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Quando São Paulo parou

Por que aqueles ataques aconteceram naquela fatídica semana de maio de 2006?

Os policiais estavam com medo, dentro de suas bases, esperando novos ataques ou novas instruções. O que viesse primeiro. Perto do meio-dia, os telejornais vespertinos passavam imagens dos ataques no dia anterior — nos bastidores, os produtores tentavam confirmar o boato de que um tiroteio teria acontecido em Higienópolis, bairro nobre no centro da cidade. Falavam sobre portas de universidades metralhadas. Histórias desencontradas.

A população estava assustada. Três em cada dez estudantes não foram às aulas na manhã daquele dia — e nada menos que 5,5 milhões de pessoas, aproximadamente metade da população da Grande São Paulo, não tinham como chegar ao trabalho por causa da falta de ônibus. Afinal, os motoristas também estavam apavorados. Da 25 de Março à Daslu, o comércio fechou antes do cair do sol.

Por volta das 18 horas daquela segunda-feira, 15 de maio de 2006, São Paulo era uma cidade fantasma.

Passados dez anos dos ataques promovidos pelo Primeiro Comando da Capital em maio de 2006, parece improvável que a facção repita uma ação coordenada capaz de paralisar o Estado, mobilizar todas as forças políticas e deixar um rastro de mortes — foram 493 em nove dias, de acordo com o Instituto Médico Legal. Desde então, especialistas e autoridades buscam entender a motivação dos ataques, com opiniões divergentes.

Uma pesquisa inédita, porém, traz evidências que apontam um novo caminho para compreender por que o PCC resolveu parar São Paulo. E a explicação tem a ver com a queda nos índices de criminalidade. A partir de dados do Disque-Denúncia e da Secretaria de Segurança Pública do Estado, dois economistas e um sociólogo encontraram indícios fortes de que o PCC aproveitou o levante de 2006 para expandir seu domínio territorial sobre as favelas paulistanas.

 

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“Tudo isso não passa de ficção. Em São Paulo, não existe crime organizado”, disse o então secretário de Segurança Pública, Benedicto de Azevedo Marques, em maio de 1997. Ele havia sido confrontado com um suposto estatuto do PCC, divulgado à época. Essa é outra mudança perceptível: após os ataques, declarações de autoridades buscando diminuir o poder da facção praticamente sumiram. Ninguém duvida da autoridade de Marco Willians Herbas Camacho, nome completo de Marcola, chefão do PCC que começou sua carreira criminosa aos 10 anos de idade e hoje, aos 48, é o bandido mais influente do país à exceção de alguns políticos.

Em todos os presídios pelos quais passou, distribuídos por cinco Estados e o Distrito Federal, Marcola causou preocupação às autoridades. Em maio de 2006, o governo paulista decidiu transferir o detento a um presídio de segurança máxima no interior do Estado, no qual seria submetido ao regime disciplinar diferenciado — sem direito a TV, rádio, livros e jornais e com apenas duas horas diárias de banho de sol.

Não saiu como planejado.

Simultaneamente ao início da transferência de 735 presos, que segundo o governo seriam ligados ao PCC, a facção pôs em execução um plano para instaurar o terror em São Paulo. “A ordem para os ataques já tinha sido dada antes de a remoção dos presos ser efetuada”, afirma o procurador de Justiça Criminal Márcio Christino, um dos pioneiros no Ministério Público de São Paulo a investigar o PCC. Uma versão divulgada, mas jamais confirmada, dava conta de que os ataques seriam um revide por Marcola ter sido extorquido por policiais corruptos, sem qualquer relação com as transferências. “A remoção dos presos foi efetuada para tentar evitar que as ordens fossem cumpridas, ou seja, para tentar pressionar ou segurar os atentados”, acrescenta Christino. Os primeiros ataques ocorreram na periferia paulistana e na Grande São Paulo na noite do dia 12 de maio, sexta-feira pré-Dia das Mães, somados a três rebeliões em penitenciárias no interior. Como quem não quer nada, o caos entrou pela porta da frente, puxou uma cadeira e se fez presente, especialmente na capital.

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No sábado, Marcola e outros líderes do PCC chegaram à sede do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), onde deveriam ficar incomunicáveis por até 20 dias, antes de serem finalmente levados à prisão de segurança máxima de Presidente Bernardes. Enquanto isso, lá fora, o levante foi escancarado: ocorreram 63 atentados em 23 cidades, deixando 25 agentes públicos mortos — policiais militares e civis, agentes penitenciários e guardas municipais. À noite, o delegado Godofredo Bittencourt, diretor do Deic, se reuniu com Marcola na tentativa de negociar uma saída. “Agora é tarde”, retrucou o bandido, segundo uma das testemunhas do encontro. Na tentativa de responder à altura, a cúpula do governo paulista se encontrou, já durante a madrugada, para traçar estratégias. O secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, definiu a tática que considerava ideal: “Distribua os armamentos de grosso calibre e vamos partir para cima”, ele afirmou, segundo se recorda o advogado Nagashi Furukawa, então titular da pasta de Administração Penitenciária presente na reunião.

O Dia das Mães passou com a certeza de que a efetividade da Polícia Militar havia aumentado. Ao passo em que o PCC expandiu sua tática de terror, com 80 presídios paralisados a mando da facção e 156 atentados realizados, as mortes causadas pelas ações diminuíram em comparação aos dias anteriores. E, naquele dia, diversos suspeitos foram mortos em combate com a PM. Segundo as informações coletadas nos boletins de ocorrência daquele período, o Dia das Mães apresentou o pico de mortes durante toda a crise — 107 civis foram mortos a tiros num único dia, no Estado de São Paulo.

Na segunda-feira, escolas e comércios fecharam, menos ônibus circularam e a capital paulista ficou deserta. Numa época em que os celulares cumpriam principalmente sua função inicial, as ligações telefônicas em São Paulo atingiram seu recorde histórico. A população, aterrorizada, buscava informações confiáveis em meio a um sem-fim de boatos e das respostas lacônicas do governo paulista. Os ataques e rebeliões cessaram na terça-feira, dia 16, mas mortes ligadas ao levante ocorreram pelo menos até o dia 20. As estimativas de vítimas no período variam de 493, número adotado pelo IML com base em laudos necroscópicos, a 564, quantidade calculada pelo sociólogo Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com base em boletins de ocorrência.

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A possível ação de agentes públicos em grupos de extermínio, durante o período, foi investigada, mas ninguém foi denunciado. O Ministério Público requisitou à PM, judicialmente, os registros dos pedidos de checagem de antecedentes criminais feitos por policiais no período dos ataques. O objetivo era descobrir se algum dos civis mortos e com indícios de execução tiveram seus antecedentes consultados. Em resposta à Justiça, o coronel Ailton Araújo Brandão, comandante da PM à época, disse que o sistema “parou de funcionar por problemas de desgaste natural pelo uso, não mais gravando as comunicações do Centro de Operações da Polícia Militar”. Christino, que tentou investigar o caso pelo Ministério Público, encontrou a mesma situação. “Nós chamamos o fabricante, pedimos para ele fazer uma perícia, e o fabricante disse que havia um defeito na máquina, uma tomada que tinha saído.”

Para Fernando Delgado, advogado e professor de direito na Universidade Harvard, “o Estado tomou uma postura de revide, que teve fortes indícios de execuções sumárias e envolvimento de autoridades estatais em grupos de extermínio”. Ele coordenou uma pesquisa que analisou causas e consequências para os ataques do PCC. Além de equívocos na política prisional e a corrupção de agentes públicos, Delgado aponta a resposta do governo aos ataques como um dos erros cometidos. “Esse revide seria ilegal e não contribuiria para a segurança pública, pelo contrário, alimenta-se um ciclo de violência que está instalado”, argumenta o advogado.

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Para entender como o PCC foi capaz de executar uma ação articulada de tamanho porte — que ocorreu, lembre-se, com boa parte de seus líderes sob guarda 24 horas da Polícia Civil — é necessário, antes, compreender a origem da facção. A célula inicial do Primeiro Comando da Capital foi formada, em 1993, no anexo da Casa de Custódia de Taubaté, local notório tanto por abrigar detentos perigosos como por suas más condições de habitação. O estado precário do Piranhão, como os detentos chamavam o presídio, foi uma das justificativas para a criação do PCC. Sob o mote “liberdade, justiça e paz”, presente em seu estatuto, a facção dizia lutar “contra as injustiças e a opressão dentro das prisões”.

Conforme os membros fundadores foram transferidos para outras cidades, o PCC se difundiu no sistema prisional. Idemir Carlos Ambrósio saiu do Piranhão em 1994. Mas Sombra, como era conhecido um dos oito integrantes iniciais do PCC, continuou no sistema prisional paulista, transferido para Araraquara. “Com seu espírito de liderança, conquistou rapidamente dezenas de adeptos”, escreve o repórter Josmar Jozino, no livro “Cobras e Lagartos: A Vida Íntima e Perversa nas Prisões Brasileiras”, em que narra a história do Primeiro Comando. “Por ser o primeiro batizado da facção, Sombra sempre teve o direito de batizar novos ‘soldados’ e de dizer quem era ou quem não era ‘irmão’.”

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Passaram-se anos e o PCC manteve-se abaixo do radar das autoridades, crescendo por meio de “batizados” feitos entre “irmãos”. As primeiras menções à facção na imprensa datam de 1997, quatro anos após seu surgimento, e aparecem com pouca frequência. Desde então, as principais fontes de renda do grupo mantiveram-se as mesmas: mensalidades de integrantes — tanto dos que estão presos como dos que estão soltos —, crimes de oportunidade (como roubos a banco e sequestros) e, principalmente, tráfico de drogas. A expansão territorial do PCC aconteceu em duas direções: para dentro das prisões e para cima das bocas de fumo paulistas. De modo geral, em troca de uma parcela dos negócios, o PCC fornece segurança para seus membros. E segurança, quando se atua em um mercado ilegal, é um bem muito importante. Assim, a receita do PCC só fez aumentar desde que a facção foi criada. O procurador Christino estima em “alguns milhões de reais” a receita mensal deles atualmente.

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Especialistas e autoridades concordam que a estrutura capilar estabelecida durante mais de uma década pelo PCC foi crucial para a eficiência do levante, em maio de 2006. As interpretações para entender o que a facção ganhou com os ataques, no entanto, variam. Logo após os atentados, o governo de São Paulo continuou sob críticas pelo descontrole nos presídios do Estado. Uma das respostas foi a demissão do secretário de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, e a nomeação de Antônio Ferreira Pinto, mais alinhado ao titular da Segurança Pública, como seu substituto. Ex-promotor e ex-policial militar, Ferreira Pinto era visto como linha-dura, e a primeira medida de sua gestão determinou que amotinados que destruíssem suas celas não fossem transferidos a outros presídios.

“Com isso, eles entenderam a mensagem de que eram apenas manobrados pela facção, porque os presídios ocupados pelas lideranças sempre permaneceram inteiros, e eles nunca perderam um dia de visita, nunca perderam um dia de sol”, afirma o ex-secretário, hoje aposentado. Ferreira Pinto acredita que os líderes do PCC exercem sua influência para tornar os membros de baixo escalão meros peões, sujeitos somente aos interesses dessas próprias lideranças. Seria uma forma de buscar legitimidade, o que o ex-secretário rechaça. “Nunca nós os dignamos a conversar com eles, bandido é bandido e polícia é polícia”, ele afirma. “Eles não têm status nenhum”, posiciona-se.

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O procurador Christino argumenta no mesmo sentido, mas reconhece que o PCC conseguiu seu lugar à mesa de negociação. “Muito embora eles não tenham nenhum lucro, nenhum ganho patrimonial, eles tiveram um ganho político muito grande, porque se lançaram como uma entidade influente socialmente”, afirma o membro do Ministério Público. A destruição dos presídios, para Christino, também teve influência na definição dos ataques: “O que o PCC pretendia naquela época era inutilizar o presídio que não fosse do agrado deles, para que ele fosse desmobilizado e não fosse mais usado”.

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Uma pesquisa inédita traz dados que sugerem outro motivo para a facção ter realizado os ataques: expansão territorial. O economista João Manoel Pinho de Mello, professor do Insper, investigou a hipótese em parceria com o economista Ciro Biderman e o sociólogo Renato Sérgio de Lima, ambos professores da Fundação Getulio Vargas. A partir de bases de dados do Disque-Denúncia e da Secretaria de Segurança Pública paulista, à qual Mello teve acesso durante uma pesquisa financiada pelo Banco Mundial, o trio estudou como o PCC expandiu seu território nas favelas em São Paulo.

Antes dos ataques, a facção estava presente em pouco mais de 40% das favelas paulistanas, aproximadamente, índice que saltou para mais de 70% até o fim de 2006 — e manteve crescimento estável até pelo menos o fim de 2009, até onde vão os dados da pesquisa. A partir de menções à facção em ligações do Disque-Denúncia e aos dados do governo, os pesquisadores foram capazes de estabelecer uma linha do tempo comparando a entrada do PCC em determinado local e uma possível influência nos índices criminais de lá.

No mesmo período, a tendência geral das ocorrências de tráfico e de porte de entorpecentes foi de queda. Entre 2013 e 2015, de acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública, ambos os tipos de ocorrência variaram pouco: apresentaram queda em 2014, em comparação ao ano anterior, e subiram em 2015, para patamar equivalente ao inicial. O Risca Faca solicitou ao governo de São Paulo uma entrevista com o secretário de Governo, Saulo de Castro Abreu Filho — titular da Segurança Pública durante a crise de 2006 —, para falar sobre o PCC, mas o pedido foi negado.

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Para o ex-secretario Ferreira Pinto, o sucesso comercial do PCC é resultado de uma política de combate às drogas que deixou de atrapalhar: “A facção ganha muito dinheiro no tráfico. Por que eu, pertencente à facção, vou atentar contra o Estado, se o Estado não me incomoda?”, ele critica. Mello, do Insper, coloca o mesmo argumento em outras palavras, a partir de outra perspectiva: “Se o poder público está disposto a ser cínico o suficiente para conviver com o tráfico de drogas, ótimo”, resume o economista.

Esse é um dos mais delicados temas relacionados ao crime organizado. Afinal, uma facção é capaz de atuar por conta própria a fim de diminuir os índices criminais? “O que a gente estima é que o PCC, ao entrar numa favela, comparado com uma favela onde ele não está, causa uma queda nos crimes violentos — homicídio, agressão e homicídio culposo”, afirma Mello em seu escritório na faculdade, buscando uma resposta científica ao problema. “Só que a gente não encontra nenhum efeito sobre crimes contra o patrimônio, que inclusive era mais fácil de encontrar, porque crime contra o patrimônio é uma coisa comum.”

Ele cogitava duas hipóteses para explicar a queda nos índices: a da competição, na qual os crimes violentos caem simplesmente porque o PCC deixa de ter adversários, e a da justiça, na qual o PCC assume o papel de provedor do bem público no lugar do Estado. Como apenas os crimes violentos apresentaram queda, Mello pende a confirmar a primeira hipótese.

O Primeiro Comando da Capital jamais repetiu uma mobilização tão grande quanto a realizada há dez anos. Por quê? “Dentro do paradigma proibicionista, a evidência que está sendo construída é que é melhor enfrentar um grupo só”, analisa o economista. Em outras palavras, enquanto as políticas antidrogas não mudarem, tende a ser melhor para o governo enfrentar um PCC só, em vez de vários cartéis, como ocorre no México. Além disso, a facção conseguiu se manter sem dissidências. “É simples, a liderança que está prevalecendo hoje é uma liderança forte, que está conseguindo se manter”, afirma Christino.

A pesquisa de Mello, do Insper, vai no mesmo sentido. O estudo mostra que há formas de diminuir os crimes causados pelo comércio ilegal de drogas, sem necessariamente acabar com o tráfico. Por exemplo, incentivando a venda apenas em lugares fechados, como bares, para tirar traficantes das ruas, onde tiroteios são mais prováveis. Ou, como cantaram os Racionais MCs: “O movimento dá dinheiro sem problema, e o consumo tá em alta como manda o sistema”.

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