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A garota de lugar nenhum

Sentada à minha frente, comendo um petit gateau, Maha Jean Mamo falava, na tarde de uma sexta-feira de setembro, sobre o pesadelo burocrático de sua vida. Sobre como não teve nenhum tipo de documento até os 26 anos, sobre o que teve de fazer para existir e encontrar soluções que seus pais, advogados, diplomatas e ministros achavam impossíveis. Sobre como tinha abandonado toda sua vida no Líbano e vindo para o Brasil sem falar uma palavra em português. Sobre como esse país tinha dado a ela tanta felicidade e tristeza em uma proporção para a qual não há cálculo possível. Sobre como, em resumo, foi sua vida de apátrida.

“Eu tinha oito anos quando comecei a perceber. Participava de corridas na escola, ganhava, mas não podia participar das competições de fora. Era escoteira desde pequena e, quando eu tinha 15 anos, nosso grupo todo foi pra Jordânia. Eu não pude ir. Era um choque atrás do outro”, me disse Maha em uma sorveteria no centro de Ibitinga, município de 50 mil habitantes no noroeste paulista.

Um apátrida é alguém que não tem nenhum tipo de vinculação a uma nacionalidade, nenhuma prova de reconhecimento oficial pelo Estado. O que aconteceu com Maha tem origem na interferência da religião com a lei. O pai é cristão e a mãe, muçulmana. Ambos nasceram e se conheceram na Síria, onde o casamento inter-religioso é proibido. Para ficarem juntos, a única solução deles foi abandonar a cidade em que moravam, a hoje devastada Aleppo, e casar em uma igreja em Beirute em 1984.

Assim, Maha e os irmãos não podiam ser libaneses, pois o pai era sírio, e também não podiam ser sírios, pois o casamento não era reconhecido pelo Estado, muito menos os filhos daquela união proibida. Foram frutos da paixão romântica com o amor impossível — tinha tudo para dar errado.

Por não existir legalmente, a vida dela e dos irmãos foi complicada em cada episódio que envolvia um documento. Estudou de favor em uma escola armênia, precisou de uma autorização especial do governo para prestar o equivalente libanês do Enem e só conseguiu entrar em uma faculdade por insistência e sorte. “Depois da escola, minha irmã mais velha quis ir pra faculdade, mas não foi aceita. Quando isso aconteceu, meu irmão abandonou os estudos.”

Ela decidiu tentar. Fez uma lista com mais de 40 possíveis universidades, entre públicas e privadas, e conta que tinha nota para entrar em todas. “Eu queria fazer medicina. Chegava nos locais e dizia: ‘Quero estudar, mas não tenho documentos. Você me aceita?’. Na primeira a que eu fui, o cara jogou papéis na minha cara.” Todos respondiam a mesma coisa: não. Até que encontrou a AUL Arts & Science University, na qual o diretor era o próprio dono e por isso as irmãs puderam estudar. Cursou o equivalente a Sistemas de Informação e a irmã, Engenharia da Computação. Mais tarde, fez um MBA.

Trabalhou dentro da faculdade para poder abater os custos do curso e fazia uns bicos onde conseguia que aceitassem um trabalhador ilegal — se não tinha identidade, menos ainda carteira de trabalho. “Meu pai era tão ‘machisto’! Não queria que a gente trabalhasse, mas a gente precisava.” O pai, um motorista de caminhão, não tinha condições de bancar uma universidade privada. Era a única opção.

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Nacionalidade: Apátrida. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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É difícil saber como é não ter documentos. A maior parte das pessoas experimenta essa sensação por uma fração de tempo quando tem a carteira roubada. E mesmo assim a gente sabe que a prova oficial de quem somos está em algum lugar. No caso de Maha, essa sensação era permanente em um país onde conflitos externos e guerras civis foram constantes depois dos anos 1980. Se ela fosse parada em um checkpoint na cidade, não teria o que mostrar. Poderiam achar que fosse, talvez, uma terrorista e mandá-la para prisão. Uma emergência hospitalar também poderia ser um grande risco.

“Eu tenho uma alergia chamada urticária em um nível muito alto. Tinha uns 20 anos e nem sabia que tinha isso. Durante o casamento de um amigo, comecei a me coçar muito. Fui ao banheiro e não me reconheci no espelho. Me levaram desmaiada ao hospital, mas não queriam me atender. Meus amigos foram em peso, pois sabiam que podiam não me aceitar. Tiveram uma grande briga lá até que uma amiga pegou a identidade e disse: ‘O nome dela é esse. Vocês vão aceitá-la e nos dizer quanto custa que nós vamos pagar’.” Maha foi atendida.

Não sei qual a cara que fiz ao ouvir esse episódio, mas ela me disse: “Agora eu tenho seguro e remédios comigo. Não se preocupe”. E riu.

Naquele momento, ela tinha deixado a sobremesa de lado e eu tinha acabado um capuccino doce demais. O ambiente da sorveteria Slechi parecia colorido e descontraído demais em contraste com a história. Apesar de tudo, Maha é vivaz, enérgica, e narra a própria história sem autocomiseração e sem aquele artificialismo narrativo de uma palestra do TED. Ela se conecta rápido com as pessoas porque transmite sinceridade. Ri, gesticula, bate no gravador e mistura algumas palavras em português no meio do papo. Tem cabelos curtos, escuros, onde se percebe alguns fios brancos, e olhos bem grandes, cujas pálpebras se abrem com força e deixam à mostra a íris escura banhada por todos lados pelo branco do globo ocular. São olhos bem abertos, de quem viu pouco do mundo, mas tem gana de ver tudo o que for possível.

Ela esgotou as possibilidades para ganhar cidadania no Líbano: tentou fazer valer a lei que dá cidadania a quem mora há mais de 10 anos no país, mas a regra nunca funcionou. Tentou alegar que era órfã, ser adotada, adotar, casar. Nada funcionou.

Se no Líbano não era possível, o próximo passo era tentar pela Síria. Foi até a embaixada, contou o que estava acontecendo e conseguiu uma advogada. “Passava sempre pela conversão do meu pai.” Mas a guerra civil síria começou e a solução desapareceu. A própria advogada se tornou uma refugiada. Maha não desistiu. Estava decidida a entrar nesse mundo em que nós vivemos, de cartas de propaganda que chegam pelo correio com nosso nome impresso a carimbos de países exóticos no nosso passaporte.

“Busquei no Google todas as embaixadas que existiam em Beirute e fui disparando e-mails contando minha história”, disse fazendo uma vozinha irônica, como que lembrando da reprodução infinita do porquê ela não tinha nenhum documento. A lista de rejeições imediatas foi longa, com exceções. O Canadá a chamou, adorou seu perfil. Maha tinha um MBA e falava quatro idiomas: árabe, francês, inglês e armênio. “Disseram que meu perfil era ótimo, que me queriam no Canadá, mas me perguntaram como iriam colocar um visto no meu passaporte se eu não tinha um. Disse que meu maior problema era não ter um passaporte e que estava lá por isso.” Não adiantou.

A embaixada americana não a chamou, mas respondeu ao e-mail e definiu pela primeira vez para Maha qual era o seu problema: um caso de apatridia. Indicaram contatos na ONU, que também não puderam ajudar – “mas a menina que me entrevistou lá é minha amiga até hoje”. Ela também passou por uma entrevista de oito horas na embaixada da Suíça. Saiu chorando.

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Maha em sua casa, em Ibitinga, com recordações e foto de seu irmão. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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Depois veio o México. E quase deu certo. Conseguiu um arranjo em que bastava a ela encontrar um trabalho e um lugar para morar para poder ir. “Encontrei um empresário libanês dono de uma cadeia de restaurantes cuja mulher também tinha sido escoteira. Ele conhecia pessoalmente o pessoal do consulado. ‘No Natal, você vai estar aqui’, ele me falou.” Era novembro de 2013 e Maha tinha alcançado a solução suprema: ela havia decifrado um problema impossível.

“Meus pais sempre foram contra minhas tentativas. Eu sempre dizia que iria viajar um dia e eles me mandavam parar de sonhar. Não queriam que eu me frustrasse. Mas quando chegou a hora de contar para minha família, meu pai se ofereceu para pagar minha passagem.” Ela contou a todos, mas… sempre tem um maldito mas. No final de 2013, algo mudou no México e Maha precisou esperar. Levaria mais tempo que o esperado, mas era certo que ela conseguiria. Então, ela relaxou.

Nesse meio tempo, Souad, a irmã mais velha, pediu o e-mail que Maha estava mandando para as embaixadas, mudou o nome e os dados e começou a disparar também. Era fevereiro de 2014, quando recebeu a ligação de um diplomata brasileiro pedindo documentos. Maha a ajudou e o inacreditável aconteceu. O Itamaraty foi eficiente: em duas semanas ligaram e pediram para Souad buscar o passaporte e o visto. Foi tão rápido que as irmãs achavam que se tratava de um esquema de prostituição internacional. “Quando ela pegou os documentos, liguei para ela e perguntei se era o nome dela com foto no passaporte. Ela disse que sim.”

Souad pegou o documento em uma quinta-feira, e seu voo foi marcado para segunda-feira. Maha correu para o Facebook e encontrou uma família brasileira que se dispôs a aceitar a irmã. A solidariedade falou mais alto, mas houve uma espécie de troca amena de medo e preconceitos: as libanesas achavam que entrariam para uma rede de prostituição no Brasil e os brasileiros temiam estar abrigando terroristas em casa.

No dia do embarque, mais um problema. “A polícia me parou. Faça alguma coisa”, dizia uma mensagem de Souad para Maha.

Era uma situação não prevista, mas que fazia sentido burocrático: como uma pessoa iria embarcar com um passaporte especial apenas com visto brasileiro, sem o registro de entrada no Líbano? A polícia federal libanesa acabou por liberar Souad, mas estabeleceu que, para sair, ela teria que pagar cinco mil dólares por cada um dos 28 anos que viveu ilegalmente no país. Agora, havia solução, mas não havia dinheiro.

Maha ativou sua rede de contatos e encontrou uma alternativa. Era ruim, mas era o que tinha. Conseguiram diminuir a multa, mas ficariam “black listed”. Ou seja: proibidas de voltar — para sempre. Depois de um mês, a irmã conseguiu embarcar. “Quando ela chegou no Brasil, meu pai me disse: ‘Esqueça o México, seus irmãos vão precisar de você lá’.” Ela aceitou.

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Foto: Gui Christ/Risca Faca

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Foi no dia 19 de setembro de 2014 que Maha, com o irmão, recebeu pela primeira vez na vida um documento que dizia quem ela era. “Senti que existia, que tinha encontrado a ‘solution’, que iria viajar antes de morrer. Era fantástico! Uma nova vida, novos horizontes, novas oportunidades.” Ela não sabia nada sobre o país que a aceitara, exceto o clichê futebol, samba e a qualidade de nossos cirurgiões plásticos. Nunca tinha ouvido falar de Belo Horizonte nem de Minas Gerais. Mas o Brasil é o Brasil. Eu sei, você sabe. Maha descobriria da pior maneira.

Sem falar uma palavra em português, quase sem dinheiro para se sustentar, os três irmãos passaram a viver juntos na casa da família Fagundes, uma família católica de classe média baixa. Márcio, o pai, deixou o segundo andar da casa para o trio estrangeiro. “Eles abriram a casa para nós, nos ajudaram muito”, me disse Maha. Ainda hoje Souad mora com eles.

Distribuíram folhetos, trabalharam em uma padaria, mas a barreira da língua se revelou grande demais para conseguirem um trabalho estável. “Eu tentei de tudo. Foi muito ruim. Sofremos muito e começamos a nos perguntar o que estávamos fazendo aqui.” Ela também se deparou pela primeira vez com moradores de rua, assaltos e assassinatos. Sua programação mental estava preparada para outro tipo de insegurança, o terrorismo, que era uma ameaça, mas não diária.

[olho]”Começamos a nos perguntar o que estávamos fazendo aqui”[/olho]

Nos primeiros sete meses, longe do Líbano, dos amigos, da família e do próprio idioma, ela penou. Maha começou a sair do casulo da proteção familiar quando recebeu a visita de sua melhor amiga, Nicole Khawand, uma das poucas pessoas que a apoiou nas tentativas de encontrar uma solução para sua não existência burocrática. “Viajamos juntas e tinha momentos em que precisava falar português, que era obrigada a me comunicar com as pessoas. Precisava parecer forte na frente dela.” O processo fez com que Maha retomasse a antiga confiança, perdida no choque inicial com o Brasil.

Mais confiante, Maha entrou em contato com a Acnur, agência de refugiados da ONU, para resolver o problema com o visto. Maha havia entrado no Brasil como apátrida, algo que a lei brasileira não está preparada para lidar. Na prática, significa renovar o visto de seis em seis meses. O objetivo era conseguir o estatus de refugiada, o que lhe permitia receber um visto de cinco anos e, mais tarde, obter um Registro Nacional de Estrangeiros (RNE) — um número no sistema que permitiu a ela ter um passaporte brasileiro especial para estrangeiros, um documento que quase ninguém conhece.

Agora, ela era um combo quase único: apátrida e refugiada. Pela força de sua história e pela coragem de se expor, Maha foi convidada pela ONU para ser a embaixadora jovem do programa de apátridas chamado I Belong. Apesar dos novos documentos, ela seguiu vivendo em uma espécie de apartheid individual. Podia viajar pelo Brasil, mas precisava de uma autorização do ministério da Justiça para ir para o exterior e de uma carta do país que a receberia. Mesmo assim nenhum país da Europa aceita o passaporte que ela usa para viajar. Em uma viagem para a Turquia, o agente da imigração do aeroporto olhou o documento e disse: “É falso”. Só era diferente.

A maior parte dos seus documentos é diferente. Na rodoviária de Ibitinga, quando nos encontramos pela primeira vez, ela aproveitou para comprar uma passagem no ônibus da meia-noite para São Paulo. O funcionário no guichê de atendimento, Claudino, segundo o crachá, pediu o documento. Ela entregou um cartão de plástico, cor salmão, um pouco maior do que uma carteira de identidade. Claudino também parecia estar vendo pela primeira vez. Olhou de um lado, virou, olhou do outro, talvez tenha lido a palavra “apátrida”, mas não falou nada. Anotou os dados, devolveu o documento e imprimiu a passagem. Na entrada do ônibus, o processo foi parecido. Voltaríamos juntos na madrugada, acompanhados por Guilherme Roger Venâncio, um estudante de artes de 22 anos que se tornou amigo de Maha. No sábado pela manhã, os dois participariam de uma oficina na sede do Google. O ônibus estava quase cheio, mas ela pediu para sentar ao lado da janela. “Gosto de sentir que estou viajando.”

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O incomum passaporte brasileiro para estrangeiros e outros documentos de Maha. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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A vida de Maha é tão singular que ela conseguiu um emprego pelo site Catho. Desde fevereiro, ela se mudou para a fazenda onde funciona a Agro Betel, em Ibitinga. Com a vida nos eixos, ela estava em uma curva ascendente. Até que o Brasil mostrou os dentes. Na madrugada do dia 30 de junho deste ano, ela foi acordada por uma ligação: o irmão estava morto. “Eddie estava com a namorada no carro, quando pararam em um cruzamento perto de casa. Eles entregaram o carro e saíram, mas quando meu irmão falou, eles atiraram. Foi uma bala só. Pegou no coração. Ele foi morto por três adolescentes drogados. E por que são adolescentes não há justiça. Eu amo o Brasil, mas o Brasil pegou a melhor coisa da minha vida.” Seus olhos estavam marejados e foram tomados por uma rede crescente de capilares vermelhos. Paramos a entrevista.

O assassinato do irmão operou uma mudança em Maha. Antes, ela estava mais preocupada em conscientizar as pessoas para o problema dos apátridas. Agora, quer se tornar cidadã brasileira o mais rápido possível. Pelo ritmo normal, demoraria entre oito e 15 anos, o que ela não considera mais um opção. “Não quero mais estar numa prisão. Eddie morreu sem realizar os sonhos dele, sem ver meus pais novamente, sem ter uma família, sem poder viajar, sem ser livre. Eu preciso achar outra solução e pressionar para a criação de uma lei que permita aos apátridas receberem a nacionalidade.”

Maha pagou a conta na sorveteria. Mais tarde, acompanhados por Guilherme, fomos jantar na La Bella Pizzaria, um rodízio de pizza. Ela chamava os garçons de “habibi” – querido, em árabe – e ela não conseguia entender porque colocavam queijo na pizza de abacaxi. Acabou a refeição com uma fatia de chocolate branco.

Ficamos caminhando pela cidade, enquanto esperávamos pelo ônibus da meia-noite. Embarcamos, e cada um se sentou em uma fileira diferente. Maha foi direto para a janela sem ninguém ao lado dela. Cerca de 40 minutos depois, paramos em Araraquara onde mais pessoas subiram. Um rapaz de óculos parou ao lado dela. Não a cumprimentou e disse: “A janela é minha!”, com um tom de garoto mimado. Eu queria me levantar e dizer pra ele tudo o que ela já tinha passado para conseguir sentar naquela janela e poder gozar do prazer de viajar. Dos documentos, do irmão, da Síria, do Líbano. Mas não falei nada. Maha foi para o assento do corredor, mexeu um pouco no celular e depois dormiu até chegar em São Paulo. Ela só queria sentir que estava viajando.

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Comportamento

A invasão do K-Pop

 

“AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”

Se tem uma coisa que você precisa saber sobre K-pop, a música pop produzida na Coreia do Sul, é que o fanatismo obcecado dos fãs se expressa em gritos. É início de noite da quinta-feira, 21 de julho, e o Teatro Gazeta, na avenida Paulista, está lotado de adolescentes, sobretudo meninas, segurando um mar de varinhas de neon.

No palco, sucedem-se 17 grupos covers de dança e canto selecionados para o 3º Korean Pop Festival. O prêmio geral é cinco mil reais e o de cada categoria, três mil. Mais importante: os vencedores poderão disputar uma vaga para competir na final mundial na Coreia do Sul.

Cada artista que pisa no palco, “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”, cada grupo, “AAAAAAAAAAAAAAAAA!”, cada mensagem dos apresentadores “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”, é respondida com uma manifestação ululante das fãs.

No palco tem uma menina que, meu Deus!, o que é isso? É a Pammie interpretando Arirang Alone, da cantora So Hyang, com uma voz tão imponente que se impõe sobre o grito da plateia, atingindo uns agudos lá pra cima na escala. Gente, ela é tudo! Canta em coreano, apesar de não ter completado nem o primeiro módulo do idioma. Ela não é nem cantora profissional, mas auxiliar administrativa em uma empresa que vende doces e salgados. Se não fosse o K-pop, o nome dado ao fenômeno cultural coreano, ela não estaria cantando. E esse prêmio é importante, porque ela ganhou o geral do ano passado, mas não foi pra Coreia, embora merecesse muito! Todos ali sabem quem é Pamella Raihally.

Sabia que o Brasil já teve uma banda que tentou imitar o pop coreano? Era a Champs, que apareceu na Ana Maria Braga (ela chamou de Champers, ai…), ganhou 600 mil likes no Facebook, mas acabou e um integrantes do grupo virou YouTuber e já tem 70 mil seguidores. O Iago, lindo!, virou ex-Champs, seguiu dançando e tem uma banda cover chamada Allyance, que está agora reunida nas coxias de teatro. A apresentação da cantora Mônica Neo, que veio depois da Pammie, está acabando. Eles estão ali há um minuto abraçados e, de repente… o “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA” invade as coxias. O nome da banda está no telão. Todos sabem que é a banda de Iago Aleixo.

O grito, aqui, não é o símbolo do desespero, mas da tomada de assalto da cultura coreana em segmentos dos jovens brasileiros, num fenômeno chamado Hallyu — a nova onda avassaladora que veio da Ásia e abocanhou os jovens da classe C.

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Crédito: Anna Mascarenhas

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A infiltração do K-pop no Brasil pode estar à margem da sua rede de contatos e até da sua timeline, mas ela é a parte mais expressiva do soft power sul-coreano por aqui. Pelo leste da Ásia, os produtos culturais do país se espalharam com a força de uma política de Estado que deu certo. O termo Hallyu precisou ser criado por jornalistas chineses para explicar a influência cultural do Estado vizinho.

Por falta de acesso aos mercados dominados pelas grandes gravadoras e incapazes de enfrentar a pirataria na China, as empresas coreanas abdicaram do CD e apostaram no que acabou por se tornar a MTV dos anos 2010, o YouTube. Deu certo? Bom, lembra do Psy? A música Gangnam Style, que explodiu em 2012, não passava de uma piada interna, uma ironia a uma cultura musical bem estabelecida — até hoje nenhum vídeo superou sua marca de dois bilhões de visualizações.

Os clipes das bandas mais famosas entre os fãs costumam ter um ar mais romântico, a um só tempo atrativo e infantil, no qual a beleza dos artistas parece ter saído de um anime. Existe um grau de sexualidade latente, mas sublimada nas atitudes dos músicos jovens: sempre educadinhos e fofos; nunca machos alfa pegadores.

Pouco a pouco, via YouTube e bordas da cultura anime, o K-pop começou a fincar raízes bem no momento em que a classe C se expandia no Brasil e procurava novas referências culturais. Mesmo exóticas, elas se acomodaram a valores mais conservadores, evangélicos, acompanhadas por sonhos de luxo e glamour. Alessandra Vinco começou como fã em 2011 e agora pesquisa o tema pela Universidade Federal Fluminense. Para ela, K-pop é um gênero híbrido: se apropria de elementos globais, mas preserva valores confuncionistas, como a preservação da família, o respeito ao próximo e o resguardo da vida sexual.

Uma pesquisa do centro cultural coreano apontou que o número de fãs no Brasil era 220 mil pessoas. A sensação é que o número é bem maior. A maior prova, para além dos diversos sites e festivais que cultivam o nicho, é que o programa do Raul Gil vai estrear um quadro chamado “Quem sabe, dança K-pop” no dia 13 de agosto. “Nesta nova atração”, diz o locutor do vídeo promocional, “atravessamos o planeta para trazer um gênero musical repleto de batidas emocionantes e coreografias absolutamente viciantes”. Grupos cover podem se inscrever no site do SBT. O prêmio será de 10 mil reais.

Já os aspectos demográficos têm dados um pouco melhores. Em 2015, Tiago Canário, um doutorando no departamento de Cultura Visual da Korea University, fez uma pesquisa online na qual 2.764 pessoas responderam a um questionário sobre o cultura corena no Brasil. Dessas, 91,3% se identificaram como mulheres, 8,36% como homens. No total, 95% dos fãs de K-pop tinham entre 10 e 29 anos. Apenas 18 pessoas se identificaram como descendentes de coreanos.

Ricardo Pagliuso Regatieri, um pesquisador brasileiro do departamento de sociologia da Korea University, escreveu em artigo ainda não publicado que os fãs paulistas vêm de regiões periféricas e semiperiféricas da cidade e arredores. Resultados preliminares de outra pesquisa online feita com 635 pessoas mostra que 37% dos fãs têm renda familiar entre R$1.751 e R$3.500 por mês e 26% têm renda familiar mensal de até R$1.750. Ou seja, boa parte se enquadra dentro da nova classe C brasileira.

No artigo, Regatieri oferece uma interpretação do fenômeno: o K-pop se conecta ao processo de mobilidade social, usando a popularidade da internet no país como principal combustível. No processo, os fãs do estilo no país buscam uma ruptura com os modelos culturais de seus pais e avós. A fábrica de sonhos do K-pop, ele escreve, oferece um repertório de modernidade centrado nos prazeres do consumo, da moda e do glamour da vida na cidade.

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Pammie em ação. Crédito: Anna Mascarenhas

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Pammie e Iago — a cantora e o youtuber — são parte dos dois mundos. Moradora do limite entre São Paulo e Diadema, ela começou a cantar pequena, nos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus. Logo, o talento foi reconhecido e começou a ser chamada para se apresentar, de graça, em casamentos dos fiéis. Em 2010, no último ano da escola, viu o primeiro clipe de K-pop pela internet — era GARAGARA GO!!, da BIGBANG.

“O K-pop foi natural pra mim. Cheguei a mostrar para algumas amigas, mas elas não ficaram tão fãs como eu. A gente ensaiava numa sala vazia para se apresentar nas festas da escola”, me disse por telefone durante o seu intervalo do almoço na empresa onde trabalha como auxiliar administrativa, no Morumbi.

Pamella, 23, é um tipo de talento natural. Chegou a fazer aulas de canto depois que alguns professores elogiaram sua performance ao interpretar uma música da Rihanna em coreano. Não chegou a concluir o curso, contudo. Eram tempos de IPI reduzido. “Na época, meu pai queria comprar um carro. Como era ele que pagava pra mim, e a escola era muito boa e cara, eu sacrifiquei a minha aula para podermos comprar. Depois, não voltei mais.”

Uma das juradas do 3º K-pop Festival, a cantora lírica Cecília Massa, acha que Pammie tem potencial para ser uma cantora de jazz. “Vejo nela um altíssimo nível vocal, capaz de fazer variações muito rápidas na voz. A primeira vez que a escutei ela me lembrou da Whitney Houston”, me disse numa tarde do final de julho em um café em Santa Cecília.

Para ela, Pamella está escutando um repertório com melodias simples e harmonia básica. “Ela tem um material maravilhoso, mas é uma escolha dela”, disse sem nenhum tom professoral. “Seguir cantando é uma felicidade que ela pode ter e dar ao outros”.

Acontece que Pammie fica num cruzamento em termos de mercado e talento. É boa demais para o que faz sucesso na televisão, mas tem poucas referências de caminhos a seguir e cantoras em quem se inspirar. “Você não consegue viver da música aqui no Brasil”, me disse Pammie. “Já pensei em seguir mas é difícil. Acho que se eu não tivesse conhecido o K-pop, hoje não estaria cantando.” Uma vitória no concurso é o estímulo para fazê-la seguir o que lhe dá mais prazer.

As empresas coreanas conseguiram criar uma tecnologia cultural capaz de criar boys e girls bands em uma sequência quase industrial. Os futuros artistas entram como trainees por volta dos 15 anos e saem capazes de atuar, cantar, dançar etc. Existe o V-pop (Vietnã), o T-pop (Tailândia) e J-pop (Japão). E por pouco não vingou por aqui um B-pop.

Iago Aleixo, hoje com 20 anos, foi uma cobaia da tentativa de reproduzir o modelo no Brasil. Aos 17, foi selecionado por um produtor coreano e passou a morar com mais cinco pessoas no centro de São Paulo. Nascido no Rio, hoje ele mora com a mãe em Osasco.

Nos encontramos no café do Centro Cultural São Paulo, que se tornou o ponto de encontro dos k-poppers, um pouco antes de um ensaio da sua banda, a Allyance, para o festival que ocorreria na semana seguinte. Antes da conversa, ele entrou no bar e saiu com uma garrafa de 600ml de refrigerante. Tentou abri-la; não conseguiu. Deixou-a sobre a mesa e contou sobre sua experiência no processo de se tornar um b-popper em 2013.

[olho]”As meninas têm que te querer e os meninos têm que querer ser você”[/olho]

“Era um projeto da JS Entertainment, empresa coreana com foco no Brasil. Depois da seleção, tive que deletar as redes sociais e criar novas como se eu fosse uma nova pessoa. Praticamente, nascer de novo. Eu tinha muitos tweets antigos, então, tipo, se a pessoa fosse nos arquivos poderia ver alguma possível besteira que falei quando era pequeno. Daí isso pesaria agora. Eles excluem toda nossa vida passada, só deixam a mostra o que querem.” Tentou abrir novamente a garrafa. Não conseguiu.

“Na Champs, eu era o mais novo, por isso tinha que mostrar uma pureza. Tinha que ser um fofinho, sem barba, meu cabelo tinha que ser liso, jogado à Justin Bieber. Não podia usar óculos, pra visualmente ficar mais bonito, e tinha que ser um corpo definido pra criar mais interesse. Ou seja, tinha que ser um menino perfeito. A empresa cria a ideia do desejo. Eu fiz parte disso, desse meio. Nosso empresário falava ‘vocês têm que fazer a menina desejar vocês para se elas se tornarem fãs. As meninas têm que te querer e os meninos têm que querer ser você’”. Mais uma tentativa com a garrafa. Nada.

De óculos, com uma barba ruiva de poucos dias, ele fala com empolgação do treinamento. De seus lábios saem palavras que relembram a antiga rotina com um leve sotaque carioca: de segunda a domingo, da manhã à noite, musculação, canto, coreografias, aulas de hip-hop, ballet e jazz. Sábado era dia de treino livre e teatro. Domingo o ensaio era até as 15h, depois vinha a folga. Fora moradia, não recebia nada. “Querendo ou não, ele [o empresáio] tava gastando bastante dinheiro.”

Por fim, gravaram o clipe na Coreia e estrearam no Brasil. Receberam boa cobertura da imprensa, mas a Champs não deu certo naquele momento. Iago acha que foi má administração. Porém, o sistema do K-pop se baseia em baixas margens de lucro. Como a música é distribuída de graça pelo YouTube, o sistema de vídeos do Google fica com a maior parte do dinheiro da publicidade online. Se a base de fãs não dispara, os shows e outros produtos não compensam o investimento.

Quando viu que não daria certo, fez o que boa parte dos jovens deseja hoje em dia: criou um canal no YouTube. Começou com duas mil pessoas e agora tem 70 mil seguidores. Espera acabar o ano com 100 mil. Diz que não está mais vendendo um personagem, mas o Iago real.

“O Iago do Champs era uma pessoa para ser desejável e eu não quero ser desejável. Quero ser admirado. Quero que as pessoas olhem pra mim e falem ‘caraca, olha o que ele tá fazendo com estilo que eu gosto’. Não quero ser o estrelinha, o famosinho. Quero ser uma pessoa que é parada na rua por alguém dizendo que gosta do meu trabalho.” Ele pega a garrafa, crava os dentes molares na tampa verde. Contrai os olhos, gira a garrafinha com as mãos e tssssss. Consegue abri-la. Toma um gole e vai encontrar os colegas para o ensaio da música Fly, da banda GOT7.

Para ele, vencer o festival significa, além do gosto do prazer de se sentir um k-popper e do prêmio para pagar os custos figurino, faz parte de uma estratégia para voltar à Coreia do Sul e ajudar a turbinar seu canal no YouTube.

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Iago (à frente, de óculos) e sua trupe do Allyance. Crédito: Anna Mascarenhas

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Na longa fila que se forma nos arredores do Teatro Gazeta, centenas de adolescentes aguardam para entrar no festival de covers de K-pop. Um dos poucos adultos, o guarda civil Hélio Marques, 52, acompanha as três filhas. “Vim por causa da minha menina, que escuta muito, muito. Ela sabe até o que o menino come”, diz sem brincar.

Antes do show, encontro com Pamella e Iago. Ela, bem maquiada, de vestido longo floreado e Havaianas, está insegura, com um pouco de medo por causa da dificuldade da música. Ele, mais profissional, ainda está sem o figurino. Conta que no último ensaio, dois dias antes, repetiram toda a dança 25 vezes. Eles tiram fotos e voltam para acabar de se arrumar.

O teatro está lotado. Os cerca de 50 competidores ficam no mezanino, à esquerda de quem encara o palco. Dá pra sentir a expectativa e a tensão. Iago, já com o figurino, fica filmando e tirando fotos com os amigos. Há grupo de cinco meninas vestidas com o que parece ser um uniforme das paquitas. Duas delas ensaiam alguns passos juntas. Pamella está sentada com o celular na mão, de cabelo solto. Está ao lado de outra cantora, com a qual troca algumas palavras. Fala com outras pessoas, mas a vida de cantora parece mais solitária.

Não só pela música, mas todos estão agitados, afinal é o principal momento pelo qual esperaram e treinaram. A recompensa é grande. Pelas regras do evento, há duas vagas para disputar a chance de ir pra Coreia. Se, por exemplo, o canto vencer o prêmio principal, a outra vaga é de quem vencer na dança.

Os participantes têm camarins, garrafas de 1,5 litro de água e esfihas do Habibs à vontade.

O primeiro competidor, Davi Nogueira, senta num banquinho e com violão em mãos, apresentada uma música de Roy Kim.

“Boa noite”, diz. A plateia responde: “AAAAAAAAAA!”

Antes de começar a tocar, uma menina atrás de mim grita: “Arrasa, viado!”

Na sequência, várias bandas e competidores tomam o palco. Os momentos mais sexualizados das coreografias são os que arrancam mais gritos. Por vezes, os berros são tão fortes, constantes e esganiçados que se sobrepõem à voz das apresentadoras.

Os artistas se sucedem até que às 20h14 chega a vez de Pammie.

Perto dos demais, ela parece uma cantora de ópera. Das coxias, dá pra ver que ela transpira presença de palco, segura o microfone com uma mão e despeja toda sua potência sonora. É uma apresentação elegante — recebe mais aplausos do que gritos. Ao sair, bebe três copos d’água. As mãos tremem. Não consegue dizer muito além de “tô nervosa”.

Em seguida, há outra apresentação. O grupo de Iago fica na lateral do palco e se prepara para entrar. Todos os membros se abraçam e formam um círculo. Iago fala algumas palavras de motivação. Ficam assim por mais ou menos um minuto. A cantora que está no palco, Mônica Neo, encerra a apresentação. Iago está sem óculos. O círculo se desfaz e eles se dão uns tapinhas de apoio. O nome do grupo aparece no telão e eles entram no palco para atender ao chamado da orquestra de berros. Do backstage, de uma visão lateral, a coreografia parece perfeita. Ao final, os gritos, sempre eles, invadem a coxia. Os integrantes saem em duplas em silêncio. Recebem elogios dos grupos que esperam para se apresentar. Iago põe os óculos.

Longe do palco, depois de um longa escadaria que leva a um espaço atrás no mezanino, um dos dançarinos, Paulo Fraga, chora muito. Toma água tremendo. Iago reúne todos, formam um novo círculo e ele diz: “A galera não parou de gritar! Não importa quem errou. Tô muito orgulhoso desses quatro meses de trabalho”.

Crédito: Anna Mascarenhas
Allyance no palco. Crédito: Anna Mascarenhas

Eu volto para a plateia e sento em outro lugar. A menina ao meu lado, de blusa e meia calça preta, saia rosa um palco acima do joelho, usa óculos redondo de acetato. Ela pula na cadeira, chacoalha a varinha de neon, grita com força, descansa e se abana.

O anúncio dos prêmios sai pouco tempo depois da última apresentação. No palco, estão reunidos todos os competidores. Das coxias, o áudio fica abafado, mas descubro que a Pammie é a número um do canto. O Allyance ganha na dança. Venus, um cover de dança de 10 meninas, é o primeiro geral. Iago ganha o dinheiro, mas não terá a chance de competir na Coreia. Todos se abraçam, perdedores e vencedores. Mas quem fica para a foto são só os vencedores.

Mais calma, Pammie diz que o retorno do áudio estava distante e por isso não conseguia saber se tinha ido bem. No olho escuro, negro, quase sem diferença entre íris e pupila, só se vê o brilho do reflexo das luzes. Várias pessoas a parabenizam. Alguém comenta: “Agora tem que deixar as amiguinhas ganharem”. Ela sorri amarelo — é uma menina tímida, não uma artista.

Conversa com Cecília Massa, uma das quatro juradas. Ela está dizendo que a música é muito difícil, mas que existem caminhos profissionais, com mais consciência vocal. Fala de um jeito educado, preocupado.

“Você faz aula?”, pergunta a jurada.

“Não.”

“Você canta música brasileira?”

“Não, mais internacional.”

“Você tem presença, mas tem que ouvir grandes intérpretes internacionais e nacionais.”

“Se não fosse o K-pop, eu não estaria cantando.”

“Mas tem um mercado, sim. Não é o da TV ou que aparece na grande imprensa, mas existe um outro mercado. Na internet, em editais…”

A seguir, encontro com Iago. Está sério, mas age como um profissional. Elogia as concorrentes, fala do esforço do grupo do prêmio, mas sabe que não ganhou o que queria. Assim que para de falar comigo diz a um colega: “Nossa!, que raiva, velho. Vídeo filho da puta!” Ele atribui a derrota ao vídeo enviado na pré-seleção dos competidores.

Os demais integrantes do Allyance reforçam que ficaram felizes pelas concorrentes da Venus, o que parece sincero. Mas há uma melancolia no ar. Iago está com o espírito desinflado, o olho abaixou, o sorriso ficou mais profissional. É uma vitória manca.

Todos saem do mezanino e vão para o saguão do teatro, onde artistas e público se misturam. Dezenas de jovens estão chupando Melona, aquele picolé retangular verde, que é coreano, vendido na Liberdade, e que foi distribuído de graça no final do evento. No saguão, Iago tira fotos com várias fãs sempre da mesma maneira. Sem sorrir, faz um gesto comum entre coreanos — um V lateral com a mão esquerda, a mesma que segura um pacote de salgadinhos.

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Comportamento

Praise the Lord!

 

“Praise the Lord!”, pede o pastor.

“Hallelujah!”

“Praise the Lord!”, ele pede mais uma vez.

“Hallellujah!”, cem pessoas respondem com mais força.

“Praise the Lord!”, comanda Fabian Nwezay, mais intenso, em um terceiro pedido que quase estoura as quatro caixas de som do salão.

“Hallellujah!”, dizem todos os presentes, alto, forte e com fé, na manhã de um domingo qualquer de verão – no centro de São Paulo.

São 10h43. A missa é em inglês. Os fiéis são quase todos imigrantes africanos, na maioria nigerianos. Várias cadeiras estão vazias na primeira parte da cerimônia da igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera, na rua Guaianases, ao lado da Praça Princesa Isabel. Há cerca de 50 pessoas em pé dançando no salão.

Todos vêm bem-vestidos, muitos com o que os antigos chamariam de roupa de domingo. Alguns poucos vestem aquelas batas e túnicas bem coloridas, que poderíamos chamar de roupa-de-africano-do-centro.

Uma música alegre, solar e ritmada embala a todos. É um hino de louvor a Deus, cheio de aleluias e Jesus Christs, comandado por um casal de vocalistas, bateria, duas percussões, teclado e baixo. A música sempre foi usada para estabelecer alguma conexão com o divino, mas aqui parece que o ritmo é tão importante quanto a fé. Poderia ser uma festa étnica não fossem termos religiosos presentes na música.

A pessoa que parece ter menos coordenação é o pastor Jair Santos, o único brasileiro visível até o momento. Está no palco à esquerda do púlpito e em seguida vai dar início à cerimônia. É branco para os padrões brasileiros, mas talvez um barbeiro racista no sul dos Estados Unidos se recusaria a fazer sua barba.

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O pastor Fabian Nwezay, da da igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera. Crédito: Gabriela Di Bella
O pastor Fabian Nwezay, da da igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera. Crédito: Gabriela Di Bella

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As bandeiras da Nigéria, de Israel e do Brasil decoram o fundo do palco. O pastor Fabian, de terno e gravata, também dança, embora de modo mais contido. Elegante, veste um terno cinza chumbo, camisa verde e branca com listras verticais. A gravata alterna verde escuro e preto em listras grossas inclinadas em diagonal. No pulso, um relógio grande prata, algo comum em muitos outros pulsos masculinos do salão.

A música dirige a todos, o ritmo cresce, as pessoas dançam ao ritmo da percussão. O som, forte, sai um pouco distorcido pelas caixas de som. O espírito é de alegria, uma maneira de existir religiosamente bem menos sóbria dos que os cultos aos quais os brasileiros estão acostumados. Depois de quase cinquenta minutos de música, o pastor, já no palco, posiciona-se em frente ao púlpito. Começa a missa bilíngue.

O pastor pede que todos se sentem mais a frente. Já são setenta homens – só cinco mulheres. Na busca do El Dorado brasileiro, são os homens que partem primeiro do continente africano.

Todos sentam.

Já são 11h20. Após poucas palavras de Fabian, quem abre a cerimônia é Jair. Do púlpito, fala em português, que em seguida é traduzido para o inglês. Ele conclama os presentes a darem seu testemunho. Cinco pessoas chegam à fila para dar o depoimento. Não sobem ao palco, ficam na mesma altura dos presentes.

Uma delas, ao microfone, diz em primeiro lugar aleluia. Veste calça branca, cinto vermelho, camisa preta estampada com bolinhas brancas e cavalos de corrida, além de um relógio grande no pulso. Óculos de aros grossos, cabelos bem curtos com uma forte entrada na testa, embora não aparente ter mais de 30 anos. Como quase todos tem a barba feita e um pequeno cavanhaque. Um ar de cantor pop.

O pastor Jair fala da própria saúde brevemente. Sobre como está saudável, dá os créditos de seu bem estar a Deus – a cura pela fé é um elemento constante nos cultos pentecostais. O poder de Deus é um conforto ao fiel e ao imigrante africano.

Uma criança – das duas presentes – pede para cantar uma canção. É uma menina cheia de trancinhas, de uns cinco anos. Todos se levantam e batem palmas para acompanhá-la.

Próximo do meio-dia o pastor nigeriano retorna ao púlpito. Agradece aos testemunhos e começa a entoar uma canção em um dialeto de algumas regiões da Nigéria chamado Edo. Diz algo como “Babaiê, casherebere…”. Todos cantam em pé.

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Os fiéis. Crédito: Gabriela Di Bella
Os fiéis. Crédito: Gabriela Di Bella

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Na rua, o termômetro no meu celular marca 23 graus, mas no escritório do pastor Fabian Chukwubuikem Nwezay, 45 anos, em uma sala anexa ao templo, a sensação de calor é bem maior. Sentado numa dessas cadeiras típicas de escritório, Fabian estuda para o sermão do grupo de estudos bíblicos das quartas-feiras com cinco bíblias – duas nas mãos, três dispostas sobre um móvel branco do escritório. Há um computador na sua frente, desligado.

Um ar-condicionado portátil desbotado pela idade não dá conta de refrigerar o local. Do chão, um ventilador aponta na direção do pastor sem que a força do jato de ar mova as páginas leves das bíblias.

As paredes, o teto e a luz são brancos. Às costas de Fabian, ao lado de uma foto antiga da igreja, um mapa mostra a divisão da zona leste profunda de São Paulo. Aparecem bairros como Guaianases, Lajeado e Cidade Tiradentes. É um desses mapas comuns, cheios de quadradinhos de propagandas de pequenos comércios, mas há um sentido estratégico se pensarmos que a sala é também o QG central da expansão da igreja. Já existe um templo em Osasco, um no bairro Cidade Tiradentes e outro será inaugurado em Guaianases, com pregação em francês, para atender a comunidade haitiana. Um quarto local está sendo planejado – na Nigéria. É o resultado de 18 anos como pregador e de uma trajetória irregular na qual nem Deus nem o Brasil estavam em primeiro plano.

“Meus pais eram católicos e eu era apenas uma pessoa que frequentava a igreja. Eu não ia a procura de Deus, ia a procura de status”, diz.

Nascido em Nkerefi, no Estado de Enugu, no sul do país da costa Oeste da África, o pastor conta que, embora seus pais fossem ricos, teve uma infância e adolescência difíceis. “Apanhei. Meus pais me batiam muito. Eu era teimoso demais.”

Como seu pai era uma espécie de líder local, sua pretensão inicial era ser advogado e depois se tornar um político. Mas a vida mundana cheia de bebida, cigarro, pequenos roubos, mentiras e “fornicação” o desviavam de qualquer caminho que fosse. Sua vida religiosa se resumia a ir à igreja para mostrar roupas novas às mulheres.

Como é comum na biografia de muitas pessoas que tiveram experiências religiosas transformadoras, o auge da queda é o que precipita o momento do Grande Encontro com Deus. Foi o caso de Fabian, então com 24 anos, no dia 14 de abril de 1994.

“Eu entrei em uma igreja onde tinham umas 30 pessoas. O sermão do pastor era sobre o que pode impedir você de ir para o céu. ‘O quê, o quê?, eu me perguntava’. Saí de lá e algo havia mudado. Naquela noite, sozinho, pedi a Deus para que entrasse e mudasse a minha vida. Não queria mais viver daquela maneira. Daquele dia em diante, minha vida nunca foi a mesma.”

Ato contínuo, Deus se tornou uma obsessão para Fabian. “Evangelize, me disse Deus no segundo dia.” Suas ambições morreram e a paixão pelo Senhor só crescia. Pouco tempo depois, partiu para estudar em uma escola bíblica na cidade de Benin, mais para o Oeste, sob os auspícios do Arcebispo Benson Idahosa. “Eu amo Deus, não o dinheiro. Se você me disser, ‘aqui pastor, tome as Casas Bahia para você’. Vou responder que não quero. Eu estou feliz com o que faço aqui.”

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A igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera, na rua Guaianazes, em São Paulo. Crédito: Gabriela Di Bella
A igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera, na rua Guaianazes, em São Paulo. Crédito: Gabriela Di Bella

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A experiência de renascimento, de aceitação de Jesus na vida, faz parte do padrão do religioso pentecostal. “O batismo com o Espírito Santo é um revestimento de poder. A conversão seria o momento do novo nascimento”, diz Clayton Guerreiro, pesquisador de religiões pentecostais do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Quando o pentecostalismo chegou ao Brasil, em 1910 e 1911 (os estudiosos, como sempre, divergem na data), tinha como marca a glossolalia, que é a capacidade de falar línguas desconhecidas durante o transe religioso. A partir dos anos 1950, o pentecostalismo começa a ter como foco a cura divina e os milagres, o que tornou o movimento mais competitivo na disputa por fiéis. Deus é Amor, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, entre outras, são exemplos de igrejas do período.

Há mais uma importante mudança que precisa ser mencionada. Nos anos 1980, um novo movimento religioso assentado no tripé cura, prosperidade e exorcismo ganhou força. É o neopentecostalismo, ou terceira onda pentecostal, cujo expoente é a Igreja Universal do Reino de Deus e que guarda pouca semelhança com o movimento dos anos 50. Exceto pelo foco na cura.

“Eu ia morrer, mas fui curado pela igreja”, me diz Iyke Chukwu, que também está na sala conversando com o pastor. Há cinco anos no Brasil, ele frequenta a igreja há quatro. Mora no bairro São Mateus, na zona leste. “Fiz muitas operações no estômago na Nigéria, fui a vários hospitais, mas nada adiantou.” Ele levanta as duas camisetas que veste – uma cinza mais larga por fora das calças e uma branca e justa por dentro – e mostra uma cicatriz em “S”, de quase dois palmos, que serpenteia sua barriga. “Eu amo essa igreja”, diz.

A vinda de Fabian ao Brasil foi errática. “Eu estava servindo uma igreja na Nigéria de um pastor que morava nos Estados Unidos. Preguei lá por dois anos, mas quando ele voltou só achava defeitos no nosso trabalho, embora a comunidade tivesse crescido.”

Fabian conta que partiu para trabalhar em uma igreja que tinha 10 membros. Depois de oito meses, o número de fiéis foi para quase 70 pessoas. O novo templo era filial de uma igreja fundada por um missionário nigeriano no centro de São Paulo em 2001, a Comunidade Cristã Internacional. Daí para o convite de pregar no Brasil foi rápido.

[olho]”Depois de um ano, o inimigo veio. Houve novas disputas dentro da igreja e decidi sair”[/olho]

No país, trabalhou por um ano na igreja na Avenida Rio Branco, a primeira do gênero na cidade. Em seguida, foi servir um novo ministério na rua dos Timbiras, também no centro. “Depois de um ano, o inimigo veio. Houve novas disputas dentro da igreja e decidi sair”, lembra Fabian. Sem poder voltar para a Nigéria, em junho de 2011 ele decidiu fundar o próprio ministério.

O pastor mexe no celular Motorola e ao mesmo tempo conversa com Iyke, segura duas bíblias no colo e faz anotações sobre o sermão com uma caneta azul em umas folhas brancas de rascunho. O som das mensagens chegando é constante.

Dentro da sala, há oito sacos de arroz de cinco quilos e dois refrigerantes da marca Tubaína, que serão usados no almoço coletivo de domingo que sempre ocorre depois da missa.

Há uma porta dentro da sala com dois avisos escritos em papéis brancos separados no terço superior. Um, escrito com canetinha hidrocor azul, manda “Manter a porta fechada”; o outro, em preto impressora, avisa em caixa alta “BANHEIRO QUEBRADO”. Ambos na mesma porta marrom sem maçaneta.

Antes de começar o sermão, o pastor abre a porta, acende uma luz azul neon, fecha a porta, faz xixi. Puxa a descarga e sai para falar com os 16 fiéis presentes no grupo de estudos bíblicos. O sermão da noite será sobre Lúcifer e o pecado do orgulho.

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Uma das cinco mulheres presentes no culto recebe a benção de Fabian. Crédito: Gabriela Di Bella
Uma das cinco mulheres presentes no culto recebe a benção de Fabian. Crédito: Gabriela Di Bella

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“PRAY, PRAY, PRAY”, pede o pastor na missa de domingo.

“Ora, ora, ora”, tenta acompanhar a tradutora, uma mulher muito bem vestida vinda de Camarões.

Fabian conclama todos a encontrar pares e rezar junto. Ecoa pela sala uma espécie de murmúrio geral na qual só possível identificar por vezes uma palavra: Jesus Christ.

Não sou ignorado. Dou as mãos a alguém que ficou sem par e me convida a rezar. Isso acontece três vezes.
“Pray, pray, pray, pray”, repete o pasto com rapidez e intensidade.

Todos rezam, movimentam-se, como se expressassem fisicamente a palavra divina. Há duas brasileiras no templo. Mais contidas, elas pouco se movem. Rezam paradas, quietas.

A capacidade das cordas vocais do pastor parece um milagre. Do púlpito, ele fala com força e intensidade constante. Gesticula, sobe e desce do palco, altera o andamento do sermão, brinca, faz piadas e pede para os fiéis recitarem versículos da Bíblia.

Em um momento de humor, ele abençoa a tradutora que tem um português muito fraco e grande dificuldade em acompanhá-lo.

Dois homens cuidam das duas portas da igreja que dão para os dois corredores paralelos desenhados pelas disposição das cadeiras em três fileiras. Eles ficam nas portas, mas circulam pelo ambiente com uma manta azul celeste no pescoço onde se lê “International Assembly”.

Um deles, alto e gordo, tem uma cicatriz de uns bons dez centímetros na parte direita do rosto. Começa no centro da bochecha e corre pela lateral até o encontro do pescoço com o queixo. Ele circula conferindo se alguém está no celular, mas também leva água a quem pede. É sério, mas de modo algum ameaçador. Conversei com ele uns dias mais tarde, mas não quis me dizer seu nome. Está há dois anos no Brasil, agora sem emprego. Deixou a família na Nigéria e se pudesse voltaria o quanto antes. Tem saudades de casa.

O tema do sermão é a maldição da pobreza. Em parte, o sucesso das igrejas pentecostais ocorreu por oferecer aos fiéis respostas mais diretas aos dilemas imediatos do cotidiano. A salvação e a prosperidade podem e devem ser durante a vida terrena, que pode ser operada pela entrega total a Deus. As questões do espírito depois da morte nem são mencionadas.

“Se você é um jogador, você não pode ser bem sucedido, você não pode prosperar”, diz o sermão.

Fabian passa os olhos em um papel no púlpito ao lado da Bíblia, que o auxilia na condução do sermão. O jogo de apostas é condenado por ser a mentalidade de um homem pobre.

Ele cita a Bíblia. Provérbios capítulo 23, versículo 21: “Porque o beberrão e o comilão acabarão na pobreza; e a sonolência os faz vestir-se de trapos”.

Assim, entre citações e pregações, ele vai construindo sua mensagem sobre os riscos da queda que, em outro contexto, poderia ser uma conversa sem base religiosa. Drogas, bebida, ressentimento com quem possui mais e arrogância de quem tem mais são temas, enfim, que habitam o universo de todos, mas são mais sensíveis a uma população de imigrantes que chega ao Brasil sem estrutura e constrói seus laços a partir da igreja.

O que ele faz é reforçar os valores que ajudam no desenvolvimento de uma pequena comunidade. Em um certo sentido, a função da igreja é ministrar doses de um controle social interno.

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Fiéis na igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera. Crédito: Gabriela Di Bella
Fiéis na igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera. Crédito: Gabriela Di Bella

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“Um abismo chama o outro”, me diz a pastora da igreja da Cidade Tiradentes, Monica Almeida, depois de uma missa celebrada por ela na igreja da rua Guaianases, no centro. Ela acha que a população da favela sofre preconceito pelo local onde vive e que o imigrante sofre em dobro.

Monica, 33, conheceu o pastor Fabian cinco anos atrás no Monte da Luz, uma espécie de ponto de devoção de evangélicos em Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo. Desde então, abandou a igreja Deus é Amor, onde seus pais são pastores, para se dedicar ao projeto do pástor – ela usa a mesma pronúncia dos imigrantes. Foi sua assistente pessoal para resolver os vários trâmites burocráticos de abrir uma igreja e há um ano comanda as missas na Cidade Tiradentes.

[olho]”Na cultura deles, a mulher não tem tanta voz. Ela não trabalha. Mulher cuida da casa e dos filhos”[/olho]

Ela não se incomoda que algumas pessoas vão aos domingos apenas para comer ou que nem sequer professem a fé cristã – na Nigéria metade da população é cristã, a outra é muçulmana. “Meu papel nessa história é pregar a palavra de Deus, que é forte e é universal. Quando eu estou pregando sinto que está todo mundo ali como um ser humano, sem cor, religião ou raça.”

Não que não existam problemas. Para a pastora, a tradição dos imigrantes é bastante machista. “Na cultura deles, a mulher não tem tanta voz. Ela não trabalha. Mulher cuida da casa e dos filhos.”

Ela diz que nunca teve problemas em relação a sua autoridade e que acha que muitos dos fiéis a enxergam como uma figura masculina por ser uma autoridade espiritual. “Quando eles viajam e voltam, muitos me trazem um presente. O engraçado é que eles me trazem sempre um perfume masculino.”

Uma das raras brasileiras presentes, a cabeleireira de 40 anos Fabíola Roos acha que os homens nigerianos são “um pouco estúpidos”. Ela sabe. Conheceu o ex-marido em outra igreja africana – existem sete no centro –, mas agora está separada. O marido voltou para a Nigéria, onde tinha outra família. Fabíola cuida da filha de dois anos que teve com ele e de outra menina de 10 que o pai deixou com ela quando saiu do Brasil.

A relação entre homens nigerianos e mulheres brasileiras é delicada. A tese do pastor Fabian é que na Nigéria a cultura é de que homem seja o chefe da casa, enquanto no Brasil ocorre o contrário. Quando decidiu casar, ele disse a uma irmã que queria uma esposa nigeriana. Em uma espécie de Tinder do compromisso definitivo, ele e a futura esposa, Jeniffer, se conheceram por fotos. Gostaram do que viram e deu match – por arranjo das famílias, casaram-se. Em dezembro de 2011, Jeniffer desembarcou no Brasil para conhecer o marido.

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Fabian Nwezay em um de seus momentos performáticos no sermão. Crédito: Gabriela Di Bella
Fabian Nwezay em um de seus momentos performáticos no sermão. Crédito: Gabriela Di Bella

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O volume é muito alto. São quatro caixas de som preenchendo o templo com decibéis religiosos. O salão está praticamente cheio, todos os ventiladores estão desligados, mas os quatro splits dão conta do recado. Os homens de lenço azul distribuem aos presentes envelopes para a doação. Fabian reforça a importância da doação repetidas vezes. A justificativa: precisam de recursos para a nova igreja em Guaianases.

Ao mesmo tempo, o sermão passa a falar mais sobre a prosperidade. Pulam frases como “aquele que não gosta de trabalhar vai enfrentar a pobreza” ou “se você bebe, é preguiçoso ou descuidado, você não vai prosperar” e ainda “outra maneira de ser pobre é estar desesperado para ser rico”. O tempo da tradução fica sempre em descompasso com a fala do pastor.

Recebo um envelope e recuso os demais. Coloco R$ 20 dentro. Todos colocam o dinheiro com discrição. É totalmente anônimo.

A oração acaba por volta das 14h. Começa a música e o momento da entrega das doações. As pessoas vão saindo dos lugares até formar uma fila em um corredor no qual na ponta está o pastor. A música segue e as pessoas vão dançando até ele para depositar os envelopes em uma caixa de plástico e receber a benção individualmente.

Fabian coloca as mãos na cabeça dos fiéis e diz algumas palavras. Em seguida, molha uma das mãos em alguma substância líquida, aparentemente água com mel, e passa sobre a testa de cada um. Ao mesmo tempo, a música embala o salão. Todos cantam e dançam.

A esposa do pastor e mais uma mulher comandam a cantoria. Dançam juntas. Depois da benção do dízimo, o pastor dança também. Ergue os braços para cima e leva-os para esquerda e para direita, fazendo uma paradinha de um tempo em cada lado. Os demais o copiam, como naquele hit do padre Marcelo do final dos anos 90 que dizia “erguei as mãos e dai glória a Deus”.

Por detrás do púlpito, o pastor Fabian Nwezay puxa seis hallelujahs fortes. Todos respondem. E assim acaba a missa africana.