, alguém falasse em união de gays ou casais em seu segundo ou terceiro casamento e que, apesar disso, criam os filhos com amor e harmonia”, reflete José Carlos Marão, que ouviu três mulheres divorciadas que optaram por usar nomes fictícios na edição. “O que chamavam de ‘divórcio’ era, para muitos, coisa do demônio e, para outros, uma imoralidade.”
Mas, e se colocada em perspectiva, qual o impacto de uma publicação como a Edição Especial – A mulher brasileira, hoje, passados cinquenta anos? Gilda Grillo, apesar de ter vivido grande parte desse período fora, afirma que a realidade da mulher mudou drasticamente. “A mulher hoje é, sim, bem menos perseguida e tem direito à voz de uma forma que naquele tempo poucas mulheres se arrogaram a ter”, diz.
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Sérgio carrega o sobrenome de seu pai, Narciso Kalili, repórter que assinou a tão comentada reportagem “Nasceu!”. O filho conta que o autor não falava muito sobre o assunto. “Meu pai não gostava muito de viver do passado, de falar do passado. Estava sempre ligado no presente. Era uma característica dele. Sempre com muitos projetos, sempre em ebulição”, lembra.
Lamenta, também, não ter tido tanto tempo para tratarem desse tema. “Ele morreu muito cedo (em 1992). Não deu tempo de conversar muito sobre o passado”, diz.
Sua homenagem ao legado do pai – e de toda equipe – virá em formato audiovisual. Ao lado de Marcelo Souza, filho do então editor de texto, Sérgio de Souza (1934-2008), pretendem produzir uma série e um documentário sobre “a turma que fez Realidade e que, posteriormente, continuou na imprensa alternativa”. Os trabalhos estão em andamento e alguns depoimentos já foram gravados.
“Meu pai gostava de dizer que o tempo passou, mas que ele não havia se corrigido. Dizia que era um jornalista fora de moda”, lembra Sérgio, ao dizer que o pai continuava humano, companheiro, idealista, sensível e buscando trazer justiça com a profissão para os mais pobres. Kalili também dizia que “jornalismo imparcial não existe”. Seu último texto escrito antes de partir foi o prefácio da primeira edição de Rota 66 (Record), de 1992, livro-reportagem de Caco Barcellos. “Lá ele disse que jornalista tem lado e que Caco escolheu o lado do povo. Ele estava falando dele também.”
Somos todos semelhantes à imagem que os outros têm de nós”, disse Borges com aquele olhar sem foco, mas ao mesmo tempo profundo. Intenso, mas que também beira a distração. Claro que não estou falando do escritor, mas do Borges tapeceiro, que há anos conserta e faz manutenção nos sofás lá de casa. Ele falava sobre a crise familiar que estava vivendo em relação a um sobrinho. O garoto, pós-adolescente, não estava querendo saber de nada que não fosse o tal jogo para computador chamado League of Legends. Eu disse que não havia motivo para se preocupar, que essa idade era assim mesmo: tempo longo no banheiro e muito videogame. Assim era a vida. Mas eu também estava um pouco preocupado com a higienização do meu sofá, será que eu já tinha de fazer de novo? Não foi agora em maio que ele tinha vindo dar um trato nisso?
Só que ele ainda estava no assunto anterior e prosseguiu dizendo sobre a obsessão do menino com o jogo, que estava para acontecer uma grande final que seria no estádio do Palmeiras e que iria reunir ao menos 12 mil pessoas. Comecei a me interessar um pouco mais pelo assunto. O sobrinho explicou para os pais que tem uma molecada que vem do Brasil todo, deixam família e escola para morar em casas onde jogam e treinam o dia todo – e recebem um bom salário para isso. Esses detalhes despertaram em mim uma curiosidade sobre o tema. Será que não era o caso de pesquisar um pouco mais sobre isso, conhecer mais informações desse game que está virando a cabeça da garotada? Borges continuou falando – o bicho fala mais que arara do zoológico quando avista a cumbuca de alpiste –, comentou que todos os sábados a galera se juntava na casa da sua irmã para assistir a partidas transmitidas ao vivo, com narradores e tudo, como se fosse uma final de futebol. E completou que essa trupe empoleirada no quarto era apenas uma pequena amostra das milhares de pessoas que acompanham as transmissões semanalmente.
Pronto. Isso para mim foi suficiente. Era um bom momento para desvendar um pouco mais dos caminhos do jogo League of Legends (LoL). Como funciona, que tipo de pessoa costuma jogá-lo? Quem são os grandes atletas dessa nova onda dos eSports? Talvez fosse a hora de botar a mão na massa e descobrir mais sobre as pessoas por trás da febre do Campeonato Brasileiro de League of Legends, mais conhecido como CBLoL.
Levantei com tudo, larguei o que estava na mão e saí correndo para traçar os caminhos de quem eu iria entrevistar e o que pesquisar para conhecer mais do assunto. Só esqueci do Borges, que estava do outro lado segurando o sofá e acabou caindo sentado com o móvel em cima do seu colo. O duro é que não faz nem seis meses que ele operou uma hérnia de disco, coitado.
NA ARENA
Dez jovens jogadores se aproximam de suas cadeiras no que parece ser um estúdio de TV. Sentam concentrados em frente aos computadores e se coroam com grandes fones de ouvido, que trazem microfones acoplados. São dez, mas divididos em duas equipes uniformizadas de cinco integrantes. Em pé, cada lado possui ao menos uma pessoa, também de uniforme, que conversa ininterruptamente com os sentados. Uma tela dividida em dois começa a exibir o nome de cada jogador da equipe ladeado de personagens, assassinos, lutadores, cavaleiros misteriosos, sedutoras guerreiras, homens cachorro, homem gato, homem rato, homem jacaré, enfim, a cartela do jogo do bicho quase inteira.
A tela muda e passa a exibir, alternadamente, enquadramentos distintos das ações que se desenvolvem em um grande mapa. Uma das equipes parte de baixo para cima, de encontro aos adversários, que sobem no cenário. Há muita falação por parte dos locutores. É possível distinguir alterações de emoção no seu tom de voz, mas não é fácil compreender o que acontece, já que há nomenclaturas, expressões e até gírias muito específicas sendo proferidas em meio à ação.
Essa pode ser a impressão inicial que um leigo registra ao se deparar pela primeira vez com uma transmissão de partida do Campeonato Brasileiro de League of Legends.
Organizada pela Riot Games, a edição 2015 da competição está em sua segunda etapa, iniciada em maio e composta por chaves onde as equipes se enfrentaram durante sete semanas, até chegarem às quartas de final, à semifinal e, é claro, à grande decisão.
A partida que eu não consegui decifrar era justamente o segundo jogo da semifinal, cujo embate resultaria na vaga para a final, que será realizada no Allianz Parque no dia 8 de agosto, em São Paulo. Vencer a segunda etapa do CBLoL significa conquistar uma chance de disputar o Campeonato Mundial – a vitória em solo brasileiro classifica a equipe para o Desafio Internacional, onde o vencedor local disputa com os melhores da América Latina e Rússia uma vaga para a competição entre todo o planeta.
O jogo League of Legends foi lançado em 2009 pela Riot Games, empresa norte-americana fundada por Marc Merril, atual presidente, e Brandon Beck, o CEO. O jogo foi desenvolvido no estilo Multiplayer On-line Battle Arena (MOBA), ou arena de batalha para múltiplos jogadores on-line, em que grupos se enfrentam em um cenário único, visualizado por cima, no chamado bird’s eye (olho de pássaro).
O jogo tem poderosos antecessores de sucesso no mundo dos games como Starcraft, WarCraft e Defense of the Ancient, mais conhecido como Dota. Uma boa mostra de que o LoL descende desses games vem na composição inicial de sua equipe de desenvolvedores. Alguns dos funcionários da Riot vieram das empresas responsáveis por esses títulos de sucesso no passado.
Aliás, nem tão passado assim. Nesse momento acontece em Seattle, nos Estados Unidos, o International 5, o torneio mundial de Dota 2 que vai entregar ao melhor time um prêmio de mais de US$ 17 milhões. É a maior premiação da história dos eSports.
O LoL é um título da modalidade free to play, ou seja, ele é grátis. No entanto é possível comprar personagens e mudar o visual deles utilizando tanto dinheiro real, quanto o acumulado durante o jogo.
O mundo, o cenário, a Terra Média ou a Sucupira do League of Legends, como você preferir, é Summoner’s Rift. Cada uma das equipes possui o seu Nexus, que é a estrutura principal que define as partidas. Ganha quem botar no chão o Nexus do adversário.
Os caminhos que levam a esse objetivo são inúmeros! Mentira, não são tantos assim, não. Na real, são três rotas: superior (top lane), meio (middle lane) e inferior (bottom lane). Esses caminhos são repletos de obstáculos, como torres e as tropas inimigas, chamadas de minions (não são “aqueles lá”, viu, fique tranquilo). Esses inimigos são inferiores, enchem o saco e fazem parte do combate das tropas adversárias. Além deles, há as torres de ataque e, é claro, os próprios jogadores com seus personagens, os Campeões. Existem mais de 100 opções deles em diversas categorias, com habilidades mais ou menos específicas para cada situação.
No meio das rotas principais existe a selva, uma área obscura onde os jogadores se confrontam no pega pra capar. É também na selva que se escondem as criaturas como os Dragões e os Barões que, quando destruídas, costumam render bônus às equipes.
Há no mundo 67 milhões de jogadores ativos mensais de LoL. Por dia, são 27 milhões. A Riot Games não fornece dados por regiões. Com sede em Los Angeles, a empresa possui escritórios fora dos EUA em São Paulo, Berlim, Seul, Istambul e Sidney.
Segundo a Riot, quem joga LoL tem, em média, entre 16 e 25 anos. Apesar de a empresa perceber uma crescente entrada feminina no game, a participação de mulheres é de apenas 10%.
Como eu já tinha conhecido mais ou menos o beabá do jogo e do cenário mundial, era hora de dar uma olhada em quem eram os protagonistas, os seres humanos por trás dos teclados e dos mouses dessa semifinal entre paIN Gaming e Keyd Stars. Partida essa que já vinha sendo chamada de “o grande clássico de LoL no Brasil”.
A CALMA DE REVOLTA
Fui até o bairro Tatuapé, na zona leste de São Paulo para conversar com o Revolta, atleta da equipe Keyd Stars. Era rodízio do final de placa do meu carro e, por isso, parti para aquela região apenas após as 10 horas. Mas, como a maioria de vocês leitores não trabalha nem no departamento de trânsito nem em despachante automotivo, não há porque eu dividir esse detalhe. Fui conversar com o atleta faltando apenas três dias para a decisiva semifinal do CBLoL, onde ele integraria o grupo que ia disputar com a paIN Gaming a última vaga para a grande decisão.
A gaming house da Keyd fica em uma área nobre do bairro, no alto de um belo edifício. Da calçada, é possível observar a imensa sacada, antes que o interfone externo toque com o porteiro interessado em saber quem eu sou. Do lado de dentro, o quartel general da equipe não decepciona: um espaço bem grande – se formos tomar como base outros imóveis semelhantes nos arredores, é provável que suas proporções ultrapassem os 200 metros quadrados.
O elevador já me leva direto à porta da gaming house, que tem 50% de sua superfície coberta por uma espécie de vidro temperado, o que permite que o visitante seja avistado pelos moradores.
Gabriel “Revolta” Henud é um jovem de 19 anos, carioca que, apesar do apelido, tem fala e semblante serenos. Por ainda estarmos na parte da manhã, tenho a impressão que o atleta acordou há pouco tempo. Os dias que antecedem jogos decisivos costumam consumir entre 14 e 16 horas de treino das equipes – o que muitas vezes acarreta em atividades que se prolongam pelas madrugadas.
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Ele tem a postura bem ereta. Senta-se em um sofá modular na sala de visitas da casa em uma posição muito confortável – quase iogue. Seu rosto é emoldurado por inseparáveis óculos e parcialmente coberto por uma barba rala que também acusa sua pouca idade. Durante a conversa, está sempre com um sorriso amistoso, que em nada remete ao grau de dificuldade da partida que o espera no próximo fim de semana.
Revolta ocupa a posição de jungler (ou caçador) da equipe da Keyd Stars. Sua posição se assemelha à do armador no futebol. “A minha função é basicamente armar e criar as jogadas com todos meus companheiros de time. Cada um fica parado na sua lane (as três rotas do jogo) e eu fico andando pelo mapa, tomando minha decisão do que eu acho melhor para a equipe – por isso que minha decisão pesa muito no jogo.”
Enquanto converso com Revolta, a impressão que tenho é a de que ele está imerso em um mar de calmaria. Ao nosso redor, conforme o tempo vai passando, outros integrantes da Keyd Stars vão acordando e, automaticamente, ocupando suas máquinas – cinco computadores estão dispostos no mesmo ambiente, em um nível um pouco mais elevado por um degrau, que provavelmente seria sala de jantar do apartamento, antes que ele tivesse sido convertido nesse equivalente da Granja Comary.
Entre os colegas de equipe que chegam ao local e já assumem a estação de trabalho está Murilo “Takeshi” Alves. Além de ser um dos mais conhecidos mid laners (que atuam pela rota do meio do mapa) do país, o brasiliense de Taguatinga é bastante conhecido no cenário nacional dos eSports por sua amizade e sinergia com o caçador Revolta durante as partidas. A parceria, além de ser importante estratégia nos combates, concedeu aos dois uma ligação pública dentro e fora de jogo, semelhante ao que se registrava com Neymar e Ganso, à época em que dividiam os gramados no Santos.
Os dois se conheceram antes de começarem a jogar profissionalmente e, desde então, passaram a atuar juntos em outras equipes, em diferentes momentos em suas carreiras.
O caso mais recente em que os dois se uniram nos mapas do jogo, na equipe Keyd, aconteceu após uma movimentação que balançou o cenário nacional de LoL – e que, ao mesmo tempo, passou a ser citada como exemplo do grau de profissionalização que os eSports estavam alcançando em território brasileiro.
Revolta começou o ano no clube INTZ. Mais que isso, era considerado um dos maiores destaques do time. Capitão e shot-caller (coordenador de jogadas), em muitas ocasiões foi classificado como um dos responsáveis pela excelente fase que a equipe atravessava: foi campeã da primeira etapa do CBLoL e teve bom desempenho no Wildcard International Invitational, em Istambul, capital da Turquia, eliminatória internacional que dá direito a uma vaga no cobiçado Mid-Season Invitational, uma espécie de Mundialito, que rolou nos EUA. Após excelente campanha, a INTZ terminou na segunda colocação e acabou não se classificando para o torneio, após perder para o time da casa em um ginásio perante 4 mil pessoas torcendo contra. Barra pesada!
Na época, o estilo de jogo do então caçador da INTZ impressionou alguns adversários estrangeiros, que chegaram a tietá-lo para compartilhar técnicas no game.
[citacao credito=”Gabriel Revolta Henud”]Minha saída foi acertada no último dia da janela de transferência. Para a comunidade foi um choque, eu tinha acabado de ser campeão e saí do time faltando um dia para fechar tudo[/citacao]
Era um grande momento o vivido pelo time campeão da primeira etapa do CBLoL, que presenciaria um contratempo justamente no último dia em que se permite a movimentação de jogadores.
No dia 12 de maio, em um comunicado oficial em sua página do Facebook, a INTZ declarava: “O rumor que começou em meios de comunicação ontem é verídico. Gabriel “Revolta” Henud pediu para sair do seu clube ontem e voltará à sua antiga equipe Keyd”.
Segundo o texto, a decisão foi uma surpresa também para as pessoas ligadas ao time. “Em nenhuma hipótese pensamos que isso poderia ocorrer com uma equipe que está em plena ascensão, com tantas conquistas e [que] tem o clima interno tão saudável.”
Os trâmites foram discutidos entre a Keyd Stars, equipe que Revolta já havia integrado outras vezes no passado, e seu pai, Wanderley Henud, que também é seu empresário.
“Minha saída foi acertada no último dia da janela de transferência. Para a comunidade foi um choque, eu tinha acabado de ser campeão e saí do time faltando um dia para fechar tudo”, disse-me o jogador, que passados mais de três meses da movimentação, ainda tem de falar no assunto durante as entrevistas e análises. “Eu me botei em uma situação delicada e botei a equipe também. Só que fora isso, tem toda uma prevenção dos times quando isso acontece, que é uma multa rescisória. Cada vez mais está se profissionalizando. Tudo ficou acertado entre INTZ e Keyd”, disse. O atleta deixou bem claro para mim: em nenhum momento se arrependeu da conturbada transferência. “Nem sempre dá para pensar nesse lado, isso aqui é minha vida também.”
Na opinião de um dos principais analistas de League of Legends, Gustavo “gstv” Cima, a questão da movimentação de Revolta entre INTZ e Keyd pode ter causado pressão e polêmica maiores do que o necessário. “No momento em que um jogador recebe uma oferta maior, não é só paixão pelo time e amizade com outros colegas. Isso é o profissionalismo, só que a pressão que a comunidade jogou em cima dele por essa mudança – e que ele mesmo se colocou, por ter sido o grande jogador da primeira etapa – pesou contra ele”, disse-me por telefone, numa ligação ruim pra cacete (acho que estavam mexendo na fiação aqui da rua).
O PVC DELES
Durante as transmissões de LoL, uma equipe de animados casters é responsável pela narração, comentários, explicações e entrevistas para o público. A relação dos fãs dos jogos com essas transmissões é bastante acalorada. A audiência comenta, participa e vibra com os trabalhos da afiada equipe esportiva – tanto o público físico, em eventos abertos, quanto o virtual. Até hoje, o recorde nacional segundo a Riot Games foi um total de 160 mil espectadores simultâneos. O número deve ser superado na grande final da segunda etapa do CBLoL.
Nos intervalos entre os jogos – já que os jogos costumam ser disputadas em duas partidas seguidas (jogo de ida e jogo de volta), melhores de três (MD3) ou de cinco (MD5) – é chamada a figura do analista. Enquanto os narradores e comentaristas têm um foco maior na emoção e até no humor, a presença de gstv (em minúsculas) é mais sóbria, contida e, às vezes, até dura.
À maneira de outras coberturas esportivas, digamos, analógicas, o comentarista já foi, também, jogador de League of Legends – naquela “longínqua” época, entre 2011 e 2012, em que a modalidade de eSports ainda engatinhava no País, Cima integrava uma das maiores equipes.
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Após um hiato para se dedicar aos estudos, recebeu em 2013 um convite para atuar nas transmissões das batalhas virtuais – é muito comum nas biografias dos atletas de LoL esse período de pausa na carreira, que geralmente coincide com pressões externas, como família ou estudos. O jogador Revolta chegou a anunciar o seu abandono nos eSports em 2013. No entanto, o exemplo dele não conta, já que sua aposentadoria durou apenas duas semanas.
Enquanto os narradores esmerilham a ação na transmissão, gstv acompanha as jogadas com rabiscos, estratégias e análises. O próprio visual do comentarista acompanha essa sua posição mais técnica. Com cabelo penteado para o lado, ele geralmente veste traje social, com o colarinho extremamente arrumado. Na ocasião em que o assisti, ele usava uma gravata cinza (atenção editor, não fazer aqui nenhuma referência ao best seller britânico da escritora E. L. James).
“Fico atento a cada detalhe, a cada item, cada movimentação e tento traçar padrões, perceber quais os pontos fortes e fracos – onde eles vão tentar investir no próximo jogo”, relata gstv, que acredita que a função é importante, também, para os próprios jogadores que, no calor da partida, muitas vezes não conseguem captar a movimentação que ocorre simultaneamente em todo mapa.
A estrutura de transmissão e análise buscam “melhorar a experiência” que o jogador encontra ao optar pelo League of Legends. Aliás, essa expressão foi usada ao menos cinco vezes durante uma conversa que tive por telefone com o gerente sênior de eSports da Riot Brasil, Fábio Massuda.
Ele me disse que o ano de 2015 deve ser um marco na operação nacional da empresa, pois foi a data em que a Riot Brasil assumiu completamente a organização dos campeonatos, nos moldes do que acontece internacionalmente, e que busca converter as transmissões em shows para o espectador.
O ano marcou também a estreia do estúdio para as partidas, onde as equipes passam a se enfrentar durante todos os fins de semana, proporcionando, assim, uma cultura de eSports para os fãs aficcionados, que sempre têm o que acompanhar a cada sábado ou domingo.
Massuda não divulgou, por ser uma política da empresa, o total de investimentos feitos no estúdio. Mas a estrutura detalhada impressiona: para acompanhar os jogos, estão envolvidos 60 profissionais com currículo de experiência em coberturas esportivas, como Copa do Mundo de futebol, jogos olímpicos e automobilismo. A tecnologia e o espaço do local, situado na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo, são extremamente profissionais. Para se ter uma ideia, antes de abrigar os LoLzeiros, o espaço foi utilizado para a gravação de cenas internas do já clássico filme brasileiro Cidade de Deus.
A final do dia 8 de agosto, no Allianz Parque, pretende ser ainda maior. “Será um marco, talvez seja o primeiro evento já realizado em estádio aberto e é o maior do gênero que a gente já fez em eSports no Brasil”, disse Massuda, que também confirmou a transmissão da decisão em mais de 30 cinemas espalhados por todo o país.
O gerente da Riot afirmou que a proposta “sempre foi muito bem recebida” por responsáveis pelo novíssimo estádio do Palmeiras. “É um espaço moderno e multi-evento e, para eles, foi só uma questão de acompanhar o histórico de crescimento da modalidade no Brasil”, conclui.
SÓ ACABA QUANDO TERMINA
A equipe da Keyd Stars ainda estava bastante abalada após 25 minutos de jogo da terceira partida da semifinal. Com duas vitórias seguidas da paiN Gaming, o time de Revolta e companhia tinha de se garantir nessa terceira disputa para prosseguir com chances no melhor de cinco. Aos trancos e barrancos, a equipe parecia se reestruturar aos poucos, com pequenas conquistas e posicionamento, apesar de a paiN mostrar-se superior também nessa etapa. No entanto, uma vitória da Keyd e o jogo praticamente ganhava, com o 2 a 1, uma nova roupagem de desafio.
Na marca dos 28 minutos, os cinco jogadores da Keyd concentravam-se na eliminação do Baron Nashor (ou Barão), que é um objetivo secundário do jogo: uma criatura neutra escondida na floresta que funciona como bônus para a equipe que a destrói – e rende benefícios como poderes, experiência ou ouro.
Naquele momento da semifinal, destruir o Baron era também uma questão de autoestima para Keyd.
Enquanto a equipe toda cuidava do bônus, surge a figura do adversário Kami na parte inferior da tela, sondando a movimentação. Em uma ação de defesa, Takeshi desce até o inimigo para despistá-lo. Enquanto isso o Barão era destruído e ia se convertendo no primeiro bônus da partida para a equipe da Keyd.
No entanto, o inesperado aconteceu. Em uma aproximação para o corpo a corpo, Takeshi foi destruído por Kami, que usava o campeão “Viktor” com um nível alto e dotado de muita capacidade de dano naquela ocasião. Takeshi foi eliminado.
Enquanto a narração se engasgava de emoção perante a ousada cena que se desenvolvia na tela, outra proeza aconteceu. Após destruir o primeiro inimigo, Kami seguiu em direção ao Barão, onde o restante da equipe da Keyd desferia os últimos ataques para finalmente destruir o objetivo secundário. Foi quando o mid laner da paiN fez o inusitado. Ao invadir de forma não esperada o espaço adversário, em uma fração de segundos, Kami atacou e destruiu o Barão, roubando o que estava nas mãos da Keyd e, assim, recebendo os benefícios da conquista. Os demais jogadores da paiN já estavam por perto e, diante da ação, foram para cima e continuaram a atacar os jogadores rivais, surpresos e, ao mesmo tempo, desanimados com o que tinha acabado de acontecer.
Os narradores condecoravam o desempenho de Kami e, de antemão, passavam a anunciar o que aconteceria por volta de dez minutos depois. Vitória por 3 a 0.
Ao término da transmissão, o áudio das cabines de jogo foi divulgado, com a comunicação das equipes. O roubo do Barão foi coroado com gritos emocionados pelos jogadores da paiN – a própria equipe parecia não acreditar no que havia acabado de acontecer. Entre as comemorações, é possível escutar uma frase do atirador Felipe “brTT” Gonçalves: “Eu vou chorar, cara”.
“Naquele ponto o time da Keyd já parecia muito fora dos trilhos, eles estavam na partida com uma posição arriscada”, me disse depois o analista gstv. “O time da Keyd insistiu num erro que é deixar o time inteiro no Barão, a comunicação dos caras falhou bastante, eu acho que eles estavam bastante nervosos, ansiosos, durante a partida”, conclui.
A dúvida que povoava a mente dos jogadores nos últimos dias foi resolvida. A grande final seria disputada entre a paiN e a equipe INTZ, antiga casa de Revolta, que venceu a outra semifinal contra a equipe g3x.
Mais um vez, Revolta chamou para si a responsabilidade do desfecho da partida. Em uma imagem que foi amplamente divulgada pelas redes sociais, ainda sentado em sua máquina, poucos minutos após o término da batalha, ele abaixa a cabeça sobre o teclado, com as mãos na testa em tom de lamentação.
Em sua página no Facebook, escreveu uma mensagem aos seus 75 mil fãs: “Sei que individualmente eu decepcionei a todos (…) mas se desapontei vocês, imagine o tanto que eu não estou desapontado comigo mesmo”.
No sábado seguinte, a equipe da Keyd, dessa vez em excelente forma, conquistou a terceira colocação contra a equipe g3x.
PAIN KILLERS
O clima frenético de ansiedade que antecedeu a semifinal acima narrada impediu que eu falasse com jogadores da paiN Gaming antes da partida. Os pedidos de entrevista foram negados, alegando “um momento tenso de preparação”.
Passada a turbulência e com a vaga garantida, fui conhecer a gaming house da equipe, localizada em um belo casarão no Jardim Europa, bairro nobre na zona oeste de São Paulo. Fui recebido por uma simpática funcionária da casa que parecia estar cozinhando algo para os atletas. Um pequeno espaço logo na entrada serve como sala de espera. A moça me ofereceu um café pois estava “passando” um para ela naquele momento, já que os meninos não bebiam. Na minha mente caiu mais um mito, que era o do jogador de videogame que atravessa as madrugadas movido a cafeína.
Distraído, sentei em cima de um desses cabos de impressora que estava sobre o sofá. Enquanto aguardava meus entrevistados, pude reparar no estilo da casa, que não é muito diferente de um ambiente de república universitária. Alguns violões estavam em um suporte no canto, um revisteiro tinha uma versão de bolso do American Gods, do Neil Gaiman, e alguns livros em coreano, um deles um guia de São Paulo nesse idioma.
Na Coreia do Sul estão as grandes equipes e, talvez, o maior jogador (ou ao menos o mais famoso) da história do League of Legends: Lee “Faker” Sang-Hyeok. O país mantém uma aura de pioneirismo e cultura de eSports, em níveis superiores aos registrados ao redor do globo.
Em 2014 a Keyd Stars importou dois jogadores coreanos para as competições nacionais. A vinda de “Winged” e “SuNo” proporcionou a formação de uma equipe fortíssima e, ainda, inaugurou essa tendência de movimentação de nacionalidades em equipes do mundo todo. No entanto, os jogadores me falaram que a vinda dos coreanos foi ainda mais importante nas mudanças de ritmo e na intensidade dos treinos no Brasil – a dedicação da dupla era tamanha que eles usavam as poucas horas de descanso durante o dia para… Jogar um LoLzinho.
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Aos 24 anos, Felipe “brTT” Gonçalves, é um dos mais experientes jogadores da liga, seja em idade, seja na carreira em eSports – o atleta já competiu profissionalmente, inclusive no exterior, em jogos como Dota e Counter Strike.
O carioca do bairro Vila da Penha usa a barba cheia e tem várias tatuagens nos braços. Entre elas, nos antebraços, estão eternizadas as armas do campeão “Draven”. Em uma das mãos, tatuou uma frase que é fruto dos efeitos colaterais de ter uma imagem tão difundida aos fãs do eSports: Haters make me a king.
O jeito tímido e pausado de falar e até de se sentar na poltrona durante nossa conversa contrastam com o tamanho da figura de brTT entre os fãs de League of Legends. Se a torcida da paiN é considerada a maior do país, não seria exagero dizer que grande parte desse público interage com o carisma desse atirador (ou AD Carry). São impressionantes 400 mil curtidas em sua página no Facebook e 130 mil seguidores em seu Twitter. Durante suas streams, que são transmissões on-line pessoais ao vivo do jogador em ação, ele já chegou a reunir 20 mil espectadores (em média, toda vez que ele entra para jogar, 10 mil entram para assistir).
[citacao credito=”Felipe brTT Gonçalves” ]A questão é que [eu quero que] todos os continentes passem a respeitar o Brasil, que quando ouvirem algo de uma equipe daqui eles tratem com respeito, e não zombando[/citacao]
Sua voz tem um timbre grave e é carregada no sotaque carioca. Se nas entrevistas fala apenas o necessário, sua eloquência durante as partidas faz dele um assíduo gerador de gírias, expressões e memes no LoL. Ao incentivar essas interações e ao responder os fãs, acaba conquistando o carisma e a devoção deles.
A poucos dias da final, um vídeo de 1 minuto e 44 segundos foi enviado como recado para a paiN Gaming e, em pouco tempo, superou as 100 mil visualizações no YouTube. Em uma filmagem caseira, um divertido fã do time usa de uma fala bastante despojada para “orientar” a equipe sobre qual seria a estratégia para vitória sobre a Keyd. No palco dos casters do CBLoL, logo após a conquista da semifinal, brTT foi questionado sobre as já famosas dicas presentes no vídeo, não se importou em utilizar talvez o momento mais alto de sua carreira até agora para, detalhadamente, responder às sugestões basicamente amadoras do jovem.
Essa proximidade no relacionamento com os jogadores “do mundo real” o faz responder com certa carga de emoção, quando pergunto sobre o papel desses garotos na carreira dele. Após alguns segundos de silêncio, ele responde. “Eu acho que, sem eles não ia existir nada. São eles que jogam, eles que dão feedback. O motivo de eu estar jogando é por causa deles, muitas vezes quando vou pro palco e começo a falar de fãs eu choro; toda minha dedicação, todo meu treino é para chegar lá e não decepcioná-los.”
Em jogo, a atuação do atirador é muito ligada ao incentivo emocional dos demais integrantes. Para o analista gstv, “o brTT chama muito a responsabilidade para ele; foca a equipe no jogo, quando está dando errado, ele fala que está certo, que há jeito, vamos para cima, vamos virar”. Sua posição no game é uma das funções mais importantes na questão de quem vai somar a maior pontuação no final da partida. “E esse jogador precisa ser protegido, pois é muito frágil durante uma luta. É o grande alvo do jogo”, conclui.
Dentre as metas profissionais do atirador da paiN existe uma ânsia muito grande pela boa representação do país no exterior. “A questão é que [eu quero que] todos os continentes passem a respeitar o Brasil, que quando ouvirem algo de uma equipe daqui eles tratem com respeito, e não zombando”, diz com firmeza, em uma expressão que nas ruas seria facilmente classificada de ‘sangue-no-zóio’.
Ele deposita muita confiança nessa chance de ir para o mundial, até mesmo levando em conta sua biografia. “Já viajei a outros países para disputar outros jogos, mas nunca cheguei onde queria: representar bem o país e fazer os estrangeiros lembrarem da gente. Acho que se eu ainda tenho alguma chance de fazer isso, este é o ano.”
A sigla que batiza brTT vem ainda dos tempos de Counter Strike e jogos em lan houses, ocasião em que, na busca de um nick para iniciar uma partida, optou pelo nome Barata Voadora, que viria a ser, com o passar do tempo, reduzido às quatro letras. Atualmente seu nome é uma marca forte, gerenciada por seu irmão, em um escritório no Rio de Janeiro. Nas redes sociais suas postagens mais “profissionais” são gerenciadas por sua namorada.
E O SALÁRIO?
Rodei São Paulo inteira, me debrucei em regras, instalei jogos, entrei em contato com as gírias tão peculiares da galera que joga LoL, mas, a parte mais complicada ainda estava por vir: o dinheiro.
De maneira geral, jogadores, integrantes de equipes, pessoas envolvidas com a cobertura e a liga, todos eles são mais escorregadios que vaselina automotiva na hora de expor os rendimentos que a profissão de atleta de eSports costuma gerar.
Quando questionados, a maioria dos jogadores prefere detalhar de onde vêm as possíveis fontes de renda, em vez de revelar números ligados à profissão.
Seus lucros no jogo costumam partir de uma somatória que envolve: salário da equipe, que possui um contrato que pode variar entre um determinado período ou temporada; patrocinadores individuais, que são marcas que buscam ser associadas à imagem do atleta; as remunerações das suas streams que, em estilo semelhante à publicidade digital, costuma render pagamentos conforme o número de espectadores por hora. Há ainda o dinheiro das competições, dividido entre os integrantes. A final do CBLoL, por exemplo, vai entregar R$ 60 mil à equipe vencedora, R$ 30 mil para os vice-campeões e R$ 20 mil aos terceiros colocados.
Entre as poucas informações que obtive relacionadas a valores, vindas de fontes ligadas ao eSports, soube que nos dias atuais, nesse momento de profissionalização cada vez maior do League of Legends, um atleta dificilmente recebe menos que R$ 5 mil mensais. Em momentos de bom desempenho, ocasião em que tanto as conquistas, quanto o valor agregado à sua imagem são maiores, essa média sobe para R$ 10 mil.
O FURAKAMI
Há apenas cinco anos, Gabriel Bohm era um adolescente de 14 anos que se sentava no fundo da classe de um colégio de Florianópolis, Santa Catarina, e que era consumido pela timidez. Sua dificuldade em se expressar era tanta que ele sequer tinha coragem de levantar a mão para responder uma pergunta feita pela professora – de cuja resposta ele tinha certeza.
Hoje, aos 19 anos, Gabriel é reconhecido nacionalmente pelo seu apelido profissional, Kami, como um dos mais completos jogadores brasileiros de League of Legends da atualidade e que, pasmem, é dono de uma oratória de dar inveja ao apresentador de TV Rodrigo Faro.
[citacao credito=”Gustavo gstv Cima sobre Kami” ]É muito difícil vê-lo errando, ele é um cara que consegue pensar 10 segundos antes de todos e ver tudo o que vai acontecer nesse jogo durante esse tempo[/citacao]
Kami (ou Kamikat) fala com muita consciência e de forma ritmada. Move as mãos o tempo todo como se, assim, estivesse facilitando a vazão das palavras – ou estaria ele atravessando a rota do meio durante a organização das suas ideias, como excelente Mid Laner que é?
Apesar de falar muito, não há excesso de informação. As frases, os pensamentos e construções de suas respostas têm começo, meio e fim. Ao vê-lo em silêncio ou concentrado durante uma partida do campeonato, dá a impressão que estamos diante de um silencioso coroinha na missa de domingo, mas, quando ele começa a falar, é possível ver nitidamente a figura de um atleta completo, muito consciente de seu papel tanto para a equipe da paIN Gaming quanto para a evolução do LoL no Brasil.
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Pergunto, é claro, sobre a jogada por ele coordenada e que resultou na conquista do Barão durante a fatídica semifinal contra a Keyd. Sem titubear, Kami já desvia qualquer hipótese de uma valorização pessoal e divide a conquista com a equipe. “O Mylon perguntou se eu tinha Flash, que é um feitiço super importante que precisava ter naquele momento crucial (ele possibilita um curto teletransporte) e eu falei ‘tenho’, daí o SirT foi para um lado eu fui para um outro a gente cobriu varias áreas”,narra ele, como se essa passagem já estivesse cristalizada em sua mente. “O Takeshi, da Keyd, sentiu que tinha de me parar, mas eu estava muito forte e em nenhum momento achei que estivesse em perigo – eu matei ele e fui na direção do bônus, mas o engraçado foi que falei que tinha roubado o Barão antes mesmo de ter conseguido, sei lá, porque senti que ia roubar”, relatou.
Dentre as tantas qualidades que costumam descrever o jogador, a principal é a antecipação. Na visão do analista de LoL, gstv, “é muito difícil vê-lo errando, ele é um cara que consegue pensar 10 segundos antes de todos e ver tudo o que vai acontecer nesse jogo durante esse tempo”.
Há também uma capacidade de improvisação muito grande em suas habilidades. O próprio caçador Revolta, da Keyd, me disse dias antes da semifinal que “o Kami é um cara que, se precisar inventar alguma coisa caso eles estiverem desesperados, ele vai inventar e vai fazer dar certo”.
“Ele está jogando muito bem e atravessa um momento muito bom da carreira em que, profissionalmente, ele se destaca”, conclui gstv.
Com um cabelo raspado nas laterais e um topete levemente espetado, pintado de azul, Kami afirmou estar vivendo a melhor fase da carreira dele nos eSports. “É um momento bastante feliz pois, finalmente, todo nosso trabalho duro está dando resultado palpável dentro de jogo. Acho que a paiN sempre teve a fama de ter, individualmente, os melhores jogadores, mas havia muita dificuldade para encaixar o grupo, se unir e jogar em bloco”, comenta o atleta, que desde o início da vida profissional, nunca deixou o time.
O atleta relaciona boa parte do desempenho positivo alcançado no CBLoL à preparação interior que os jogadores estão tendo. Há cerca de três meses, a paiN escalou dois psicólogos da área esportiva, de alta performance, que estão em contato constante com os atletas. Com jogadores de futebol e vôlei no currículo, os profissionais trabalham vários aspectos, desde a resolução de problemas individuais, conversas em grupo e até mesmo exercícios de respiração dentro e fora da partida. “Eles passam a confiança, desenvolvem um trabalho motivacional muito forte, além de integrar o grupo.”
O jovem sofreu ao deixar Florianópolis, onde vivia com a mãe, para passar a conviver na puxada rotina de uma das gaming houses de São Paulo. Ele vê na figura materna, Sandra, sua maior apoiadora. “Ela não perde um evento hoje em dia e já está até fazendo cosplay, embarcou completamente, está pensando em criar um vlog”, conta orgulhoso. Apesar da distância, se falam e trocam mensagens diariamente entre a pesada rotina de treinos.
No dia 15 de agosto de 2014, Kami fez contato com a mãe para tratar de um assunto que eles já haviam conversado e que ele decidira abordar em uma postagem, naquele dia. Sandra ficou um pouco preocupada, mas apoiou totalmente a atitude do filho que, em um depoimento para os mais de 405 mil seguidores no Facebook, contou ser homossexual.
Em um discurso bastante sincero e leve, o atleta escreveu: “Vocês vivem me perguntando se eu fico incomodado com ‘Kami, você é gay?’ nas streams. Pois bem, agora que eu posso responder: não, nunca me senti incomodado, e, de verdade, eu queria muito responder ‘sim’, mas tinha medo das reações”. A publicação, que já ultrapassa 44 mil curtidas e 3,5 mil compartilhamentos, foi bastante comentada nas redes sociais e virou notícia na mídia que cobre League of Legends.
“Foram dois os motivos que me levaram a ter me assumido publicamente”, me disse o atleta, que seguiu enumerando: “O primeiro foi pelo fato de eu sempre buscar ser muito honesto com os fãs, e era algo que eu queria ter feito antes mas por alguns motivos acabei fazendo apenas naquele dia; o segundo foi para tentar ajudar, claro que não tenho muito poder sobre isso, mas se eu pudesse mostrar para uma pessoa e fazer diferença para ela, já teria sido suficiente”.
Apesar de alguns comentários negativos, Kami orgulha-se do balanço feito naquele dia em seu Facebook, em que ele perdeu 800 curtidas, mas ganhou 2.200. “Então, esses 800 podem ir com Deus!”
Deixei a imponente gaming house da paiN e, assim, concluí a série de etapas de aprendizagem para uma total imersão no mundo dos competidores do Campeonato Brasileiro de League of Legends – desafio que me propus lá atrás, enquanto conversava com meu tapeceiro. Estava tão maravilhado com o conhecimento adquirido que saí da casa e me esqueci de ir ao banheiro urinar. Fui para o carro tão apertado que parecia que eu tinha um guaxinim arranhando minha bexiga por dentro. Em meio a essa pressão física que eu atravessava – em que uma lombada mal feita poderia transformar o automóvel em banheiro químico –, passei a refletir, também, sobre o que se passava na cabeça dessa garotada do CBLoL.
Imagine só o tamanho do desafio que eles têm de encarar, ainda nos idos dos seus vinte poucos anos. Deixar a família, passar horas convivendo com estratégias e personificando as habilidades de seus campeões.
No dia 8 de agosto, paiN Gaming e INTZ vão se enfrentar no formato melhor de cinco, a partir do meio-dia no Allianz Parque, na zona oeste de São Paulo. As duas equipes têm se preparado com intensidade, seja nas gaming houses, como é o caso da paiN e sua agenda maluca de treinos e discussões; e também da ganhadora da primeira etapa do CBLoL, a INTZ, que fez um “bate-volta” nos Estados Unidos para um treinamento intensivo de seus atletas.
O estádio abarrotado de fãs vai se unir ao público dos cinemas do Brasil inteiro e ao provável recorde de audiência online – apesar de a Riot não confirmar nenhuma expectativa, pessoas ligadas ao dia a dia dos eSports apostam que a marca de 200 mil espectadores pode ser atingida.
Esses garotos carregam um mundo nas costas. Um mundo bem peculiar, habitado por campeões em uma arena virtual que arrebata fanáticos por todo o globo terrestre. Da minha parte, posso dizer que me senti honrado de, por pelo menos alguns dias, poder caminhar entre as lendas.
Agora deixa eu parar o carro aqui porque sei que nesse posto de gasolina tem um banheirinho ali de fundo.