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O encontro de Jango com um mafioso italiano

 

O Risca Faca publica orgulhosamente um trecho do livro “Cosa Nostra no Brasil: a história do mafioso que derrubou um império”, escrito por Leandro Demori e publicado pela Companhia das Letras. O livro conta a história de Tommaso “Masino” Buscetta, mafioso italiano que se envolveu com a história brasileira. Demori é jornalista, editor do Medium Brasil e assinou, no Risca Faca, a investigação sobre “o Lobo da Bovespa” e a história da operação que influenciou a Lava Jato. Você pode comprar o livro, que chega às livrarias nesta semana, clicando aqui.

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Homero não tinha dinheiro suficiente para topar a proposta que Tommaso acabara de fazer, mas seria difícil recusá‐la. Após sanar as dívidas da Satec e da Staf, Masino tinha derramado mais 35 mil cruzeiros para tapar outros rombos na empresa. Como negócios legalizados, as consultorias eram uma furada. A parceria se mostrava lucrativa para Buscetta, Homero e seus sócios por outras vias. “Quem sabe botamos no nome do Homerinho?”, sugeriu Masino. Homero de Almeida Guimarães Júnior tinha 26 anos e trabalhava com o pai. Tommaso o adorava, e aos poucos os dois se tornaram verdadeiros amigos. Casado há pouco tempo, não tinha dinheiro, mas sua esposa recebeu, como herança, uma casa e um prédio de apartamentos em São Paulo. “Eles podem vender os imóveis…” Homero aceitou. Comprou a metade de uma fazenda de criação de gado em sociedade com o genro Roberto, que entrou com o restante do dinheiro. As terras foram colocadas em nome de Homero Júnior e Benedetto Buscetta, o Bene.

Enquanto Sarti e David viajavam para o Uruguai para continuar as operações do tráfico, Masino recebia por telefone propostas de vendedores de áreas agrícolas. Homero tinha ativado todos os seus contatos, inclusive o general Ernesto Bandeira Coelho, chefão da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, a Sudam. Além de procurar por terras disponíveis, esperava conseguir do militar o rápido andamento do processo para descontos no Imposto de Renda, concedidos pelo governo a projetos agropecuários.

Homerinho e Bene também tinham se tornado amigos. Com a ideia de adquirir as terras, Masino ordenou que os rapazes rodassem o Brasil em busca de uma oportunidade. Amazonas, Goiás e Mato Grosso foram os estados escolhidos. Antonio, o Toni, terceiro filho de Tommaso com Melchiorra, os acompanhou — havia chegado ao Brasil havia pouco, vindo de Nova York.

Homero ficou encarregado de analisar as propostas que chegavam por telefone entre dezembro de 1971 e fevereiro de 1972, período em que Tommaso e Maria Cristina viajaram, em alegadas férias, pela América Latina. Estiveram na Venezuela, onde Salvatore “Passarinho” Greco morava desde que a bomba de Ciaculli matara sete policiais, em 1963. Embora corresse o risco de ser preso, Masino ainda iria para os Estados Unidos e para a Itália em viagens cujos objetivos até hoje são desconhecidos. De volta ao Brasil pouco antes do Carnaval de 1972, o italiano recebe uma boa notícia: Homero havia localizado uma grande área para negócio no Mato Grosso — com pista de pouso em boas condições. O italiano ficou empolgado quando soube que o dono era um velho amigo do sogro, um personagem público que traria excelentes garantias ao negócio, mesmo que exilado do país pelos milicos: João Belchior Marques Goulart, o Jango, presidente deposto do Brasil.

Jango vivia no Uruguai desde o golpe. Seu rancho em Maldonado, a duas horas da fronteira, era destino de peregrinação de amigos, políticos e militantes de esquerda. A pouco mais de cem quilômetros de Montevidéu, a cidade litorânea era escorada de um lado por dunas muito brancas e águas muito frias e, do outro, por imensidões campeiras de ar gelado onde as estradas pareciam pistas de pouso, e as pistas de pouso, estradas de barro. Por aquelas bandas, a presença de animais de corte era mais apreciada do que a de seres humanos. Os brasileiros que desandavam ao sul buscavam em Jango amparo e conselhos — e tentavam convencer o político a voltar ao Brasil e enfrentar o Exército.

Tommaso, Homero, Maria Cristina, Bene e Homerinho marcaram de se encontrar com o gaúcho no dia 1o de março. São recepcionados com um churrasco, oferecido aos cinco e a outros convidados, em comemoração aos 53 anos de Jango. Cardíaco, Jango bebe uísque e fuma um de seus quarenta cigarros diários — misturados com remédios vasodilatadores que ajudam suas veias a sustentar o coração, maltratado por um infarto que o acometeu três anos antes. Sentia faltas de ar constantes. Abria um vidro e sacava do algodão um Isordil. O comprimido derretia sob a língua, invadia a corrente sanguínea e obrigava a pressão sobre as veias a arrefecer; os pulmões voltavam a se encher de ar.

Jango, Maria Cristina e Tommaso, na fazenda uruguaia
Jango, Maria Cristina e Tommaso, na fazenda uruguaia

Amigo de Homero havia mais de uma década, João Goulart explica a localização exata da fazenda Três Marias — 10 mil hectares situados à margem norte do Pantanal mato‐grossense. As terras abrigavam um naco de rio, cabeças de gado, uma floresta particular e um pedaço de história. Na sede — uma simples mas acolhedora casa de estância —, Jango, ainda presidente do Brasil, havia se reunido secretamente com o então ditador do Paraguai, Alfredo Stroessner, para assinar o tratado que daria origem à construção da hidrelétrica de Itaipu. Ele conta aos convidados que costumava visitar a área partindo de avião de São Borja, no Rio Grande do Sul, e esclarece que as terras estavam sendo administradas por seu piloto particular e homem de confiança. A localização da fazenda era perfeita: poucas horas de voo da Bolívia e do Paraguai — ponto de reabastecimento adequado para o tipo de empreitada que Tommaso buscava secretamente levantar. Jango acerta os olhos em Homero e estabelece suas condições. O homem era tido como grande negociador. Sua dedicação às atividades agropecuárias vinha desde a adolescência, nas terras da família em São Borja. Deposto, passou a negociar fazendas e tudo o que elas poderiam produzir: bois, arroz, ovelhas, lã. Comprou áreas no Uruguai, no Paraguai e na Argentina. Organizou empresas de exportação de carnes e grãos — e se tornaria tão reconhecido que teria ajudado o presidente da Argentina, Juan Domingo Perón, a desatar nós de exportação bovina entre aquele país e a Líbia. Como os tempos eram incertos, o ex‐presidente, precavido, ofereceu a Homero, em vez da venda, o arrendamento da propriedade. Masino aceitou, sob a condição de que o piloto fosse dispensado. Não queria gente de fora troteando por lá. Negócio fechado.

De volta ao Brasil, Homero procurou o general Bandeira Coelho para apressar a documentação junto à Sudam. Tinha ânsia em tomar posse da fazenda do ex‐presidente, sobretudo pela pressão de Masino. O militar o atendeu amistosamente na própria residência. Homero acreditava que tudo andaria bem antes de ouvir do general que o negócio não poderia ser concretizado. Ao notar que a fazenda era de João Goulart — que se beneficiaria financeiramente com o arrendamento —, Bandeira Coelho se negou a assinar a papelada e mandou Homero procurar outras terras. Ao saber da notícia, Masino ficou desapontado.

O esfriamento do negócio trouxe um problema maior. Os aniversários de João Goulart no Uruguai eram vigiados pelos órgãos repressores do Brasil. Nos anos 1970, fotos das confraternizações em Maldonado seriam anexadas aos arquivos contra Jango, montados pelos serviços de inteligência. Os militares tinham medo de que o ex‐presidente retornasse ao país. Sua liderança ainda era respeitada por boa parte da população.

Com o fim do regime, os arquivos secretos da ditadura correspondentes ao ano de 1972 desapareceram da pasta de João Goulart organizada pelos órgãos de repressão. Seu paradeiro é um mistério. É impossível afirmar se os militares tiveram acesso a uma imagem clandestina daquela criatura cabeluda, estranha ao convívio de Jango. Sem documentos contundentes que esclareçam a história, há apenas um depoimento‐chave de um personagem diretamente envolvido na questão.

Mesmo que os arquivos da ditadura tenham sido destruídos, uma foto familiar sobreviveu ao tempo e foi capaz de desencadear uma tormenta na vida de Tommaso. Orpheu dos Santos Salles, sócio de Homero, teria entregado ao Dops a foto na qual Masino, Homero, Cristina, Bene e Homerinho aparecem abraçados ao ex‐presidente. A imagem enfeitava um móvel na sala do apartamento de Buscetta em São Paulo. Orpheu e os generais ligados a Homero tentariam, assim, se livrar do italiano — e mostrar aos militares que não tinham nada a ver com ele. Àquela altura, eles já desconfiavam de Tommaso, que passava os dias recebendo gente estranha e despachando pelo telefone dos escritórios da firma sem jamais dizer o que realmente fazia.

A foto foi parar direto nas mãos do delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, um dos mais implacáveis agentes do Dops, reportado como persistente torturador por dezenas de prisioneiros que passaram por sua delegacia. Fleury e a cúpula da repressão não tinham nada contra Tommaso Buscetta. Nem mesmo sabiam quem ele era. Ligados em tudo o que era relacionado a Jango, acreditaram que o italiano pudesse fazer parte de algum grupo comunista disposto a financiar a volta do ex‐presidente ao Brasil — movimento que a ditadura não poderia permitir. Fleury começou a buscar informações sobre “Roberto” sem saber seu verdadeiro nome, muito menos sobre seu passado mafioso e o presente no mercado internacional de heroína. Acreditou estar levantando a ficha de um subversivo europeu. Mirou no que viu, acertou o que não viu.

A frustração provocada pelo distrato do negócio da fazenda pressionou Masino a encontrar uma solução. Ele intuía que Homero entraria em qualquer negócio que propusesse, e tudo indica que tenha forçado o sogro a enfrentar uma nova tentativa. Sabendo que Homero havia recebido a visita de um corretor que lhe oferecera uma fazenda em Echaporã, no interior de São Paulo, Tommaso apelou para o instinto paterno: disse que estava desgostoso com o Brasil e que levaria Cristina para morar com ele no exterior. O velho foi tomado pelo pavor. Em um final de semana, levou Masino, Bene e Homerinho para conhecer o rancho em Echaporã. Masino e o filho ficaram encantados com a fazenda Santo Antônio e seus 4,4 mil hectares, 360 cabeças de gado e diversos animais de montaria. Sem pensar muito, Homero desembolsou 300 mil cruzeiros para dar entrada na papelada das terras — que custariam mais de 1 milhão de cruzeiros —, penhorando a própria casa. Com a promessa de Masino de que cobriria parte da dívida, outros 300 mil, esperava conquistar Bene, que convenceria o pai a ficar no país.

Parecia ter dado certo. Bene e Homerinho tomaram posse da fazenda Santo Antônio e Tommaso visitaria a fazenda diversas vezes ao longo dos meses seguintes. Para ficar mais próximo, saiu da mansão em que morava na avenida Indianápolis, 595, em São Paulo, e alugou dois apartamentos — um para ele e Cristina, outro para Bene e sua esposa, que acabara de chegar de Nova York — em Marília, a quarenta quilômetros de Echaporã. Estava decidido a investir tempo na nova empreitada.

O transporte aéreo de heroína era uma novidade no Brasil, mas já funcionava havia alguns anos em outros países. Um ano antes, em outubro de 1971, Lucien Sarti convidou Helena para mais uma de suas viagens. Juntos, viajaram para São Paulo, Montevidéu, Lima e Cidade do México. Na capital do Peru, o francês se encontrou com Housep Caramian, um correio responsável por fazer a droga voar da América Latina para os Estados Unidos. Lá, combinaram que Caramian colocaria 120 quilos de heroína recém‐chegada da Europa em um avião particular de Sarti. Caramian e um piloto rumaram de Lima com destino a uma pista militar abandonada no deserto mexicano, onde Lucien Sarti, Michel Nicoli e outro homem recepcionaram a carga e a levaram de carro para a Cidade do México. O negócio teria sido feito ali mesmo, com Carlo Zippo, que teria pagado pela droga 840 mil dólares — 7 mil dólares o quilo, valor mais baixo do que se fosse entregue diretamente nos Estados Unidos. Sarti voltou ao Brasil em um voo via Panamá, onde provavelmente depositou o dinheiro.

A ideia de usar o interior do Brasil como entreposto de carga e abastecimento parecia firme. Depois de tomar posse da fazenda em Echaporã, Masino se encontrou com Michel Nicoli no terraço do Edifício Itália, em São Paulo. Tommaso e Nicoli já se conheciam. O francês, nascido em Marselha em dezembro de 1930, era um dos homens de maior confiança de Auguste Ricord. Carteiro desde a adolescência, enveredou para o crime nos anos 1960, dirigindo carros de fuga para uma quadrilha de assaltantes na França. Em 1963, já clandestino em Buenos Aires, importava roupas falsificadas da Europa para revender na Argentina. Sua entrada no tráfico ocorreu aproximadamente em 1966, quando conheceu Lucien Sarti no restaurante El Sol, ponto de encontro de desterrados franceses na capital. Nicoli vivia no Brasil desde 1969 sob o nome de Carlos Collucci da Silveira, um cidadão brasileiro fictício nascido no Rio Grande do Sul. Com o dinheiro que tinha levantado fazendo viagens de leva e traz de heroína, Michel fundou no número 255 da rua Acre, na Mooca, em São Paulo, a empresa Delga Alumínio e Plástico Ltda. As investigações policiais da época não foram a fundo na contabilidade da companhia, mas é provável que a Delga fizesse lavagem de dinheiro. Ao menos dois malotes com dólares sujos viajaram do Rio de Janeiro para Nova York, onde foram depositados na conta da empresa nos Estados Unidos e depois retransferidos para o Brasil como “investimentos externos”.

Tommaso contava com Nicoli para sua nova empreitada. Ele já havia participado da reunião no Copacabana Palace, em agosto de 1971, onde também estavam Carlo Zippo, Lucien Sarti e Christian Jacques David. Sabia trabalhar e estava pronto. Em um depoimento dado ao Dops tempos depois, Nicoli confessaria que conhecia todos os integrantes do grupo, inclusive Buscetta, “elemento de projeção da cúpula da máfia”, e que o havia encontrado “umas quatro ou cinco vezes” no Brasil. Juraria, no entanto, que em nenhuma delas por motivos escusos. Admitia conhecer Tommaso, mas não imputava a ele nenhum crime.

O distrato do negócio com Jango parecia ter trazido mau agouro ao supersticioso Tommaso. Março, mês em que estivera com o ex‐presidente brasileiro no Uruguai, era período de embaraço na história siciliana. Por duas vezes, em séculos distintos, o povo da ilha tentou uma revolução pela independência contra estrangeiros dominantes. Fracassara em ambas. O mês que marcava o começo das guerras para os povos europeus antigos faria seus estragos naquele ano bissexto de 1972.

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As Mãos Limpas italianas

“Esse dinheiro é meu”, disse Mario Chiesa quando percebeu que os três homens com pinta de empresários acomodados na poltrona de seu escritório eram, na verdade, policiais. Chiesa tinha 47 anos e era um dos principais homens do Partido Socialista Italiano (PSI). Comandava o Pio Albergo Trivulzio, um complexo de asilos e orfanatos fundado em Milão em 1771 em torno do qual gravitavam imóveis de compra e venda, aluguéis, obras de construção e restauro, peças de arte e dinheiro, muito dinheiro — caixa forte alimentado pela caridade aos desamparados. “O senhor pode conferir se quiser”, respondeu um dos policiais já com o distintivo em mãos. “Cada nota de 10 liras está assinada pelo procurador da República. Fizemos cópias de todas. Temos ordens para levar tudo, inclusive o senhor.”

O dinheiro não era de Mario Chiesa. Os maços cuidadosamente numerados, fotocopiados e assinados pessoalmente pelo procurador tinham chegado até sua sala em uma maleta 007 de couro marrom minutos antes da discreta batida policial, levada por um pequeno fornecedor de serviços. Sentindo-se extorquido, o fornecedor havia procurado a Justiça meses antes, acusando Chiesa de cobrar 10% sobre cada negócio fechado no Trivulzio. Grampeado por quase um ano, o diretor tinha poucas chances de escapar. O processo era robusto, detalhado com horas de gravações telefônicas que culminavam com a maleta marrom da propina, uma armadilha cuidadosamente preparada no dia em que o fornecedor deveria entregar a Chiesa parte de um suborno negociado.

Era 17 de fevereiro de 1992, seis e meia da tarde de uma segunda-feira e aquela maleta marrom provocaria um terremoto.

Os jornais souberam da notícia por volta das nove da noite e mandaram seus repórteres ao prédio da Procuradoria. A prisão de Mario Chiesa estampou as primeiras páginas nas edições da manhã seguinte encoberta por dúvidas. Teria o membro do PSI se voltado à corrupção? Seria aquele um caso isolado? O partido estaria envolvido? Somente nas semanas seguintes os jornalistas conseguiram decifrar aqueles e outros enigmas. Nos meses e anos que se sucederiam àquela segunda-feira, a Itália seria devastada por uma onda judiciária que passaria à história como operação Mãos Limpas – usada como inspiração na operação Lava Jato, que atualmente provoca terremotos políticos e judiciários no Brasil.

Maleta usada para subornar Mario Chiesa. Ela foi leiloada em 2007. O prefeito da cidade de Senigallia arrematou a relíquia e a expôs na prefeitura. O dinheiro foi doado à caridade.
Maleta usada para subornar Mario Chiesa. Ela foi leiloada em 2007. O prefeito da cidade de Senigallia arrematou a relíquia e a expôs na prefeitura. O dinheiro foi doado à caridade.

A prisão de Mario Chiesa deveria ser apenas uma entre tantas histórias de corrupção italiana: em poucos dias ele estaria solto graças ao trabalho dos melhores advogados do país. Sem dizer uma palavra, o processo terminaria em nada, mesmo sob provas evidentes — algumas vírgulas do ordenamento jurídico o salvariam, talvez até mesmo anulando toda a investigação com alegações banais, desde que juridicamente bem postas. O sistema era conhecido. Aquelas assinaturas nas notas de dinheiro eram previstas em lei, por exemplo? Bastava especular sobre a inexatidão dos códigos e a mágica seria feita.

O final feliz de Mario Chiesa não era o mesmo pretendido por Antonio di Pietro, o procurador da República encarregado do caso. Parcialmente careca aos 41 anos, corpulento e acima do peso, Di Pietro estudava o sistema há tempos. Era um homem interiorano de Molise, uma das regiões mais pobres da Itália, cria de um sul embrutecido onde, diziam o ditado e a história, nem mesmo Cristo havia pisado. A leniência que se atribui à parte mais quente da península não era sua característica.

Lotado na sala 254 da Procuradoria de Milão, Di Pietro era visto como um autêntico outsider: procurador substituto em um mundo cheio de vaidades e compadrios, ocupava a última porta do longo corredor de um prédio que tinha, na outra ponta, o procurador-geral. A distância entre um e outro era um emblema de sua personalidade. Sentado em uma poltrona velha e afastado do coração do poder da magistratura, o procurador estava sempre disposto a enfrentar histórias que poucos se atreviam na Milão daqueles tempos. Quatro anos antes, ele havia colocado uma centena de instrutores de auto-escola atrás das grades para interrogatórios sobre a venda de carteiras de motorista — um sistema paralelo que gerava milhões de velhas liras a dezenas de poderosos locais. O caso lhe rendera algum holofote, mas os anos seguintes apresentaram somente causas de menor expressão. Em 1991, depois de aperfeiçoar seu próprio método de trabalho, Di Pietro estava pronto para o grande salto, e percebeu que o caso de sua vida poderia estar no pedido de ajuda do fornecedor do Trivulzio que lhe contou em detalhes como Mario Chiesa cobrava pedágio de cada prego que entrasse no complexo que dirigia.

Di Pietro conhecia a dimensão de Mario Chiesa, um dos nomes fortes do PSI para a disputa da prefeitura de Milão. Jamais havia encarado alguém de sua estatura política e com suas relações com o poder. Por isso formou uma esquadra de policiais e assistentes leais a seu propósito, convencendo-os de que aquela história poderia ser a ponta de um novelo intrincado de concussões e outros crimes. Aos seus subordinados, o procurador conseguiu passar suas ideias, seu modo de ver uma investigação e também seus próprios trejeitos — ao caminhar, muitos arrastavam os tacos dos sapatos como ele, e balbuciavam em dialeto, como ele, mesmo não sendo de Molise. Eram praticamente seus sacerdotes, mordomos mudos e fiéis como seu plano judiciário requeria.

A maleta marrom foi levada à procuradoria junto com Mario Chiesa. Di Pietro queria que ele confessasse e que entregasse outros membros do partido. Sabia, pelas declarações do fornecedor, que Mario não era um chacal isolado e que o sistema poderia permear parte importante do Partido Socialista Italiano.

Chiesa permanecia calado. Em pouco tempo deveria ser liberado daquele constrangimento. Seus advogados impetraram habeas corpus e tentaram livrar o diretor da prisão, ao menos para responder em liberdade. A batalha entre os advogados e o procurador se arrastou por fevereiro e entrou em março, quando os socialistas já imaginavam que seu dirigente estaria solto, e dia após dia os juízes superiores davam razão a Di Pietro, que defendia a prisão até que Chiesa decidisse colaborar.

A demora preocupou os socialistas. Nos primeiros dias, o partido se limitava a notas burocráticas. Com o passar do tempo e diante de eleições legislativas iminentes, nas quais o PSI depositava grandes esperanças, o secretário-geral do partido decidiu enfim se pronunciar. Bettino Craxi havia sido primeiro-ministro da Itália nos anos 80 e acreditava que o PSI poderia voltar ao poder já em abril, quando o país iria ao voto. Em 3 de março, Craxi tomou uma decisão dramática: dirigiu-se aos estúdios da TV pública RAI e declarou ao vivo em um dos principais telejornais da emissora que Mario Chiesa era “uma marionete” que estava “jogando sombras” na imagem de um partido que “em 50 anos não tivera nenhum administrador condenado por crimes contra a administração pública”. O caso estava desorientando os eleitores, até mesmo os mais fiéis socialistas, surpresos com a corrupção no alto escalão de um partido que acreditavam ser incorruptível. Na TV, Craxi se disse surpreso com a atitude de Chiesa, e se colocou, ele próprio, como “uma das vítimas daquela história”. Mesmo contrariado, o PSI abandonava ao mar seu homem de Milão.

Sem saber, Bettino Craxi dava o primeiro exame de ferro à estratégia montada por Di Pietro. Criticado, o procurador manteria Mario Chiesa — e os futuros envolvidos no caso — presos pelo maior tempo possível, sempre convencendo os juízes de que, soltos, voltariam a cometer crimes e destruiriam provas. Na solidão da cadeia, Chiesa se viu renegado pelo PSI, mas não cedeu. Ainda pensava numa saída quando Di Pietro mandou chamar seu advogado. “Diga a seu cliente que a água mineral acabou.” O procurador não falava sobre os suprimentos da carceragem, mas sobre as contas secretas Levíssima e Fiuggi, descobertas em um banco suíço sob os nomes das mais populares marcas de água vendidas nas gôndolas dos supermercados italianos. Era nelas que Chiesa escondia a maior parte de seu dinheiro.
Em 23 de março, sem saída e diante das insistentes tratativas abertas pelo procurador para que ele colaborasse com a Justiça, Chiesa decidiu contar tudo.

A maleta marrom do Pio Albergo Trivulzio não era caso isolado. Todos os anos, há muito tempo, centenas de maletas como aquela viajavam por toda a Itália para irrigar as contas do Partido Socialista. As propinas eram cobradas em todas as autarquias comandadas pelo PSI e serviam para financiar campanhas eleitorais e enriquecer ilicitamente dirigentes e agregados. Mario Chiesa contou detalhes de algumas operações e revelou ares de organização criminosa. O que para Antonio di Pietro era apenas um ponto no céu, se abriu como uma constelação impossível de alcançar a olho nu. Chiesa contou mais: não era só o PSI a se lambuzar no dinheiro público, mas todos os partidos surgidos na Itália pós-guerra. A chamada Primeira República estava podre.

Chiesa falou por sete dias seguidos. A procuradoria pediu sua soltura sob o manto de colaborador de Justiça, prometeu reduzir sua pena e precisou de um tempo para digerir todas as informações. Nas urnas, Craxi se elegeu deputado, mas o PSI foi derrotado enquanto força política, um abalo provocado pelas seguidas notícias que saíam nos jornais, dia após dia, sopradas de dentro da sala 254.

A imprensa era parte fundamental da estratégia de Di Pietro.

Ele recebia repórteres em sua sala marginal com os pés em cima da mesa enquanto estralava a cervical em movimentos contínuos e barulhentos. A maioria dos jornalistas eram jovens plantonistas em busca de um bom furo na incipiente carreira. Di Pietro, mais velho, chamava-os de “doutores”, um tanto com respeito e outro com ironia. Apenas uma provocação na simbiose entre pequenos burgueses de vida mais ou menos fácil e o filho de agricultores imigrado do sul ao rico norte, formado em direito enquanto fazia mil trabalhos paralelos para comer e viver na civilização acima de Roma. Antonino, como se fazia chamar pelos repórteres mais chegados, sabia que deveria se escorar neles caso quisesse levar seu plano adiante. Contra os mais sorrateiros poderes da Itália, somente a capa dos jornais e revistas e as escaladas dos noticiários de rádio e TV manteriam ao lado dos investigadores o único inimigo que nenhum político em nenhuma parte do mundo deseja ter: o povo.

No mês seguinte à confissão de Chiesa, oito empresários foram presos, provaram o cárcere por mais tempo do que imaginaram, confessaram e saíram como colaboradores de Justiça, abrindo galáxias ainda maiores no universo da corrupção estatal vislumbrada pelo procurador. A técnica se repetiria dezenas de vezes, sob críticas ferozes de partidos e movimentos da sociedade civil que apontavam excessos cometidos pela Procuradoria, que seguia avançando em seu carro-armado.

A confissão de Chiesa criou um clima de instabilidade política. Onde todos se viam como inimigos, Di Pietro surgiu como opção. Sem a confiança do sistema de propinas, o procurador empurrou seu próprio sistema: prender, obter confissões que envolvessem mais e mais nomes, negociar uma pena menor, livrar da prisão. Uma reação em cadeia. Quando o último dos oito empresários prestou o depoimento definitivo, seu advogado, um experiente defensor que já havia visto muitos casos de colarinho branco, foi interpelado por jornalistas que há algum tempo faziam plantão em frente ao presídio de San Vittore, para onde eram levados os investigados. “Esses aí irão em frente por anos e anos. Farão centenas de prisões.”

***

Uma semana depois da confissão dos empresários, o procurador-chefe se arrastou pelo imenso corredor que separava a sala de Di Pietro da sua e lhe ofereceu ajuda. Antonio aceitou e a passou a trabalhar com outros dois procuradores, Gherardo Colombo e Piercamilo Davigo. Juntos, os três dividiram o processo em fases e espalharam o método Di Pietro por todas as fases da operação. Em cada uma delas, um alvo principal deveria ser investigado. Até a metade de 1992, caíram nas redes da Mãos Limpas o prefeito de Milão e seu antecessor, também do PSI. No bar da Procuradoria, os repórteres comentavam que estava aberta a temporada de caça ao secretário-geral do partido, Bettino Craxi, que eles chamavam de “javalizão”. Era sem dúvida a maior cabeça a prêmio do matagal político. Naqueles dias, o próprio Di Pietro confessou a Paolo Colonnelllo, colunista do jornal Il Giorno: “Podemos chegar a Craxi. Mas temos que ir com calma”.

Colombo, Di Pietro e Davigo em 1994.
Colombo, Di Pietro e Davigo em 1994.

Intimidado, Bettino Craxi partiu para o ataque. Acusou os procuradores de tortura, disse que as prisões eram ilegais e que os métodos para obter confissão se configuravam abusos das leis. Em entrevistas e editoriais, apontava a magistratura como fator de instabilização social e política e denunciava os conselhos superiores de compactuar com táticas extremas para levar o processo a um fim político: outros partidos que não o PSI estariam tendo vida fácil enquanto os socialistas eram vistos como únicos culpados diante da opinião pública. Em junho, as denúncias de Craxi tiveram um eco terrível na área rural da cidade de Lodi: Renato Amorese, 49 anos, secretário local do PSI, suicidou-se com um tiro na têmpora. “Eu errei, estou mortificado pelos meus erros”, escreveu na carta de suicídio que deixou para a esposa. “Peço perdão.” A Di Pietro, no entanto, Amorese concedeu o perdão: “Agradeço pela compreensão que demonstrou comigo”. Não teve a mesma compaixão com o procurador o deputado socialista Sergio Moroni, 45 anos, que tirou a própria vida em 2 de setembro depois de enviar uma carta a um líder partidário na qual evidenciava um processo “sumário e violento”.

[olho]“Eu errei, estou mortificado pelos meus erros”, escreveu Lodi na carta de suicídio que deixou para a esposa[/olho]

As tragédias pessoais não pareciam comover a população. A operação tinha forte apelo popular, e os suicídios ou as palavras de Craxi eram sopros de vento diante dos furacões da Procuradoria. Nas ruas, a Itália enlouqueceu. Cartazes com mensagens de apoio a Antonio Di Pietro eram vistos todos os dias. “Salvai-nos do mal.” Foram criados comitês de cidadãos em várias cidades do país para apoiar os trabalhos do procurador. Manifestações tomaram conta da entrada do Palácio da Justiça em Roma pedindo para que Di Pietro não desistisse. Surgiram até mesmo hagiografias baseadas em boatos: numa delas, Di Pietro, um verão antes da Mãos Limpas, havia salvado uma moça que se afogava no mar, levando-a em segurança para a areia diante de centenas de olhares curiosos. No comércio popular, cartazes com os procuradores no lugar dos atores do filme Os Intocáveis eram vendidos aos milhares.

Naquele mesmo ano, quando a mãe de Di Pietro faleceu, o jornalista do Corriere della Sera, Goffredo Buccini, foi à cidade natal do procurador e cedeu carona aos dois novos companheiros de Antonio, Davigo e Colombo. No cemitério, foi como se carregasse duas estrela de cinema — a massa tentando entrar no carro pelas janelas, o jornalista manobrando para evitar uma tragédia. Era como se, depois de décadas votando em lobos sem escrúpulos, aquela gente estivesse abraçando os caçadores que tentavam cortar as cabeças dos animais.

Nomes de políticos de todos os partidos já começavam a aparecer nas anotações dos procuradores, mas o mais em evidência ainda era Bettino Craxi. Cercado, o secretário-geral do PSI pesou a mão. Em um artigo publicado no jornal Avanti, Craxi escreveu: “Nem tudo que reluz é ouro”. Atacando Di Pietro pessoalmente, defendeu que o procurador era parcial, e sugeriu que ele protegia amizades enquanto atacava os socialistas. O artigo não surtiu efeito popular. No descampado da arena política, em 15 de dezembro daquele interminável 1992 Bettino recebeu sua primeira intimação para depor na Mãos Limpas.

A sequência de acontecimentos despertou um enorme sentimento anti-Craxi no país, já visto como culpado aos olhos da opinião pública. Em um editorial publicado em outubro de 2005 no jornal La Repubblica, o jornalista e escritor Filippo Ceccarelli relembrou o clima das ruas. “Foi um autêntico contágio em massa, um mecanismo acusatório” no qual “não passava um dia sem que Craxi encontrasse nas ruas jovens que lhe gritavam ‘Ladrão!’ mostrando os punhos cerrados. Nasceu uma espécie de rito cotidiano, tanto que um dia o sósia televisivo de Craxi, Pier Luigi Zerbinati, precisou se esconder em um carro com medo de ser confundido com o Craxi verdadeiro”.

Em fevereiro de 1993, um ano após a prisão de Mario Chiesa que desencadearia um inferno político na Itália, Bettino Craxi se demitiu do cargo de secretário-geral do PSI. Em 30 de abril, após receber quase duas dezenas de intimações da Justiça, Craxi fez seu último discurso no Parlamento, no qual acusou todos os líderes de partidos de hipócritas, defendendo que todos eram beneficiários do mesmo esquema que estava erodindo o PSI. “Não sou culpado nem mais e nem menos que ninguém”, declarou. Mesmo diante da ira de alguns de seus colegas deputados, Craxi foi blindado pelo Parlamento, que não autorizou que a Justiça fizesse investigações relevantes sobre seu nome e seus contatos, dando a ele uma espécie de foro especial.

[olho]“Não sou culpado nem mais e nem menos que ninguém”, declarou Craxi[/olho]

A proteção da Câmara ao ex-secretário do PSI gerou revolta popular. Naquela mesma noite de 30 de abril, praças em toda a Itália foram tomadas por cidadãos exaltados. Líderes populares e até mesmo outros juízes e procuradores — que haviam se manifestado contra o voto do Congresso para salvar Craxi — fizeram discursos e reuniram multidões. A noite terminou com uma massa diante do hotel em que o político estava hospedado. Ao tentar sair, foi recebido por uma chuva de moedas ao som de Guantanamera, com a letra do refrão trocada pelas frases “vuoi pure queste? Bettino vuoi pure queste?” (“quer também essas? Bettino quer também essas?”). Anos mais tarde, em uma entrevista, Craxi definiria aquela noite como o fim de sua carreira política.

***

A operação Mãos Limpas não parou no PSI. Nos meses seguintes, todos os principais partidos italianos seriam investigados. O escândalo envolveria boa parte das maiores empresas italianas, Olivetti e Fiat na primeira fila — todas sempre dispostas a pagar enormes propinas para ver seus negócios decolarem. O desfecho midiático aconteceu em outubro de 1993, pouco mais de um ano e meio após o início das investigações. Antonio di Pietro conduziu na TV, ao vivo para toda a Itália via RAI, o principal julgamento do caso, que tinha ao centro o empresário Sergio Cusani, uma das principais cabeças da Enimont, petrolífera de economia estatal e privada. As transmissões tinham índices de audiência clamorosos. Todos os principais líderes de partidos do país, até então senhores intocáveis, chegavam às casas dos italianos direto do banco dos réus. Aqueles que se negavam a colaborar eram intimados por Di Pietro na condição de testemunhas. Nesses casos, processualmente, o efeito era zero. Midiaticamente, um cataclisma. Os milaneses faziam fila todos os dias nos corredores do Tribunal de Milão para assistir aos interrogatórios. Quase todos os réus e testemunhas saíam de lá com os ossos triturados por um procurador que conhecia cada centavo de lira pública que cada um tinha nos bolsos. Expressões do dialeto interiorano do procurador-estrela entraram no léxico popular de todo o país, como a curiosa “che c’azzecca?”, algo como “que’nteressa?”.

Com Craxi fora do jogo, a política reagiu. Entre o final de 1993 e os primeiros meses de 1994, vários procedimentos foram à votação no Congresso para tentar salvar reputações políticas. Duas delas eram mais evidentes: uma queria despenalizar o financiamento ilícito de campanhas; outra, reduzir o tempo de prisão cautelar para acabar com a influência que os procuradores faziam em busca das delações premiadas. Por pressão popular, nenhum deles foi aprovado.

A investida da Procuradoria resultou na implosão total dos partidos. Todas as siglas foram abandonadas em nome de novos e lustrosos nomes. Os principais partidos, entre eles o Socialista Italiano e a Democracia Cristã, desapareceram. Em seu lugar, agremiações com ares de modernidade arrastaram para a arena nomes ainda limpos diante do mar de lama dos políticos tradicionais. Um deles era um empreiteiro de Milão que há anos tentava implantar uma rede de televisão privada na Itália. Como era proibido por lei de usar satélites para formar a rede — somente a TV pública RAI tinha a permissão — o empreiteiro decidiu usar a imaginação: comprou pequenos canais de TV regionais e despachou a todos eles fitas com os mesmos programas gravados: todos os dias, na mesma hora, rodava as fitas simultaneamente, criando uma rede sem satélites.

O empreiteiro teria a vida facilitada depois que o amigo e testemunha de seu segundo casamento, Bettino Craxi, conseguiu aprovar no Parlamento, antes de sua derrocada, a liberalização das redes de TV privadas na Itália.

Em 27 de março de 1994, com os partidos esfacelados, o empreiteiro que se vendia como um símbolo de renovação no país saiu vitorioso das eleições nacionais e assumiu o cargo de primeiro-ministro: Silvio Berlusconi chegava ao poder pela primeira vez, derrotando forças históricas, sobretudo com o voto de Milão e das regiões do norte, coração da Mãos Limpas.

***

A eleição pareceu acalmar a opinião pública, já cansada do imobilismo político e econômico. Do lado de fora dos tribunais, notícias pesadas enchiam as casas dos italianos todos os dias. Um levantamento feito pelo sociólogo Nando Dalla Chiesa contabilizou mais de 40 suicídios por conta da operação judiciária.

[olho]Um levantamento contabilizou mais de 40 suicídios por conta da operação judiciária[/olho]

O sucesso das transmissões da Mãos Limpas pela RAI também respingou nas outras redes de TV, sobretudo na Fininvest, nome da financeira de Berlusconi que seria o embrião de seu conglomerado televisivo poucos anos depois. Os programas da Fininvest adoravam Di Pietro, o chamavam de “anjo do bem”, elevavam sua imagem ao culto das massas como modelo de homem que os italianos deveriam copiar. O cortejo a Di Pietro tinha um propósito claro: Berlusconi sabia que o procurador não pararia de investigar, e ele próprio, Berlusconi, recém-eleito primeiro-ministro, era o alvo mais provável após a saída de cena de Bettino Craxi. Ainda em 1994, Berlusconi convidou Di Pietro para uma reunião. O procurador estava disposto a aceitar o jantar em um escritório de advocacia ligado a Berlusconi em Roma quando foi demovido da ideia por seus colegas de Procuradoria. Eles sabiam do que a reunião trataria. Besrlusconi queria dar a Di Pietro um dos mais prestigiosos cargos da Itália, o Ministério do Interior.

Berlusconi não engoliu a desfeita. Em maio, tentou passar mais uma vez, agora por decreto, o projeto que limitava o tempo de prisão preventiva, instrumento largamente usado pela Mãos Limpas para obter delações premiadas. A magistratura de Milão se uniu e protestou — inclusive ameaçando demissões em massa em programas de TV —, barrando o projeto que enterraria a operação. Em outubro, com os ânimos quentes, uma entrevista de um dos procuradores do grupo de Di Pietro, Francesco Borrelli, ateou gasolina em um fogo já altíssimo: Borrelli garantiu que em poucos meses a Mãos Limpas “chegaria em um nível político muito alto”. Todos sabiam que ele falava de Silvio Berlusconi.

O recado de Borrelli se fez sentir de modo inesperado: em 21 de novembro, o jornal Corriere della Sera dava a notícia em primeira mão: “Amanhã Berlusconi será convidado a depor”. A notícia dava detalhes da operação, mostrando que as informações teriam sido vazadas pela Procuradoria. “O presidente do Conselho está inscrito no registro de pessoas sob investigação, por corrupção. Pesam sobre ele investigações que envolvem seu irmão, Paolo Berlusconi, e sobre Salvatore Sciascia, responsável pelos serviços fiscais da Fininvest.” Berlusconi estava em Nápoles como anfitrião de uma conferência mundial sobre segurança. Jornalistas do mundo todo se debruçaram sobre ele como moscas.

Usando o Ministério da Justiça como arma, Berlusconi ordenou uma investigação interna sobre os membros e procedimentos da Mãos Limpas. Fascículos foram devassados e pessoas foram interrogadas. As acusações que pesavam sobre o grupo diziam respeito a possíveis atentados à Constituição. Fora do governo, pessoas implicadas no escândalo de corrupção foram incentivadas a processar os procuradores. Vários o fizeram. Enquanto se esquivava das ações do premier, Di Pietro conseguiu documentos de uma off shore que ligavam Berlusconi a Craxi, com somas milionárias provenientes de corrupção escondidas no exterior. Alguns diretores da Fininvest foram presos para interrogatório, inclusive o irmão de Silvio, Paolo Berlusconi.

[olho]As emissoras que antes louvavam Di Pietro passaram a demonizá-lo[/olho]

Berlusconi não deu trégua. Suas emissoras que antes louvavam Di Pietro passaram a demonizá-lo. Em 23 de novembro, apenas dois dias após a notícia do depoimento do primeiro-ministro aos procuradores, Giancarlo Gorrini, um dos investigados da Mãos Limpas, denunciou Di Pietro: dizia ter pago propina ao procurador — empréstimos sem juros e uma Mercedes. No dia seguinte, o ministro da Justiça começou uma investigação paralela e secreta contra Di Pietro. O procurador foi informado por um de seus colegas e começou a sentir o peso das retaliações. Outro procedimento pretendia culpar Di Pietro por dois dos inúmeros suicídios relacionados à Mãos Limpas. No dia 26, o procurador ouviu pelos corredores do Palácio de Justiça que, em Roma, estavam preparando um golpe para tirá-lo do cargo.

Enquanto aguardava para ouvir Berlusconi — que ainda não havia se apresentado à Procuradoria após várias intimações — Antonio di Pietro se via cada vez mais cercado por dossiês, inimigos e ameaças. Sem dar sinais de cansaço, o procurador marcou para o dia 6 de dezembro de 1994 a última sessão do júri do caso Enimont, o maior e mais midiático da Mãos Limpas. Após o último interrogatório do dia, Di Pietro caminhou até um canto da sala, pediu ajuda a uma funcionária do tribunal e começou a tirar a toga. De camisa azul-clara, o magistrado colocou uma gravata com o nó já pronto, dirigiu-se ao juiz do caso e declarou: “Não quero ser usado. Saio com dor no coração”. As poucas palavras eram seu adeus. Ao vivo para todo o país, o herói nacional anunciou que estava deixando os tribunais para sempre.

***

Apesar do choque, a operação Mãos Limpas continuaria sem Di Pietro por ainda muitos anos, interrogando, prendendo e condenando personagens do cenário político e empresarial italiano. Seu principal alvo, Bettino Craxi, fugiu da Itália em 1994, quando percebeu que seria definitivamente preso. Amigo do então ditador Zine El Abidine Ben Ali, Craxi voou para Hammamet, na Tunísia, e de lá nunca mais saiu, até morrer em 19 de janeiro de 2000, de infarto.

Berlusconi seria primeiro-ministro do país, de modo alternado, por duas décadas. Sua primeira condenação definitiva e consequente afastamento da política só viria em 2013. Durante todos esses anos, uma de suas principais algozes foi a procuradora Ilda Boccassini, formada nas fileiras da força-tarefa da Mãos Limpas de Antonio di Pietro.

Em 1996, longe da magistratura, Di Pietro fez sua estreia na política: aceitou ser ministro do Trabalho da coalisão de centro-esquerda liderada por Romano Prodi. Depois da experiência no governo, ele fundou seu próprio partido, a Italia Dei Valori, tornando-se um dos principais líderes da política italiana. Seus reais motivos para ter deixado a operação que havia começado em 1991 nunca foram totalmente esclarecidos.

No dia 31 de março de 2009, um grupo de policiais do núcleo ecológico dos carabinieri meteu o pé na porta de duas casas na província de Treviso. Era o Dia D da operação “Rewind”, que investigava um esquema de tratamento e despejo ilegal de lixo. Um dos principais alvos dos policiais era um homem de 65 anos, cabelos esbranquiçados e barba bem aparada, apontado pelos investigadores como o coletor das propinas do esquema. Era Mario Chiesa, estopim inicial da Mãos Limpas. Sem qualquer reforma de peso para barrar a corrupção no sistema político italiano, a “marionete” acusada por Bettino Craxi de “jogar sombras” sobre o Partido Socialista Italiano nos anos 90 voltara às ruas e ao jogo que tão bem conhecia.

Leandro Demori é jornalista especializado em investigações e diretor da Abraji. Seu primeiro livro, uma história da Cosa Nostra no Brasil, será lançado pela Companhia das Letras nos próximos meses. No Risca Faca, Demori assinou a investigação sobre o Lobo da Bovespa.

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Os documentos do Lobo

Para contar a história de Marcus Elias, da LAEP e da Parmalat no Brasil – história que, segundo o Ministério Público Federal, é a maior fraude já registrada na bolsa de valores brasileira – utilizamos diversas fontes. Entre elas, documentos públicos que dizem respeito a todos os envolvidos no caso. Em prol da transparência, publicamos aqui todos os documentos públicos utilizados na apuração.

1.

Remuneração dos Diretores

2.

CVM suspende LAEP

3.

Compra da Daslu

4.

Autorização para que diretores vendam os BDRs

5.

LAEP compra fazenda da RE Partners do Brasil

6.

Valor de Mercado Da Fazenda Cruzília Em 2009

7.

Contrato Social da RE Partners

8.

Receita Federal confirma que RE Partners é de Marcus Elias

9.

Bens da Integralat passados para SYMDOGIM, incluindo Fazenda Cachoeira, em Cruzilia

10.

Contrato Social da Symdogim

11.

Santander confirma que Marcus Elias comanda a Central Veredas

12.

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Investigação

Parte III: Em busca da paz

Marcus Elias não fala sobre o assunto. Sua defesa alega, no entanto, que todos os procedimentos eram legais, e que a culpa da queda do preço das BDRs não foi das centenas de novas emissões de ações, mas dos próprios minoritários, que teriam especulado na bolsa e gerado más notícias contra a companhia. Em uma conversa com um alto executivo da LAEP, ele me mostrou uma série de documentos que considera “provas de que os minoritários estariam mancomunados com um fundo inglês chamado GLG, que quer falir a LAEP e vender tudo”.

Uma das maiores dívidas da LAEP estava com o banco Morgan Stanley. Em 2008, a empresa tentou protelar o pagamento, mas se disse surpreendida quando chegou nos Estados Unidos para negociar: a dívida, em forma de debêntures — papéis que davam direito a juros quando quitados —, teria sido vendida ilegalmente ao fundo inglês GLG Partners. “Só poderiam vender essa dívida com autorização da Parmalat”, me disse o executivo da LAEP.

O GLG entrou nessa história como o grande vilão, no entendimento desse mesmo executivo. “Eles são um fundo abutre, desses que compram dívidas de empresas apertadas e que tenham ativos que possam ser vendidos.” O objetivo do GLG seria, segundo a versão do executivo, quebrar a companhia e pegar os ativos para venda. “Os caras vêm com armas de grosso calibre!”

Ele me mostra uma mensagem de um fórum especializado em mercado financeiro publicada em 10 de abril de 2012, 17:56: “Dou 250 mil reais pela captura de Marcus Elias, vivo ou morto. Quero que me entregue ele na fronteira Brasil-Colômbia para um senhor chamado Ramirez”. Mais tarde, outra mensagem: “Por falta de matador, xxxxxx.xxx@gmail.com aumenta a oferta para 350 mil.”

O executivo me mostrou também um e-mail privado trocado entre uma pessoa chamada Nícolas e outro funcionário da GLG, não-identificado na mensagem. Nícolas, o negociador do fundo, escreveu: “Ideia de fazer contato com a Abrimec”. Em outro e-mail interno do GLG, um dos funcionários cita a empresa de espionagem Kroll, sem dizer se ela seria contratada e com que objetivo. A mensagem é vaga mas, para o executivo, os dois e-mails são provas de que Abrimec e GLG são sócios em uma cruzada para quebrar a LAEP. “Nós é que somos vítimas de um golpe”, defende.

Quando eu contei sobre meu encontro com o executivo da LAEP para Valdemir João de Melo ele se levantou da cadeira e bateu com as duas mãos na mesa. “Meu amigo, eu nasci em uma cidade no sertão nordestino na qual o símbolo municipal é um jegue. Um jegue! Você acha que eu tenho capacidade de falar alguma coisa com tal de fundo inglês?” Valdemir é um dos minoritários que se sente enganado por Marcus Elias — foram 200 mil reais investidos em BDRs que viraram nada. “Ainda por cima a gente sofrendo com a LAEP e ele fazendo festa.”

[olho]“Dou 250 mil reais pela captura de Marcus Elias, vivo ou morto. Quero que me entregue ele na fronteira Brasil-Colômbia para um senhor chamado Ramirez”[/olho]

Se a CVM e os tribunais são as melhores fontes de pesquisa sobre a vida empresarial de Marcus Elias, o site de mexericos Glamurama rouba a cena quando se trata de sua vida social. Em 2010, de fato, o empresário foi personagem de diversas notas sobre festas e convescotes badalados em São Paulo. Na inauguração do Bar Número, da amiga Fernanda Barbosa, ele apareceu “em plena segunda-feira, com frio intenso e garoa típica de São Paulo” para curtir “o espaço charmoso, de atmosfera superelegante e extremamente acolhedora, com sofás de couro marrom, luz baixa e cortinas de veludo”.

Em outra inauguração, desta vez da Brasserie Kosebasi, Elias foi citado ao lado de Teresa Fitipaldi, Letícia Brikheuer, Marcos Faria, Ricardinho Goldfard, Eliza Joenck e Gloria Coelho. A festa, “em clima de véspera de jogo do Brasil” — lotada com mais de mil “bacanas” — teve seu buchicho principal em torno do controlador da LAEP: “o assunto mais comentado da noite? A compra da Daslu por Marcus Elias, que comemora seu aniversário na próxima quarta-feira, no bar Número”.

***

A empresa não se limitou a emitir ações apenas para quitar dívidas — ela também fez emissões para captar dinheiro novo, mais uma vez derramando ações no mercado e corroendo os preços. O caso que mais chama atenção é o relacionado ao fundo de investimentos Global Emerging Markets, o GEM.

Em 15 de janeiro de 2010, a LAEP comunicou ao mercado, em nota oficial, que o GEM faria um aporte de 120 milhões de reais ao caixa da companhia. O título do comunicado era “LAEP obtém nova capitalização de R$120 milhões junto a investidor institucional norte-americano”. No rodapé do documento, a empresa reforçava a importância do acordo assinado com os investidores: “A administração da Companhia considera esta transação determinante para o seu fortalecimento”.

A nota foi replicada na imprensa, soprando ventos positivos à conturbada Parmalat. Em 15 de julho daquele mesmo ano, outro comunicado informava que o GEM aportaria mais 75 milhões de reais no caixa da LAEP. Valdemir viu as notícias e se animou. “Com 195 milhões na conta a LAEP poderia se capitalizar e, enfim, aproveitar o mercado. A ação dela ta muito barata, vai se valorizar. Vou comprar”, pensou.

Valdemir investiu 200 mil reais em BDRs da LAEP sem saber que seria ele próprio, e não o GEM, que iria capitalizar a empresa.

Conclusões imprestáveis

O Global Emerging Markets (GEM) se apresenta como um fundo alternativo de investimentos com 3,4 bilhões de dólares em caixa focado em mercados emergentes. Ele e seus parceiros dizem ter investido em 305 companhias de 65 países. Mas o GEM não tira dinheiro dos seus declarados 3,4 bilhões de dólares para fazer seus investimentos. A operação é complexa, e diferente do que as notícias fazem pensar.

Para aportar dinheiro na LAEP, o GEM pegou emprestadas ações do próprio laticínio, e as vendeu na Bovespa ao longo de semanas. Investidores como Valdemir compraram os BDRs, empolgados com a notícia de que um “investidor institucional norte-americano” estaria financiando a companhia. O GEM, de fato, não colocou um centavo na LAEP. Foi com o dinheiro de Valdemir que o fundo bombou o caixa da empresa, derramando mais ações no mercado e diluindo ainda mais a participação de quem já tinha papéis da LAEP. Os preços dos BDRs, como era de esperar, caíram ainda mais.

O Inquérito Administrativo “13” aberto pela CVM em 2013 chama a operação de “irregular”, “captação de poupança pública travestida de subscrição privada”, utilizando de “artifícios fraudulentos para induzir o mercado ao erro”, fazendo com que “investidores incautos e desinformados” participassem sem saber do aumento de capital. Um “comportamento malicioso”.

O inquérito ainda mostra que o GEM teve, por 10 vezes, fatia maior do que 5% da LAEP, e que deveria, por lei, ter comunicado isso ao mercado — só não o fez porque a informação poderia chamar atenção dos acionistas e mostrar que o fundo não era um investidor com interesses em ser sócio da LAEP, mas um especulador que jorrava novos BDRs na bolsa.

A CVM pediu punição ao GEM e a LAEP, e também a Marcus Alberto Elias, que assinou toda a documentação.

O envolvimento do empresário foi além das assinaturas de autorização: um e-mail enviado à CVM pelo departamento jurídico do banco Santander e obtido por esta reportagem garante que Elias é o representante legal no Brasil de um fundo chamado Brightness Investments LLC, sediado no número 874 da Walker Road, em Delaware, Estados Unidos. O fundo era o único cotista de outra empresa, a Central Veredas Fundo de Investimento em Participações. Foi a Central Veredas que atuou na Bovespa para vender os BDRs que o GEM pegou emprestado da LAEP. No e-mail, o Santander explica que o dinheiro arrecadado pela Central Veredas no mercado não ficou na conta da empresa — foi reinvestido em outra companhia, a Kewalam Empreendimentos e Participações S/A. Fundada meio ano antes da operação do GEM, a Kewalan viu seu capital social explodir do dia para noite, saltando de 1.000 reais para 92,7 milhões com o investimento da Central Veredas. Os sócios da Kewalan, segundo documentos da Junta Comercial de São Paulo, eram Marcelo Duarte e Diego Carrero Mesa. Os dois atuavam como uma espécie de criadores seriais de empresas, e já haviam prestado serviços para LAEP e Marcus Elias antes da operação financeira do GEM.

Marcus Elias se defendeu na CVM. Para ele, a operação foi legal, e a LAEP precisava de dinheiro por conta da crise internacional de 2008. Marcus Elias observou, em sua defesa, que a própria CVM não havia encontrado irregularidades na operação com o GEM diante de uma reclamação de um investidor, em 2011. De fato, à época, a CVM achou a operação normal, tendo dado atenção a ela somente em 2013, quando o dinheiro captado e os papéis já tinham virado história.

Em sua defesa, Marcus Elias apresentou o parecer de quatro professores de direito comercial. O mais fundamentado é o de Eliseu Martins, contabilista do Piauí e membro da diretoria da própria CVM entre outubro de 2008 a dezembro de 2009. Martins declarou que não havia nenhum erro na operação com o GEM, onde reinaria a mais pura legalidade. A CVM não deixou margem para interpretações em sua resposta: “Com todo o devido e mais do que merecido respeito ao professor Eliseu Martins, as suas conclusões são absolutamente imprestáveis”.

Estava escrito

Investir em papéis da LAEP era um negócio arriscado desde o início. No prospecto que norteou os investidores antes da abertura de capital a empresa listava, em 13 páginas, uma série de fatores que poderiam tornar o negócio perigoso, capaz de transformar qualquer real gasto em pó. “Investir nas nossas Ações ou BDRs envolve riscos significativos”, abria o primeiro parágrafo da página 62 do documento, que começa com uma série de alertas sobre a possível incapacidade da empresa de colocar seu plano de recuperação em marcha, citando, inclusive, eventuais mortes de seus executivos. “Nosso sucesso futuro depende, em grande parte, do trabalho e dedicação contínuos de nossa equipe de executivos. A perda de alguns deles pode nos afetar adversamente.”

Em outro trecho, a companhia parece antever a operação Ouro Branco, que detectou substâncias ilegais no leite e afetou a venda dos produtos Parmalat. “Mesmo que nossos próprios produtos não sejam afetados por contaminação, nosso setor poderá sofrer publicidade negativa se os produtos de terceiros forem contaminados, e isso poderia resultar na queda de demanda do consumidor por nossos produtos da categoria afetada.”

A parte que descreve os fatores de risco no prospecto da LAEP dá particular atenção aos BDRs. “Os detentores de BDRs não são e não serão considerados detentores das nossas Ações e não têm o direito de comparecer ou votar nas assembléias gerais de acionistas”, esclarece a página 68. Nos poucos casos em que os compradores dos papéis no Brasil teriam voz, a companhia não garantia que avisaria a tempo os investidores sobre data e horário das reuniões.

Os títulos vendidos pela companhia no Brasil davam direitos extremamente limitados a seus donos. De fato, a empresa seria controlada pela “Ações Classe B”, jamais negociadas em bolsa, e detidas inteiramente pela LAEP —  quase todas por Marcus Elias. Ele controlava a empresa com apenas 11% das ações totais. Para terem poder de voto, os donos dos BDRs deveriam ter quórum de ao menos 30% entre todos os detentores dos papéis, e comparecer no dia e hora marcada para a votação, em Bermudas.

“Eu liguei para um dos diretores da empresa e disse que queria participar de uma reunião. Ele me respondeu, irônico: ‘Você sabe que a empresa fica nas Bermudas, não sabe?’ Eu disse que sabia, e que iria de qualquer modo. Mal termino de falar ele já me replica: ‘Mas você pode ir no dia marcado e nós podemos mudar a data, jogar para 15 dias na frente, conforme permite nosso estatuto’. Ali eu entendi com que eu estava lidando”, me contou um investidor da LAEP que prefere permanecer anônimo. “Nesse mercado ninguém é santo, a gente não espera que as pessoas sejam puras. Mas aquilo era outra coisa, era uma gangue.”

O controle da empresa estava na mão apenas de seus diretores, e isso poderia confrontar os interesses dos demais acionistas.

O prospecto era ainda mais enfático em outras questões envolvendo as Ações Classe A, chamadas de BDRs no Brasil. “Podemos alterar o Contrato de Depósito e alterar os direitos dos titulares de BDRs de acordo com os termos do referido contrato, sem o consentimento dos titulares de BDR.”

[olho]“Nesse mercado ninguém é santo, a gente não espera que as pessoas sejam puras. Mas aquilo era outra coisa, era uma gangue”[/olho]

A história da LAEP não seria possível sem a regulamentação que permite que empresas listadas em outros países operem no Brasil através de BDRs. O sistema é comum em outras bolsas do mundo — a Petrobras, por exemplo, opera de modo semelhante nos Estados Unidos — , mas na Bovespa a norma não especificava o que, exatamente, era uma empresa estrangeira. No caso da LAEP, sequer um copo de leite jamais foi envasado fora do Brasil.

Após o escândalo da LAEP, a CVM decidiu mudar a norma dos BDRs: hoje, uma empresa precisa ter ao menos 50% de seus ativos no exterior para negociar recibos de ações no Brasil. Caso contrário, deve negociar papeis comuns e respeitar a Lei das S.A., que oferece proteções legais aos acionistas  –  muitas das quais poderiam ter evitado que a LAEP operasse como operou.

A mudança aconteceu em dezembro de 2009, e não atingiu companhias como a própria LAEP, já estabelecida no sistema de BDRs.

Os controladores poderiam também abandonar o mercado, sem garantia de que os investidores fossem ressarcidos. “Poderemos decidir deixar de ser uma companhia registrada na CVM para a negociação de BDRs e deixar de ser listados na Bovespa. Nesse caso, não podemos assegurar que nós ou nossos acionistas controladores farão uma oferta pública de aquisição de todos os BDRs em circulação em condições que atendam às expectativas dos titulares de BDRs.”

Mais adiante, a LAEP adverte que poderia não cumprir as leis brasileiras. “Somos uma companhia estrangeira, sujeita à legislação estrangeira, e a CVM pode não ter condições de supervisionar as nossas atividades ou fazer valer suas decisões contra nós.”

Na parte final, a LAEP deixa claro que os investidores em BDRs abririam mão de processar os executivos da empresa caso algo desse errado. “Nosso Estatuto Social contém uma previsão de renúncia por parte de nossos acionistas ao direito de promover qualquer ação ou reclamação, individualmente ou em nosso nome, contra quaisquer de nossos administradores. Tal renúncia aplica-se a qualquer ação ou reclamação envolvendo um administrador ou irregularidade por ele praticada no exercício de seus deveres, exceto com relação a qualquer questão que envolva qualquer fraude ou desonestidade por parte do diretor ou conselheiro.”

E, como gran finale, o prospecto previa que diretores, como Marcus Elias, poderiam ser indenizados pela própria LAEP em casos de “omissões ou atos” praticados por eles próprios. Ou seja: diante de uma avaliação incorreta do mercado feita por Marcus Elias que causasse prejuízos a empresa, o próprio Marcus Elias poderia ser indenizado por sua avaliação incorreta.

O prospecto, no entanto, não trazia a informação completa. O Estatuto Social da empresa, aprovado em 14 de agosto de 2007, é mais claro. O documento atesta que, caso qualquer um dos diretores fossem responsabilizados judicialmente por algum ato ou omissão no comando da empresa, a própria LAEP deveria indenizá-los, se necessário, com os bens da empresa. Eles estariam, assim, não só livres de “todas e quaisquer ações, custos, encargos, prejuízos, perdas e danos e despesas que eles, ou qualquer deles, seus herdeiros, testamenteiros ou inventariantes venham ou possam a vir a incorrer”, mas também poderiam pedir dinheiro por isso. “Tudo ilegal. Não tem nem discussão. Essas cláusulas ferem várias leis brasileiras, não estão acima delas. Não valem nada”, analisa Gisele Menezes, advogada da Abrimec.

O prospecto é um documento que parecia alertar os futuros acionistas que tudo poderia dar errado. E deu.

A mão amiga do BNDES

Em dezembro de 2010, quando a empresa parecia em um beco sem saída, um salvador apareceu no horizonte: o banco público federal BNDES investiu 700 milhões de reais na criação da LBR — Lácteos Brasil, uma fusão de alguns laticínios brasileiros encrencados, entre eles a LAEP. O nome de Marcus Elias não constava entre os 10 conselheiros da companhia. Sem acento, ele perdeu poder, entregou suas fábricas aos novos diretores e foi afastado das decisões.

A nova aposta do banco estatal seria cumprir o plano que o próprio Elias havia proposto para a LAEP: unificar o setor leiteiro e formar uma gigante brasileira capaz de competir no exterior. A dinheirama do BNDES cumpria à risca o discurso político das “campeãs nacionais”, as multinacionais brasileiras bombadas com dinheiro público federal. Jorge Rubez, presidente da LeiteBrasil, associação que representa os produtores de leite, declarou à imprensa na época: “Se for para sanar os problemas, parabéns. Mas, se for para pegar dinheiro do BNDES e falir daqui a pouco, não dá.”

Em 15 de fevereiro de 2013 o juiz da 1ª Vara de Falências aceitou o pedido de Recuperação Judicial da LBR. Era o fim do laticínio do BNDES, e a terceira morte da Parmalat no Brasil.

Em resposta a esta reportagem, o BNDES declarou que fez um estudo de viabilidade que mostrava que investir na LBR seria um bom negócio para o país. O banco declarou que não pode, contudo, divulgar o estudo, alegando sigilo contratual. O BNDES declarou ainda que não sabe qual o valor de mercado da LBR, hoje.

Três dias após o pedido de recuperação judicial da LBR, Marcus Elias tentou fazer uma fusão da LAEP com a companhia Prosperity Overseas, também das Bermudas. Os minoritários temeram que a empresa sumisse com o que restava de ativos e alertaram as autoridades, alegando fraude na operação. Forçada por uma cautelar judicial emitida no Brasil a pedido do Ministério Público Federal de São Paulo e da CVM, a LAEP anunciou desistência da fusão por conta de “incertezas jurídicas”.

Documento emitido em 22 de setembro daquele mesmo ano e obtido por esta reportagem mostra, no entanto, que a Prosperity Overseas se tornou de fato uma das sócias da LAEP —  ao contrário do que a empresa havia declarado — , tendo adquirido mais de 40 milhões de ações Classe A da companhia em 21 de fevereiro daquele ano, se tornando o maior acionista da LAEP. A Prosperity Overseas pertence a outra empresa de nome semelhante, a Prosperity Investments Fund Inc, sediada no Panamá e dissolvida em 3 de dezembro de 2013. Seus diretores são ligados a centenas de outras empresas no país.

Em 23 de setembro daquele mesmo ano, os BDRs da LAEP foram suspensos pela Bovespa. A bolsa tomou essa decisão porque o fundo inglês GLG pediu a liquidação da companhia na Suprema Corte de Bermudas, onde a LAEP se encontra em estado de espera por decisões judiciais no Brasil. Em 19 de agosto de 2014, a LAEP parou de entregar documentos obrigatórios de prestação de contas ao mercado, o que reforçou a suspensão dos BDRs.

Quando abriu seu capital, a LAEP declarou que venderia seus BDRs para “investidores institucionais qualificados”. Logo nos primeiros meses de operação da empresa a maioria desses investidores venderam suas posições, colocando as ações no mercado comum. Cerca de 18 mil investidores minoritários esperam ressarcimento.

Ao longo dos anos, a CVM abriu dezenas de processos contra a companhia, o que não a impediu de atuar no mercado acionário, talvez, por tempo demais até que alguma medida definitiva fosse tomada. Em resposta oficial, a CVM disse que atuou para investigar a LAEP em 2013, mas não respondeu à pergunta que eu fiz: “Dados os diversos sinais de que a LAEP era uma empresa no mínimo problemática, porque a CVM demorou tanto tempo até tomar medidas que afastassem o risco dos acionistas perante os BDRs da LAEP na Bovespa?”.

Em 2010, a LAEP informou ter liquidado dívidas de 48 milhões de reais com credores. A auditoria KPMG vasculhou o livro-caixa da LAEP e diz não ter conseguido confirmar a existência de parte do que chamou de “supostas dívidas”. “Só esse dinheiro poderia nos pagar”, observa Valdemir João de Melo, que investiu 200 mil reais na empresa.

Por conta do parecer da KPMG, a LAEP culpou a auditoria pela queda no preço de suas ações e a processou. E perdeu. Em sua sentença, o juiz Gustavo Coube de Carvalho observou que o processo da LAEP contra a KPMG poderia parecer “estratégia diversionista, buscando desviar ou suspender, ao menos temporariamente, a atenção de acionistas e investidores que tenham sofrido prejuízos com os papeis da empresa”.

Apesar de contestada pela CVM à época, a empresa de Marcus Elias continuou operando, mesmo sob fortes desconfianças.

Em busca de alguma paz

No dia 2 de julho deste ano, a procuradora federal Karen Louise Jeanette Kahn denunciou Marcus Alberto Elias por uma série de crimes. Em sua denúncia, ela chama Marcus Elias de “o grande protagonista de toda a fraude”, mente por trás da “quebra fraudulenta da empresa LAEP, desviando, senão a totalidade, uma relevante parcela dos recursos captados na Bolsa de Valores, em benefício próprio e de familiares”. Para isso, Marcus Elias e os demais diretores da empresa teriam “se utilizado de mais de 100 empresas, para transferência de bens e direitos, supostamente também ao exterior, em clara gestão fraudulenta seguida de lavagem de dinheiro”. Segundo a denúncia, “a LAEP só serviu como veículo indispensável à prática do golpe ao mercado financeiro do Brasil”.

O documento vai além: acusa Marcus Elias — dono de uma “meteórica evolução patrimonial” — de comandar “autêntica formação de bando ou quadrilha”. Para a procuradora, o controlador da LAEP tem, em seu nome ou de familiares, ao menos 150 milhões de reais, incluindo imóveis, um helicóptero e um avião. “A LAEP sempre fez uso de informações falsas e/ou prejudicialmente incompletas, o que permitiu aos controladores e administradores da empresa empreenderem, de forma exitosa, fraudes e golpes contra o sistema financeiro nacional”, completa a denúncia.

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Marcus Elias de mãos dadas com o lama Gangchen em 2009. Crédito: Mônica Bergamo/Folhapress
Marcus Elias de mãos dadas com o lama Gangchen em 2009. Crédito: Mônica Bergamo/Folhapress

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Acolhendo o pedido da procuradora, naquele mesmo mês a Justiça ordenou que Marcus Elias se afastasse do mercado financeiro. Os magistrados também bloquearam seus bens, inclusive a herança a qual Marcus teria direito após a morte do pai, que seria um dos laranjas do empresário, segundo a acusação. Ela poderá ser usada para pagar os investidores prejudicados pela LAEP caso a Justiça assim determine. “Estamos rastreando o dinheiro”, me disse a procuradora Karen Louise Jeanette Kahn em seu gabinete, ironicamente colado parede a parede com o escritório do advogado Sérgio Bermudes, onde Marcus Elias me recebeu.

A investigação já rastreou mais de 100 empresas de Marcus Elias, ou ligadas a ele, e agora tenta remontar a história. Ao menos um dos bens da LAEP, no entanto, pode ser encontrado sem muito esforço: em um vídeo no Youtube. A fazenda Cruzília, adquirida pela Integralat da empresa RE Partners do Brasil, à época de Marcus Elias, está a venda por 13 milhões de reais, dobro do valor pago pela Integralat. Documentos obtidos por esta reportagem mostram que, em 2010, a Cruzília foi repassada pela Integralat para outra empresa, a Symdogim Empreendimentos e Participações S/A. A Symdogim era comandada por Carlos Enrique Ferraz — que trabalhava para a própria Integralat antes de se aventurar como empreendedor.

O ex-controlador da LAEP se declara inocente de todas as acusações e procura levar sua vida com normalidade. A vida social de Elias não parou nem mesmo nos momentos judiciais mais críticos. Em julho de 2015, na semana em que o MPF oferecia denúncia contra ele, o empresário fez pose ao lado de um ramalhete de flores em um salão iluminado à luz de velas na França — terno bem cortado, mãos unidas em postura quase zen. A manchete do site de celebridades Glamurama dava o tom do momento: ‘Numa boa, Marcus Elias curte show de Caetano e Gil em Paris’.”

Em seu perfil publicado na Folha de S. Paulo, em abril de 2008, o empresário é retratado como dono de uma biblioteca de mais de mil livros. Entre eles, no entanto, conforme a reportagem, “é difícil encontrar um exemplar que trate de negócios”. Elias é mesmo fã de estudos religiosos. “A grande maioria das obras nas suas estantes versa sobre religião oriental e filosofia.”

Nem mesmo a busca pela iluminação consegue trazer paz de espírito a Marcus Elias. Grato ao lama tibetano Gangchen Rimpoche pelos conselhos recebidos, o empresário retribuiu com um presente contestado pelos investidores que se julgam lesados pela LAEP: Elias teria investido mais de 10 milhões de reais na construção de um templo budista em Campos do Jordão, em um terreno de sua propriedade, além de uma sede do Centro de Dharma da Paz, em São Paulo, e outro imóvel na mesma cidade para um centro de reiki.

Reportagem da revista IstoÉ de outubro de 2010 retrata o monje Gangchen como “ex-companheiro de cela do líder chinês Deng Xiao Ping, que sucedeu Mao Tsé-tung na China”. Em sua denúncia à Justiça, a procuradora Karen Louise Jeanette Kahn pediu a prisão preventiva de Marcus Elias, negada pelo juiz. Caso o ex-controlador da LAEP tenha a desfortuna de ser encarcerado, o lama pode ser um ombro experiente a recorrer.

***

Leandro Demori, 34, é jornalista investigativo e editor do Medium Brasil. Issao Nakabachi, 28, é designer e ilustrador do Colletivo.

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Investigação

Parte II: Soda no leite, meio bilhão na Bolsa

Naquele 22 de outubro de 2007 fazia quatro meses que os agentes da Polícia Federal se encontravam com ex-funcionários de duas cooperativas de Minas Gerais, que lhes explicavam como era operada uma fraude no leite. Os informantes haviam indicado o nome de um químico de São Paulo que seria o responsável por criar a fórmula da fortuna: água oxigenada, soda cáustica, ácido cítrico, citrato de sódio, sal e açúcar em proporções ainda desconhecidas que, quando adicionados ao leite, burlavam os controles de qualidade e aumentavam o volume vendido em até 8%. Os depoimentos indicavam que milhares de litros eram fraudados todos os dias e revendidos a fábricas.

A ação que envolveu a prisão de 27 pessoas mobilizou 200 policiais e servidores do Ministério da Agricultura. A fraude ultrapassou as fronteiras de Minas — as cooperativas envolvidas vendiam leite cru para diversas marcas, que depois distribuíam o leite processado em várias regiões do país. Entre elas estava a Parmalat.

Por decisão do governo, todos os lotes deveriam ser recolhidos dos supermercados e incinerados, às custas da empresa. “Só essa operação de recolher e destruir o leite, além de ficar sem vender até que o governo autorizasse, nos deu 300 milhões de reais de prejuízo”, me contou um alto executivo da LAEP que, por razões judiciais, não quer ser identificado.

O escândalo do leite seria prejudicial para qualquer marca, mas caiu como um míssil na Parmalat. A Polícia Federal deflagrou a Operação Ouro Branco uma semana antes de a LAEP abrir seu capital na bolsa. A coleção de boas notícias sobre a reestruturação do laticínio italiano cessou, e a marca foi parar nas páginas policiais.

A notícia derrubou pela metade o preço estipulado pelos papéis.

Em reunião de emergência realizada em 26 de outubro, os sócios decidiram baixar as expectativas e precificar as ações em R$ 7,50. A ideia de captar um bilhão de reais parecia distante frente ao escândalo do leite — contestado pela empresa, que processa a Anvisa alegando que o órgão teria utilizado um teste fora das normas para detectar a presença de aditivos químicos proibidos. O frenético 2007 não poderia, no entanto, passar em branco. Até o final daquele ano, 64 companhias abririam seu capital na bolsa brasileira, um recorde. A LAEP não queria se desgarrar da boiada.

Marcada para o dia 29 de outubro, a abertura de capital só aconteceu no dia 31. As ações que seriam negociadas pela LAEP na Bolsa de Valores de São Paulo tinham uma particularidade: não eram de fato ações. Chamados de Brazilian Depositary Receipts, ou BDRs, os papéis eram recibos das verdadeiras ações da empresa, negociadas, estas sim, na Bolsa de Luxemburgo, a partir daquele mesmo 31 de outubro. Vendendo-se ao mercado como empresa estrangeira, e aceita pela Bovespa como tal, a LAEP tinha o direito de negociar seus BDRs no Brasil. Os papéis vendidos no país tinham aspecto de ações — eram cotados na Bovespa sob o código MILK11 e apareciam para qualquer investidor, profissional ou amador, nos sistemas de compra e venda de ações, misturados a todos os papéis disponíveis no mercado — , mas, na letra fria dos contratos, os BDRs davam menos proteção e direitos a quem os comprasse.

Mesmo em meio ao furacão, a LAEP conseguiu vender seus BDRs na Bovespa. A empresa convenceu o que chamou de “investidores institucionais qualificados”, basicamente fundos de investimentos com apetite para o risco, dispostos a encarar uma companhia em recuperação judicial com a marca arranhada no mercado. A divulgação da abertura de capital deu ênfase a esses “investidores qualificados”. Parecia coisa de gente grande do mercado, fundos experientes que sabiam o que estavam fazendo. Não foram só os especialistas em risco, num total de 49 compradores, no entanto, que apostaram no futuro da LAEP. Ao bater do gongo, às 17 horas daquele mesmo 31 de outubro, a empresa liderada por Marcus Alberto Elias tinha levantado 507 milhões de reais na bolsa — também com dinheiro de 556 pessoas físicas, 7 pessoas jurídicas, 7 clubes de investimento e 44 outros fundos. O total de compradores do mais novo papel da Bovespa, o MILK11, foi de 706. A Parmalat estava de volta à Bolsa. Outra jogada de mestre.

“Nós temos a visão do negócio”

Apesar do revés de expectativas durante a abertura de capital, o meio bilhão amealhado na Bovespa serviria para dar fôlego à companhia. Deduzidas as comissões e despesas pagas durante a abertura de capital, 477,9 milhões de reais entraram no caixa da LAEP. Nas semanas seguintes, Marcus Elias colocaria seu plano de administração à prova.

A principal medida que Elias deveria tomar seria um investimento pesado na Integralat. Na página 76 do Prospecto Definitivo de Oferta Pública, documento que guiou os compradores antes da decisão de compra das ações, a LAEP garantia que investiria “aproximadamente 60% dos recursos captados, ou R$ 286,7 milhões, nas atividades da Integralat”. A Integralat não era um acessório na estratégia da nova Parmalat. Em anúncios ao mercado, seu logotipo aparecia colado ao da empresa italiana, em igual tamanho.

Mais da metade do dinheiro investido na Integralat seria gasto, segundo o Prospecto, com “compra de rebanho, investimentos em equipamentos e tecnologia, pesquisa e desenvolvimento, melhoria da qualidade genética do rebanho e treinamento e qualificação dos produtores”. A jogada fazia sentido. Mirando os grandes frigoríficos nacionais, Marcus Elias esperava amarrar os produtores de leite em um sistema integrado que os tornasse parte de uma cadeia compacta e azeitada, aumentando a produção e diminuindo custos e problemas. A empresa saberia de antemão de quem estava comprando. Os produtores fariam parte da indústria. A ideia aparece diversas vezes no Prospecto publicado pela LAEP, e era uma das grandes apostas para o futuro da multinacional do leite.

Contrariando o documento assinado de próprio punho, Marcus Elias mudou de ideia. Em vez de seguir os planos que estimularam investidores a comprar os papéis da LAEP, o controlador secou as torneiras da Integralat e saiu pelo Brasil arrematando fábricas. Com o dinheiro, Elias concretizou aquisições iniciadas antes da abertura de capital e fechou novos negócios, comprando estabelecimentos para aumentar o tamanho do laticínio a fórceps. Em poucos meses a Parmalat tinha dobrado sua estrutura — era dona 14 fábricas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Goiás e Rondônia. Os milhões levantados na bolsa minguaram mais rápido do que se esperava.

O apetite de Elias preocupou o mercado. Em junho de 2008, o banco UBS Pactual — o mesmo que havia coordenado a abertura do capital da LAEP na Bovespa e que detinha 5,87% das ações da companhia — publicou um relatório arrasador. Discordando da estratégia de Elias, o UBS rebaixou o preço-alvo das ações: de R$ 11,50 para R$ 4. O argumento principal foi justamente o que parecia ser um abandono financeiro da Integralat, coração do projeto de recuperação da nova Parmalat. Como notou o UBS, dos 286,7 milhões de reais captados na Bovespa que deveriam ser investidos na Integralat apenas 80 milhões de reais de fato foram.

[olho]Os milhões levantados na bolsa minguaram mais rápido do que se esperava[/olho]

A Comissão de Valores Mobiliários, responsável por supervisionar o mercado acionário, abriu processo interno e pediu explicações à LAEP. A empresa, em sua defesa, garantiu que seu estatuto social e também o Prospecto autorizavam a mudança de planos sem cerimônias. “É possível que eles tenham se dado conta que investir na Integralat era furada. A Parmalat tinha problemas urgentes de caixa, não poderia se dar ao luxo de imobilizar tanto dinheiro em fazendas que demoram para dar resultado”, me disse um analista de mercado que prefere não se identificar. “De todo modo, mostrou logo de cara que o comandante da LAEP não sabia o que estavam fazendo”, completou.

Mesmo nos investimentos abaixo do esperado feitos na Integralat, um dos negócios assinados por Marcus Elias — e que poderia suscitar dúvidas ao mercado — passou em branco aos órgãos de controle à época. Esta reportagem obteve documentação que comprova que em abril de 2008, menos de dois meses antes do relatório do UBS, a LAEP aprovou em assembléia o arrendamento, com opção de compra, de uma propriedade na cidade de Cruzília, em Minas Gerais. A fazenda Cachoeira, avaliada em cerca de 6 milhões de reais, seria efetivamente comprada pela Integralat. O arrendante da Cruzília, com o qual a Integralat negociara, era uma empresa chamada RE Partners do Brasil, de propriedade do próprio Marcus Elias. O controlador da LAEP assinou a compra de sua própria fazenda.

Pressionadas pela série de eventos, as ações da companhia tomaram um tombo arrasador: caíram 20% no dia do anúncio do relatório do UBS, e desceriam até bater 70% de desvalorização em poucas semanas. O papel, que havia sido vendido a R$ 7,50 em seu primeiro dia na bolsa, valia, naquele junho de 2008, menos da metade do valor original.

Em reunião com acionistas no dia 8 de julho, Marcus Elias foi questionado por Rodrigo Glatt, analista da administradora de recursos GTI, que tinha comprado ações da LAEP meses atrás. Rodrigo acompanhava a empresa de perto, esperando que ela recuperasse a marca Parmalat e desse a volta por cima.

“Vocês pensam em mudar alguma coisa considerando a queda que a ação teve nessas últimas três semanas?”, perguntou Glatt.

“Nós não entendemos esse pânico”, replicou Marcus Elias. “Por outro lado, claro, nós estamos prestando atenção em outros detalhes ou fatores psicológicos que podem ajudar a companhia”, emendou, sem mencionar o puxão de orelha do UBS.

Na mesma reunião, Glatt questionou se a estrutura organizacional da LAEP não estaria penalizando os papéis.

“E qual que é a vantagem de ter a holding nas Bermudas se todos os ativos estão no Brasil?”

[olho]“Nós não entendemos esse pânico”[/olho]

Marcus Elias explicou: “A vantagem é que nós podemos controlar a companhia mesmo não tendo 51% dela, certo? A grande vantagem é você poder controlar sem ter o controle matemático das ações.” E complementou, dando pistas de seus planos: “Se esse é um projeto de capital intensivo, talvez a ideia que nós tínhamos em outubro de 2007 é que muito provavelmente nós não ficaríamos em uma só emissão de ações, mas talvez viéssemos a mercado em certas datas para mais emissões. Então a estrutura atual trouxe esse conforto de poder voltar a mercado sem perder o controle, porque nós entendemos que nós temos a visão do negócio, nós temos o diagnóstico, nós somos os empresários, então temos que levar o projeto até o fim, para dele extrair a melhor valorização, o melhor benefício.”

Dois meses após a reunião, Marcus Elias decidiu se desfazer de ativos que ele recém tinha adquirido: a empresa Poços de Caldas e a licença da marca Paulista seriam negociados com um concorrente pelo mesmo valor de compra. Da aquisição dos negócios da Danone até a venda haviam se passado apenas quatro meses. Com o caixa sufocado — castigado também pelos altos custos do leite in natura em 2008 —, a companhia ainda fechou unidades e reduziu turnos. O investimento abaixo do esperado na Integralat gerou um mea culpa da LAEP, que em seu balanço de meio de ano admitiu estar em busca de um sócio para a subsidiária. A salvação da Parmalat parecia cada vez mais apenas um respiro antes do próximo mergulho.

***

Eram cerca de seis horas da manhã do dia 15 de agosto quando Marcus Elias levantou da cama e ligou a TV antes de encarar o dia. O empresário ficou paralisado diante da notícia que corria o mundo como rastilho de pólvora: uma das maiores e mais antigas instituições financeiras do planeta estava falida  —  era o fim do banco americano Lehman Brothers.

A Bovespa, como as demais bolsas do mundo, entrou em queda livre. As ações da LAEP, que já claudicavam, foram jogadas aos centavos. Marcus Elias teria uma reunião emergencial com investidores dois dias depois, na qual pediria desculpas e tentaria acalmar a todos. “Sinto muitíssimo pelos resultados que apresentei. Erramos no timing ao dobrar a companhia de tamanho em um momento totalmente adverso.”

O mercado não cedeu aos lamentos de Elias. Ao final daquela reunião, a Bovespa informou que uma grande administradora de recursos com sede em Delaware, nos Estados Unidos, queimaria todas as ações da LAEP que tinha em carteira, fazendo um leilão na bolsa. A fatia era portentosa: equivalia a 24,36% do total de papéis da companhia. O leilão derrubou ainda mais o valor das ações, que já acumulavam perdas de 80% em meio ano. Outros investidores com grande quantidade de papéis também pularam fora, entregando seus BDRs a preços muito menores do que haviam pago. Com o pânico, os bancos fecharam as portas; o crédito secou.

Sem saída, Marcus Elias olhou novamente para a Bolsa. Em pouco tempo, ele voltaria ao mercado emitindo mais ações em busca de dinheiro. A oferta atrairia milhares de pequenos investidores, que entrariam em um labirinto sem saída.

A casa da moeda 666

Era inverno, mas Otávio Vargas Valentim suava. Com quase 40 anos e sobrepeso aparente, o terno de advogado o castigava sob o sol abrasivo daquele atípico julho de 2012. Otávio carrega nos braços alguns volumes de processos judiciais que acabara de pegar no carro. A dois passos da porta de seu escritório, esbaforido, notou um estranho trajando touca e roupas pretas. O homem parecia um lutador de artes marciais. No mesmo instante ouviu o barulho de um Nextel — o estranho apertou o botão e ouviu uma voz masculina do outro lado confirmando o que parecia o alvo de uma missão: “É ele”.

Atabalhoado com os processos que carregava, o advogado respondeu no instinto quando o homem guardou o celular, caminhou até ele e o cumprimentou com um “bom dia”. Otávio tomou um soco no rosto e se estatelou na calçada. Os processos se espalharam pelo chão. Com os braços livres, ele tentou proteger o rosto enquanto era atingido pelo agressor a chutes. “Fui salvo pelo pessoal do escritório, a galera saiu correndo atrás do cara.”

O estranho entrou em um carro onde um motorista o esperava, e desapareceu.

Otávio Valentim conseguiu identificar seu algoz e dias depois o encontrou em uma delegacia, na qual prestou queixa. “Ele disse que bateu em mim porque eu olhei feio pra ele. Coisa sem sentido.” Para Valentim, a surra teria outro motivo: Marcus Alberto Elias. O controlador da LAEP seria o mandante da agressão.

Foi conversando com um gerente de banco que Otávio Valentim decidiu investir nas ações da LAEP depois da crise de 2008. A empresa estava em um setor relevante, a marca Parmalat tinha força e os papéis estavam demasiadamente desvalorizados, argumentou o gerente. Nas primeiras compras, Otávio fez algum dinheiro rápido. Gostou de operar as ações e decidiu investir pesado. Nos meses seguintes, no entanto, os papéis não paravam de cair, sem qualquer motivo aparente. Tentando recuperar os sucessivos prejuízos, Otávio investiu mais, e mais, e mais — gastou em BDRs da LAEP cerca de meio milhão de reais, triturando suas economias e destruindo seu moral.

As constantes quedas sem sentido no preço dos BDRs entre 2009, 2010 e 2011 levaram Otávio e um grupo de investidores minoritários à sede da empresa. Em 20 de janeiro de 2012, por volta do meio-dia, eles marcharam do quartel-general da companhia, na Vila Olímpia, zona sul da capital paulista, até a Bovespa, no centro da cidade, usando fantasias e máscaras do filme Pânico. No caminho, os investidores passaram pela loja de luxo Daslu, recém-adquirida por uma LAEP em estado financeiro catastrófico. A negociação levantou mais uma pulga atrás da orelha dos minoritários por um comportamento que eles reprovavam: a falta de transparência.

Marcus Elias teria comprado a Daslu, também em recuperação judicial, por 65 milhões de reais. No entanto, o empresário seria um dos credores da butique ─ ele teria emprestado dinheiro à loja por conta de sua amizade pessoal com Eliana Tranchesi, dona da Daslu, que viria a falecer um mês após o protesto dos minoritários. Elias propôs o abatimento de dívidas de 44 milhões de reais que a Daslu teria com duas de suas empresas, e prometeu investir 21 milhões no futuro.

O empresário criou uma Sociedade de Propósito Específico para assumir todas as dívidas da loja, e, como havia feito com a Parmalat, negociou abatimentos: os credores só receberiam 40% do valor devido, em 60 meses. Entre eles estavam muitos fornecedores da loja, que só veriam dinheiro se a nova Daslu desse lucro.

Durante uma assembleia de cinco horas, dois grandes credores defendiam que Elias deveria pagar um valor maior para levar a marca Daslu junto com a loja. A marca não estava no plano de recuperação judicial. Foram voto vencido: o banco HSBC, que tinha dívidas a receber, aprovou o plano inicial apoiado pelo voto de duas outras grandes credoras, a Chiplands e a Retail, ambas empresas ligadas ao próprio Marcus Elias. O empresário apresentou uma proposta e votou a favor de si mesmo. Assim como fizera com a Parmalat, ele assumiu o controle da Daslu em uma tacada perfeita.

[olho]A companhia havia se tornado, naquele momento, uma máquina de impressão de ações[/olho]

A revolta dos minoritários da Parmalat foi potencializada pelo caso Daslu. Sem informações claras por parte da LAEP, eles acreditavam estar financiando a compra da loja e perdendo participação na companhia por conta da emissão massiva de novos BDRs. A companhia havia se tornado, naquele momento, uma máquina de impressão de ações. Alegando estar pagando as antigas dívidas da Parmalat, a empresa, em vez de quitar os débitos em dinheiro, emitia BDRs e passava aos credores. O procedimento é considerado legal no Brasil, mas a LAEP bateu um recorde: fez 212 emissões de ações. “Eu nunca vi isso em nenhum mercado de capitais em qualquer país do mundo”, me disse um investidor experiente que preferiu não se identificar. Como era vista pela Bovespa como empresa estrangeira, a LAEP não era obrigada a cumprir a norma brasileira que protege os investidores dono de papéis da companhia: eles têm direito de preferência sobre novas emissões. Precisam ser informados antes que os papéis sejam vendidos no mercado, para saber se querem ou não comprar os novos BDRs — ou se querem pular fora de um negócio que, para sobreviver, está emitindo ações às dezenas.

As constantes emissões derretiam o preço das ações sem que os investidores soubessem, já que a LAEP, além de não dar direito de preferência, não prezava pela transparência. Quanto mais ações a companhia jogava no mercado, menor o valor unitário de cada uma delas. Otávio, que investiu 500 mil reais e era, portanto, dono de uma parte considerável da empresa, viu seu dinheiro evaporar. “Era uma casa da moeda”, disse Gisele Menezes, advogada da Abrimec, Associação Brasileira dos Investidores no Mercado de Capitais, criada por cerca de 80 minoritários que processam Marcus Elias para tentar reaver o dinheiro investido. O total investido pelos associados da Abrimec na Parmalat chega a 40 milhões de reais. “A perda de valor dessas ações não tem a ver com o risco inerente da Bolsa, tem a ver com fraude. A LAEP é uma empresa ilegal.” Gisele defende a tese de que a companhia não é uma empresa estrangeira e que não poderia negociar BDRs e se livrar da lei brasileira que dá mais proteção aos investidores. “Me diz uma fábrica da LAEP fora do Brasil?”, desafia.

Todas as fábricas, funcionários, fornecedores e clientes do laticínio estão, de fato, no Brasil — e toda a sua gestão é tocada em São Paulo. A companhia declarava, no entanto, sua sede legal nas ilhas Bermudas, mais precisamente na Clarendon House, número 2 da Church Street, em Hamilton.

O endereço não é exatamente o dos escritórios da LAEP: nenhum executivo da empresa despacha cotidianamente da principal rua da ilha, onde igrejas, um teatro, bares, o mercado municipal, edifícios do governo, lojas e agências de automóveis se enfileiram em um leve aclive de mão única. O prédio onde a LAEP declara endereço abriga o escritório de advocacia Conyers Dill & Pearman, especializado em auxiliar juridicamente firmas de todo o mundo.

A companhia não envasava leite nas Bermudas. Sua presença no país se limitava a administrar uma caixa postal de número sugestivo: 666.

Corra ou morra

As avalanches de novos papéis obedeciam a critérios sigilosos que a LAEP estabelecia com cada um dos credores, sem comunicar aos acionistas. Em tese, os BDRs dados em troca de dívida poderiam ser mantidos pelos credores, que esperariam, caso desejassem, uma valorização dos papéis conforme a Parmalat se recuperasse. Os credores se tornariam investidores da empresa, e apostariam no futuro dela junto com seus diretores e os demais acionistas.

Não era assim que o plano funcionava, no entanto. O Risca Faca teve acesso a alguns desses contratos. Um deles, entre a LAEP e a empresa Vida Indústria de Laticínios LTDA, de Goiás, assinado em 29 de janeiro de 2010, é ilustrativo. A LAEP reconhece uma dívida com a Vida Laticínios de 2,1 milhões de reais. Para quitar, a LAEP emitiria BDRs no valor da dívida — um programa de conversão de dívida em capital. No entanto, a Vida tinha 15 dias para vender os papéis na Bolsa, sob pena de ver sua dívida quitada sob a cotação dos BDRs no oitavo dia após a assinatura do contrato. Caso o valor dos papéis caísse, a Vida perderia dinheiro. A dívida poderia virar nada.

Sob essas condições, era evidente que a Vida — e outras empresas — não esperariam para ver no que ia dar: assim que colocavam as mãos nas ações, os credores corriam para a Bovespa e despejavam os papéis no mercado. Com excesso de oferta, os BDRs se desvalorizavam.

Dezenas de procedimentos como esse foram feitos ao longo dos anos, jogando milhões de novas ações no mercado, derrubando o preço dos papéis dia após dia, reduzindo a participação e o investimento dos acionistas a pó. Em 2011, ano anterior ao protesto dos minoritários, o preço dos BDRs na Bovespa havia caído mais de 90%.

O contrato com a Vida Laticínios tinha ainda uma cláusula peculiar: caso a empresa captasse na bolsa um valor acima daquele que a Parmalat lhe devia, era obrigada a depositar a diferença na conta da própria LAEP. Além de quitar as dívidas às custas dos investidores — muitos deles compradores empolgados de BDRs por conta de notícias animadoras sobre a Parmalat publicadas na imprensa nas mesmas épocas das novas emissões de ações —, a LAEP ainda fazia caixa com as operações com alto potencial de derrubar o preço de seus próprios papéis no mercado.

A emissão de bilhões de novos papéis serviu também para remunerar diretamente diretores da LAEP para além de seus salários, mesmo em momentos de crise extrema. Documentos mostram que ao menos uma vez a companhia usou do expediente: em 20 de fevereiro de 2009 o Conselho de Administração aprovou a emissão de 400 mil dólares em BDRs para “incentivar o desempenho de determinados executivos da companhia”, sem divulgar seus nomes ou cargos. Os executivos poderiam ficar com os BDRs em carteira, esperando que se valorizássem, também, por conta do próprio trabalho na empresa. Quanto melhor dirigissem a companhia, mais as próprias ações se valorizariam. Em tese, o Plano de Incentivo de Ações deveria dar novo gás aos executivos e melhorar suas performances para o bem da LAEP. Menos de um ano depois de serem bonificados, em 14 de janeiro de 2010, no entanto, nova reunião do Conselho presidido por Marcus Elias autorizou que “determinados empregados” – novamente sem especificar nomes e funções – pudessem vender os BDRs que a companhia havia presenteado.

Pelos cálculos da Abrimec, a LAEP captou, entre sua abertura de capital até a última das 212 emissões de ações, cerca de 2,5 bilhões de reais. “Esse dinheiro sumiu. Cadê? Sumiu. Só o Marcus Elias pode dizer onde esse dinheiro está”, provocou Gisele Menezes, advogada da Abrimec.

Uma carona para Naomi Campbell

A terça-feira estava particularmente abafa naquele 27 de outubro de 2015 quando o táxi entrou na avenida Berrini até parar no engarrafamento. Desci do carro antes do endereço pretendido e caminhei por meia quadra até entrar no elevador e apertar o andar de uma grande administradora de recursos. A empresa investiu tempo e dinheiro na LAEP em 2008, quando as boas notícias que saiam na imprensa pareciam levar o laticínio de volta aos trilhos. “Temos um perfil de arriscar, mas sabíamos que por ter um mercado enorme e uma boa marca nas mãos a Parmalat tinha condições de voltar com tudo”.

Na mesa estão dois dos sócios da administradora. Em um microcosmo como o do mercado de capitais, onde todo mundo se conhece, é natural que eles prefiram permanecer anônimos. “Tinha toda aquela ideia da LAEP de investir na Integralat, na In Vitro, melhorar a produtividade e integrar o setor. Aquilo parecia um bom plano”, disse um dos sócios, mais falante. O outro pontuou: “Levantamos a ficha do Marcus Elias, por assim dizer, e realmente não tinha nada que mostrasse que ele era um pilantra”.

Antes de cruzar o caminho da LAEP, os dois haviam investido em ações da Perdigão, e acreditavam que o laticínio poderia seguir os passos do frigorífico, consolidando a cadeia e se tornando uma gigante do setor. Em agosto de 2008, com a debandada dos grandes investidores, os sócios resolveram vender seus BDRs e remoer o prejuízo.

A história parecia mais uma das tantas de má gestão empresarial quando, meses depois, um deles viu uma pequena nota no jornal noticiando que a LAEP estava emitindo stock options — a possibilidade de alguns gestores e diretores da empresa de comprar ações a preços menores do que o valor dos papéis no mercado, e revendê-los se desejassem. “Aquilo me subiu o sangue. Na hora eu liguei pra um dos diretores e perguntei, por curiosidade, por que os diretores poderiam comprar ações a 1 centavo de dólar quando a cotação dos papéis na bolsa era muito maior do que aquilo, algo em torno de 70 centavos.” A pergunta ficou sem resposta. “Percebi naquele momento que tudo era um grande golpe. Os caras estavam emitindo ações para si mesmos a 1 centavo de dólar e vendendo no mercado a valores superiores, lucrando em um momento péssimo da companhia”, avaliou um dos sócios.

Não satisfeito — e sabendo da situação crítica da LAEP — ele decidiu ir até o aeroporto de Jundiaí, onde Marcus Elias teria um avião de primeiro nível guardado em algum hangar. “Pensei: se a coisa está tão feia, e ele é comprometido com o futuro da empresa, por que não vende o avião?”. A tática usada pelo sócio da administradora de recursos para descobrir se a aeronave existia foi insólita. “Perguntei para uma moça que trabalhava no aeroporto se ela já tinha visto a Naomi Campbell por lá. Ela me disse que sim, e mostrou onde. Fui ver e lá estava um Citation 10”. A aeronave tinha preço de mercado de 12 milhões de dólares, um respiro e tanto em um caixa vazio como o da LAEP. Marcus Elias chegou a anunciar que venderia o avião, mas sua venda efetiva, se houve, jamais foi divulgada. Em 2013, a justiça bloqueou três aeronaves da empresa, sem declarar marca ou modelo.

A pergunta sobre Naomi Campbell fazia sentido. Marcus Elias era um dos empresários mais colunáveis de São Paulo — costumava desfilar em festas com suas namoradas, em geral, modelos. Uma delas foi a inglesa Naomi Campbell — affair que Elias sempre negou. Em 2008, ao ser questionado pela colunista da Folha de S. Paulo, Mônica Bergamo, sobre o romance, Elias desconversou: “Querida, vamos falar de leite?”.

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Investigação

Parte I: Quem é Marcus Elias?

Marcus Alberto Elias entrou na ampla sala de reuniões como se tivesse acabado de sair de um yacht club: camisa polo e calças azuis, tênis baixo sem meia, boné de cotelê tapando a cabeça calva e óculos de armação leve — tudo de boa marca. Preparo o gravador enquanto ele se acomoda tirando o boné e passando uma das mãos sobre a careca bronzeada. A conversa duraria quase três horas.

Mas ele não está aqui para me dar uma entrevista.

Sentado na cabeceira de uma longa mesa, Elias, 56 anos, é observado por uma foto do papa Francisco, emoldurada sobre o aparador às suas costas. Seu advogado e dono do escritório, Sérgio Bermudes, aparece na imagem, ajoelhado, beijando a mão do santo padre. Na conversa, gravada em um notebook e assistida por dois advogados e uma assessora de Elias, o principal executivo da Latin America Equity Partners, a LAEP, empresa que arrematou a Parmalat brasileira em 2006, se debruçaria para frente e para trás, amaciando ou levantado o tom de voz conforme a narrativa, por vezes ficando a poucos centímetros do meu rosto enquanto seus defensores manuseavam papéis e fuçavam em computadores. Ele me recebeu com a condição de que nenhuma palavra sua poderia ser usada nesta reportagem.

Para o Ministério Público Federal, o homem à minha frente é “o grande protagonista de toda a fraude”, acusado de ser a mente criativa por trás de um minhocário de túneis financeiros por onde teriam escapado 2,5 bilhões de reais, captados de fundos de investimentos e de milhares de pequenos investidores que se consideram vítimas de uma arapuca. Os advogados de Marcus Elias discordam da tese: o controlador da LAEP não só seria inocente, como também vítima de uma armação engendrada por um “fundo abutre” interessado em destruir a empresa e se apropriar de suas fábricas.

Os fatos narrados a seguir foram obtidos a partir de relatos de fontes da cúpula da LAEP, confirmados por documentos privados — e-mails trocados entre advogados, executivos e acionistas minoritários —, além de entrevistas, materiais produzidos pela imprensa, arquivos pessoais e documentos públicos. A maioria das pessoas com que conversei preferiu o anonimato.

***

Marcus Alberto Elias não era um personagem da mídia quando fez seu primeiro milhão. Pouco mais de 15 anos haviam passado desde a promessa que tinha feito a si mesmo após a falência do pai, Mário, um contador que pilotava uma empresa de ônibus em São Paulo na década de 70. Elias jurou que iria ganhar dinheiro para nunca mais caminhar na penúria.

Foi com empregos no mercado financeiro que ele começou a levantar fortuna nos anos posteriores à expulsão do colégio por rebeldia, efeito psicológico da derrocada financeira da família.

Aos 30 anos, o segundo dos cinco filhos de um casal de imigrantes libaneses trocara a inquietação juvenil por uma vida de magnata.

Seu currículo sugeria o estereótipo do homem médio do mercado financeiro: graduado em Economia pela Universidade Mackenzie, Elias se apresentava como um dos fundadores de um grupo que gerenciava 225 milhões de dólares para investimentos na América Latina. A montanha de dinheiro em suas mãos se devia à experiência que o financista teria em cargos de gerência e direção de bancos como Credibanco, Pactual e SRL, com ênfase, como garantia seu currículo oficial, “na condução de reestruturações empresariais”.

Terno e gravata não eram, no entanto, suas roupas prediletas. O traje sport com o qual me recebeu no escritório de seu advogado nas imediações da Av. Paulista, em São Paulo, é seu estilo habitual, complementado costumeiramente por uma japamala, espécie de rosário budista de 108 contas que servem para marcar cada etapa de uma oração. Ao completar o percurso meditativo, reza a lenda, o discípulo alcança um estágio superior de consciência.

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Marcus Elias, em 2010, comemorando seu aniversário em uma bar em São Paulo. Crédito: Fred Chalub/Folhapress
Marcus Elias, em 2010, comemorando seu aniversário em uma bar em São Paulo. Crédito: Fred Chalub/Folhapress

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Elias não é adepto das japamalas por moda ou capricho. Em 2006, depois de vagar por religiões de diversos santos em busca de paz de espírito, o empresário conheceu o lama tibetano Gangchen Rimpoche, e não desgrudou mais da divindade: viajou com o líder espiritual por Tibete, Índia e Nepal, ouvindo seus conselhos e iluminações. A partir daquele momento, Marcus Elias passou a consultar o monge — uma reencarnação de um grande médico, segundo o budismo — antes de tomar qualquer decisão importante. “Ele é muito espiritualizado”, garante Fernanda Barbosa, amiga íntima de Elias.

[olho]Marcus Elias havia se tornado um habitué de festas, desfiles, inaugurações e jantares[/olho]

O empresário fez da religião parte fundamental de sua rotina. Em abril de 2008, um perfil de Elias publicado na Folha de S. Paulo dava ideia da vida que ele levava: meditação por volta das 6 horas da manhã, seguida da prática do tai chi chuan. Depois, atividades físicas corriqueiras: natação – 2.000 metros diários na piscina de casa –, esteira e musculação, acompanhado por seus três personal trainers.

As excentricidades conviviam bem com atividades mais mundanas. Diz a Folha:

“Marcus Elias pode ser visto quase todos os dias nos melhores restaurantes de São Paulo apreciando um dos mais de mil vinhos de sua adega — ele leva suas próprias garrafas — e está sempre vestindo grifes internacionais como Armani, Prada, Gucci e Ermenegildo Zegna. Fora do trabalho, não gosta de falar de negócios.

O som ambiente está sempre ligado em música popular brasileira. às vezes, promove festas em casa para os amigos. No seu aniversário, sempre contrata o MPB 4 para tocar. Entre obras de arte de pintores como Mário Gruber e enormes esculturas que trouxe da Tanzânia, é lá que ele pratica seu lado esotérico.”

O texto retratava um personagem já distante do anonimato comum às pessoas do mercado financeiro. Marcus Elias havia se tornado um habitué de festas, desfiles, inaugurações e jantares, seu rosto começava a ser exposto em sites de fofocas em meio à elite paulistana, ladeado quase sempre por jovens mulheres do mundo do entretenimento e das passarelas. A porta para a fama se abriu em meados de 2006, quando Elias comprou a operação brasileira da Parmalat, a maior e mais famosa marca de leite do país.

Fincada em dívidas, a Parmalat definhava em um escândalo financeiro bilionário envolvendo a matriz italiana. A operação no Brasil caminhava para o precipício levando junto milhares de credores quando Elias apareceu e arrematou o laticínio apresentando um plano de recuperação agressivo. Suas ideias para reerguer a Parmalat animaram o mercado. Em pouco tempo, a companhia voltaria aos intervalos comerciais mais caros da TV — e frequentaria as manchetes da imprensa nacional com uma série de acontecimentos inimagináveis.

Sentindo-se enganada pelo empresário, uma das fontes ouvidas para esta reportagem aponta Marcus Elias como a versão brasileira de Jordan Belfort, empresário americano autor de uma autobiografia que virou filme. “Você viu o Lobo de Wall Street? Marcus Elias é aquele cara. Ele é o nosso Lobo da Bovespa.”

O salvador da pátria

A principal anedota que circulou pelos corredores da Procuradoria de Milão sobre a quebra do laticínio italiano Parmalat seria contada pelos investigadores que tomaram a sede da empresa em dezembro de 2003: de paletó, gravata e sapatos lustrosos, os principais executivos da multinacional destruíam a golpes de marreta os teclados e monitores dos computadores da tesouraria, na esperança de eliminar provas.

São milhares as páginas da investigação que contam a história contábil da maior empresa leiteira do mundo para além do anedotário policial.

Com um plano de expansão planetário, no final dos anos 1990, sem o mercado desconfiar, o endividamento da Parmalat ameaçou explodir. Desesperados com a possibilidade de publicar um balanço negativo e sem ter de onde tirar recursos, os diretores partiram para uma saída engenhosa: resolveram fabricar dinheiro.

Diversos italianos compraram ações e títulos da empresa baseados em balancetes falsos emitidos pela companhia, muitos deles grosseiramente fabricados com tesoura, papel, cola e caneta nos salões da sede da empresa em Parma. O laticínio sangrou por dentro sem que ninguém notasse até que, no dia 17 de dezembro de 2003, um banco italiano descobriu que uma conta com 500 milhões de dólares depositados em Nova York – usados como garantia pela Parmalat para emitir novos papéis na Itália – não existia. Foi como apertar o botão do fim do mundo.

Pelos cálculos finais, o buraco nos cofres chegava a 3 bilhões de euros, capital que deveria estar no caixa da Parmalat, mas só existia nos documentos falsificados. Dinheiro inventado.

A catástrofe da Parmalat na Itália estremeceu o Brasil. Mais de 10 mil credores  —  muitos deles pequenos fornecedores de leite  —  esperavam receber 2,5 bilhões de reais da empresa, que começou a claudicar no mercado. Inerte, a fábrica brasileira operava em marcha lenta enquanto esperava nos tribunais de recuperação judicial por um salvador. Era a última instância antes do fim. A recém aprovada Lei de Falências, que pretendia evitar que empresas sumissem deixando dívidas impagáveis, teria na Parmalat do Brasil sua primeira grande cobaia.

Em maio de 2006, a LAEP, sediada nas ilhas Bermudas, se apresentou ao leilão do laticínio italiano como uma empresa de private equity altamente vencedora  —  seu currículo declarado incluía recuperação de companhias de diversos setores, de pescados a aluguel de carros. Era sua especialidade: comprar firmas em dificuldade, dar um rumo aos negócios e encontrar novos compradores quando as coisas endireitassem. Após analisada pela assembleia de credores, a proposta da LAEP venceria os concorrentes. A Parmalat do Brasil seria salva.

No comando do laticínio, Marcus Elias conseguiu um feito inédito: negociou um desconto de 83% com bancos credores, pagando o saldo à vista, em vez do parcelamento em 12 anos negociado antes da LAEP entrar na jogada. A dívida foi quitada quase integralmente com recursos da própria Parmalat, levantados com a venda da Batavo para a Perdigão, e de plantas usadas por uma unidade de tomates e vegetais, alguns centros de distribuição e fábricas de menor porte. Com a fome dos bancos saciada, ainda restavam os fornecedores de matéria-prima, mas Elias teria um plano para eles em um futuro não muito distante.

[olho]“Você viu o Lobo de Wall Street? Marcus Elias é aquele cara. Ele é o nosso Lobo da Bovespa.”[/olho]

Apesar do volume de dinheiro divulgado nas várias negociações passar da casa do bilhão, na prática a LAEP tirou do próprio bolso 20 milhões de reais para arrematar uma empresa que, mesmo em crise, havia lucrado 25 milhões nos seis primeiros meses daquele ano. Manobra de mestre.

O primeiro ano de Marcus Elias no comando da Parmalat foi, a julgar pelas notícias publicadas na imprensa, de lua de mel. Logo após arrematar o laticínio, Elias deu declarações públicas garantindo que novos investimentos seriam feitos, e que o objetivo da empresa era crescer 60%. A imagem da LAEP no mercado, passada por seus controladores em comunicados e entrevistas, era poderosa: o fundo teria à disposição 300 milhões de dólares, dinheiro que viria de investidores estrangeiros. Em poucos meses, Elias começou a mostrar resultados.

A participação da Parmalat no mercado de leites longa vida, antes na casa dos 6%, saltara para 12,7%, fazendo com que a empresa reassumisse a liderança perdida para a Elegê em meio à crise de confiança. A captação de leite aumentara, o número de clientes subia a cada mês, e o endividamento havia sido rebaixado a níveis mundanos, compatíveis com o tamanho da companhia. O custo de mão de obra caíra drasticamente por causa do enxugamento do número de funcionários a menos da metade em relação aos anos antes da crise. Com as medidas, o lucro da Parmalat reapareceu nos balanços, e a empresa finalmente via uma saída para a insolvência. Seus executivos acreditavam que o valor estimado da controlada LAEP, que até pouco tempo atrás era um atoleiro de dívidas, beirava os 600 milhões de dólares em 2007. Caso encontrasse um comprador, Marcus Elias teria feito o maior negócio de sua vida.

Mas Elias não queria encontrar um comprador. Seu objetivo era duplicar o número de fábricas, que eram sete, e transformar a companhia em uma superpotência do leite. A estratégia previa uma série de aquisições de indústrias menores e investimento pesado em genética animal, para melhorar a produtividade das vacas brasileiras. O grande salto seria dado naquele mesmo ano de 2007. Em vez de gastar os dólares que o fundo LAEP declarava ter em caixa, no entanto, a empresa recorreu ao mercado.

Em 26 de abril de 2007, a Parmalat Brasil emitiu papéis no valor de 180 milhões de reais para, segundo documentos da própria companhia, “capital de giro, realização de investimentos (incluindo a manutenção do parque fabril), pagamento antecipado de credores no âmbito do Plano de Recuperação Judicial e aquisição de maquinário e tecnologia”. O comprador desses debêntures — títulos de dívida que seriam pagos em 36 parcelas, com juros —  foi um fundo de investimentos do grupo Morgan Stanley. Caso não pagasse, a Parmalat cedia ao Morgan Stanley o direito a receber dívidas dos clientes do laticínio, no valor de 270 milhões de reais.

Com dinheiro em caixa, Marcus Elias foi às compras. Dois meses após a emissão dos debêntures, em julho, ele assinou um contrato de arrendamento da Cooperativa de Frutal, em Minas Gerais. O acordo valia por dez anos e incluía os bens utilizados na industrialização e envase de leite, além de imóveis e benfeitorias. Três semanas depois, o executivo assinaria mais dois contratos: compra de 52,3% da In Vitro, sociedade que produzia e comercializava embriões bovinos, e compra da Integralat Agro — 28 mil hectares de propriedade rural localizados na cidade de Bonito de Minas, também em Minas Gerais.

In Vitro e Integralat Agro eram controladas por uma firma fundada pela LAEP no final de junho daquele ano, a Integralat. O objetivo da empresa era investir em tecnologia para melhorar a bacia leiteira no Brasil, inclusive por meio de clones bovinos. À época, a LAEP divulgou que sua controlada Integralat tinha “cerca de 66 mil produtores espalhados pelas principais bacias leiteiras do Brasil”.

O apetite da LAEP gerou números grandiosos em manchetes, comunicados à imprensa e notícias positivas sobre o futuro da empresa. O arrendamento e as aquisições eram parte fundamental da preparação de terreno que Marcus Elias planejava para a segunda fase de sua administração. Ele recorreria novamente ao mercado em busca de dinheiro. Só que desta vez, o caminho seria a bolsa de valores.

Em outubro daquele ano, a LAEP abriria capital e atrairia milhares de investidores. Nada indicava que a chegada da companhia na bolsa seria o começo do fim.