“Eu nunca posei para tantas selfies com outros fotógrafos.” É o que conta o fotógrafo americano David Burnett, que viralizou, durante as últimas semanas, involuntariamente nas redes sociais. Ele, que já cobriu revoluções e guerras, presidentes e anônimos, esteve em 11 olimpíadas. Mas em nenhuma trocou o papel de observador para observado como na Rio 2016.
Ele aparece em uma foto que rodou a internet nas semanas dos Jogos. É um registro de bastidores, da zona dos fotógrafos em uma das competições. Não é possível saber qual a modalidade, mas uma coisa logo se destaca: um fotógrafo de cabelos brancos aparece no centro da imagem, compenetrado no seu trabalho e munido apenas de uma câmera antiga, destoando totalmente de seus colegas que carregam câmeras ultramodernas.
Não é de hoje que David aposta em máquinas fotográficas analógicas para registrar as Olimpíadas. Ele tem utilizado uma sexagenária câmera Speed Graphic desde os jogos de Atenas, em 2004. E também para registrar outro emblemático evento que acontece de quatro em quatro anos: as eleições presidenciais dos Estados Unidos.
“Há uma sensação especial que se passa com as imagens que você tira com essa câmera. É bem diferente da sensação passada pelas câmeras digitais menores, e é o que eu gosto, pois remete a uma época mais antiga e também a uma interpretação pessoal minha”, conta, em entrevista ao Risca Faca.
É visivelmente pessoal a abordagem das fotografias de David em sua cobertura esportiva. São registros de etapas quase diametralmente opostas: os momentos de extrema ação e os de calmaria antes dos eventos. Ambos compõem um de seus livros – “Man Without Gravity” – e podem ser vistos nas fotos dos jogos do Rio 2016 em seu Instagram.
David diz apreciar os instantes de alta tensão, mas que também acha que os de silenciosa reflexão são talvez tão importantes quanto. Para ele, nenhum atleta passa 100% do tempo correndo. Eles pensam em um plano de como vão atuar e são nesses pontos em que surgem as possibilidades de fotos que estão além dos simples registros de ação.
“Eu não sei se isso é aplicável para todos, mas eu procuro por fotos que vão trazer uma reação humana. Algo com personalidade, moção, drama ou até mesmo uma bela composição. São coisas que podem trazer ao espectador a um novo nível de apreciação.”
Uma foto publicada por DavidBurnettFoto (@davidburnettfoto) em
Nas horas entre seus cliques, David tem observado os jogos no Rio. Ele, que já esteve no Brasil antes, conta que sua maior decepção com a organização foi com a comida das arenas e centros de competição. “Sei o quão gostosa e vibrante é a culinária brasileira, até com pratos simples. Então só ver pão e queijos é um pouco desapontador. A boa notícia é que ainda existem centenas de ótimos restaurantes na cidade.”
No último dia das Olimpíadas no Rio de Janeiro, a repercussão dos jogos começa ser evidente. As obras bilionárias foram entregues e a organização foi posta à prova. A cidade viveu momentos de glórias e tensão. Mais do que isso, foram escritas histórias: as consagrações e decepções dos atletas. De Isaquias, Rafaela, Thiago, Phelps e Bolt. Mas também de Lochte e Lavillenie. David e sua Speed Graphic estiveram lá para registrá-las.
As Olimpíadas do Rio de Janeiro seguiram a mesma tendência que David observou nos últimos trinta anos. Para ele, é normal que questões organizacionais comecem um pouco complicadas e acabem por se resolver no decorrer das semanas.
E apesar da cobertura alarmante da imprensa internacional e de casos de roubo de equipamentos de outros fotógrafos – que basicamente os impossibilita de cobrir os jogos – David disse ter aproveitado ao máximo sua estadia. “Eu certamente não me senti em perigo ou preocupado e só tive experiências positivas, uma atrás da outra. Fossem elas nas cafeterias ou ônibus da imprensa. No Brasil você pode ir bem longe com um jóia e bom dia, e eu acho que isso ficou evidente nas últimas semanas”, opina.
As décadas de fotorreportagens olímpicas também permitiram que David presenciasse as transformações ocorridas nas cidades-sede. O fotógrafo explica que é difícil saber qual será o impacto em longo prazo. Mas algo que quase sempre acontece é “que há um senso de autoria e propriedade [sobre a realização dos jogos na população local] que acaba sendo positivo, mesmo que apenas em um nível psicológico. E isso é o mais importante.”
Levando em conta a situação política da cidade – que, para além da crise nacional, encara um estado que decretou falência – isso se torna ainda mais essencial. “No fim das contas, eu vi muita positividade entre os cariocas e os visitantes, e em um tempo politicamente tão difícil, eu espero que isso traga um pouco de esperança no futuro para os brasileiros”, diz.
Agora, quase se despedindo do Rio de Janeiro, David continua sendo alvo de muita atenção dos colegas. Um dos poucos fotógrafos a usar câmeras antigas, ele recebe cumprimentos e tapinhas no ombro de outros profissionais da imprensa. “Acho que isso indica que apesar de obrigados a usar câmeras digitais, eles [os colegas] acham ótimo alguém tentar conseguir um visual fotográfico old school. Isso foi muito gratificante.”
Imagem do topo: foto de David Burnett da prova de mergulho em Barcelona, 1992.
Ainda estamos em agosto e quatro filmes com um monte de super-heróis lutando juntos (ou uns contra os outros) já deram o ar da graça nas salas de cinema. A série começou com “Capitão América: Guerra Civil”, que colocou dois grandes grupos de heróis em lados opostos: um lado a favor do controle de suas atividades pelos governos e outro contra. Depois, veio o “Batman vs Superman”, que começa como um embate entre os heróis (como o título já diz) para depois uni-los, ao lado da Mulher Maravilha, contra uma ameaça comum.
Pouco tempo depois, foi a vez de “X-Men – Apocalipse”. Bem, filmes dos X-Men sempre têm mais de um super-herói, né. Então nesse também tem briga: de um lado, os discípulos do professor Xavier e, do outro, o todo poderoso Apocalipse e seus quatro capangas, entre eles Magneto e Tempestade. Por último, estreou o aguardado “Esquadrão Suicida”, que variou um pouco o padrão ao transformar em heróis uma equipe de vilões.
E se botássemos todos esses filmes de heróis contra heróis uns contra os outros? Quem sairia ganhando e quem sairia perdendo? Bem, depende do critério…
(Este texto tem spoilers dos quatro filmes.)
Pior vilão: Magia (“Esquadrão Suicida”)
Lex Luthor pode ter tido um plano absurdo, mas pelo menos ele parou para fazer um plano — Apocalipse, de “X-Men”, e Magia, de “Esquadrão Suicida”, queriam apenas dominar o mundo, assim genericamente mesmo. Mas entre os dois a disputa é acirrada. Apocalipse parece um inimigo dos Power Rangers e tem péssima noção de prioridades: gastou um tempão melhorando o visual de seus quatro capangas e perseguindo o professor Xavier quando poderia ter pensado num plano melhor. Magia passa boa parte do filme rebolando num cenário apocalíptico, falando com uma voz de monstro e criando um portal no céu para destruir o mundo de alguma forma. Chato e clichê. Apocalipse tem um pouquinho mais o que fazer em seu filme e, por isso, é levemente melhor que Magia.
Melhor cena de luta: batalha do aeroporto (“Capitão América”)
Uma boa batalha é bem mais que muitos socos e bons efeitos especiais. Precisa de um propósito, de consequências, de emoção, de variedade, de cada um dando seu melhor. A batalha entre os times do Homem de Ferro e do Capitão América em “Guerra Civil” teve tudo isso. E mais: com humor, cortesia do Homem Formiga e do Homem-Aranha. O ponto alto de um filme muito bom.
Melhor novo personagem: Homem-Aranha (“Capitão América”)
Mais um ano que chega, mais um Homem-Aranha no cinema. Depois de Tobey Maguire e Andrew Garfield era compreensível que a nova encarnação do herói fosse encarada com ceticismo ou preguiça. Mas nos poucos minutos que fica em cena Tom Holland diverte mais que “Batman vs Superman”, “Esquadrão Suicida” e “X-Men” juntos.
Maior esperança feminina: Mulher Maravilha (“Batman vs Superman”)
“Capitão América” não só não introduziu nenhuma boa heroína como continua não dando a atenção que a Viúva Negra merece — a personagem de Scarlett Johansson não tem muito o que fazer no filme. Arlequina, apesar de ser uma das presenças mais marcantes de “Esquadrão Suicida”, tem um relacionamento abusivo com o Coringa (fato que o filme não discute) e ainda tem o tempo todo uma câmera grudada em sua bunda. Jean Grey parecia promissora, mas é completamente esquecível. Quem tem mais potencial para se tornar uma boa personagem em outros filmes é a Mulher Maravilha de Gal Gadot. Sim, ela aparece pouco (e aparece fazendo coisas triviais como sacar dinheiro). Mas mesmo assim foi um dos pontos altos do filme — e o trailer de seu longa solo dá margem para otimismo.
Plano mais absurdo: Lex Luthor (“Batman vs Superman”)/Amanda Waller (“Esquadrão Suicida”)
Empate técnico. O plano de Amanda Waller, de “Esquadrão Suicida” é pura burrice. Formar um time de vilões presos por super-heróis como Batman e Flash não faz sentido por vários motivos. Não havia ameaça e, caso houvesse, os tais heróis como o Batman poderiam ajudar. Na hora do vamos ver o Batman e o Flash seriam bem mais úteis que o Capitão Bumerangue, cujo poder, pelo que o filme mostra, é jogar um bumerangue com precisão. Todo o problema do filme, aliás, só acontece porque Waller resolveu se manter onde não devia. Já o plano de Lex Luthor requer que tantas etapas deem certo para que seu objetivo seja atingido que é absurdo pensar que poderia dar certo. E seu plano envolve colocar urina num pote. Sem pé nem cabeça e nojento. Empate.
Maior desperdício de ator: Oscar Isaac (“X-Men”)
Oscar Isaac é um bom ator faz tempo, mas está tendo um ótimo ano pós-lançamento de “Star Wars”: a internet está toda apaixonada por ele. Escalá-lo como vilão de “X-Men” parecia uma escolha perfeita. Mas não só esconderam o ator sobre camadas e camadas de maquiagem e próteses que o deixaram com uma aparência tosca, como lhe deram o pior vilão possível (é o que parecia antes de “Esquadrão Suicida”, pelo menos). Poderia ser qualquer um no seu lugar, não faria diferença.
Resolução de conflito mais tonta: Momento Martha (“Batman vs Superman”)
Virou piada. Depois de passarem um tempão brigando por um motivo absurdo (Superman não gosta do Batman porque ele é um justiceiro que não respeita leis e Batman acha que o Superman pode fazer muito mal às pessoas caso queira — como se as duas coisas não valessem para os dois), eles ficam amigos ao descobrirem que suas mães têm o mesmo nome: Martha. Beleza então.
Maior surpresa: Ben Affleck (“Batman vs Superman”)
Ben Affleck pode ter ficado triste com o resultado do filme no qual apostava tanto, mas tem um motivo para se alegrar: sua interpretação do Batman era um dos elementos menos ruins num filme ruim.
Maior “bromance”: Bucky e Steve (“Capitão América”)
Se o último “X-Men” fosse um filme melhor, Magneto e professor Xavier poderiam ser bons concorrentes para Bucky e Steve, de “Capitão América”. Mas infelizmente eles mal interagem e a química entre James McAvoy e Michael Fassbender é desperdiçada. Por outro lado, a maior sintonia em “Capitão América” é entre os dois amigos (esqueça o romance entre Steve e Sharon). O filme todo é uma ode à relação dos dois e mostra o quanto o Capitão América está disposto a sacrificar pelo amigo.
Personagem menos explorado: Anjo e Psylocke (“X-Men”)
A lista de concorrentes é grande. Por “Esquadrão Suicida”, Capitão Bumerangue e Crocodilo são fortes oponentes. Cada um tem meia dúzia de falas e nenhuma motivação. Bumerangue é tão inconsistente que em uma cena abandona o grupo e na seguinte está com eles sem explicar por que mudou de ideia. O Crocodilo praticamente entra mudo e sai calado, mas tem uma piada ali no meio, pelo menos. Sabemos também que eles são criminosos, que Crocodilo gosta de TV e que Bumerangue gosta de unicórnios de pelúcia. De Anjo e Psylocke, de “X-Men”, não sabemos nada. Quem são? O que querem? Onde vivem? Puro mistério.
“Nunca soube o que queria ser quando crescer e, até hoje, não sei”, disse Elke Maravilha aos 70 anos, em 2015, em entrevista ao Extra. Elke, que morreu na madrugada da última terça (16), aos 71 anos, foi um pouco de tudo na vida: tradutora, professora, modelo, atriz e jurada em programas de televisão, como o do Chacrinha. Na vida pessoal tampouco era convencional. Nascida na Rússia com o nome Elke Georgievna Grunnupp (o Maravilha veio de um jornalista), teve a cidadania cassada. Também perdeu a nacionalidade brasileira ao ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional, depois de passar seis dias presa por desacato na época da ditadura. Apátrida, viajava com um passaporte da ONU e morreu alemã, como sua mãe.
Elke não tinha problemas em falar de política, drogas ou sexo. Disse em entrevista que fumou crack, contou ao mundo todo que abortou três gestações, casou-se oito vezes e, quando lhe perguntavam se era travesti, respondia que sim e ainda perguntava se queriam ver seu pau. Entendia porque perguntavam se ela era uma drag queen: dizia que mulheres pedem sempre “menos” nos salões de beleza, e travestis pedem “mais”. Mais maquiagem, mais volume, mais tudo. “Então, eles veem uma pessoa que é mais… Tem que ser homem.”
Mesmo quem não sabe detalhes de sua história sabe que Elke era artista — assim mesmo, de forma ampla — e que tinha um visual único, reconhecível à distância. Sua imagem foi eternizada nos anos 70 pelas lentes de David Drew Zingg, fotógrafo de quem ficou amiga quando trabalhava como modelo. “O David enxergava a alma da gente”, disse Elke. “Ele tinha um humor deslumbrante. Viajávamos para Búzios e ficávamos dias enchendo a cara e rindo juntos.” Zingg fotografou Elke como Marilyn Monroe e também com seu visual característico: cabelos loiros volumosos, esvoaçantes e alegre, como ela sempre será lembrada.
As imagens foram cedidas com autorização pelo IMS.
Repousando sobre a relva fofa na sombra do que parece ser uma mangueira apinhada de enormes pêras verdes, Helton Josué Teodoro Muniz toma um punhado de folhas secas na mão como se estivesse erguendo uma batuta. “A natureza funciona como uma orquestra”, ele diz. “Tudo deve ter seu tempo para que o equilíbrio seja alcançado. Se todos os instrumentos tocarem juntos sem harmonia, vira uma zorra.”
Da mesma forma, cada árvore em sua fazenda espera preguiçosamente por sua época de frutar. A variedade é palavra de ordem. Helton caminha por seu pomar como quem dubla Alceu Valença em uma estrofe de “Morena Tropicana”. Sapoti, juá, jaboticaba… Mais de 1.200 espécies de frutíferas convivem pacificamente pelos três hectares. O número deve aumentar com mais 150 variedades que ele planeja semear. Sentado em seu trono forrado de grama-amendoim, ele é o maior frutólogo do Brasil.
As estradas de terra que levam ao Sítio Frutas Raras, em Campina do Monte Alegre, são de um tom ocre-avermelhado. Os pneus voltam de viagem tingidos de uma cor quase de urucum. Se as árvores de Helton são frondosas e fecundas, é muito por causa deste chão chamado latossolo, com traços de areia e argila. A combinação é altamente fértil, e foi uma das responsáveis pela bonança dos barões do café do oeste paulista no século 19. A vegetação que recobre as terras de Helton, dando-lhes um aspecto almofadado, também é grande responsável pelo vigor das mudas livres de agrotóxicos e adubos químicos. A grama-amendoim fixa o nitrogênio no solo, colaborando para a nutrição das raízes, e retém umidade sob suas minúsculas folhas. Na época da roça, a cada três ou quatro meses, pode chegar a 40 centímetros, formando um espesso carpete esverdeado que se estende pela propriedade.
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Helton não nasceu ali – é de Piracicaba. Quando veio ao mundo, o oxigênio demorou a chegar em seu cérebro e lhe causou uma disfunção neuromotora. O que os médicos chamam de hipóxia neonatal só lhe permitiu andar ao cinco anos, com a ajuda da fisioterapia. Em sua vida adulta, o quadro compromete alguns movimentos minuciosos e lhe confere certa dislalia, dificuldade em articular sílabas, mas não causa outros impedimentos, não é degenerativo e não afeta seu tempo de vida. Junto à natureza, ele encontrou um estilo de vida que não o limita. “Até quem não tem problema de saúde se sente melhor perto da natureza. Ela é a maior expressão do amor de Deus. Se você trata uma planta com amor, ela vai te retribuir. Da mesma maneira, se você a trata com desleixo, ela vai murchar.”
Helton tem 36 anos. Após viver 14 anos na vizinha Angatuba, mudou-se para o sítio dos avós em 1995, onde permaneceu. Na cidade às margens do rio Paranapanema, os pescadores se embromavam nos cipós que pendiam sobre a correnteza para colher perinhas-do-mato. Era o saputá, como Helton viria a descobrir em sua adolescência, exasperado com o novo mundo de sabores que se descortinava a sua frente. “Como é possível existir tanta fruta e eu só comer laranja e banana?”, ele se inquietava enquanto folheava dicionários em busca de novos nomes ou conversava com senhores sabidos sobre a flora local.
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A primeira semente que plantou veio do saputá. E vingou de primeira? “Claro!”, ele replica em tom de obviedade, com o olhar sereno de quem nunca esqueceu de aguar um vasinho de suculentas. O Viveiro Saputá, erguido ao lado de sua casa, foi batizado a partir daquela que lhe deu o gosto pela fruta. As mudas crescem sob o olhar atento de Helton e de sua esposa Emilene Muniz, que o conheceu em um congresso de Testemunhas de Jeová. A equipe conta ainda com dois funcionários. Os pais são vizinhos de poucos metros. Os habitantes mais recentes são Billy, Polly e Nina, cachorros que recebem os visitantes distribuindo lambidas em troca de cócegas na barriga.
Há alguns meses, Helton não agenda mais os tours de três horas que oferecia a R$ 20, normalmente terminando com degustações das frutas da temporada. O sítio se mantém agora através da venda de mudas, que custam em média R$ 25, e de seus dois livros, “Frutas do Mato” e “Colecionando Frutas”, onde dá instruções de plantio e cataloga suas espécies. Uma terceira publicação está sendo escrita em sua biblioteca, que fica anexa à cozinha da casa, onde uma estante de metal guarda diversos potes transparentes cheios de grãos.
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“Você coloca dinheiro em banco para render. Da mesma forma, meu banco de sementes tem a finalidade de produzir mais plantas.” Para ele, sementes são mais valiosas que tesouros – afinal, cem gramas de ouro não conseguem gerar mais metal precioso. “Isso faz com que eu tenha filhos, netos e bisnetos aqui no pomar. Essas grandes empresas que armazenam sementes têm de pensar também na reprodução. Mas talvez seu interesse não seja guardar, mas ter o monopólio de uma espécie.”
Seus embriões vegetais chegam por correio de colaboradores que possui pelo Brasil afora. A maioria das plantas são nativas do Brasil. Só da região, são 250 espécies. As estrangeiras contam 300, fazendo com que, no pomar, cactos frutíferos encontrados na caatinga brasileira fiquem a poucos passos de um pé de santol, fruta nativa da Malásia. A oferta fácil de sementes, polpas e bagaços atrai quatis, tatus, cotias, capivaras e 120 espécies de aves — Helton afirma que, quando começou o cultivo há dezoito anos, não somavam nem 40.
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O agricultor também aproveita até o caroço o banquete do qual é dono. Como nem toda fruta é boa para comer do pé, algumas são destinadas a chás, geleias, sucos e doces. Sua preferida é o guaimbé, de origem mexicana, cujo gosto ele jura lembrar uma mistura de banana e abacaxi. Helton reivindica para si a criação do doce de azeitona, que, note, não é doce de oliva. “Qual o fruto da oliveira?” Ao se deparar com uma resposta tímida, ele dispara. “É a oliva! Azeitona não é oliva, é o fruto do azeitoneiro!”, diz ele quase irritado, emendando à constatação uma aula sobre as diferenças entre leguminosas, frutas e grãos.
Sua vontade de tornar conhecidas as mais de 4 mil espécies de frutos comestíveis do Brasil lhe atribui um tom ativista. Junto à estação ecológica de Angatuba, ele agora procura patrocinadores para um projeto de cadastramento e instrução de família agricultoras. A intenção é ensinar o cultivo e venda de produtos de origem vegetal, semeando o conhecimento adquirido em uma vida de pesquisa, prática e observação. O título de botânico, para Helton, é mais honorário que acadêmico. “Eu não tenho diploma. Diploma é gostar do que se faz, é se dedicar”, conclui. “Quando alguma pesquisa minha dá resultados, as pessoas me pedem para citar fontes. A fonte é o que eu observei da natureza. A fonte sou eu!”
No primeiro dia das Olimpíadas, centenas de policiais ocupavam a Praça Afonso Pena. Vestidos em armaduras, com armamento pesado e montados em cavalos, eles cumpriam parte do extenso plano de segurança elaborado para o evento. O destacamento fazia a escolta de um pequeno protesto que partia do local, e que contava com não mais que 300 pessoas. Gritavam, em sua maioria, contra a realização do evento e as remoções de moradores feitas para a construção das arenas. Bandeiras sindicais, comunistas e até uma da Palestina voavam enquanto uma modesta bateria puxava as canções. O clima, apesar de tudo, era tranquilo.
Para além dessa concentração de policiais e manifestantes, a rua estava atipicamente vazia para o fim de tarde de uma sexta-feira. A praça Afonso Pena é um dos principais centros comerciais e residenciais da Tijuca. Não no dia da Abertura dos Jogos Olímpicos. Afinal, lá começava o bloqueio de ruas para que apenas pessoas com ingressos se dirigissem ao Maracanã, a seis quadras dali.
Apesar da data simbólica, os jogos não começavam naquele local, naquele momento. Eles têm sido assunto quase incontornável na vida do Rio de Janeiro e dos cariocas há quase dois anos. A cidade inegavelmente se mobilizou. São histórias e participações que vão do gigantesco ao pequeno, do épico ao prosaico. Essas são algumas dessas histórias.
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Agnaldo Rodrigues se tornou celebridade do dia para a noite. Se já era querido pelos frequentadores de um tradicional reduto de Copacabana, o Galeto Sat’s, onde trabalha como churrasqueiro há seis anos, agora também se tornou figura notória por onde anda.
“Estava com a minha mãe no telefone hoje, lá no Ceará, e até por lá fiquei conhecido”, conta. O cearense, que mora no Rio há 27 anos, não foi entrevistado apenas por jornais de Fortaleza, mas também por emissoras de televisão de todo o mundo. Se tornou uma sensação olímpica.
O motivo da fama é a sua participação no revezamento da tocha olímpica. No dia anterior à abertura dos Jogos, ele a conduziu pela disputadíssima rua Nossa Senhora de Copacabana, coração do bairro mais famoso do país. Foi recebido como celebridade por centenas de pessoas que acompanhavam o evento apenas para ver o seu percurso. “Foi emocionante. Quando cheguei no meu ponto tinha tanta gente para cima de mim que a organização teve de me levar para outro local, me botar num carro.”
Em meio a celebridades e figuras da elite carioca, Agnaldo se destacava pela comoção causada. Tanto que foi questionado por um membro da organização: “Você é o quê aqui?” Rebateu, categoricamente: “Trabalho de churrasqueiro logo ali!”
Sua participação no trajeto da tocha foi uma surpresa. “Fiquei muito feliz. Nunca passou pela minha cabeça e agora se tornou realidade.” Pudera, o encontro entre o símbolo olímpico e o churrasqueiro havia sido confirmado diais antes, tudo graças a um movimento espontâneo que mexeu com o bairro da Zona Sul.
Iniciado por uma brincadeira de frequentadores do Sat’s, o movimento #AgnaldoOlimpico tomou de assalto a vida boêmia local. Nas semanas que antecederam os jogos, a campanha reivindicava que o churrasqueiro fosse a pessoa a acender a pira olímpica. Experiência com as labaredas ele tem: “Acho que foi porque já teve um problema com fogo aqui [no Sat’s] e eu apaguei antes de os bombeiros chegarem”.
Com a aproximação da data e o silêncio do Comitê Olímpico Internacional, surgiu então a ideia do Tour Etílico, que percorreu bares da região com a ajuda de ilustres personagens. Depois de taxista, guardador de carros e jornalista, finalmente chegou a vez de Agnaldo. Sem nenhuma cerimônia, ele tomou posse do objeto e adentrou o Galeto para acender a sua pira: a churrasqueira. Tudo isso ao som do cântico “Agnaldo! Guerreiro! Do povo cachaceiro!”.
O evento, acompanhado por centenas de pessoas, repercutiu pela cidade e atraiu as atenções da comissão organizadora do revezamento. Dias depois, Agnaldo percorreria Copacabana seguido por centenas de pessoas, mas, dessa vez, com a Tocha Olímpica.
O final do percurso guardou o momento mais marcante de toda a jornada. “Todo mundo estava me esperando. Não imaginava tanta gente!”
Agora, em plena Olimpíada, a rotina já não é mais a mesma. No Galeto Sat’s, cada vez mais turistas se juntam aos clientes habituais da casa para beber e conversar noite adentro. Agnaldo virou celebridade.
Morador do Caju, conta, que ficou conhecido onde mora. “No ônibus que peguei para vir pro trabalho hoje até me disseram ‘olha lá o cara que carregou a tocha!”
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Meton Joffily grafitou por toda cidade do Rio de Janeiro. Por isso, Ratones, um dos personagens que mais figura em suas obras, já esteve em muitos lugares. Mas nunca em um como o Boulevard Olímpico, onde o rato aparece no topo de um tubarão feito de lixo.
Ele faz parte do painel pintado por Meton, que ocupa um dos armazéns da região e foi cedido pela prefeitura. De grandes proporções, o graffiti mostra um ciclo de vida e de poluição. Peixes, em ordem de tamanho, vão sendo comidos até chegar no topo da cadeia alimentar, o tubarão de lixo. Toda a cena observada por Ratones e um urubu também feito de sucata.
A mensagem é clara: o maior predador é a poluição. É um ponto delicado, especialmente considerando o impacto ambiental e o tema de sustentabilidade dos jogos. Mas ele garante: “Não teve rabo preso”.
A photo posted by Fernando Eliziario (@fernando_eliziario) on
Contatado para fazer duas obras nos jogos – tanto no Boulevard Olímpico, quanto como na escultura ‘Cidade Olimpíca’, na Praça Mauá – Meton não é novato em grafitar na região.
“Eu tive experiência de fazer um grafite na Perimetral, pintei no lado de fora, em um esquema parecido, onde só deram a tinta”, conta. Mas a paisagem, hoje, é outra. Sem o viaduto e revitalizada, a área agora é um importante centro turístico.
Por isso a escolha do tema. “Aproveitei o espaço dado para uma crítica, também. A poluição, que é um problema mundial, vai além da Baia de Guanabara.” Os olhos do mundo passam pelo Boulevard.
Com o convite, vieram sentimentos conflitantes. “Quando surge uma proposta dessas, a gente fica meio assim, com uma pulga atrás da orelha, de fazer parte de uma coisa que critica.”
Mas a oportunidade de dialogar com o público e ocupar um espaço tão visado foi mais importante. “Para você viver de arte, fazer o que gosta e acrescentar para as pessoas, é preciso também fazer esse tipo de trabalho. Dá para fazer disso uma coisa maneira”, conta.
Para Meton, a experiência foi positiva: “O público está se amarrando e todo mundo consegue pegar a mensagem”. E agora Ratones vê o Rio de Janeiro por mais um ângulo.
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“Nessa competição emocionante, os melhores atletas de todo o planeta terão o privilégio de correr atrás de sua merdalha imersa em esgoto puro, de baixo dos braços da sétima maravilha do mundo moderno, desafiando os limites do corpo humano.”
Diferentemente do clássico California Games, na Coliformia Games só existe uma modalidade. A natação em águas cariocas infestadas por pedaços radioativos de cocô, mosquitos mutantes e televisões que despejam excremento. O jogador deve desviar desses e outros obstáculos. Uma doença horrível é o resultado caso o objetivo não seja alcançado.
Descendo a tela no site do jogo, mais informações aparecem. Um punhado de notícias de agências e portais de todo o mundo expondo a situação precária da poluição em diversos locais olímpicos.
É para denunciar esse panorama que cinco jovens criaram a Coliformia Games. Em sua maioria designers de formação, Diego, Carolina, Gustavo, Harrison e Mario juntaram suas habilidades individuais e lançaram o site nos dias que antecederam os jogos.
O projeto surgiu nas horas vagas em novembro passado. “A gente via todas as promessas que faziam em relação a despoluição e era tudo bem absurdo. Sabíamos que as chances de elas serem cumpridas eram próximas de zero”, conta Diego.
O formato em game veio por conta das habilidades de cada um. Mario é desenvolvedor de jogos e Harrison também é programador. Os cinco amigos já pensavam em fazer um jogo por diversão, e o tema calhou.
O desenvolvimento, que foi mais intenso nos últimos dois meses, aconteceu ao mesmo tempo em que a cidade entrava no clima olímpico. As promessas de despoluição não se concretizavam. Mais do que isso, os problemas de verdade não eram discutidos.
Para Carolina, a questão da Baia de Guanabara é um sintoma de algo maior. “Todo mundo fala em como limpar a Baia, por cima, botando filtragem, mas ninguém fala do saneamento básico. Isso acontece [a poluição] por causa de milhões que vivem sem saneamento básico regularizado. Ninguém fala disso.”
Para Harrison, o sentimento é próximo à história do filme “O Banheiro do Papa”. “Se passa em um país latino, em que o Papa vai fazer uma passagem. Existe toda uma preparação, e uma pessoa que era muito pobre consegue alugar um banheiro químico usando toda a sua poupança. Tudo em antecipação da passagem, onde milhares usariam o banheiro e o dinheiro seria multiplicado. E aí o Papa passa em um minuto. Tudo perde o sentido. Sinto que é o que está acontecendo por aqui.”
Na calçada, no meio de uma pequena multidão, três sósias do Michael Jackson rodopiavam ao som de “Bad”. Dois Michaels adultos de regata branca dominavam a coreografia característica, mas era um terceiro Michael, de cerca de 6 anos, que roubava a cena com movimentos ainda mais enérgicos. A poucos metros da performance, ônibus passavam correndo e pedestres andavam mais devagar que o habitual, olhando atentamente para a telinha brilhante de seus celulares. Anoitecia na Avenida Paulista. “Olha, acabei de pegar um Grimer de CP 240 ali na frente da Renner” — uma voz desconhecida interrompeu o tumulto, se gabando da conquista e ao mesmo tempo alertando a reportagem, que, por sua vez, tinha acabado de capturar um monstro idêntico, só que com mais CP – “combat power”. Pokémon Go chegou ao Brasil.
Quem começou a se familiarizar com o jogo entende a situação do jovem que se empolgou com o tal do Grimer, esse monstrengo imenso, provavelmente feito de chorume e piche. Não custa nada avisar quando um aparece. É que no dia 3 de agosto, quando Pokémon Go finalmente foi lançado aqui, sua produtora, a Niantic, revelou outra novidade incrível: uma enorme infestação de Zubat, o pokémon em forma de morcego. Ele está em todos os lugares, ele está no meio de nós, corações ao alto! Desde então, a rotina dos caçadores consiste em andar pelas ruas com expectativa, reagir à vibração do smartphone e encarar quase chorando o nonagésimo sétimo voo de um Zubat selvagem. E, se não é Zubat, é Pidgey — uma pombinha —, se não é Pidgey, é Weedle — aquela lagarta não tão simpática quanto o Caterpie.
Zubats à parte, Pokémon Go entrega mais ou menos o que a internet tinha encomendado: tira o jogador de casa e o convida para uma gincana imprevisível pelo mapa do mundo real, agora povoado pelos simpáticos monstrinhos de bolso — desde que seu plano de dados colabore. Se a inovação da realidade aumentada já deixa qualquer um meio perdido, a interface com poucas instruções e os recursos inacabados ajudam, mesmo que por acidente, a criar um clima de história em construção, uma mistura de futuro caricato com o passado em que os videogames não vinham com tutorial ou setinha de “vá por aqui”. A sensação é de desbravar um terreno em que tudo pode acontecer, mas talvez você esteja no transporte público e acabe perdendo o PokéStop.
Os PokéStops, aliás, são as estruturas mais importantes no mapa da dimensão paralela. Representados por ícones azuis espalhados pela cidade, oferecem pokébolas, poções e outros acessórios necessários para a jornada. Já os PokéGyms são os ginásios em que treinadores mais experientes enfrentam outros times. O segredo fitness é que não adianta escolher apenas uma dessas áreas. Cada região de uma cidade guarda tipos específicos de pokémons, alguns gerados de acordo com seu terreno. Em São Paulo, dizem que a valiosa Eevee anda pelos arredores de Pinheiros e o clássico Pikachu tem aparecido com mais frequência na Barra Funda. Pokémons de água, como o pato Psyduck, a tartaruguinha Squirtle e o Magikarp — uma carpinha aparentemente inútil que evolui e vira Gyarados, um dos pokémons mais fortes —, se escondem em áreas como as margens do lago do Parque do Ibirapuera.
Piquenique de Pokémon
O famoso parque paulistano foi um dos locais visitados pela reportagem do Risca Faca no primeiro fim de semana de Pokémon Go no Brasil. Na manhã do sábado, o Planetário era uma das áreas mais povoadas: normalmente vazia, a pequena praça de 50 m² em frente ao prédio — inaugurado em 1957, trata-se do primeiro planetário da América Latina, mas ninguém dava uma pokébola para isso — concentrava mais ou menos 300 jogadores. Alguns preferiam ficar sentados em grupo no gramado, como em um pátio de escola, ignorando qualquer proposta de atividade física.
Por algum motivo que só a Niantic sabe, calhou de essa área contar com quatro PokéStops grudados um no outro, o que garante aparições e munição infinitas. Para dar uma dimensão, há municípios inteiros com a mesma oferta: “Lá na cidade da minha família, Santa Isabel, a 50 minutos de São Paulo, quase não tem PokéStops. Tem um numa praça cheia de moradores de rua que agora dividem o espaço com um monte de nerd com celular; tem outro na frente de um lava-rápido e um no topo de um morro altíssimo. O pessoal lá já criou até uma hashtag para pedir mais no Facebook”, conta o consultor em saúde coletiva Augusto Mathias, de 33 anos, que tinha acabado de capturar um Magmar.
O assunto no Planetário do Ibirapuera deixou de ser a Via Láctea, os pulsares ou as constelações: agora, os frequentadores só querem saber “onde diabos está esse Tangela que não apareceu para mim?”. Nesse tipo de ambiente, um monstro mais poderoso costuma ser recebido com gritinhos irracionais como “tem um Jigglypuff aqui!”, “Pinsir! Pinsir”, “Weepinbell!” e por aí vai. Pode parecer um fenômeno meio idiota para quem não conheceu os pokémons do desenho ou do jogo de Game Boy da década de 90, mas as interjeições adolescentes do passado voltaram ao vocabulário de crianças e adultos. E não pega mal.
Já o Parque Trianon, na frente do MASP, agora rima com Parque Pokémon. O restinho de área verde na região da Paulista foi agraciado com seis PokéStops bem próximos uns dos outros. No domingo, quando a Avenida Paulista fica aberta aos pedestres, a maioria dos transeuntes — possivelmente mais que o dobro do usual — se reunia por lá em busca de uma boa safra. Pena que ali, ao contrário do Parque do Ibirapuera, só tinha “Zubat, filho da puta”, nas palavras dos envolvidos. Entre centenas de jogadores que se enervavam com a invasão de morcegos, deu para observar um casal de meia idade protagonizando uma cena “pokémônica”: enquanto ela contava que o Trianon era um dos únicos remanescentes de Mata Atlântica virgem na cidade, ele segurava o celular com uma mão e usava o dedo indicador da outra para tentar arremessar uma pokébola e capturar um… Zubat, claro.
Como sugerem a tela inicial do app e outros avisos, a desatenção pode ser um efeito colateral da novidade. Conversas ficam para depois. Belezas naturais, produtos à venda e caminhões cruzando a avenida são perigosamente ignorados. É nesse cenário que surge a lenda urbana brasileira com direito a trocadilho, o “bulbassalto”. E faz sentido: com tanta gente circulando pelos mesmos pontos azuis e perdendo o medo de andar com o celular nas mãos, já que o jogo precisa estar sempre aberto para computar qualquer coisa, um assaltante em potencial (e talvez jogador de Pokémon Go, como todos nós) ganha várias oportunidades. Mas os treinadores não se preocupam e seguem viagem. Perto da galeria Top Center, uma Clefairy virtual dividia espaço com um Pikachu guitarrista, ou melhor, um artista de rua que usava uma roupinha do personagem para surfar no zeitgeist.
Otaku de boné
“O jogo é medíocre. Como game mesmo, eu daria nota cinco. No modo de realidade aumentada, os pokémons ficam grudados na tela como um adesivo. Os caras da Niantic poderiam ter mais cuidado com esses detalhes. Outra coisa: não duvido que vai ter PokéStops em lugares como Auschwitz, por exemplo. Eles vão ter que resolver esses problemas enquanto o jogo estiver no ar”, diz Gustavo Petró, editor do portal de games IGN Brasil. De fato, exceto pelas telas dos personagens, o design de Pokémon Go não chama a atenção. Desde o momento em que o jogador monta seu avatar, todo mundo usa boné e fica com jeitão de otaku (termo que define os fãs de anime). Uma vez que seu bonequinho avança pelo mapa, a tela do celular mostra uma espécie de “mundo invertido” da série Stranger Things, da Netflix: um lugar idêntico ao mundo real, mas um pouco mais feio.
No canto inferior direito, há um radar que supostamente indica os monstrinhos mais próximos. Há poucos dias, se você resolvesse se guiar por essa bússola desmagnetizada, poderia acabar andando quilômetros e quilômetros atrás “daquele Alakazam” e terminar sua jornada caçando três Spearows e 20 Zubats. No dia 9 de agosto, porém, a primeira atualização lançada no Brasil introduziu o que parece ser o início de um novo sistema, a seção “sightings”. Será que agora vai?
Nos Estados Unidos e na Austrália, meses atrás, esse recurso funcionou de forma mais ou menos eficiente, mas a Niantic resolveu dificultar um pouco a jornada de caça aos pokémons e descalibrou o radar — a ponto de torná-lo um item decorativo — e baniu apps de terceiros que ajudavam na caçada, como o Pokévision, uma tipo de Google Maps que escaneava todos os pokémons próximos. Desde então, o público estrangeiro tem reclamado bastante. Na página oficial do jogo no Facebook, há relatos dramáticos: “Não tenho mais vontade de jogar Pokémon Go. Minha cidade é pequena, e o radar era a única chance de eu pegar um monstro que não fosse um maldito Pidgey”. Tudo indica que os Pidgey são os Zubats dos EUA.
Os brasileiros, no entanto, já aprenderam a jogar no “level hard” e têm se virado bem sem esses mimos. Aqui, é preciso caminhar em áreas com muitos PokéStops perfumados com as tais das “lures”, que atraem os monstrengos, e esperar, com muita paciência, pela aparição de algum pokémon um pouco mais raro, como, por que não, um Grimer de Combat Power 240. E justiça seja feita: quem jogou no Game Boy sabe quão repetitiva pode ser a vida de um mestre pokémon.
Coliseu de monstrinhos
Na Paulista, à noite, a jogatina se intensifica e pequenos grupos se aglomeram nas áreas em que a Niantic escolheu para instalar os ginásios — talvez o elemento mais social do game, que ainda não possibilita outras interações entre os usuários. Enquanto um telão no outro lado da avenida mostrava os Jogos Olímpicos do Rio, um trio de jovens concentrava-se em matar um Exeggcutor do time azul, que guardava o ginásio na frente da loja de eletrônicos FNAC. Um dos jogadores, com jeito de líder, falava para o outro: “Fica na contenção para quando o ginásio cair. Esse Seaking está me dando trabalho”. A princípio pode ser complicado entender a lógica dos ginásios, por isso Vinicius Matos Aguiar, de 26 anos, dá uma pequena aula: “Quando você derruba um ginásio, pode colocar um pokémon seu para guardar lá. Conforme outros jogadores do seu time vão brigando com o seu pokémon e ganhando, seu ginásio ganha prestígio e vai aumentando de level, e aí pode ter mais pokémons para defender. Você perde o domínio do ginásio se alguém de outra equipe vence de todos os pokémons guardiões, entendeu?”.
Vinicius, que aprendeu essas táticas em uma viagem para os Estados Unidos, estava perdendo a batalha: “Achei estranho que os brasileiros já têm pokémons muito fortes em pouco tempo. Tem um pessoal que diz que tá rolando um cheat (trapaça no jogo)”. Sim, alguém deve estar trapaceando, mas também tem outra explicação que se apresentou para nós num encontro fortuito a caminho do Parque do Ibirapuera. Em um dos gramados da rua Abílio Soares, em uma PokéGym pouco concorrida, nossos pokémons foram derrotados — ao lado, a wild Luis Felipe appeared. “Fui eu, sim. Sou do time amarelo”, comemorava discretamente o amigo de 12 anos, talvez por saber que a própria Niantic só recomenda o jogo para maiores de 13.
Embora Luis Felipe seja um forte concorrente com seu Scyther e suas tardes livres, Pokémon Go parece se encaixar muito bem na vida de quem tem de 20 a 35 anos. Primeiro por razões óbvias, como a ausência de pais e o que chamam de maturidade para atravessar as ruas com a mínima segurança e saber quando é hora de parar — ou, pelo contrário, não parar nunca e perder o emprego, solucionando o problema da falta de tempo. Por coincidência, também é essa geração que sabe de cor o nome dos personagens, seus poderes e peculiaridades. Além disso tudo, é difícil pensar em outra faixa etária que possa sucumbir à aquisição de pokébolas e acessórios virtuais com dinheiro real, já que o game não escapa da maldição dos joguinhos de celular: vantagens gratuitas são oferecidas só para seduzir, mas o sistema espera que mais cedo ou mais tarde você compre alguma coisinha.
Ingresso pra diversão
Uma das maiores dificuldades no desenvolvimento de Pokémon Go deve ter sido distribuir PokéStops e PokéGyms no mapa do mundo inteiro. Para piorar a trabalheira, cada um desses checkpoints tem nome, foto e uma pequena descrição. No Brasil, foram encontradas várias paradas batizadas de maneira criativa, como “Mário Maconha” — com uma imagem de um grafite em que o Super Mario está, cof cof, fumando um baseado —, “Sereia Mono-teta”, “Toquei e Saí Correndo” e “Gato Louco por Música” e toda a sorte de PokéStops em lápides de cemitérios.
O cemitério São Paulo, em Pinheiros, é um capítulo à parte. Com nada menos do que 17 PokéStops — cada um devidamente nomeado em homenagem às tumbas, como “Túmulo da Família Issa” —, esse talvez seja o espaço mais relaxante da cidade para uma sessão com os amigos. Na segunda-feira estivemos lá e encontramos um Haunter — pokémon do tipo fantasma — em cima de uma lápide, no que foi a experiência mais mórbida de realidade aumentada misturada com a vida real. Por lá também atraímos, com uma lure aplicada num PokéStop, um casal que estava faltando no trabalho para jogar um pouco. Anda se sentindo sozinho? Jogue uma lure em um PokéStop vazio e sinta-se com um poder de atração digno de um Flautista de Hamelin.
Há uma razão para essa distribuição caótica e imprópria para menores. Pokémon Go é o herdeiro direto do primeiro jogo de realidade aumentada da Niantic, o Ingress, lançado no começo de 2013. Nele, o mundo se divide entre duas equipes, a azul (“Resistance”) e a verde (“Enlightened”), e a missão do herói é capturar portais distribuídos pelo mundo para o seu time. Te lembra alguma coisa? Os portais são os PokéStops, sem tirar nem por. É como se Ingress tivesse sido criado para que os jogadores fizessem o trabalho sujo de distribuir, nomear e fotografar áreas do mundo, tudo para que a Niantic lançasse depois o jogo que realmente importava. “Pokémon Go é muito melhor. O Ingress era bem mais complicado, era preciso entrar em contato com os jogadores de seu time a toda hora e o objetivo não parecia muito claro. Pokémon Go é mais lúdico, dá para jogar mais sozinho e a interface é bem mais convidativa”, diz Bianca Castanho, jornalista que escreveu uma matéria sobre o Ingress e já se rendeu aos monstrinhos de bolso.
Os assinantes daqueles planos de dados mais humildes podem pensar que ficaram de fora da “febre do momento”, mas Pokémon Go é democrático e gasta menos 3G do que aplicativos como o Facebook ou o Instagram. Com mais ou menos 50 MB, dá para caçar pokémons por mais de quatro horas sem se desesperar. A bateria dos celulares, no entanto, não aguenta tanto tempo. Pode observar: os jogadores que ficam perto dos PokéGyms em geral têm o aparelho conectado a um fiozinho na mochila — é a bateria portátil. Agora, até os vendedores ambulantes perceberam o mercado emergente e estão vendendo “baterias com carga completa por R$ 15”. Ou você acha que é fácil conseguir um Dragonite com CP 2000?
O dia ensolarado de inverno vai chegando ao fim e a mochila virtual de Pokémon Go vai ficando cheia. A solução é jogar no lixo as frutas que os pokémons adoram. Caminhadas de dez quilômetros parecem mais acessíveis do que nunca, mas o conteúdo dos ovos, incubados à medida que o jogador anda, quase sempre decepciona — o que inspirou um meme em que os personagens de O Senhor dos Anéis andam bastante e o Frodo olha chocado para o Rattata que nasceu. De vez em quando, os PokéStops desaparecem e o mapa se esvazia, num bug que alguns usuários vinculam a uma operadora de telefonia móvel.
Além de todas as mudanças de comportamento nas calçadas da cidade, os primeiros dias de Pokémon Go no Brasil foram marcados por outras inevitáveis manifestações virtuais. O morceguinho do momento ocupa o posto que foi de Glória Pires no Oscar 2016 e o Pikachu, coitado, virou garoto propaganda de anúncios sensuais. Muita gente garante que a realidade aumentada vai mesmo mudar o mundo e as redes sociais noticiam casos em que o jogo virou aliado contra a obesidade, a depressão e o autismo. Por outro lado, a imagem de um garoto corcunda com um pokémon montado no pescoço se transformou em ícone da alienação crescente a que essas invenções podem nos sujeitar. Seja o começo de uma revolução cultural ou só o meme da semana — ou uma evolução das duas coisas misturadas —, Pokémon Go conseguiu a proeza de trazer verdadeiras interferências de diversão ao caminho diário para o trabalho. Nem que seja para que todas as suas pokébolas acabem desperdiçadas naquele Zubat.
Se tem uma coisa que você precisa saber sobre K-pop, a música pop produzida na Coreia do Sul, é que o fanatismo obcecado dos fãs se expressa em gritos. É início de noite da quinta-feira, 21 de julho, e o Teatro Gazeta, na avenida Paulista, está lotado de adolescentes, sobretudo meninas, segurando um mar de varinhas de neon.
No palco, sucedem-se 17 grupos covers de dança e canto selecionados para o 3º Korean Pop Festival. O prêmio geral é cinco mil reais e o de cada categoria, três mil. Mais importante: os vencedores poderão disputar uma vaga para competir na final mundial na Coreia do Sul.
Cada artista que pisa no palco, “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”, cada grupo, “AAAAAAAAAAAAAAAAA!”, cada mensagem dos apresentadores “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”, é respondida com uma manifestação ululante das fãs.
No palco tem uma menina que, meu Deus!, o que é isso? É a Pammie interpretando Arirang Alone, da cantora So Hyang, com uma voz tão imponente que se impõe sobre o grito da plateia, atingindo uns agudos lá pra cima na escala. Gente, ela é tudo! Canta em coreano, apesar de não ter completado nem o primeiro módulo do idioma. Ela não é nem cantora profissional, mas auxiliar administrativa em uma empresa que vende doces e salgados. Se não fosse o K-pop, o nome dado ao fenômeno cultural coreano, ela não estaria cantando. E esse prêmio é importante, porque ela ganhou o geral do ano passado, mas não foi pra Coreia, embora merecesse muito! Todos ali sabem quem é Pamella Raihally.
Sabia que o Brasil já teve uma banda que tentou imitar o pop coreano? Era a Champs, que apareceu na Ana Maria Braga (ela chamou de Champers, ai…), ganhou 600 mil likes no Facebook, mas acabou e um integrantes do grupo virou YouTuber e já tem 70 mil seguidores. O Iago, lindo!, virou ex-Champs, seguiu dançando e tem uma banda cover chamada Allyance, que está agora reunida nas coxias de teatro. A apresentação da cantora Mônica Neo, que veio depois da Pammie, está acabando. Eles estão ali há um minuto abraçados e, de repente… o “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA” invade as coxias. O nome da banda está no telão. Todos sabem que é a banda de Iago Aleixo.
O grito, aqui, não é o símbolo do desespero, mas da tomada de assalto da cultura coreana em segmentos dos jovens brasileiros, num fenômeno chamado Hallyu — a nova onda avassaladora que veio da Ásia e abocanhou os jovens da classe C.
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A infiltração do K-pop no Brasil pode estar à margem da sua rede de contatos e até da sua timeline, mas ela é a parte mais expressiva do soft power sul-coreano por aqui. Pelo leste da Ásia, os produtos culturais do país se espalharam com a força de uma política de Estado que deu certo. O termo Hallyu precisou ser criado por jornalistas chineses para explicar a influência cultural do Estado vizinho.
Por falta de acesso aos mercados dominados pelas grandes gravadoras e incapazes de enfrentar a pirataria na China, as empresas coreanas abdicaram do CD e apostaram no que acabou por se tornar a MTV dos anos 2010, o YouTube. Deu certo? Bom, lembra do Psy? A música Gangnam Style, que explodiu em 2012, não passava de uma piada interna, uma ironia a uma cultura musical bem estabelecida — até hoje nenhum vídeo superou sua marca de dois bilhões de visualizações.
Os clipes das bandas mais famosas entre os fãs costumam ter um ar mais romântico, a um só tempo atrativo e infantil, no qual a beleza dos artistas parece ter saído de um anime. Existe um grau de sexualidade latente, mas sublimada nas atitudes dos músicos jovens: sempre educadinhos e fofos; nunca machos alfa pegadores.
Pouco a pouco, via YouTube e bordas da cultura anime, o K-pop começou a fincar raízes bem no momento em que a classe C se expandia no Brasil e procurava novas referências culturais. Mesmo exóticas, elas se acomodaram a valores mais conservadores, evangélicos, acompanhadas por sonhos de luxo e glamour. Alessandra Vinco começou como fã em 2011 e agora pesquisa o tema pela Universidade Federal Fluminense. Para ela, K-pop é um gênero híbrido: se apropria de elementos globais, mas preserva valores confuncionistas, como a preservação da família, o respeito ao próximo e o resguardo da vida sexual.
Uma pesquisa do centro cultural coreano apontou que o número de fãs no Brasil era 220 mil pessoas. A sensação é que o número é bem maior. A maior prova, para além dos diversos sites e festivais que cultivam o nicho, é que o programa do Raul Gil vai estrear um quadro chamado “Quem sabe, dança K-pop” no dia 13 de agosto. “Nesta nova atração”, diz o locutor do vídeo promocional, “atravessamos o planeta para trazer um gênero musical repleto de batidas emocionantes e coreografias absolutamente viciantes”. Grupos cover podem se inscrever no site do SBT. O prêmio será de 10 mil reais.
Já os aspectos demográficos têm dados um pouco melhores. Em 2015, Tiago Canário, um doutorando no departamento de Cultura Visual da Korea University, fez uma pesquisa online na qual 2.764 pessoas responderam a um questionário sobre o cultura corena no Brasil. Dessas, 91,3% se identificaram como mulheres, 8,36% como homens. No total, 95% dos fãs de K-pop tinham entre 10 e 29 anos. Apenas 18 pessoas se identificaram como descendentes de coreanos.
Ricardo Pagliuso Regatieri, um pesquisador brasileiro do departamento de sociologia da Korea University, escreveu em artigo ainda não publicado que os fãs paulistas vêm de regiões periféricas e semiperiféricas da cidade e arredores. Resultados preliminares de outra pesquisa online feita com 635 pessoas mostra que 37% dos fãs têm renda familiar entre R$1.751 e R$3.500 por mês e 26% têm renda familiar mensal de até R$1.750. Ou seja, boa parte se enquadra dentro da nova classe C brasileira.
No artigo, Regatieri oferece uma interpretação do fenômeno: o K-pop se conecta ao processo de mobilidade social, usando a popularidade da internet no país como principal combustível. No processo, os fãs do estilo no país buscam uma ruptura com os modelos culturais de seus pais e avós. A fábrica de sonhos do K-pop, ele escreve, oferece um repertório de modernidade centrado nos prazeres do consumo, da moda e do glamour da vida na cidade.
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Pammie e Iago — a cantora e o youtuber — são parte dos dois mundos. Moradora do limite entre São Paulo e Diadema, ela começou a cantar pequena, nos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus. Logo, o talento foi reconhecido e começou a ser chamada para se apresentar, de graça, em casamentos dos fiéis. Em 2010, no último ano da escola, viu o primeiro clipe de K-pop pela internet — era GARAGARA GO!!, da BIGBANG.
“O K-pop foi natural pra mim. Cheguei a mostrar para algumas amigas, mas elas não ficaram tão fãs como eu. A gente ensaiava numa sala vazia para se apresentar nas festas da escola”, me disse por telefone durante o seu intervalo do almoço na empresa onde trabalha como auxiliar administrativa, no Morumbi.
Pamella, 23, é um tipo de talento natural. Chegou a fazer aulas de canto depois que alguns professores elogiaram sua performance ao interpretar uma música da Rihanna em coreano. Não chegou a concluir o curso, contudo. Eram tempos de IPI reduzido. “Na época, meu pai queria comprar um carro. Como era ele que pagava pra mim, e a escola era muito boa e cara, eu sacrifiquei a minha aula para podermos comprar. Depois, não voltei mais.”
Uma das juradas do 3º K-pop Festival, a cantora lírica Cecília Massa, acha que Pammie tem potencial para ser uma cantora de jazz. “Vejo nela um altíssimo nível vocal, capaz de fazer variações muito rápidas na voz. A primeira vez que a escutei ela me lembrou da Whitney Houston”, me disse numa tarde do final de julho em um café em Santa Cecília.
Para ela, Pamella está escutando um repertório com melodias simples e harmonia básica. “Ela tem um material maravilhoso, mas é uma escolha dela”, disse sem nenhum tom professoral. “Seguir cantando é uma felicidade que ela pode ter e dar ao outros”.
Acontece que Pammie fica num cruzamento em termos de mercado e talento. É boa demais para o que faz sucesso na televisão, mas tem poucas referências de caminhos a seguir e cantoras em quem se inspirar. “Você não consegue viver da música aqui no Brasil”, me disse Pammie. “Já pensei em seguir mas é difícil. Acho que se eu não tivesse conhecido o K-pop, hoje não estaria cantando.” Uma vitória no concurso é o estímulo para fazê-la seguir o que lhe dá mais prazer.
As empresas coreanas conseguiram criar uma tecnologia cultural capaz de criar boys e girls bands em uma sequência quase industrial. Os futuros artistas entram como trainees por volta dos 15 anos e saem capazes de atuar, cantar, dançar etc. Existe o V-pop (Vietnã), o T-pop (Tailândia) e J-pop (Japão). E por pouco não vingou por aqui um B-pop.
Iago Aleixo, hoje com 20 anos, foi uma cobaia da tentativa de reproduzir o modelo no Brasil. Aos 17, foi selecionado por um produtor coreano e passou a morar com mais cinco pessoas no centro de São Paulo. Nascido no Rio, hoje ele mora com a mãe em Osasco.
Nos encontramos no café do Centro Cultural São Paulo, que se tornou o ponto de encontro dos k-poppers, um pouco antes de um ensaio da sua banda, a Allyance, para o festival que ocorreria na semana seguinte. Antes da conversa, ele entrou no bar e saiu com uma garrafa de 600ml de refrigerante. Tentou abri-la; não conseguiu. Deixou-a sobre a mesa e contou sobre sua experiência no processo de se tornar um b-popper em 2013.
[olho]”As meninas têm que te querer e os meninos têm que querer ser você”[/olho]
“Era um projeto da JS Entertainment, empresa coreana com foco no Brasil. Depois da seleção, tive que deletar as redes sociais e criar novas como se eu fosse uma nova pessoa. Praticamente, nascer de novo. Eu tinha muitos tweets antigos, então, tipo, se a pessoa fosse nos arquivos poderia ver alguma possível besteira que falei quando era pequeno. Daí isso pesaria agora. Eles excluem toda nossa vida passada, só deixam a mostra o que querem.” Tentou abrir novamente a garrafa. Não conseguiu.
“Na Champs, eu era o mais novo, por isso tinha que mostrar uma pureza. Tinha que ser um fofinho, sem barba, meu cabelo tinha que ser liso, jogado à Justin Bieber. Não podia usar óculos, pra visualmente ficar mais bonito, e tinha que ser um corpo definido pra criar mais interesse. Ou seja, tinha que ser um menino perfeito. A empresa cria a ideia do desejo. Eu fiz parte disso, desse meio. Nosso empresário falava ‘vocês têm que fazer a menina desejar vocês para se elas se tornarem fãs. As meninas têm que te querer e os meninos têm que querer ser você’”. Mais uma tentativa com a garrafa. Nada.
De óculos, com uma barba ruiva de poucos dias, ele fala com empolgação do treinamento. De seus lábios saem palavras que relembram a antiga rotina com um leve sotaque carioca: de segunda a domingo, da manhã à noite, musculação, canto, coreografias, aulas de hip-hop, ballet e jazz. Sábado era dia de treino livre e teatro. Domingo o ensaio era até as 15h, depois vinha a folga. Fora moradia, não recebia nada. “Querendo ou não, ele [o empresáio] tava gastando bastante dinheiro.”
Por fim, gravaram o clipe na Coreia e estrearam no Brasil. Receberam boa cobertura da imprensa, mas a Champs não deu certo naquele momento. Iago acha que foi má administração. Porém, o sistema do K-pop se baseia em baixas margens de lucro. Como a música é distribuída de graça pelo YouTube, o sistema de vídeos do Google fica com a maior parte do dinheiro da publicidade online. Se a base de fãs não dispara, os shows e outros produtos não compensam o investimento.
Quando viu que não daria certo, fez o que boa parte dos jovens deseja hoje em dia: criou um canal no YouTube. Começou com duas mil pessoas e agora tem 70 mil seguidores. Espera acabar o ano com 100 mil. Diz que não está mais vendendo um personagem, mas o Iago real.
“O Iago do Champs era uma pessoa para ser desejável e eu não quero ser desejável. Quero ser admirado. Quero que as pessoas olhem pra mim e falem ‘caraca, olha o que ele tá fazendo com estilo que eu gosto’. Não quero ser o estrelinha, o famosinho. Quero ser uma pessoa que é parada na rua por alguém dizendo que gosta do meu trabalho.” Ele pega a garrafa, crava os dentes molares na tampa verde. Contrai os olhos, gira a garrafinha com as mãos e tssssss. Consegue abri-la. Toma um gole e vai encontrar os colegas para o ensaio da música Fly, da banda GOT7.
Para ele, vencer o festival significa, além do gosto do prazer de se sentir um k-popper e do prêmio para pagar os custos figurino, faz parte de uma estratégia para voltar à Coreia do Sul e ajudar a turbinar seu canal no YouTube.
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Na longa fila que se forma nos arredores do Teatro Gazeta, centenas de adolescentes aguardam para entrar no festival de covers de K-pop. Um dos poucos adultos, o guarda civil Hélio Marques, 52, acompanha as três filhas. “Vim por causa da minha menina, que escuta muito, muito. Ela sabe até o que o menino come”, diz sem brincar.
Antes do show, encontro com Pamella e Iago. Ela, bem maquiada, de vestido longo floreado e Havaianas, está insegura, com um pouco de medo por causa da dificuldade da música. Ele, mais profissional, ainda está sem o figurino. Conta que no último ensaio, dois dias antes, repetiram toda a dança 25 vezes. Eles tiram fotos e voltam para acabar de se arrumar.
O teatro está lotado. Os cerca de 50 competidores ficam no mezanino, à esquerda de quem encara o palco. Dá pra sentir a expectativa e a tensão. Iago, já com o figurino, fica filmando e tirando fotos com os amigos. Há grupo de cinco meninas vestidas com o que parece ser um uniforme das paquitas. Duas delas ensaiam alguns passos juntas. Pamella está sentada com o celular na mão, de cabelo solto. Está ao lado de outra cantora, com a qual troca algumas palavras. Fala com outras pessoas, mas a vida de cantora parece mais solitária.
Não só pela música, mas todos estão agitados, afinal é o principal momento pelo qual esperaram e treinaram. A recompensa é grande. Pelas regras do evento, há duas vagas para disputar a chance de ir pra Coreia. Se, por exemplo, o canto vencer o prêmio principal, a outra vaga é de quem vencer na dança.
Os participantes têm camarins, garrafas de 1,5 litro de água e esfihas do Habibs à vontade.
O primeiro competidor, Davi Nogueira, senta num banquinho e com violão em mãos, apresentada uma música de Roy Kim.
“Boa noite”, diz. A plateia responde: “AAAAAAAAAA!”
Antes de começar a tocar, uma menina atrás de mim grita: “Arrasa, viado!”
Na sequência, várias bandas e competidores tomam o palco. Os momentos mais sexualizados das coreografias são os que arrancam mais gritos. Por vezes, os berros são tão fortes, constantes e esganiçados que se sobrepõem à voz das apresentadoras.
Os artistas se sucedem até que às 20h14 chega a vez de Pammie.
Perto dos demais, ela parece uma cantora de ópera. Das coxias, dá pra ver que ela transpira presença de palco, segura o microfone com uma mão e despeja toda sua potência sonora. É uma apresentação elegante — recebe mais aplausos do que gritos. Ao sair, bebe três copos d’água. As mãos tremem. Não consegue dizer muito além de “tô nervosa”.
Em seguida, há outra apresentação. O grupo de Iago fica na lateral do palco e se prepara para entrar. Todos os membros se abraçam e formam um círculo. Iago fala algumas palavras de motivação. Ficam assim por mais ou menos um minuto. A cantora que está no palco, Mônica Neo, encerra a apresentação. Iago está sem óculos. O círculo se desfaz e eles se dão uns tapinhas de apoio. O nome do grupo aparece no telão e eles entram no palco para atender ao chamado da orquestra de berros. Do backstage, de uma visão lateral, a coreografia parece perfeita. Ao final, os gritos, sempre eles, invadem a coxia. Os integrantes saem em duplas em silêncio. Recebem elogios dos grupos que esperam para se apresentar. Iago põe os óculos.
Longe do palco, depois de um longa escadaria que leva a um espaço atrás no mezanino, um dos dançarinos, Paulo Fraga, chora muito. Toma água tremendo. Iago reúne todos, formam um novo círculo e ele diz: “A galera não parou de gritar! Não importa quem errou. Tô muito orgulhoso desses quatro meses de trabalho”.
Eu volto para a plateia e sento em outro lugar. A menina ao meu lado, de blusa e meia calça preta, saia rosa um palco acima do joelho, usa óculos redondo de acetato. Ela pula na cadeira, chacoalha a varinha de neon, grita com força, descansa e se abana.
O anúncio dos prêmios sai pouco tempo depois da última apresentação. No palco, estão reunidos todos os competidores. Das coxias, o áudio fica abafado, mas descubro que a Pammie é a número um do canto. O Allyance ganha na dança. Venus, um cover de dança de 10 meninas, é o primeiro geral. Iago ganha o dinheiro, mas não terá a chance de competir na Coreia. Todos se abraçam, perdedores e vencedores. Mas quem fica para a foto são só os vencedores.
Mais calma, Pammie diz que o retorno do áudio estava distante e por isso não conseguia saber se tinha ido bem. No olho escuro, negro, quase sem diferença entre íris e pupila, só se vê o brilho do reflexo das luzes. Várias pessoas a parabenizam. Alguém comenta: “Agora tem que deixar as amiguinhas ganharem”. Ela sorri amarelo — é uma menina tímida, não uma artista.
Conversa com Cecília Massa, uma das quatro juradas. Ela está dizendo que a música é muito difícil, mas que existem caminhos profissionais, com mais consciência vocal. Fala de um jeito educado, preocupado.
“Você faz aula?”, pergunta a jurada.
“Não.”
“Você canta música brasileira?”
“Não, mais internacional.”
“Você tem presença, mas tem que ouvir grandes intérpretes internacionais e nacionais.”
“Se não fosse o K-pop, eu não estaria cantando.”
“Mas tem um mercado, sim. Não é o da TV ou que aparece na grande imprensa, mas existe um outro mercado. Na internet, em editais…”
A seguir, encontro com Iago. Está sério, mas age como um profissional. Elogia as concorrentes, fala do esforço do grupo do prêmio, mas sabe que não ganhou o que queria. Assim que para de falar comigo diz a um colega: “Nossa!, que raiva, velho. Vídeo filho da puta!” Ele atribui a derrota ao vídeo enviado na pré-seleção dos competidores.
Os demais integrantes do Allyance reforçam que ficaram felizes pelas concorrentes da Venus, o que parece sincero. Mas há uma melancolia no ar. Iago está com o espírito desinflado, o olho abaixou, o sorriso ficou mais profissional. É uma vitória manca.
Todos saem do mezanino e vão para o saguão do teatro, onde artistas e público se misturam. Dezenas de jovens estão chupando Melona, aquele picolé retangular verde, que é coreano, vendido na Liberdade, e que foi distribuído de graça no final do evento. No saguão, Iago tira fotos com várias fãs sempre da mesma maneira. Sem sorrir, faz um gesto comum entre coreanos — um V lateral com a mão esquerda, a mesma que segura um pacote de salgadinhos.
Lançados todos de uma só vez, os episódios de séries do Netflix costumam ser perfeitos para serem vistos em uma ou duas sentadas. Não é o caso com “The Get Down”, que estreia na próxima sexta, dia 12. Talvez por isso sua primeira temporada tenha seis episódios lançados agora e mais seis a serem lançados no início do ano que vem: a produção de Baz Luhrmann é melhor consumida em pequenas doses. Como “Mad Men”, por exemplo, cujos capítulos tinham descrições excitantes como “Don conhece uma mulher, Peggy trabalha demais, Pete pega o trem”, “The Get Down” é uma série em que pouca coisa acontece de fato. O que importa é ver como elas acontecem.
Ambientada no fim dos anos 1970 no Bronx, no norte de Nova York, a série gira em torno de Ezekiel (Justice Smith), um adolescente com grande habilidade para as palavras e poucas perspectivas para o futuro. Sabemos de cara, porém, que ele ultrapassará as dificuldades e se tornará um rapper famoso, já que sua história começa a ser contada dos anos 1990, quando ele se lembra do passado nas músicas que canta em um grande show. Com uma hora e meia de duração — praticamente um filme — o primeiro episódio narra o início dessa guinada, quando Ezekiel conhece o grafiteiro e aspirante a DJ Shaolin Fantastic. É ele quem apresenta Ezekiel, até então fã de música disco, às festas nas quais o rap nasceu, com DJs fazendo a batida para os MCs colocarem as letras.
Poeta, Ezekiel logo encontra ali o seu lugar e começa a frequentar o incipiente circuito do hip-hop com os amigos — um deles interpretado por Jaden Smith. Além da música, Ezekiel se dedica à sua outra paixão, a amiga Mylene (Herizen Guardiola). Ela também quer ser cantora, mas de música disco, e sofre com a proibição do pai, pastor na igreja em que ela canta. Mylene é responsável pela maior parte dos momentos musicais da série, embalando a história de Ezekiel com a sua voz. A trilha sonora, como dá para imaginar pela sinopse, é excelente e os protagonistas são talentosos — um dos melhores momentos dos três primeiros episódios que assistimos é quando Ezekiel recita pela primeira vez um poema sobre sua vida, com a cadência de um rapper, para uma professora na escola. Nesse um minuto em que ele conta sua história em verso você sente que quer acompanhá-lo até o fim.
Histórias sobre a música nos anos 1970 não são raridades — só neste ano Martin Scorsese lançou sua “Vinyl”, sobre o rock. Mas “The Get Down” tem uma vantagem sobre a já cancelada série da HBO: histórias de rock — e sobre homens brancos e suas ideias super revolucionárias — há muitas. Sobre o rap (e a música disco, em menor grau), não. O australiano Luhrmann, tanto pela origem quanto pelo estilo, parece uma escolha estranha para retratar a origem do hip-hop e a realidade do Bronx em 1977, e, é divertido imaginar o que sairia numa série dessas nas mãos de Spike Lee. O retrato de Luhrmann é mais ensolarado e fantasioso do que realista — há drogas, gangues e violência, mas tudo contado de uma forma razoavelmente leve e bem pop. Embora seja menos excessivo e estilizado — menos “Luhrmann” — que “Romeu + Julieta” ou “O Grande Gatsby”, “The Get Down” é claramente uma produção do diretor, com momentos de cantoria estilo “Glee”, grandes números de dança, alguns personagens mais para o lado da caricatura e um pé no surrealismo. Para Luhrmann, o rap é compromisso, mas também pode ser um pouco viagem.
Colocar a forma à frente do conteúdo às vezes faz com que seja fácil se distrair no meio de uma cena e torna ir ao banheiro no meio do episódio uma decisão relativamente simples. Às vezes a história não sai muito do lugar, às vezes ela quer estar em muitos lugares ao mesmo tempo — além de Ezekiel, Shaolin e Mylene, os protagonistas, há o núcleo da tia de Ezekiel, sua professora que o incentiva, uma gângster poderosa e seu filho dono de boate, o DJ que ensina Shaolin, os amigos de Ezekiel, as amigas de Mylene, os pais de garota, seu tio, que é um político influente. Nenhum desses personagens ganha espaço suficiente para que a gente se interesse por eles — de memória, é difícil citar o nome de mais de dois coadjuvantes.
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“The Get Down” é a série mais cara já produzida pelo Netflix (foram US$ 120 milhões nessa primeira temporada). Isso ajuda a explicar como ela é ambiciosa e quer ser muita coisa: parte comédia romântica, parte drama, parte série de ação, parte musical e inclui até algumas cenas documentais aqui e ali, sem muita conexão com o resto. Pode não ser a série mais empolgante, que te faz querer ver um episódio atrás do outro, mas “The Get Down” é cheia de bons momentos, principalmente quando fica mais focada e se volta para Ezekiel e Mylene. Ele é um personagem pelo qual você tem prazer em torcer, tão talentoso quanto vulnerável — a performance de Justice Smith é excelente e, ainda que ele apareça pouco na fase adulta, ajuda o fato de ser interpretado por Daveed Diggs, vencedor de um prêmio Tony neste ano por “Hamilton”. Já Mylene poderia ser a mocinha sofredora clássica que tem os sonhos destruídos pelo pai autoritário, mas é muito mais complexa que isso.
É, também, uma série bem bonita de se ver. Luhrmann pode não ser especialista em hip-hop (apesar de contar com a consultoria de Nas e Grandmaster Flash, duas lendas do rap, ambos produtores da série), mas é o diretor de “Moulin Rouge”: ou seja, sequências de canto e dança são parte de suas especialidades. Com poucos episódios vistos, a sensação que “The Get Down” deixa é de que não há urgência para terminar a série, não há grandes mistérios que vão te atormentar ou deixar a internet em polvorosa (tal qual “Stranger Things”, último grande lançamento do Netflix) — embora o ritmo melhore gradativamente. Segundo classificação do próprio Netflix, há séries para devorar e para degustar, e é bom que haja oferta dos dois tipos. “The Get Down” se encaixa, com certeza, na segunda categoria e, apesar de ter um começo um pouco confuso, tem qualidades o suficiente para valer uma tentativa.
Termos como bom e ruim não bastam para explicar o que você sente quando vê um filme. Existem filmes ruins que você pode ver mil vezes (pra mim, “Diário de uma Paixão”), filmes bons que são um suplício de assistir (“A Árvore da Vida”), filmes ruins que te ofendem (“Tudo Vai Ficar Bem”) e filmes bons que são prazerosos de ver sempre (“Quanto Mais Quente Melhor”). É importante deixar isso claro ao falar de “Esquadrão Suicida”. Primeiro, a má notícia: o filme, que estreia na quinta (4) é ruim — como a péssima avaliação no Rotten Tomatoes, de 32%, deixa claro. Mas tem uma boa notícia: não é um filme ruim que te deixa irritado.
É uma pena porque, no papel (ou mesmo no trailer), “Esquadrão Suicida” é promissor. Em meio a uma série de filmes com vários super-heróis lutando contra uma ameaça comum lançados em um intervalo de poucos meses (“Capitão América: Guerra Civil”, “X-Men – Apocalipse”, “Batman vs Superman”), “Esquadrão” parecia ser diferente: engraçado, anárquico, sem pieguismo. Pelo trailer sabemos que a personagem de Viola Davis é uma funcionária do governo americano que irá juntar uma equipe de supervilões para combater uma ameaça, conhecemos os protagonistas e suas habilidades e ouvimos mais piadas do que no “Batman” inteiro. Parece bom.
Porém, há muito que o trailer não revela: o plano de Viola Davis não faz sentido, os supervilões não são tão maus assim, praticamente não descobrimos nada sobre boa parte dos personagens além daquilo que o trailer mostra e o filme está bem longe de ser engraçado. “Esquadrão Suicida” começa com o que vemos no trailer, logo depois dos acontecimentos de “Batman vs Superman”. Num jantar, Amanda Waller (Davis) apresenta a uma equipe seu plano de formar um time com os mais malvados dos malvados, atualmente presos, para proteger a cidade do “próximo Superman”. Seu raciocínio: caso outro ser poderoso dê as caras por ali, sem as boas intenções de Superman, o mundo precisará se defender. Então antes que qualquer ameaça concreta apareça e esquecendo-se de que o Batman já cumpre essa função, Amanda resolve soltar no mundo alguns dos criminosos mais perigosos do pedaço.
Não chega a ser um plano tão sem pé nem cabeça quanto o de Lex Luthor em “Batman vs Superman”, mas é uma ideia bastante idiota. Até porque a missão do esquadrão no filme é resolver um problema criado pela própria existência do esquadrão — uma das vilãs selecionada por Amanda, chamada Magia (Cara Delevingne), escapa do seu controle e destruirá a humanidade se o grupo de vilões não entrar em ação. A premissa estúpida poderia ser perdoada se houvesse alguma qualidade na vilã. Não há. Delevingne, mais conhecida por fazer parte de outro esquadrão famoso na vida real (o de Taylor Swift) e por sua carreira como modelo, é uma péssima atriz em um péssimo papel. Sua única função no filme é rebolar enquanto cria uma espécie de portal da destruição (sabe aquele portal no céu aberto em “Os Vingadores”? Aquele mesmo) e cospe clichês numa língua estranha com uma voz de monstro que parece ter saído de um aplicativo. Perto dela o Apocalipse de “X-Men” é um vilão quase do calibre de Darth Vader — nem vamos comentar do outro vilão do filme, que parece saído de um filme B dos anos 90.
O esquadrão suicida não é muito melhor desenvolvido. Logo no início, Amanda apresenta os vilões que selecionou, com uma ou duas frases sobre cada um. Pistoleiro (Will Smith) é um matador de aluguel que nunca erra um tiro, Arlequina (Margot Robbie) é a namorada louca do Coringa (Jared Leto), El Diablo (Jay Hernandez) controla o fogo e agora quer viver uma vida pacata, Crocodilo (Adewale Akinnuoye-Agbaje), bem, se parece com um crocodilo, e Capitão Bumerangue é um assaltante que usa um bumerangue como arma. Todos eles são controlados pelo militar Rick Flag (Joel Kinnaman), sobre quem não há muito o que dizer além de que ele é o centro moral da história. Em algum momento aparecem ainda Katana (Karen Fukuhara) e Amarra (Adam Beach), mas não dá pra entender quem eles são ou por que eles foram parar naquela história. Tudo isso é apresentado no trailer e é tudo isso, praticamente, que você saberá sobre eles ao fim da sessão.
Tirando Pistoleiro e Arlequina, nenhum vilão é bem explorado. Durante meses ouvimos os atores falando sobre como ficaram amigos, como fizeram tatuagens juntos e como isso contribuiu para a química em cena. Se isso é verdade, pedaços importantes foram cortados na edição, porque parece que todos se conheceram ontem. Em nenhum momento eles parecem verdadeiramente um time, apesar de o filme tentar convencer o público de que eles são uma espécie de família.
Pistoleiro e Arlequina são o que o filme tem de melhor a oferecer — dá para imaginar algum filme com uma história melhor centrado nos dois. Will Smith é quem mais se aproxima de um protagonista e é carismático o suficiente para fazer com que você se sinta curioso a seu respeito. Margot Robbie, com sua personagem ao mesmo tempo infantil e hipersexualizada, também se destaca na multidão — as poucas vezes em que você sorri ou dá risada são cortesia de sua Arlequina. É só uma pena que o filme esteja mais interessado em dar closes em sua bunda ou desenvolvê-la pouco além do seu relacionamento com Coringa, cuja presença não acrescenta absolutamente nada na história — ela é bem mais legal quando interage com os outros personagens e, apesar de provavelmente não agradar a todos, tem potencial e chama a atenção.
“Esquadrão Suicida” é uma bagunça. O roteiro não faz muito sentido, a edição é atrapalhada (em uma cena um personagem abandona o grupo, no quadro seguinte ele está de volta sem explicação), a trilha sonora é tão óbvia que distrai (a personagem de Viola Davis é apresentada ao som de “Sympathy for the Devil”, dos Rolling Stones, pra ficar num exemplo), os vilões são caricaturas com planos que se resumem a “quero dominar o mundo”, a maior parte dos personagens são simplórios demais. Mas vários desses defeitos são também encontrados em “Batman vs Superman” ou “X-Men – Apocalipse” e o filme fica cada vez pior à medida em que você pensa nele. É bom? Não. Mas não é do tipo de filme ruim que ofende, que te faz querer sair do cinema ou que será incluído na lista de piores filmes da história de muita gente. Tem filme ruim estreando no cinema toda semana. É frustrante porque poderia ser bom, porque tem um orçamento gigante e porque a expectativa em torno dele era alta. Mas se estiver passando no avião, pode ver tranquilo. Vai ser melhor que olhar pela janela.
“Como você ouviu falar do esperanto?”, questiona meu entrevistado, antes que qualquer pergunta sobre o idioma seja feita. Responsável pelo curso Estudo da Língua Internacional Esperanto e sua Cultura na Unicamp, o professor de física José Joaquín Lunazzi continua: “Vim da Argentina e lá, quando se fala [do esperanto] na mídia, se fala com muito respeito. É positivo. Aqui no Brasil, se aparece o tema, é pra falar contra. A língua que não deu certo, língua artificial, coisas assim”.
Criado pelo médico polonês Lázaro Zamenhof em 1887 para ser um segundo idioma para todos, o esperanto é uma língua misteriosa. Quem escolheria aprender um idioma que não é de nenhum país? Quantas oportunidades você teria de usá-lo? Mas ao contrário do que se pensa, o esperanto não é uma língua morta nem inútil. Cerca de 2 milhões de pessoas no mundo falam o idioma, formando uma comunidade tão próxima quanto entusiasmada.
“A maioria das pessoas não sabe o que é o esperanto, ou, se sabe, sabe tudo errado. Ouviu falar que o esperanto é uma língua morta, que o esperanto é a língua que Jesus falava. Um monte de maluquice. Que o esperanto quer acabar com todas as línguas do mundo e que todo o mundo só fale esperanto. Coisas absurdas. É o contrário disso, aliás”, diz, rindo, Emilio Cid, primeiro secretário da Liga Brasileira de Esperanto, que divulga a língua no Brasil.
Zamenhof, o criador, cresceu numa Polônia dominada pela Rússia, onde falava-se diferentes línguas e havia dificuldades de comunicação. Achava que esse problema poderia ser diminuído e as distâncias entre pessoas encurtadas se houvesse um idioma simples que todos pudessem falar. “Aí ele criou uma língua usando elementos comuns das línguas que existem e regularizou as regras. Também procurou sons fáceis de pronunciar, bem definidos”, diz Lunazzi. “O esperanto tem muito do latim, os radicais são bem parecidos. A gramática parece mais com a do chinês — por incrível que pareça é uma gramática muito simples, as palavras são muito derivadas. Quando você conhece um radical, como a palavra amor, transforma isso em 30, 40 palavras. Ele é feito de uma maneira que é fácil pra todo o mundo”, completa Emilio.
Facilidade de aprendizado e neutralidade linguística são dois dos principais argumentos utilizados pelos esperantistas para explicar por que resolveram estudar a língua — escolha que seus conhecidos estranhavam no começo (“não seria mais prático aprender logo o inglês?”). “Aprendi em quatro meses, estudando apenas uma vez por semana. Em comparação, fiquei minha infância inteira aprendendo inglês, com a ajuda da escola e de um cursinho particular, e meu inglês só ficou perfeito mesmo porque fui morar nos Estados Unidos. Isso é normal de acontecer”, conta a escritora Renata Ventura.
“O inglês é uma língua linda, sensacional, mas, como todas as línguas nacionais, possui várias exceções gramaticais, além de diversas complexidades de pronúncia e escrita, de modo que, se você não morar por alguns anos em um país que fale inglês, seu inglês dificilmente será tão bom quanto o de um nativo da língua”, diz. “E isso deixa as relações internacionais muito desiguais. Sempre americanos e ingleses vão ter mais vantagem, por terem aprendido o inglês desde bebês.”
No caso do esperanto, há poucas regras gramaticais e não há exceções. Se a palavra termina em “as”, por exemplo, é um verbo no presente. Se termina em “o”, é substantivo. Em “a”, é adjetivo. E por aí vai. Aprender a pronunciar é simples também, já que cada letra é sempre dita da mesma forma e cada som corresponde a apenas uma letra.
“Desde a primeira aula, o aluno já consegue pronunciar qualquer palavra que lê, e consegue escrever corretamente qualquer palavra que escuta. Os tempos verbais também são aprendidos todos em um dia só: presente, passado, futuro, infinitivo e imperativo. Em cinco minutos se aprende”, diz Renata. Também é uma língua bastante estável, sem termos que existem num país e não no outro. “No inglês todo dia eu encontro uma palavra nova, e nunca vai acabar. No esperanto não tem isso. Se alguém em um canto do mundo cria uma palavra nova, o resto vai reagir. Não pode. Todas as línguas evoluem, se transformam. Mas o esperanto não se transforma, ou se transforma minimamente, porque tem uma comunidade ciente disso, de que é uma língua para todos”, conta Lunazzi.
Saber falar esperanto pode, inclusive, ajudar a aprender outras línguas — algo como a flauta doce no aprendizado de música: uma vez que você sabe tocá-la, passar para outro instrumento é mais simples. “A grande dificuldade de falar inglês, francês, ou mesmo espanhol, é conseguir pensar fora da língua materna. Com o esperanto é muito mais rápido”, diz Cid. “É rápido de conseguir fluência, de conseguir pensar fora do português. Uma vez que você domina essa técnica, consegue adaptar pra outra língua. Se você dominou o inglês facilmente você aprende francês. O problema é que começar com o inglês dá mais trabalho que com o esperanto.”
Segundo Rafael Zerbetto, que trabalha na China no site de notícias em esperanto “El Popola Ĉinio”, no país algumas escolas usam o esperanto como língua para ajudar a aprender o inglês com bons resultados. Na Inglaterra há um projeto parecido, o Springboard to Languages, que ensina esperanto em escolas para que as crianças entendam como a linguagem funciona. “O pedagogo alemão Helmar Frank fez estudos sobre experimentos realizados em dezenas de países com o uso do esperanto como língua propedêutica: estudantes foram separados em dois grupos, um que estudava esperanto e depois outra língua estrangeira e outro que estudava somente a língua estrangeira ao longo de todo esse tempo e percebeu-se, em todos os experimentos, que o grupo que aprendia primeiro o esperanto dominava melhor a outra língua, mesmo tendo-a estudado por menos tempo”, diz Rafael.
LÍNGUA SEM ESTADO
Aprender esperanto não significa deixar de lado outras línguas, como o inglês — o esperanto não foi criado para ser o único idioma do mundo todo, e sim um segundo (ou terceiro, quarto…) que todos soubessem falar. “Pra quem está interessado, tento mostrar como o esperanto pode ser útil em viagens, por exemplo, mas nunca desmereço a importância de aprender inglês também, é claro. Por estar no meio acadêmico, sei que o conhecimento do inglês é essencial, mas o problema é parar o aprendizado de línguas por aí. Aqui no Brasil a gente tem muito pouco conhecimento linguístico sobre a diversidade, e, como linguista, eu valorizo o aprendizado da maior quantidade de línguas possível”, opina Karina Oliveira, mestranda na USP sobre esperanto e pós-graduanda em Interliguística na Universidade Adam Mickiewicz, na Polônia, que dá aulas em esperanto.
“Hoje, aprender inglês é certamente muito importante, especialmente do ponto de vista profissional, e seu aprendizado não deveria ser exatamente desestimulado, pois aprender qualquer língua é extremamente enriquecedor. Por isso mesmo, a atual realidade do inglês não precisa ser vista como uma barreira ou um desestímulo à realidade do esperanto”, concorda Fernando Maia Jr., diretor financeiro da Liga Brasileira de Esperanto, para quem é necessário, porém, que se faça alguns questionamentos. “Evidentemente, há um interesse político e econômico para o domínio da língua inglesa, que foi alavancado por um pequeno número de países interessados nisso, uma vez que há poucas décadas a língua francesa já funcionava como língua franca internacional.”
Para os esperantistas, a língua é também uma forma de dominação e o inglês é uma mercadoria, cuja disseminação favorece os países que o têm como idioma. “É a neutralidade do esperanto a maior qualidade do idioma. É uma língua que não tem dono. O esperanto não é dos norte-americanos, nem dos espanhóis, nem dos franceses, nem dos russos. O esperanto é de quem o aprende. Não dá vantagem a nenhuma cultura sobre as outras, nem coloca as pessoas de uma nação acima das pessoas de outras nações. Nenhuma língua nacional pode ser verdadeiramente internacional, porque sempre vai oferecer vantagens para um lado, favorecer um lado, em detrimento do resto do mundo”, opina Renata.
O domínio do inglês faz, por exemplo, com que exista uma desigualdade entre falantes nativos e não nativos, ou mesmo nativos de fora dos Estados Unidos — segundo Rafael Zerbetto, na China professores de inglês das Filipinas, onde o inglês é uma das línguas oficiais, ganham metade do que um americano. Também faz com que os outros países do mundo estejam mais propensos a receber a cultura anglófona, aumentando seu consumo de filmes, programas de televisão e música em inglês — mais lucro para países em que se fala a língua.
[olho]”Quem teria controle político sobre as negociações internacionais feitas em esperanto?”[/olho]
“Em 2005, a Universidade de Genebra liderou uma pesquisa sobre qual seria o impacto da adoção de uma língua neutra, como o esperanto, na União Europeia. A conclusão é de que a UE poderia economizar cerca de 25 bilhões de euros por ano”, diz Fernando Maia Jr. sobre o “Relatório Grin”, elaborado pelo professor suíço François Grin. Se todos falassem esperanto, por exemplo, não se gastaria nada com tradução. Ainda segundo o estudo, a Inglaterra ganha 17 milhões de euros ao ano com o inglês — graças a pessoas que vão lá estudar, venda de livros e economia nas escolas por não terem que ensinar uma língua estrangeira. “O que poderia explicar o lobby tão forte pela manutenção da língua inglesa como atual língua franca e, de algum modo, um lobby contra a ideia do esperanto”, afirma Fernando.
Para Karina, por outro lado, o esperanto é e não é uma língua completamente justa — já que isso talvez seja impossível. “Ao longo dos últimos anos, estudando um pouco mais sobre ciências sociais, fico me perguntando se, de fato, o esperanto seria neutro… Digo, a língua em si e a ideia como um todo são ótimas, mas se ela conquistasse sucesso, quem controlaria sua evolução? Quem teria controle político sobre as negociações internacionais feitas em esperanto, por exemplo? Em resumo, concordo que o esperanto é uma solução linguística melhor do que o inglês para a comunicação, mas não vejo como poderia haver uma língua internacional sem dominação político-ideológica…”
VOLTA AO MUNDO EM UMA LÍNGUA
Por ser uma comunidade pequena, os esperantistas são bastante próximos — vários entrevistados se conheciam, embora tenham sido localizados por meios diferentes. “É meio inadmissível eu ir pra algum lugar, por exemplo, e não levar o contato de pessoas que falem esperanto lá. Se você vai pra Munique — fui recentemente –, chegando lá você tem uma recepção, um sujeito que mora lá e vai ter satisfação em te encontrar, vai te levar pra passear”, conta Emílio. Existe um site, chamado Pasporta Servo que é como um couchsurfing para esperantistas — se você vai a algum lugar do mundo, consegue encontrar alguém que fale esperanto para sair com você ou mesmo te hospedar. “Isso é extraordinário porque, desse jeito, os esperantistas acabam conhecendo pessoalmente a vida cultural e familiar das pessoas do país que está visitando”, diz Renata. Há inclusive casos em que organizações esperantistas pagam passagens, providenciam itinerários e hospedagens para os visitantes.
Karina, por exemplo, conta que tudo que aconteceu em sua vida nos últimos cinco anos foi por causa do esperanto. “Parece história hollywoodiana, mas eu sou literalmente uma menina do interior que teve a sorte grande de viajar de graça pra outro país. Minha família não tem muito dinheiro, e por mais que eu tenha conseguido passar no vestibular e estudar numa universidade pública, não tinha muitas perspectivas de fazer viagens internacionais”, diz, sobre seu curso na Polônia. “Minhas viagens são todas subsidiadas por doações financeiras de outros falantes de esperanto, e o curso em si (que custa cerca de 800 reais por semestre), é pago por uma instituição dos EUA, chamada Esperantics Studies Foundation.”
Na faculdade de Letras da USP, onde faz o mestrado, Karina diz que o esperanto não é visto com bons olhos. “Eu ouvi muitas vezes, ao longo da graduação, que não valia a pena estudar uma língua planejada — e morta, porque muita gente põe a mão no fogo pra afirmar que ninguém fala esperanto hoje em dia… Tive alguns obstáculos pra conseguir ser levada a sério como pesquisadora”, conta. Hoje, diz que a aceitação é maior que em 2014, quando começou o mestrado, mas que ainda vê olhares descrentes em suas apresentações em congressos na universidade. “Apresentei meu trabalho algumas vezes em outras universidades e a recepção foi boa, o que fez com que eu ficasse com a impressão que na USP os linguistas são mais avessos ao assunto do que em outros lugares, mas não tenho dados suficientes pra afirmar isso com certeza absoluta.”
Embora a língua ainda seja pouco conhecida no Brasil, os esperantistas são otimistas. “Cada vez mais os jovens estão se empolgando com a ideia de mudar o mundo, e o esperanto aparece cada vez mais como uma iniciativa moderna e entusiasmante, que eles querem muito aprender. Eu costumo postar sobre o esperanto uma vez por semestre em meus perfis no Facebook, por exemplo, e sempre que posto, consigo pelo menos 500 e-mails de jovens interessados no curso. Já mandei o curso por e-mail para mais de 4 mil jovens e adultos, em poucos anos”, conta Renata, que usou o esperanto em seu livro “A Arma Escarlate”.
No site Duolingo, que dá cursos de línguas, o esperanto para inglês tem mais de 470 mil adeptos (ainda não há versão para português). Para falantes de línguas latinas, o curso online é realmente bem simples — em alguns dias já se tem boas noções de como o esperanto funciona.
Na opinião de Renata, toda mudança importante leva tempo para ser implementada — as pessoas demoraram anos para começar a colocar cinto de segurança no banco de trás dos carros, ela diz como analogia. “A humanidade é assim. Demora para reconhecer boas ideias, que facilitariam a vida de todos. É normal. Isso atrasa um pouco o avanço da humanidade, mas fazer o quê?”, afirma. “Aqui no Brasil mesmo há um projeto de lei a respeito de incentivar que o esperanto seja ensinado, para quem quiser, nas escolas… Enfim, está mudando. Aos poucos está mudando.”
Os longuíssimos dreadlocks esbranquiçados que se enrolam por sobre a cabeça de Larissa Baq tem um tom parecido com o de seus olhos claros. Suas frases são embaladas por uma voz mansa de leve sotaque do interior paulista, mas é difícil distinguir se ele foi adquirido em Franca, onde nasceu, ou quando morou em Limeira, Sertãozinho, Campinas, Pedreira e Ribeirão Preto. Mais plural que sua lista de endereços passados são seus talentos para a música. Larissa é cantora, compositora e instrumentista chegada em violão, guitarra, percussão e trompete. Enquanto passa o som para o Festival Concha, ela reserva um tempo para conversar sobre timidez, silêncio e seu álbum VOA, projeto totalmente autoral lançado em abril deste ano.
Risca Faca: A música começou cedo na sua vida. Você diz que aprendeu violão por influência da sua mãe e que, em casa, ouvia muito rock: Queen, Pink Floyd, Beatles… Você vem de um lar musical?
Larissa Baq: Não muito. Minha mãe toca violão e meu pai toca bateria. Eles tocavam de brincadeira na adolescência, mas ninguém acabou levando muito a sério. Quando eu nasci, e meu irmão depois, não existiam instrumentos em casa. Tinha um violão sem corda em cima do armário há muitos anos. O contato com a música se dava a partir do que eles ouviam, mas era tudo no automático. Não teve catequização da parte deles no sentido de nos fazer ouvir essa ou aquela banda.
Sua primeira composição foi aos 15 anos. Mas você só foi tomar a frente do palco mais tarde, saindo de um lugar mais discreto de compositora e instrumentista. Como foi esse processo?
Foi bem sofrido. Eu sentia a necessidade de ter uma independência porque, como instrumentista, eu só acompanhava outras pessoas. E eu também estava em um local de trás. De repente, eu estava indo para frente do palco e, ainda por cima, para cantar coisas minhas. Foram duas barreironas ao mesmo tempo. Eu queria muito fazer isso, então a vontade me impulsionou.
Você chegou a cursar Audiovisual em Ribeirão Preto. Mas a música sempre foi seu objetivo?
Eu tinha aquelas vontade clássicas. Queria ser veterinária até descobrir como tiravam a temperatura dos cachorros. Eu não tinha o sonho de crescer e ser musicista. A coisa foi tomando conta. Já existia uma predisposição desde muito cedo. Fui amadurecendo essa situação de estar tocando até que senti que existia uma linguagem para eu viver só daquilo. Eu já tinha saído da faculdade, mas mesmo enquanto estudava Audiovisual, eu me dedicava a tocar. Foi tudo paralelo. Mas desde que eu assumi só a música, eu amadureci mil por cento.
Qual foi a cronologia dos instrumentos?
Primeiro o violão, depois guitarra elétrica, aí várias percussões e depois o trompete. Levei a percussão mais a sério, estudando e tocando com outra pessoas, mas acabei largando por causa daquilo que disse: era muito sobre acompanhar outras pessoas e eu queria o meu trabalho. Então, peguei o violão e a guitarra para tocar minhas músicas. Hoje em dia é mais a guitarra que me acompanha nos shows, mas ainda vejo os outros instrumentos com muito carinho. Tenho um trompete tatuado no braço e tudo. Ainda tenho em casa todos os instrumentos que toco e, sempre que tenho um tempinho, pego um deles.
O VOA é seu primeiro álbum, mas você lançou o EP iR antes dele.
Ele está no meu canal do YouTube, no SoundCloud, mas ele fica mais escondido mesmo porque é muito diferente do que eu tenho feito nos últimos três anos. Ele é muito genérico. Eu era muito guiada por várias pessoas com que estava produzindo. Os trabalhos que vieram depois são muito mais eu. E o VOA é mais ainda.
Como você compõe?
Bem desordenadamente. Às vezes vem um início de letra que pode ter um potencial na guitarra, aí eu pego o instrumento e dou vazão ao resto da letra. Às vezes é algo na guitarra que puxa alguma lírica interessante. A letra puxa a melodia automático e vice-versa. Tudo serve de inspiração, mas basicamente relações com pessoas. Não só de amor, mas relações universais minhas e de pessoas que conheço. Tem sentimentos no disco que não necessariamente eram meus. Não gosto muito de escrever só sobre amor, mas não tem como fugir porque ele está em todas as relações. Sobre referências, acabei de passar por uma fase bem Chet Faker. Hoje ouço muito Far From Alaska, PJ Harvey, Thom Yorke, Juana Molina, o pop elétrico de Jack Garratt. Eu tenho uma boa relação com o pop, ouço Coldplay, Radiohead. De brasileiros, Guinga, Gal Costa, Lenine e mais uma porrada de gente.
O VOA veio depois de viagens que você fez se apresentando na Europa, Argentina e Uruguai. A viagem teve influência?
Algumas músicas eu compus viajando. Eu gosto muito de fazer isso porque amadureço muito meu som sozinha. E cheguei em uma identidade muito interessante, principalmente na guitarra.
O VOA foi possível por um projeto de crowdfunding no site Partio. Você disponibilizar o álbum livremente foi reflexo disso?
Enquanto filosofia artística, eu gosto muito que as músicas sejam acessíveis porque não é todo mundo que tem cartão de crédito para pagar dez dólares em um disco no iTunes. Enquanto uma pessoa que se liga no mercado da música, acho que não faz mais sentido a gente deixar as pessoas só ouvirem se elas pagarem. Principalmente aqui no Brasil. Na Alemanha, isso dá certo. As pessoas baixam o disco depois que compram. Aqui não tem como ou porque as pessoas não têm grana, ou porque não têm costume.
Como aconteceram as parcerias com a rapper britânica LyricL e com o músico Pedro Altério?
Fui para Londres em 2011 e conheci a LyricL. Voltei para lá nos dois anos seguintes, depois de lançar o iR, e mantivemos contato. Eu pirei porque ela tem uma voz muito interessante no sentido de se posicionar enquanto mulher e negra dentro da cultura hip hop londrina. Fiz o convite e ela foi uma querida. O Pedro Altério é meu irmão, a gente se conheceu há uns quatro anos, inclusive o estúdio em que gravei VOA é do pai dele. Era muito óbvia a participação dele com o álbum.
Sua música parece ter uma relação boa com o silêncio. É curioso que a primeira faixa se chame Pausa, que justamente é uma ausência de música.
Com certeza. Eu acho que muito disso vem da minha personalidade. Não sou uma pessoa que, uau, chegou e fala alto. Nunca fui muito comunicativa. Eu era aquela criança que se escondia quando chegava visitas em casa. Muito disso também é por causa da frente do palco ter me exposto enquanto compositora. Sofri muito por cantar minhas próprias músicas. Hoje em dia, eu consigo me comunicar, mas tenho bastante vergonha. Cantar na frente das pessoas não é mais um problema. Hoje tenho segurança porque é meu trabalho e sei o que estou fazendo. Eu tinha essa apreensão quanto às coisas darem certo e ao que as pessoas iriam achar. Eu amadureci e liguei o foda-se. Mas a relação com o silêncio vem da minha introspecção. Eu adoro os tempos que não existem. A definição de “música” em alguns dicionários é “sequência de sons e silêncios”. O silêncio também faz parte da música.
Chris Strompolos e Eric Zala eram colegas de escola com duas coisas em comum no início dos anos 1980: pegavam o mesmo ônibus para ir e voltar para casa e tinham visto “Os Caçadores da Arca Perdida”. Sabendo que Eric trabalhava em um filme como parte de um projeto da sexta série, Chris se aproximou dele um dia no trajeto com um gibi sobre as aventuras de Indiana Jones e uma proposta: fazer a própria versão do filme de Steven Spielberg, recriando a aventura quadro a quadro. “Foi assim que a gente se conheceu”, lembra Chris.
Sua experiência com cinema era nenhuma, mas Chris estava decidido a ser Indiana Jones. “Eu vi o filme em junho ou julho de 1981, quando estreou. Tinha muita expectativa porque era muito fã de ‘Star Wars’. Vi com meu pai e lembro que o personagem Indiana Jones era incrivelmente acessível. Ele era enorme, mas parecia muito real, como se ele pudesse realmente existir num mundo historicamente verdadeiro”, conta Chris por telefone, dos Estados Unidos.
“O filme se passava em 1936 e parecia um mundo real. E ele fazia todas aquelas coisas fantásticas nesse mundo. Era um personagem que eu precisava interpretar. Colocar o chapéu, o casaco, aprender a usar o chicote e lutar contra os caras do mal. Como seria fazer todas as coisas que ele fazia. Então criei esse playground”, diz Chris. Eric conta uma história parecida. “Vi o filme quando tinha 11 anos. Não esperava ser tão atraído por ele, mas fui. Quando vi a cena da pedra fiquei cativado, queria viver naquele mundo, conquistou toda a minha atenção.”
Com o amigo Jayson Lamb, a dupla começou a filmar em 1982. Foram necessários mais sete anos para que sua versão, conhecida como “Raiders of the Lost Ark: The Adaptation”, ficasse pronta. Ou praticamente pronta, pelo menos: uma das cenas, que envolvia a explosão de um avião, era impossível de ser feita por um grupo de adolescentes, e só foi finalizada 25 anos depois. Por isso, o vídeo que circula na internet tem seu Indiana Jones em diferentes estágios da puberdade, mudando de cena para cena — as gravações não foram feitas em ordem cronológica. “Se eu soubesse que ia levar tanto tempo ficaria aterrorizado. As primeiras imagens ficaram horríveis, mas continuamos”, diz Eric.
Disponível em qualidade de um VHS antigo, com a imagem levemente desfocada e tremida, o filme impressiona pela semelhança com o original, dos figurinos aos diálogos, passando pela famosa cena da pedra gigante que rola e ameaça o arqueólogo. Não havia internet ou mesmo cópias em vídeo disponíveis para eles usarem como referência, então eles precisaram ser engenhosos. “Não vimos o filme tantas vezes quanto as pessoas pensam. Vimos duas ou três vezes. Entramos com um gravador no cinema e captamos o áudio e a música, então conseguimos copiar o diálogo”, conta Chris. Um storyboard e um roteiro foram comprados em uma livraria, e eles adquiriam todos os tipos de coisa que tivessem alguma coisa a ver com Indiana Jones. “Eric e eu sentamos e juntamos tudo para fazer um storyboard, com umas 600 imagens baseadas na nossa memória da cena. Usamos esse roteiro nos sete anos seguintes. Quando filme saiu em laser disc em 1984 vimos que tínhamos chegado bem perto.”
“Minha mãe teve a reação que provavelmente qualquer pai teria. Seu filho chega e te fala que quer fazer um remake de um blockbuster de Hollywood e você sorri, dá um tapinha nas costas e diz: ‘Que ótimo, querido. Vá em frente’”, diz Chris. A grande ajuda dos pais veio em forma de mesada, presentes de aniversário e Natal. Toda oportunidade de ganhar um presente era uma oportunidade de conseguir objetos e roupas úteis para o filme. Acharam também coisas em closets, doações, porões e feiras. “A gente pedia e implorava. Fomos juntando todo o tipo de coisa na medida em que avançávamos. Mas não tínhamos orçamento.”
Como atores e equipe, os amigos e crianças do bairro eram escalados — ao longo dos sete anos Chris calcula que cerca de cem pessoas participaram do projeto. Conseguir atores foi tranquilo, a complicação foi fazer com que eles quisessem voltar para filmar no verão seguinte. “Crianças querem fazer algo por umas horas e depois fazer outra coisa completamente diferente. Essa foi a parte difícil. Tínhamos uma lista de telefones, contato dos pais, endereços… Aí o Eric ia caçar essas crianças no começo de cada verão.” Eles também pensaram em desistir algumas vezes. “Várias vezes você perde o entusiasmo e não é tão divertido quanto você acha que vai ser. Mas há uma lição aí: o processo criativo é muitas vezes mais agonizante que agradável. Foi algo bom de aprender. Eric eu brigamos uma vez por uma garota e outra por uma questão técnica no áudio. Batíamos cabeça, mas voltávamos atrás e continuávamos trabalhando.”
Além de dirigir o remake, Eric fez parte do elenco como coadjuvante para o Indy de Chris. “Apesar de eu ter interpretado o Indiana Jones, nunca me machuquei. Era sempre o Eric que sofria. Ele quebrou o braço, colocamos fogo nele, ele quase se queimou todo quando jogamos gasolina nele. O máximo que tive foi uma insolação gravando uma cena num caminhão”, diz Chris. “Nenhum de nós estava pronto para as cenas de ação.”
Mas deu-se um jeito para tudo (“até hoje eu manteria o cachorro interpretando o macaco. Foi conceitual”, diz Eric), com exceção da cena em que, depois de uma briga, Indy salva a mocinha enquanto um avião explode. “Era mais importante para Eric completar o filme. Foi ele quem ficou um pouco assombrado por isso. Pra mim teria sido ótimo ter feito, mas era logisitcamente inviável”, diz Chris. Mas quando Chris conheceu o produtor Jeremy Coon, de “Napoleon Dynamite”, surgiu a oportunidade de finalmente fazer a cena. Jeremy soube da história deles e sugeriu que fizessem um documentário sobre o filme — acrescentando a tal cena do avião. “Quando estávamos discutindo o documentário eu tive a ideia de ressuscitar a ideia do avião. Parecia uma narrativa legal para o documentário, meio que o presente misturado com o passado. Depois disso convenci o Eric de que seria legal, brutal e certo fazer isso. E fizemos.” Para Eric, terminar foi uma sensação de outro mundo. “Fiquei muito grato e aliviado”, diz, ressaltando que foi difícil ter que fazer a cena em dias — e não ter mais sete anos disponíveis.
Jeremy não foi o primeiro cineasta a procurar Eric e Chris para tentar contar sua história. “Mas nunca deu certo por causa do background deles, do que eles queriam, do timing, ou da falta de recursos. Mas quando você conhece Jeremy vê que ele vai fazer o que diz que vai fazer. E suas intenções eram boas, ele entendia a história, a amava e tinha uma objetividade grande. Tipo: ‘Eu adoraria contar isso, mas acho que a história tem que ser contada de qualquer jeito’. Em 20 minutos comendo hambúrguer e fritas a gente resolveu.” O filme “Raiders!” começou a ser exibido nos Estados Unidos no mês passado, numa turnê que vai até setembro e talvez ganhe uma turnê internacional.
Nas apresentações que fazem, os dois conhecem vários cineastas amadores e crianças que sonham em trabalhar com cinema. “Sempre falamos que ser criança é uma coisa maravilhosa, você não tem consciência do que não pode fazer, e isso te dá abertura. O caminho está aberto, você tem menos obstáculos assim. Dizemos a jovens cineastas: não deixem que te digam o que fazer. Parece clichê, mas você ouve não, não e não e continua insistindo e consegue um sim”, diz Chris. “Também digo: escolha bem sua equipe. Cinema é um esforço colaborativo. E tem muita gente que não te leva a sério quando você tem 14 anos, mas não aceite não como resposta. Continue perguntando. E, finalmente: sempre termine. É quase milagroso terminar um filme. Mas se você não termina, aquilo vira só uma coleção de imagens que não vai ter aquele impacto na vida das pessoas, então é importante terminar o projeto mesmo que seja difícil”, completa Eric.
Nesse processo, Eric e Chris — que hoje têm uma pequena produtora chamada Rolling Boulder Films (em referência à pedra que rola em “Caçadores”) — conheceram Steven Spielberg, uma experiência que foi tudo aquilo que eles imaginavam. “Ele foi muito caloroso, paternal e gentil. No nosso encontro ele disse: ‘Ei, vi o filme de vocês, gostei muito, e queria conhecer vocês pra dizer que vocês me inspiraram’”, diz Chris. O diretor inclusive mostrou para eles erros de gravação e cenas que não entraram no corte final. “Foi tipo: ‘O que acabou de acontecer?’. É ótimo conhecer seu herói de infância e ver que você escolheu bem”, lembra Eric.
Diferente do que se imagina, porém, “Os Caçadores da Arca Perdida” não é o filme favorito da dupla. “Eu amo, mas definitivamente não é meu preferido, porque representa muitas outras coisas que a experiência de ver um filme geralmente não representa. Virou quase um… Não sei. Parece bobo dizer, mas virou quase um estilo de vida esquisito”, diz Chris. “Está numa categoria à parte, porque mudou minha vida”, completa Eric.