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A febre do ‘unboxing’ para crianças

Desde março do ano passado, uma resolução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) considera abusiva toda publicidade dirigida a crianças. Na TV aberta, os efeitos foram sentidos: sem poder fazer propaganda e com maior dificuldade para vender anúncios, os canais escantearam a programação infantil. Enquanto os olhos se voltavam para a televisão, porém, algo aconteceu na internet.

Entre os vídeos mais populares no YouTube estão aqueles em que pessoas tiram produtos de suas caixas e mostram todos os seus detalhes, do plástico utilizado ao posicionamento do código de barras. Pode ser qualquer coisa, de um celular novo a um chocolate, um DVD. Normalmente, são produtos novos, recém-lançados, o que dá um ar de exclusividade. É uma febre. Os mais populares atualmente, porém, são os de brinquedos, voltados para o público infantil. Não é a publicidade tradicional, mas organizações e grupos de pais argumentam que se trata, sim, de propaganda para crianças.

Segundo dados do Google, a popularidade dos vídeos de “unboxing” cresceu em 57% no ano passado. Em números de vídeos enviados, o aumento foi de 50%. Uma busca no YouTube por “unboxing” resulta em mais de 20 milhões de vídeos — isso apenas com a palavra em inglês. Para ver tudo, seria preciso passar sete anos em frente ao computador. Em 2014, esse conteúdo ultrapassou 1 bilhão de visualizações no YouTube — e o Google diz que 20% de seus usuários já viu um vídeo do gênero.

Nas palavras da empresa, “esses vídeos não apenas documentam a experiência de abrir um produto, mas também frequentemente a dramatizam e, assim, adquirem um espírito brincalhão, mostrando os produtos recém-abertos em toda a sua glória”.

Em suas pesquisas para decifrar a popularidade do conteúdo, o Google concluiu que seu principal atrativo é dar ao espectador a sensação de antecipação infantil que se tem, por exemplo, ao ver uma árvore de Natal cheia de presentes embalados. Não por acaso, as visualizações aumentam no fim do ano.

Combinado a isso está o fato de que ver alguém abrindo a caixa ajuda na hora de decidir se vale a pena ou não comprar o tal produto. Pelo menos em se tratando de adultos, portanto, o Google reconhece que há um aspecto comercial ali, sim.

Embora existam vídeos de “unboxing” para todos os públicos, o maior canal do gênero é direcionado para bebês e crianças em fase pré-escolar, segundo sua própria descrição. Trata-se do FunToyzCollector, antes chamado de DisneyCollectorBR, figura constante nas listas de mais vistos no YouTube. Hoje, ele tem 5,1 milhões de assinantes e mais de 7,6 bilhões de visualizações.

O canal apresenta, em suas palavras, resenhas de brinquedos variados e até de surpresas do chocolate Kinder Ovo. Segundo estimativas do site SocialBlade, que analisa o YouTube, seus ganhos mensais, obtidos pelas propagandas e banners nos vídeos, ficam entre US$ 77,7 mil e US$ 1,2 milhão.

DESEMPACOTANDO NO BRASIL

Não há na pesquisa do Google dados específicos sobre o Brasil, mas a febre também já chegou aqui. O canal Brinquedos & Bonecas Surpresa, por exemplo, com um desenho da porquinha Peppa no avatar, foi criado em março deste ano e tem cerca de 198 mil assinantes e mais de 129 milhões de visualizações. Em sua descrição, diz ter como público “bebês, meninos, meninas e crianças pré-escolares”. Uma mulher com voz infantil abre as caixas mostrando as unhas pintadas com desenhos do Mickey e expõe tudo o que está ali dentro, citando as marcas dos produtos.

Outro canal, o DisneyTopToys Tototoykids, segue a mesma linha. “Somos um canal que diverte e encanta as crianças com novelinhas e novos brinquedos. Abrimos os brinquedos (playsets) mais LEGAIS do momento”, anuncia. São 385 mil assinantes e 306 milhões de visualizações em vídeos que começam com um “venha se divertir com a gente!”. Neles, um casal começa a brincar com bonecos como fazem crianças, criando diferentes vozes e histórias para os personagens.

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Gustavo Machado, um dos criadores do canal Brinquedos e Brincadeiras — Toys and Fun — criado em maio, com 6,4 mil assinantes e 2,5 milhões de visualizações — diz encarar o projeto como um negócio. “Realizamos alguns estudos de caso e fizemos um planejamento a médio e longo prazo para retorno do investimento. Após um mês de estudos decidimos colocar o canal no ar, no final de maio”, conta.

“Somos o único canal de brinquedos a utilizar multi-câmera nos vídeos, em alguns deles além das duas câmeras normais utilizamos também uma GoPro, e isso acaba refletindo no tempo de edição e renderização dos vídeos, o que faz com que o tempo total de produção ultrapasse seis horas facilmente em alguns casos”, diz. “A nossa meta é lançar um vídeo por dia de segunda a sábado.”

Para ele, as crianças se sentem dentro da brincadeira ao verem os vídeos de “unboxing”, mesmo que não tenham os produtos em mãos — todos comprados por eles, nenhum presente de marcas. “Escolhemos os brinquedos baseados em personagens que fazem sucesso com as crianças, filmes recém-lançados e também dados que extraímos da ferramenta de análise de audiência que o YouTube disponibiliza”, conta.

Machado concorda que esse tipo de vídeo pode ser considerado uma forma de propaganda. “Com certeza as crianças acabam sendo estimuladas a realizar a compra. Percebemos isso, pois recebemos seguidamente comentários em nossos vídeos de crianças questionando onde adquirimos os brinquedos e o preço deles.”

Já um dos donos do canal Brinquedos & Bonecas Surpresa — seu nome e seu rosto não aparecem nos vídeos — discorda. Ele diz não acreditar que os vídeos de “unboxing” façam propaganda indireta e que na maioria das vezes as crianças assistem a eles acompanhadas de seus pais.

Também afirma não ter relação alguma com marcas. “Compramos 99,99…% dos nossos brinquedos. Apenas quatro foram enviados por uma marca e gravamos apenas dois. Não me pagaram para gravar. Deixo claro: se quiser enviar, envie, mas não forneço nenhuma garantia de que iremos gravar o brinquedo.”

CLANDESTINA

Nos Estados Unidos, as organizações Commercial-Free Childhood (Infância Livre de Comerciais) e Center for Digital Democracy (Centro para a Democracia Digital) protestaram, pedindo em maio para que o YouTube coloque um rótulo de propaganda em alguns vídeos de “unboxing”. No texto, dizem que muitos dos vídeos gerados por usuários têm acordos não revelados com marcas, citando cinco canais do YouTube que têm afiliação com o Maker Studios, da Disney.

Segundo Isabella Henriques, diretora de defesa do Instituto Alana, organização que defende direitos das crianças, os vídeos de “unboxing” são “verdadeiras publicidades clandestinas, que não se apresentam como publicidades, mas são pensados pelas marcas como comunicação mercadológica, decorrentes de uma estratégia pensada e planejada para atingir, especialmente, as crianças”.

Se o conteúdo aparece misturado com a publicidade, como no caso desses vídeos, é mais difícil para a criança identificar a mensagem publicitária. “Dependendo da idade das crianças será mesmo impossível fazer essa análise, entender que se trata de publicidade”, afirma.

Henriques diz que, até os oito anos, crianças têm dificuldade em identificar as mensagens publicitárias como tal e separar o entretenimento da propaganda. A partir dessa idade, conseguem fazer essa distinção, mas não entendem que a publicidade nem sempre diz a verdade e que seu objetivo é persuadi-las a consumir.

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O professor do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) Yves de La Taille concorda que crianças, até os 12 anos de idade, não conseguem olhar criticamente para os anúncios, e que o fato de não haver uma separação clara entre publicidade e conteúdo dificulta ainda mais essa compreensão. Ele cita o caso da França, por exemplo, em que antes dos intervalos comerciais na televisão há um aviso de que o que se segue é publicidade.

No caso dos vídeos de “unboxing”, se a marca do brinquedo é mencionada, o psicólogo afirma que deve-se considerar, sim, que são uma forma de publicidade clandestina, já que estimulam a vontade da criança de comprar o produto.

Para Livia Cattaruzzi, advogada do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), o problema não é anunciar produtos para crianças, como brinquedos. A propaganda deve, contudo, ser direcionada aos pais. Vídeos que utilizem elementos com apelo para crianças, como cores vibrantes, personagens de animações ou vozes infantilizadas, tais como nos vídeos de “unboxing”, constituem publicidade abusiva.

Segundo ela, as crianças têm inclusive o poder de influenciar as compras da família. Se uma marca de tinta, por exemplo, utiliza um personagem de desenho animado em suas propagandas, crianças pedem para os pais que comprem dessa marca, ainda que o produto não seja para elas. Pais que sentirem que alguma publicidade é abusiva devem procurar o Procon local, afirma Cattaruzzi.

Em relação a colocar um aviso de propaganda nos vídeos de “unboxing” do YouTube, como se pede nos Estados Unidos, Cattaruzzi e Isabella Henriques concordam que ao menos eles deixariam de ser publicidade clandestina. “Isso porque, nos termos do artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor, a publicidade deve ser facilmente identificável como tal pelo público ao qual se dirige”, diz Henriques. “Mas no caso das crianças menores, que não sabem ler e que têm dificuldade de entender a publicidade como mensagem comercial, não resolveria”, ressalva.

Vanessa Anacleto, do Movimento Infância Livre de Consumismo (Milc) — grupo criado em 2012 que faz campanhas sobre os riscos da exposição precoce às telas e à publicidade –, diz que a iniciativa dos pais americanos é positiva, já que a internet é território livre para a propaganda. No entanto, ressalva que ainda se engatinha no Brasil no que diz respeito à regulação da publicidade infantil.

“A Resolução 163 do Conanda, editada no ano passado, nem sequer é levada a sério pelo mercado. Projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados se arrastam durante anos sem chegarem à fase de votação”, afirma. Embora a resolução do Conanda tenha força normativa, ainda há projetos de lei sobre o tema no Congresso. Qualquer texto aprovado, porém, deve proteger ainda mais os direitos das crianças.

Em tempos de menos programas para elas na televisão, a tendência é que crianças encontrem cada vez mais seu entretenimento na internet. Embora seja mais trabalhoso fiscalizar os abusos lá, onde o conteúdo é produzido por usuários do mundo todo e se renova todos os dias, as regras são claras: “São as mesmas daquelas que valem para os outros canais de comunicação”, diz Isabella Henriques. “Não é necessariamente mais difícil de regulamentar.”

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História

Cem anos de caligrafia

Tem ares de contos de fadas, mas é assim que a Escola de Caligrafia De Franco, em São Paulo, nasceu, cem anos atrás, conta o professor Antônio De Franco. Sua trisavó, Ida, nasceu numa família nobre na Itália. Apaixonou-se por um plebeu e, sem poder se casar com ele lá, veio para o Brasil na década de 1880 para poder ficar com ele em paz.

Aqui, ensinou a cada um de seus filhos uma arte. A Antônio coube a caligrafia. Sozinho, fundou em 1915 uma pequena escola no centro de São Paulo, na rua General Osório, para passar o conhecimento adiante.

Nos anos 1980, a escola mudou de lugar, passando a funcionar em uma casa ao lado do shopping Eldorado, em Pinheiros, zona oeste da cidade. De resto, tudo continua praticamente igual, como se o tempo tivesse parado por ali. As aulas são ministradas pelos herdeiros de Antônio — Flávio, seu neto, e Antônio, bisneto –, o método continua o mesmo e reina na casa um clima familiar. Não há, por exemplo, recepcionistas. Quem atende o telefone são os próprios professores, que se sentam à porta da casa e se dividem entre dar aulas, corrigir lições e atender aos interessados que tocam a campainha para perguntar se é ali mesmo que se ensina caligrafia.

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Diante do espanto com o fato de ainda existir procura pelas aulas numa época em que as pessoas escrevem tão pouco à mão, Antônio — altíssimo, vestindo roupa social — sorri e afirma que o movimento continua firme e forte.

“A escrita é uma forma de apresentação pessoal. Do mesmo jeito que alguém se destaca por falar bem, é preciso saber se comunicar pela escrita”, diz. “Um tablet ou um computador são ótimos. Mas para nos auxiliar, nunca nos substituir. A tecnologia vai acabar com a escrita? Acho que seria um retrocesso. Deixaríamos de ter uma capacidade para que uma máquina fizesse algo pela gente. Não acredito que isso vá mudar.”

Entre os alunos há pessoas prestes a prestar vestibular ou concursos públicos, querendo aprimorar a letra para as redações, crianças ou mesmo interessados em trabalhar como calígrafos. “A letra das pessoas hoje é ilegível. Elas precisam aprender desde os traços básicos”, diz Antônio.

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O método De Franco é prático. Os alunos recebem uma folha com algumas frases e pautas para letras maiúsculas e minúsculas, copiam e devolvem para o professor, que faz as devidas correções. Depois repetem, repetem e repetem — até acertar. Treinam também sem as pautas, para conseguir manter a proporção das letras — do tipo comercial inglesa, inclinadinha — em qualquer contexto. O resultado sai em dois meses, com cinco lições por semana. Para comprovar a eficácia, Antônio abre uma pasta ao acaso e tira duas amostras de um mesmo aluno: a da aula inicial e uma de dois meses depois. A mudança é radical.

Se o aluno não conseguir comparecer à escola, aberta de segunda a sexta das 10h às 20h e aos sábados das 14h às 15h, cinco vezes por semana, não tem problema. Pode levar as lições restantes para casa e entregá-las depois. Há a opção ainda de estudar por correspondência. Nesse caso, porém, o curso termina em quatro ou cinco meses.

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Não há caso perdido, afirma Antônio, pois a letra cheia de vícios com a qual o aluno chega à De Franco é deixada completamente de lado. “Ensino uma letra nova, do início. Ele vai reaprender a escrever, desde os traços básicos”, diz. “Hoje em dia, nas escolas, os professores não têm orientação de caligrafia. Está um caos gráfico.”

Os problemas começam na postura corporal. Sentar errado, de lado, dobrando a perna e abaixando a cabeça podem ser causa de uma caligrafia ruim. “Aqui trabalhamos de tudo. Como segurar a caneta, como a folha deve ficar, que braço deve segurar o papel, onde o peso deve ser colocado”, conta. Quando as aulas são por carta, essas mesmas instruções são enviadas com as lições.

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A conversa é interrompida por uma mãe, que toca a campainha e pergunta: “É aqui que se ensina caligrafia?”. Ela diz que o filho vai bem na escola, mas tem uma letra horrível. Antônio explica todo o método, dá o preço (R$ 290 ao mês, sem taxa de matrícula) e os horários de funcionamento. Mas pergunta: “Quantos anos ele tem?”. Diante da resposta, diz que a idade mínima é de 11 anos. Ele esclarece: o ensino da caligrafia é pedagógico e eles não querem interferir com a educação das crianças aprendendo a escrever.

Os De Franco dão também cursos de caligrafia artística, que inclui letras como as góticas inglesa e alemã — feitas com pena molhada no nanquim, bem rebuscadas e utilizadas em convites de casamento e diplomas. Trabalhos que os professores também fazem e são expostos pelas paredes da casa. Antônio conta que saiu dali o convite de casamento da filha do governador Geraldo Alckmin, Sophia, em 2007.

“Há também um trabalho nosso no Vaticano”, gaba-se. Quando o papa Bento 16 veio ao Brasil em 2007, o calígrafo do mosteiro de São Bento — ex-aluno da família — pediu que eles fizessem uma placa com o nome do pontífice na letra gótica alemã. O papa gostou tanto que pediu para ficar com o trabalho, conta Antônio. Trabalhos desse tipo demandam tempo e podem custar até R$ 2.000.

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Como os outros professores De Franco que vieram antes dele, Antônio é formado em direito, e continua exercendo a profissão. Ainda assim, vai todas as terças e quintas à escola, pelo prazer de ensinar. Filho único, sobrou para ele o legado. Já receberam pedidos para criação de franquias da De Franco — a primeira e única escola exclusivamente de caligrafia no Brasil, segundo eles –, mas não toparam.

Tampouco pensam em contratar professores que não sejam da família. “Foi meu pai quem me ensinou a escrever. Brinco que desde pequeno tomava sopa de letrinhas. Ele deixava todas as penas à mostra e não deixava eu encostar, para estimular a minha vontade. A gente faz caligrafia com muito carinho.”

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Comportamento

Toda nudez será libertada

Até hoje Emma Holten não sabe como nem por que aconteceu. Quatro anos atrás, alguém entrou em seu e-mail, pegou fotos em que ela aparecia nua e as publicou na internet, com seu endereço, número de telefone e nome de seus familiares. É difícil explicar a sensação que teve, conta. “É como perguntar a um paciente de câncer como ele se sentiu quando ouviu que estava doente. Você não sabe o que vai acontecer, como isso vai afetar sua vida, por quanto tempo, ou o que vai significar.”

Emma, 24, atribuiu então seu próprio significado ao que tinha lhe acontecido. Procurou uma amiga, Cecilie Bødker, com uma ideia: usar a mesma nudez que tinha a transformado em vítima para afirmar ao mundo que aquele corpo era dela e que ela, Emma Holten, era sujeito e não objeto.

Nas imagens de Cecilie, a dinamarquesa Emma aparece sorridente, sem retoques, em situações cotidianas. “São fotos de como uma mulher se vê: um ser humano com uma história e com um corpo que lhe pertence.”

O projeto, intitulado “Consent” (consentimento), não é o único do gênero. Há outras mulheres, vítimas ou não de pornografia não-consensual, publicando seus “nudes” em sites e redes sociais como Tumblr e Instagram para discutir questões de gênero ou simplesmente porque podem e querem fazê-lo, sob suas condições.

Foto do projeto “Consent”, de Emma Holten.
Foto do projeto “Consent”, de Emma Holten.

No caso de Emma, que passou a dar palestras e escrever artigos sobre feminismo, a motivação foi o descontentamento com as discussões sobre pornografia não consensual. “Eram machistas e degradantes às vítimas. Nos chamavam de ingênuas, nunca deixavam que a gente falasse. E faziam parecer como se a gente se arrependesse de ter tirado as fotos.”

Seu objetivo era mostrar que ela era humana, embora estivessem tirando a humanidade de seu corpo. “Pensei que, com todos os privilégios que tenho, apesar do meu sofrimento, eu deveria ser a pessoa de quem eu precisava quando isso me aconteceu. Uma pessoa que mostra respeito às vítimas.”

Quando suas fotos roubadas chegaram à internet, Emma foi alvo de mensagens raivosas. “Homens diziam que eu era tão nojenta que deveria me matar. E alguns pareciam muito fascinados com a vergonha sexual nelas. Perguntavam se minha família sabia, por exemplo.”

A explicação para os porquês desse comportamento não é simples. Para ela, a indústria do entretenimento deixa muitas vezes o espectador decidir o que o corpo da mulher significa, tirando sua agência. A mídia também tem sua parcela de culpa, diz. “Na maior parte das entrevistas me pedem para discutir intimamente minha sexualidade, meu relacionamento com meu corpo e com outras pessoas, mesmo que seja irrelevante para meu ativismo e para as vítimas. Amamos ouvir sobre a vergonha sexual e o sofrimento das mulheres.”

Muitas pessoas lhe disseram que publicar seus próprios “nudes” era se expor ainda mais do que tinha sido exposta quando as fotos vazaram. Emma discorda. “Isso me assustou tanto. Tantas pessoas não viram a diferença entre algo que escolhi e algo que foi feito contra minha vontade. Isso me mostrou que o projeto era importante.”

Posar nua para Cecilie foi tranquilo e emancipador. “Senti que tinha tomado uma decisão para mim pela primeira vez em muito tempo”, lembra. Considera-se otimista, vendo outros projetos como o seu por aí. “Acredito que as coisas estão acontecendo. Mulheres pelo mundo todo estão cansadas de serem desumanizadas. Estamos lutando de volta. Sinto muito orgulho em ser parte disso.”

Outra participante da batalha é a fotógrafa britânica Nadia Lee Cohen, que, diferente de Emma não foi vítima de pornografia não consensual. O discurso por trás de seu projeto “100 Naked Women” (cem mulheres nuas), contudo, é semelhante ao da dinamarquesa. Ao site inglês “Metro” Nadia disse que a ideia de retratar nus femininos veio de sua insatisfação com o retrato “pouco realista” das fotos habituais do gênero. “Fui fotografada nua no passado e descobri que é curiosamente libertador, e quis oferecer a mesma experiência para outras mulheres.”

No Brasil, há um projeto artístico parecido, chamado “A Olho Nu”, mas liderado por um homem, o fotógrafo Pedrinho Fonseca. Em seu site, as imagens são acompanhadas por textos nos quais as fotografadas dividem suas histórias, desejos e aflições.

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Isabela Testi clicada por Pedrinho Fonseca no projeto “A Olho Nu”

Alguns percalços apareceram no caminho. Uma das participantes do ensaio desistiu da sessão de fotos após ser impedida pelo namorado, que escreveu um e-mail a Fonseca lhe perguntando “e se fosse a sua mulher?”. O fotógrafo utilizou outro de seus projetos, o “Do Seu Pai”, no qual escreve cartas para seus filhos lerem no futuro, para explicar seu intuito.

“Estou fazendo um trabalho, filha, fotografando nus femininos. Um registro de mulheres que têm algo relevante a dizer e que através da sua voz e do seu corpo delimitam a fronteira invisível do respeito”, escreveu. “Ao ouvi-las, entendo em que momento da vida estão e – agora sim o intuito final do projeto – que mulher é essa que, em 2015, caminha para o futuro. Saber que lugar é esse que elas querem chegar.”

E completou: “JAMAIS deixe um homem pensar que ele é dono do seu corpo. JAMAIS. Seu corpo, esse presente que o Universo deu, é só seu. Faça com esse corpo o que VOCÊ MESMA quiser”.

OS POLÊMICOS MAMILOS
Embora os “nudes” femininos publicados voluntariamente sejam mais comuns hoje, a nudez ainda é tabu e parte de uma questão política. Diretora do filme “Free the Nipple” (liberte o mamilo) e líder de campanha homônima, a americana Lina Esco tem como principal bandeira fazer com que, como os homens, as mulheres possam andar sem camisa quando quiserem. Isso é permitido pela lei em Nova York, por exemplo, embora na prática um topless ainda leva uma mulher à cadeia.

Os peitos, no caso, são um símbolo de uma questão mais ampla, esclarece. Seu movimento, que tem adeptos como Miley Cyrus e Rihanna, luta pela igualdade e pelo empoderamento feminino mundo afora.

“Muita gente não sabe, mas antes de 1934 era ilegal para homens ficarem sem camisa [nos Estados Unidos]. Mas eles lutaram contra a lei e isso foi normalizado. Agora vemos homens assim e não surtamos”, diz. “Há cem anos os tornozelos eram considerados obscenos. É assim que lembraremos dos mamilos, pode escrever.”

Para ela, acostumar as pessoas a ver seios contribui para tirar a imagem sexual de torno deles. E dá um exemplo prático. “Um cara me disse que se eu quisesse mostrar os peitos ele não poderia deixar de pensar em sexo.” Ela o questionou de volta: e se eles conversassem assim por cinco horas? Ele não iria se acostumar? A resposta foi sim.

Em Nova York mulheres podem, legalmente, ficar de topless. Na prática, porém, não funciona assim. Enquanto Lina filmava, policiais pediram repetidas vezes a ela que colocasse a blusa. As denúncias muitas vezes vinham de mães. “Elas amamentaram os filhos, o peito deu comida a eles. Por que elas fazem mulheres se envergonharem? Não entendo”, diz.

“Você pode sexualizar seus peitos, objetificá-los, mas no momento em que você começa a usá-los como se fossem seus, é condenada. É uma questão de igualdade”, opina. “Quem diria que o mamilo ia ser o cavalo de Troia nessa discussão? Se eu fizesse um movimento chamado apenas igualdade ninguém falaria sobre ele”, ri.

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Falando do Brasil, Joana Novaes, psicoterapeuta e coordenadora do núcleo de doenças da beleza da PUC- Rio, diz que o país é “absolutamente paradoxal”. Enquanto existe uma superexposição dos corpos e biquínis mínimos, a nudez não é encarada com naturalidade. “Há uma falsa liberalidade nos costumes e um extremo conservadorismo na mentalidade, na forma como se encara a sexualidade.”

“Um país em que crescem as cirurgias íntimas é extremamente machista. É uma forma inegável de aprisionamento desse corpo [feminino] ”, continua, “Os adventos feministas em muitos aspectos não alcançaram suas conquistas. A mulher não é dona desse corpo. Ela ainda é o corpo.”

E, falando da pauta de Lina: por que um topless feminino ainda é um escândalo enquanto homens podem circular sem camisa por aí? “O homem não amamenta, para início de conversa. Seu peitoral não é sagrado. Em termos de socialização, ele não é criado para ser pai. Já o papel da mulher ainda está muito associado ao universo doméstico”, opina. “O corpo dela é propriedade de alguém, por isso não deve ser exposto publicamente, enquanto o homem pertence a si mesmo. Então o peito dele não significa absolutamente nada.”

PORNÔ DE VINGANÇA
Os mesmos “nudes” usados hoje como forma de dar poder às mulheres foram utilizados como forma de humilhação se alastraram na internet anos atrás. A disseminação de câmeras em celulares e a popularização do “sexting” — troca de conteúdo erótico via mensagens — tornaram possível que fotos e vídeos íntimos fossem publicados sem consentimento do retratado, caso de Emma Holten.

Segundo dados da ONG Safernet, o número de casos registrados de vazamentos de “nudes” quadruplicou em dois anos no Brasil. No ano passado, 224 pessoas procuraram o serviço da organização de defesa de direitos humanos na internet. Em 2012, o número era de 48. As mulheres representam 81% das denúncias.

Para Emma Holten, o fato de suas fotos terem sido divulgadas sem sua autorização era o principal atrativo para os homens que as compartilhavam. Se fosse uma modelo posando nua para uma campanha, compara, o interesse seria menor.

É o drama que envolve o vazamento de “nudes” que fisga as pessoas, segundo a psicóloga Ana Canosa. “Não é só a foto que conta, mas sua história. Principalmente se ela, no campo amoroso, trata de assuntos delicados como traições, vinganças e práticas sexuais não usuais”, diz. “Além disso, com tanta exposição de intimidade no espaço público, revelar, sem autorização, o que ainda é privado está virando um ‘fetiche’ social.”

“Infelizmente, no Brasil, ser mulher, autônoma e dona de seu desejo e destino é uma grande ameaça.” Ana Canosa, psicóloga

No espaço anônimo da internet, as pessoas ainda se sentem mais à vontade para destilar sua raiva, xingando e ameaçando as vítimas da pornografia não consensual.

“Infelizmente, no Brasil, ser mulher, autônoma e dona de seu desejo e destino é uma grande ameaça. Veja a história: a mulher sempre é culpada por tudo”, afirma Ana. “Se o homem trai, a culpa é da mulher, que não transa, ou está gorda. Ou a culpa é da outra que se ‘jogou’ em cima do cara casado.” Para ela, a exploração da nudez da mulher é uma construção cultural. “É só comparar a quantidade de nu feminino com a de masculino na mídia.”

Nos Estados Unidos, a campanha End Revenge Porn (termine a pornografia de vingança) dá suporte às vítimas de pornografia não consensual. Criada em 2012 com o objetivo de fazer uma petição em prol de leis contra essa prática, acabou crescendo. Hoje permite que vítimas conversem umas com as outras e obtenham orientação legal de como proceder. “Trabalhamos com milhares de vítimas globalmente e somos uma força para inovação tecnológica, social e legislativa na luta contra pornografia não consensual e abuso virtual”, diz a advogada Carrie Goldberg.

Após um escândalo no ano passado, quando imagens de celebridades como Jennifer Lawrence e Kate Upton foram publicadas na internet, o Google anunciou que irá tirar de seu mecanismo de busca imagens de pornografia não consensual se houver pedido das vítimas.

“Imagens de vingança pornô são muito pessoais, emocionalmente traumáticas e só servem para humilhar as vítimas — na maioria das vezes, mulheres”, afirmou em comunicado oficial em junho deste ano Amit Singhal, vice-presidente de busca do Google. “Sabemos que isso não vai resolver o problema do pornô de vingança — nós não conseguimos, por exemplo, remover esses conteúdos dos sites, apenas da busca–, porém, esperamos que ao atender os pedidos de remoção das pessoas nós possamos ajudá-las.”

“Essa decisão é um passo tremendo para todos nós”, diz Emma Holten. “Sempre haverá ex-namorados irados, hackers e misóginos. O que podemos fazer é limitar os danos uma vez que a violação acontecer. É aí que grandes sites podem ajudar.”

Carrie Goldberg concorda. “Um dos danos mais duradouros da pornografia de vingança é o na reputação causado pelo fato de que essas imagens aparecem sempre que alguém procura o nome da vítima no Google. Hoje em dia ninguém namora, contrata ou mesmo fica amiga de alguém sem consultar os mecanismos de busca na internet”, avalia.

Em sua opinião, as empresas tecnológicas deveriam desenvolver práticas que controlem os abusos, caso do Twitter, que pune pessoas que desrespeitem suas regras. “As novas empresas de tecnologia que entram no mercado devem antecipar as formas pelas quais o abuso pode acontecer em seu produto e incorporar soluções para lidar com isso.”

Nos Estados Unidos, 25 Estados aprovaram leis criminais contra a pornografia não consensual. Como Emma e Lina, Carrie é otimista, mas diz que sua luta está longe do fim. “Estamos esperando a introdução de uma lei federal nos Estados Unidos”, diz. “Vamos continuar na cruzada para que a internet respeite os códigos de conduta que são esperados offline, especialmente quando se refere a consentimento, abuso e privacidade.”

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Um mês entre as lendas

Somos todos semelhantes à imagem que os outros têm de nós”, disse Borges com aquele olhar sem foco, mas ao mesmo tempo profundo. Intenso, mas que também beira a distração. Claro que não estou falando do escritor, mas do Borges tapeceiro, que há anos conserta e faz manutenção nos sofás lá de casa. Ele falava sobre a crise familiar que estava vivendo em relação a um sobrinho. O garoto, pós-adolescente, não estava querendo saber de nada que não fosse o tal jogo para computador chamado League of Legends. Eu disse que não havia motivo para se preocupar, que essa idade era assim mesmo: tempo longo no banheiro e muito videogame. Assim era a vida. Mas eu também estava um pouco preocupado com a higienização do meu sofá, será que eu já tinha de fazer de novo? Não foi agora em maio que ele tinha vindo dar um trato nisso?

Só que ele ainda estava no assunto anterior e prosseguiu dizendo sobre a obsessão do menino com o jogo, que estava para acontecer uma grande final que seria no estádio do Palmeiras e que iria reunir ao menos 12 mil pessoas. Comecei a me interessar um pouco mais pelo assunto. O sobrinho explicou para os pais que tem uma molecada que vem do Brasil todo, deixam família e escola para morar em casas onde jogam e treinam o dia todo – e recebem um bom salário para isso. Esses detalhes despertaram em mim uma curiosidade sobre o tema. Será que não era o caso de pesquisar um pouco mais sobre isso, conhecer mais informações desse game que está virando a cabeça da garotada? Borges continuou falando – o bicho fala mais que arara do zoológico quando avista a cumbuca de alpiste –, comentou que todos os sábados a galera se juntava na casa da sua irmã para assistir a partidas transmitidas ao vivo, com narradores e tudo, como se fosse uma final de futebol. E completou que essa trupe empoleirada no quarto era apenas uma pequena amostra das milhares de pessoas que acompanham as transmissões semanalmente.

Pronto. Isso para mim foi suficiente. Era um bom momento para desvendar um pouco mais dos caminhos do jogo League of Legends (LoL). Como funciona, que tipo de pessoa costuma jogá-lo? Quem são os grandes atletas dessa nova onda dos eSports? Talvez fosse a hora de botar a mão na massa e descobrir mais sobre as pessoas por trás da febre do Campeonato Brasileiro de League of Legends, mais conhecido como CBLoL.

Levantei com tudo, larguei o que estava na mão e saí correndo para traçar os caminhos de quem eu iria entrevistar e o que pesquisar para conhecer mais do assunto. Só esqueci do Borges, que estava do outro lado segurando o sofá e acabou caindo sentado com o móvel em cima do seu colo. O duro é que não faz nem seis meses que ele operou uma hérnia de disco, coitado.

NA ARENA

Dez jovens jogadores se aproximam de suas cadeiras no que parece ser um estúdio de TV. Sentam concentrados em frente aos computadores e se coroam com grandes fones de ouvido, que trazem microfones acoplados. São dez, mas divididos em duas equipes uniformizadas de cinco integrantes. Em pé, cada lado possui ao menos uma pessoa, também de uniforme, que conversa ininterruptamente com os sentados. Uma tela dividida em dois começa a exibir o nome de cada jogador da equipe ladeado de personagens, assassinos, lutadores, cavaleiros misteriosos, sedutoras guerreiras, homens cachorro, homem gato, homem rato, homem jacaré, enfim, a cartela do jogo do bicho quase inteira.

A tela muda e passa a exibir, alternadamente, enquadramentos distintos das ações que se desenvolvem em um grande mapa. Uma das equipes parte de baixo para cima, de encontro aos adversários, que sobem no cenário. Há muita falação por parte dos locutores. É possível distinguir alterações de emoção no seu tom de voz, mas não é fácil compreender o que acontece, já que há nomenclaturas, expressões e até gírias muito específicas sendo proferidas em meio à ação.

Essa pode ser a impressão inicial que um leigo registra ao se deparar pela primeira vez com uma transmissão de partida do Campeonato Brasileiro de League of Legends.

Organizada pela Riot Games, a edição 2015 da competição está em sua segunda etapa, iniciada em maio e composta por chaves onde as equipes se enfrentaram durante sete semanas, até chegarem às quartas de final, à semifinal e, é claro, à grande decisão.

A partida que eu não consegui decifrar era justamente o segundo jogo da semifinal, cujo embate resultaria na vaga para a final, que será realizada no Allianz Parque no dia 8 de agosto, em São Paulo. Vencer a segunda etapa do CBLoL significa conquistar uma chance de disputar o Campeonato Mundial – a vitória em solo brasileiro classifica a equipe para o Desafio Internacional, onde o vencedor local disputa com os melhores da América Latina e Rússia uma vaga para a competição entre todo o planeta.

O jogo League of Legends foi lançado em 2009 pela Riot Games, empresa norte-americana fundada por Marc Merril, atual presidente, e Brandon Beck, o CEO. O jogo foi desenvolvido no estilo Multiplayer On-line Battle Arena (MOBA), ou arena de batalha para múltiplos jogadores on-line, em que grupos se enfrentam em um cenário único, visualizado por cima, no chamado bird’s eye (olho de pássaro).

O jogo tem poderosos antecessores de sucesso no mundo dos games como Starcraft, WarCraft e Defense of the Ancient, mais conhecido como Dota. Uma boa mostra de que o LoL descende desses games vem na composição inicial de sua equipe de desenvolvedores. Alguns dos funcionários da Riot vieram das empresas responsáveis por esses títulos de sucesso no passado.

Aliás, nem tão passado assim. Nesse momento acontece em Seattle, nos Estados Unidos, o International 5, o torneio mundial de Dota 2 que vai entregar ao melhor time um prêmio de mais de US$ 17 milhões. É a maior premiação da história dos eSports.

O LoL é um título da modalidade free to play, ou seja, ele é grátis. No entanto é possível comprar personagens e mudar o visual deles utilizando tanto dinheiro real, quanto o acumulado durante o jogo.

O mundo, o cenário, a Terra Média ou a Sucupira do League of Legends, como você preferir, é Summoner’s Rift. Cada uma das equipes possui o seu Nexus, que é a estrutura principal que define as partidas. Ganha quem botar no chão o Nexus do adversário.

Os caminhos que levam a esse objetivo são inúmeros! Mentira, não são tantos assim, não. Na real, são três rotas: superior (top lane), meio (middle lane) e inferior (bottom lane). Esses caminhos são repletos de obstáculos, como torres e as tropas inimigas, chamadas de minions (não são “aqueles lá”, viu, fique tranquilo). Esses inimigos são inferiores, enchem o saco e fazem parte do combate das tropas adversárias. Além deles, há as torres de ataque e, é claro, os próprios jogadores com seus personagens, os Campeões. Existem mais de 100 opções deles em diversas categorias, com habilidades mais ou menos específicas para cada situação.

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No meio das rotas principais existe a selva, uma área obscura onde os jogadores se confrontam no pega pra capar. É também na selva que se escondem as criaturas como os Dragões e os Barões que, quando destruídas, costumam render bônus às equipes.

Há no mundo 67 milhões de jogadores ativos mensais de LoL. Por dia, são 27 milhões. A Riot Games não fornece dados por regiões. Com sede em Los Angeles, a empresa possui escritórios fora dos EUA em São Paulo, Berlim, Seul, Istambul e Sidney.

Segundo a Riot, quem joga LoL tem, em média, entre 16 e 25 anos. Apesar de a empresa perceber uma crescente entrada feminina no game, a participação de mulheres é de apenas 10%.

Como eu já tinha conhecido mais ou menos o beabá do jogo e do cenário mundial, era hora de dar uma olhada em quem eram os protagonistas, os seres humanos por trás dos teclados e dos mouses dessa semifinal entre paIN Gaming e Keyd Stars. Partida essa que já vinha sendo chamada de “o grande clássico de LoL no Brasil”.

A CALMA DE REVOLTA

Fui até o bairro Tatuapé, na zona leste de São Paulo para conversar com o Revolta, atleta da equipe Keyd Stars. Era rodízio do final de placa do meu carro e, por isso, parti para aquela região apenas após as 10 horas. Mas, como a maioria de vocês leitores não trabalha nem no departamento de trânsito nem em despachante automotivo, não há porque eu dividir esse detalhe. Fui conversar com o atleta faltando apenas três dias para a decisiva semifinal do CBLoL, onde ele integraria o grupo que ia disputar com a paIN Gaming a última vaga para a grande decisão.

A gaming house da Keyd fica em uma área nobre do bairro, no alto de um belo edifício. Da calçada, é possível observar a imensa sacada, antes que o interfone externo toque com o porteiro interessado em saber quem eu sou. Do lado de dentro, o quartel general da equipe não decepciona: um espaço bem grande – se formos tomar como base outros imóveis semelhantes nos arredores, é provável que suas proporções ultrapassem os 200 metros quadrados.

O elevador já me leva direto à porta da gaming house, que tem 50% de sua superfície coberta por uma espécie de vidro temperado, o que permite que o visitante seja avistado pelos moradores.

Gabriel “Revolta” Henud é um jovem de 19 anos, carioca que, apesar do apelido, tem fala e semblante serenos. Por ainda estarmos na parte da manhã, tenho a impressão que o atleta acordou há pouco tempo. Os dias que antecedem jogos decisivos costumam consumir entre 14 e 16 horas de treino das equipes – o que muitas vezes acarreta em atividades que se prolongam pelas madrugadas.

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Ele tem a postura bem ereta. Senta-se em um sofá modular na sala de visitas da casa em uma posição muito confortável – quase iogue. Seu rosto é emoldurado por inseparáveis óculos e parcialmente coberto por uma barba rala que também acusa sua pouca idade. Durante a conversa, está sempre com um sorriso amistoso, que em nada remete ao grau de dificuldade da partida que o espera no próximo fim de semana.

Revolta ocupa a posição de jungler (ou caçador) da equipe da Keyd Stars. Sua posição se assemelha à do armador no futebol. “A minha função é basicamente armar e criar as jogadas com todos meus companheiros de time. Cada um fica parado na sua lane (as três rotas do jogo) e eu fico andando pelo mapa, tomando minha decisão do que eu acho melhor para a equipe – por isso que minha decisão pesa muito no jogo.”

Enquanto converso com Revolta, a impressão que tenho é a de que ele está imerso em um mar de calmaria. Ao nosso redor, conforme o tempo vai passando, outros integrantes da Keyd Stars vão acordando e, automaticamente, ocupando suas máquinas – cinco computadores estão dispostos no mesmo ambiente, em um nível um pouco mais elevado por um degrau, que provavelmente seria sala de jantar do apartamento, antes que ele tivesse sido convertido nesse equivalente da Granja Comary.

Entre os colegas de equipe que chegam ao local e já assumem a estação de trabalho está Murilo “Takeshi” Alves. Além de ser um dos mais conhecidos mid laners (que atuam pela rota do meio do mapa) do país, o brasiliense de Taguatinga é bastante conhecido no cenário nacional dos eSports por sua amizade e sinergia com o caçador Revolta durante as partidas. A parceria, além de ser importante estratégia nos combates, concedeu aos dois uma ligação pública dentro e fora de jogo, semelhante ao que se registrava com Neymar e Ganso, à época em que dividiam os gramados no Santos.

Os dois se conheceram antes de começarem a jogar profissionalmente e, desde então, passaram a atuar juntos em outras equipes, em diferentes momentos em suas carreiras.

O caso mais recente em que os dois se uniram nos mapas do jogo, na equipe Keyd, aconteceu após uma movimentação que balançou o cenário nacional de LoL – e que, ao mesmo tempo, passou a ser citada como exemplo do grau de profissionalização que os eSports estavam alcançando em território brasileiro.

Revolta começou o ano no clube INTZ. Mais que isso, era considerado um dos maiores destaques do time. Capitão e shot-caller (coordenador de jogadas), em muitas ocasiões foi classificado como um dos responsáveis pela excelente fase que a equipe atravessava: foi campeã da primeira etapa do CBLoL e teve bom desempenho no Wildcard International Invitational, em Istambul, capital da Turquia, eliminatória internacional que dá direito a uma vaga no cobiçado Mid-Season Invitational, uma espécie de Mundialito, que rolou nos EUA. Após excelente campanha, a INTZ terminou na segunda colocação e acabou não se classificando para o torneio, após perder para o time da casa em um ginásio perante 4 mil pessoas torcendo contra. Barra pesada!

Na época, o estilo de jogo do então caçador da INTZ impressionou alguns adversários estrangeiros, que chegaram a tietá-lo para compartilhar técnicas no game.

[citacao credito=”Gabriel Revolta Henud”]Minha saída foi acertada no último dia da janela de transferência. Para a comunidade foi um choque, eu tinha acabado de ser campeão e saí do time faltando um dia para fechar tudo[/citacao]

Era um grande momento o vivido pelo time campeão da primeira etapa do CBLoL, que presenciaria um contratempo justamente no último dia em que se permite a movimentação de jogadores.

No dia 12 de maio, em um comunicado oficial em sua página do Facebook, a INTZ declarava: “O rumor que começou em meios de comunicação ontem é verídico. Gabriel “Revolta” Henud pediu para sair do seu clube ontem e voltará à sua antiga equipe Keyd”.

Segundo o texto, a decisão foi uma surpresa também para as pessoas ligadas ao time. “Em nenhuma hipótese pensamos que isso poderia ocorrer com uma equipe que está em plena ascensão, com tantas conquistas e [que] tem o clima interno tão saudável.”

Os trâmites foram discutidos entre a Keyd Stars, equipe que Revolta já havia integrado outras vezes no passado, e seu pai, Wanderley Henud, que também é seu empresário.

“Minha saída foi acertada no último dia da janela de transferência. Para a comunidade foi um choque, eu tinha acabado de ser campeão e saí do time faltando um dia para fechar tudo”, disse-me o jogador, que passados mais de três meses da movimentação, ainda tem de falar no assunto durante as entrevistas e análises. “Eu me botei em uma situação delicada e botei a equipe também. Só que fora isso, tem toda uma prevenção dos times quando isso acontece, que é uma multa rescisória. Cada vez mais está se profissionalizando. Tudo ficou acertado entre INTZ e Keyd”, disse. O atleta deixou bem claro para mim: em nenhum momento se arrependeu da conturbada transferência. “Nem sempre dá para pensar nesse lado, isso aqui é minha vida também.”

Na opinião de um dos principais analistas de League of Legends, Gustavo “gstv” Cima, a questão da movimentação de Revolta entre INTZ e Keyd pode ter causado pressão e polêmica maiores do que o necessário. “No momento em que um jogador recebe uma oferta maior, não é só paixão pelo time e amizade com outros colegas. Isso é o profissionalismo, só que a pressão que a comunidade jogou em cima dele por essa mudança – e que ele mesmo se colocou, por ter sido o grande jogador da primeira etapa – pesou contra ele”, disse-me por telefone, numa ligação ruim pra cacete (acho que estavam mexendo na fiação aqui da rua).

O PVC DELES

Durante as transmissões de LoL, uma equipe de animados casters é responsável pela narração, comentários, explicações e entrevistas para o público. A relação dos fãs dos jogos com essas transmissões é bastante acalorada. A audiência comenta, participa e vibra com os trabalhos da afiada equipe esportiva – tanto o público físico, em eventos abertos, quanto o virtual. Até hoje, o recorde nacional segundo a Riot Games foi um total de 160 mil espectadores simultâneos. O número deve ser superado na grande final da segunda etapa do CBLoL.

Nos intervalos entre os jogos – já que os jogos costumam ser disputadas em duas partidas seguidas (jogo de ida e jogo de volta), melhores de três (MD3) ou de cinco (MD5) – é chamada a figura do analista. Enquanto os narradores e comentaristas têm um foco maior na emoção e até no humor, a presença de gstv (em minúsculas) é mais sóbria, contida e, às vezes, até dura.

À maneira de outras coberturas esportivas, digamos, analógicas, o comentarista já foi, também, jogador de League of Legends – naquela “longínqua” época, entre 2011 e 2012, em que a modalidade de eSports ainda engatinhava no País, Cima integrava uma das maiores equipes.

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Após um hiato para se dedicar aos estudos, recebeu em 2013 um convite para atuar nas transmissões das batalhas virtuais – é muito comum nas biografias dos atletas de LoL esse período de pausa na carreira, que geralmente coincide com pressões externas, como família ou estudos. O jogador Revolta chegou a anunciar o seu abandono nos eSports em 2013. No entanto, o exemplo dele não conta, já que sua aposentadoria durou apenas duas semanas.

Enquanto os narradores esmerilham a ação na transmissão, gstv acompanha as jogadas com rabiscos, estratégias e análises. O próprio visual do comentarista acompanha essa sua posição mais técnica. Com cabelo penteado para o lado, ele geralmente veste traje social, com o colarinho extremamente arrumado. Na ocasião em que o assisti, ele usava uma gravata cinza (atenção editor, não fazer aqui nenhuma referência ao best seller britânico da escritora E. L. James).

“Fico atento a cada detalhe, a cada item, cada movimentação e tento traçar padrões, perceber quais os pontos fortes e fracos – onde eles vão tentar investir no próximo jogo”, relata gstv, que acredita que a função é importante, também, para os próprios jogadores que, no calor da partida, muitas vezes não conseguem captar a movimentação que ocorre simultaneamente em todo mapa.

A estrutura de transmissão e análise buscam “melhorar a experiência” que o jogador encontra ao optar pelo League of Legends. Aliás, essa expressão foi usada ao menos cinco vezes durante uma conversa que tive por telefone com o gerente sênior de eSports da Riot Brasil, Fábio Massuda.

Ele me disse que o ano de 2015 deve ser um marco na operação nacional da empresa, pois foi a data em que a Riot Brasil assumiu completamente a organização dos campeonatos, nos moldes do que acontece internacionalmente, e que busca converter as transmissões em shows para o espectador.

O ano marcou também a estreia do estúdio para as partidas, onde as equipes passam a se enfrentar durante todos os fins de semana, proporcionando, assim, uma cultura de eSports para os fãs aficcionados, que sempre têm o que acompanhar a cada sábado ou domingo.

Massuda não divulgou, por ser uma política da empresa, o total de investimentos feitos no estúdio. Mas a estrutura detalhada impressiona: para acompanhar os jogos, estão envolvidos 60 profissionais com currículo de experiência em coberturas esportivas, como Copa do Mundo de futebol, jogos olímpicos e automobilismo. A tecnologia e o espaço do local, situado na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo, são extremamente profissionais. Para se ter uma ideia, antes de abrigar os LoLzeiros, o espaço foi utilizado para a gravação de cenas internas do já clássico filme brasileiro Cidade de Deus.

A final do dia 8 de agosto, no Allianz Parque, pretende ser ainda maior. “Será um marco, talvez seja o primeiro evento já realizado em estádio aberto e é o maior do gênero que a gente já fez em eSports no Brasil”, disse Massuda, que também confirmou a transmissão da decisão em mais de 30 cinemas espalhados por todo o país.

O gerente da Riot afirmou que a proposta “sempre foi muito bem recebida” por responsáveis pelo novíssimo estádio do Palmeiras. “É um espaço moderno e multi-evento e, para eles, foi só uma questão de acompanhar o histórico de crescimento da modalidade no Brasil”, conclui.

SÓ ACABA QUANDO TERMINA

A equipe da Keyd Stars ainda estava bastante abalada após 25 minutos de jogo da terceira partida da semifinal. Com duas vitórias seguidas da paiN Gaming, o time de Revolta e companhia tinha de se garantir nessa terceira disputa para prosseguir com chances no melhor de cinco. Aos trancos e barrancos, a equipe parecia se reestruturar aos poucos, com pequenas conquistas e posicionamento, apesar de a paiN mostrar-se superior também nessa etapa. No entanto, uma vitória da Keyd e o jogo praticamente ganhava, com o 2 a 1, uma nova roupagem de desafio.

Na marca dos 28 minutos, os cinco jogadores da Keyd concentravam-se na eliminação do Baron Nashor (ou Barão), que é um objetivo secundário do jogo: uma criatura neutra escondida na floresta que funciona como bônus para a equipe que a destrói – e rende benefícios como poderes, experiência ou ouro.

Naquele momento da semifinal, destruir o Baron era também uma questão de autoestima para Keyd.

Enquanto a equipe toda cuidava do bônus, surge a figura do adversário Kami na parte inferior da tela, sondando a movimentação. Em uma ação de defesa, Takeshi desce até o inimigo para despistá-lo. Enquanto isso o Barão era destruído e ia se convertendo no primeiro bônus da partida para a equipe da Keyd.

No entanto, o inesperado aconteceu. Em uma aproximação para o corpo a corpo, Takeshi foi destruído por Kami, que usava o campeão “Viktor” com um nível alto e dotado de muita capacidade de dano naquela ocasião. Takeshi foi eliminado.

Enquanto a narração se engasgava de emoção perante a ousada cena que se desenvolvia na tela, outra proeza aconteceu. Após destruir o primeiro inimigo, Kami seguiu em direção ao Barão, onde o restante da equipe da Keyd desferia os últimos ataques para finalmente destruir o objetivo secundário. Foi quando o mid laner da paiN fez o inusitado. Ao invadir de forma não esperada o espaço adversário, em uma fração de segundos, Kami atacou e destruiu o Barão, roubando o que estava nas mãos da Keyd e, assim, recebendo os benefícios da conquista. Os demais jogadores da paiN já estavam por perto e, diante da ação, foram para cima e continuaram a atacar os jogadores rivais, surpresos e, ao mesmo tempo, desanimados com o que tinha acabado de acontecer.

Os narradores condecoravam o desempenho de Kami e, de antemão, passavam a anunciar o que aconteceria por volta de dez minutos depois. Vitória por 3 a 0.

Ao término da transmissão, o áudio das cabines de jogo foi divulgado, com a comunicação das equipes. O roubo do Barão foi coroado com gritos emocionados pelos jogadores da paiN – a própria equipe parecia não acreditar no que havia acabado de acontecer. Entre as comemorações, é possível escutar uma frase do atirador Felipe “brTT” Gonçalves: “Eu vou chorar, cara”.

“Naquele ponto o time da Keyd já parecia muito fora dos trilhos, eles estavam na partida com uma posição arriscada”, me disse depois o analista gstv. “O time da Keyd insistiu num erro que é deixar o time inteiro no Barão, a comunicação dos caras falhou bastante, eu acho que eles estavam bastante nervosos, ansiosos, durante a partida”, conclui.

A dúvida que povoava a mente dos jogadores nos últimos dias foi resolvida. A grande final seria disputada entre a paiN e a equipe INTZ, antiga casa de Revolta, que venceu a outra semifinal contra a equipe g3x.

Mais um vez, Revolta chamou para si a responsabilidade do desfecho da partida. Em uma imagem que foi amplamente divulgada pelas redes sociais, ainda sentado em sua máquina, poucos minutos após o término da batalha, ele abaixa a cabeça sobre o teclado, com as mãos na testa em tom de lamentação.

Em sua página no Facebook, escreveu uma mensagem aos seus 75 mil fãs: “Sei que individualmente eu decepcionei a todos (…) mas se desapontei vocês, imagine o tanto que eu não estou desapontado comigo mesmo”.

No sábado seguinte, a equipe da Keyd, dessa vez em excelente forma, conquistou a terceira colocação contra a equipe g3x.

PAIN KILLERS

O clima frenético de ansiedade que antecedeu a semifinal acima narrada impediu que eu falasse com jogadores da paiN Gaming antes da partida. Os pedidos de entrevista foram negados, alegando “um momento tenso de preparação”.

Passada a turbulência e com a vaga garantida, fui conhecer a gaming house da equipe, localizada em um belo casarão no Jardim Europa, bairro nobre na zona oeste de São Paulo. Fui recebido por uma simpática funcionária da casa que parecia estar cozinhando algo para os atletas. Um pequeno espaço logo na entrada serve como sala de espera. A moça me ofereceu um café pois estava “passando” um para ela naquele momento, já que os meninos não bebiam. Na minha mente caiu mais um mito, que era o do jogador de videogame que atravessa as madrugadas movido a cafeína.

Distraído, sentei em cima de um desses cabos de impressora que estava sobre o sofá. Enquanto aguardava meus entrevistados, pude reparar no estilo da casa, que não é muito diferente de um ambiente de república universitária. Alguns violões estavam em um suporte no canto, um revisteiro tinha uma versão de bolso do American Gods, do Neil Gaiman, e alguns livros em coreano, um deles um guia de São Paulo nesse idioma.

Na Coreia do Sul estão as grandes equipes e, talvez, o maior jogador (ou ao menos o mais famoso) da história do League of Legends: Lee “Faker” Sang-Hyeok. O país mantém uma aura de pioneirismo e cultura de eSports, em níveis superiores aos registrados ao redor do globo.

Em 2014 a Keyd Stars importou dois jogadores coreanos para as competições nacionais. A vinda de “Winged” e “SuNo” proporcionou a formação de uma equipe fortíssima e, ainda, inaugurou essa tendência de movimentação de nacionalidades em equipes do mundo todo. No entanto, os jogadores me falaram que a vinda dos coreanos foi ainda mais importante nas mudanças de ritmo e na intensidade dos treinos no Brasil – a dedicação da dupla era tamanha que eles usavam as poucas horas de descanso durante o dia para… Jogar um LoLzinho.

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Aos 24 anos, Felipe “brTT” Gonçalves, é um dos mais experientes jogadores da liga, seja em idade, seja na carreira em eSports – o atleta já competiu profissionalmente, inclusive no exterior, em jogos como Dota e Counter Strike.

O carioca do bairro Vila da Penha usa a barba cheia e tem várias tatuagens nos braços. Entre elas, nos antebraços, estão eternizadas as armas do campeão “Draven”. Em uma das mãos, tatuou uma frase que é fruto dos efeitos colaterais de ter uma imagem tão difundida aos fãs do eSports: Haters make me a king.

O jeito tímido e pausado de falar e até de se sentar na poltrona durante nossa conversa contrastam com o tamanho da figura de brTT entre os fãs de League of Legends. Se a torcida da paiN é considerada a maior do país, não seria exagero dizer que grande parte desse público interage com o carisma desse atirador (ou AD Carry). São impressionantes 400 mil curtidas em sua página no Facebook e 130 mil seguidores em seu Twitter. Durante suas streams, que são transmissões on-line pessoais ao vivo do jogador em ação, ele já chegou a reunir 20 mil espectadores (em média, toda vez que ele entra para jogar, 10 mil entram para assistir).

[citacao credito=”Felipe brTT Gonçalves” ]A questão é que [eu quero que] todos os continentes passem a respeitar o Brasil, que quando ouvirem algo de uma equipe daqui eles tratem com respeito, e não zombando[/citacao]

Sua voz tem um timbre grave e é carregada no sotaque carioca. Se nas  entrevistas fala apenas o necessário, sua eloquência durante as partidas faz dele um assíduo gerador de gírias, expressões e memes no LoL. Ao incentivar essas interações e ao responder os fãs, acaba conquistando o carisma e a devoção deles.

A poucos dias da final, um vídeo de 1 minuto e 44 segundos foi enviado como recado para a paiN Gaming e, em pouco tempo, superou as 100 mil visualizações no YouTube. Em uma filmagem caseira, um divertido fã do time usa de uma fala bastante despojada para “orientar” a equipe sobre qual seria a estratégia para vitória sobre a Keyd. No palco dos casters do CBLoL, logo após a conquista da semifinal, brTT foi questionado sobre as já famosas dicas presentes no vídeo, não se importou em utilizar talvez o momento mais alto de sua carreira até agora para, detalhadamente, responder às sugestões basicamente amadoras do jovem.

Essa proximidade no relacionamento com os jogadores “do mundo real” o faz responder com certa carga de emoção, quando pergunto sobre o papel desses garotos na carreira dele. Após alguns segundos de silêncio, ele responde. “Eu acho que, sem eles não ia existir nada. São eles que jogam, eles que dão feedback. O motivo de eu estar jogando é por causa deles, muitas vezes quando vou pro palco e começo a falar de fãs eu choro; toda minha dedicação, todo meu treino é para chegar lá e não decepcioná-los.”

Em jogo, a atuação do atirador é muito ligada ao incentivo emocional dos demais integrantes. Para o analista gstv, “o brTT chama muito a responsabilidade para ele; foca a equipe no jogo, quando está dando errado, ele fala que está certo, que há jeito, vamos para cima, vamos virar”. Sua posição no game é uma das funções mais importantes na questão de quem vai somar a maior pontuação no final da partida. “E esse jogador precisa ser protegido, pois é muito frágil durante uma luta. É o grande alvo do jogo”, conclui.

Dentre as metas profissionais do atirador da paiN existe uma ânsia muito grande pela boa representação do país no exterior. “A questão é que [eu quero que] todos os continentes passem a respeitar o Brasil, que quando ouvirem algo de uma equipe daqui eles tratem com respeito, e não zombando”, diz com firmeza, em uma expressão que nas ruas seria facilmente classificada de ‘sangue-no-zóio’.

Ele deposita muita confiança nessa chance de ir para o mundial, até mesmo levando em conta sua biografia. “Já viajei a outros países para disputar outros jogos, mas nunca cheguei onde queria: representar bem o país e fazer os estrangeiros lembrarem da gente. Acho que se eu ainda tenho alguma chance de fazer isso, este é o ano.”

A sigla que batiza brTT vem ainda dos tempos de Counter Strike e jogos em lan houses, ocasião em que, na busca de um nick para iniciar uma partida, optou pelo nome Barata Voadora, que viria a ser, com o passar do tempo, reduzido às quatro letras. Atualmente seu nome é uma marca forte, gerenciada por seu irmão, em um escritório no Rio de Janeiro. Nas redes sociais suas postagens mais “profissionais” são gerenciadas por sua namorada.

E O SALÁRIO?

Rodei São Paulo inteira, me debrucei em regras, instalei jogos, entrei em contato com as gírias tão peculiares da galera que joga LoL, mas, a parte mais complicada ainda estava por vir: o dinheiro.

De maneira geral, jogadores, integrantes de equipes, pessoas envolvidas com a cobertura e a liga, todos eles são mais escorregadios que vaselina automotiva na hora de expor os rendimentos que a profissão de atleta de eSports costuma gerar.

Quando questionados, a maioria dos jogadores prefere detalhar de onde vêm as possíveis fontes de renda, em vez de revelar números ligados à profissão.

Seus lucros no jogo costumam partir de uma somatória que envolve: salário da equipe, que possui um contrato que pode variar entre um determinado período ou temporada; patrocinadores individuais, que são marcas que buscam ser associadas à imagem do atleta; as remunerações das suas streams que, em estilo semelhante à publicidade digital, costuma render pagamentos conforme o número de espectadores por hora. Há ainda o dinheiro das competições, dividido entre os integrantes. A final do CBLoL, por exemplo, vai entregar R$ 60 mil à equipe vencedora, R$ 30 mil para os vice-campeões e R$ 20 mil aos terceiros colocados.

Entre as poucas informações que obtive relacionadas a valores, vindas de fontes ligadas ao eSports, soube que nos dias atuais, nesse momento de profissionalização cada vez maior do League of Legends, um atleta dificilmente recebe menos que R$ 5 mil mensais. Em momentos de bom desempenho, ocasião em que tanto as conquistas, quanto o valor agregado à sua imagem são maiores, essa média sobe para R$ 10 mil.

O FURAKAMI

Há apenas cinco anos, Gabriel Bohm era um adolescente de 14 anos que se sentava no fundo da classe de um colégio de Florianópolis, Santa Catarina, e que era consumido pela timidez. Sua dificuldade em se expressar era tanta que ele sequer tinha coragem de levantar a mão para responder uma pergunta feita pela professora – de cuja resposta ele tinha certeza.

Hoje, aos 19 anos, Gabriel é reconhecido nacionalmente pelo seu apelido profissional, Kami, como um dos mais completos jogadores brasileiros de League of Legends da atualidade e que, pasmem, é dono de uma oratória de dar inveja ao apresentador de TV Rodrigo Faro.

[citacao credito=”Gustavo gstv Cima sobre Kami” ]É muito difícil vê-lo errando, ele é um cara que consegue pensar 10 segundos antes de todos e ver tudo o que vai acontecer nesse jogo durante esse tempo[/citacao]

Kami (ou Kamikat) fala com muita consciência e de forma ritmada. Move as mãos o tempo todo como se, assim, estivesse facilitando a vazão das palavras – ou estaria ele atravessando a rota do meio durante a organização das suas ideias, como excelente Mid Laner que é?

Apesar de falar muito, não há excesso de informação. As frases, os pensamentos e construções de suas respostas têm começo, meio e fim. Ao vê-lo em silêncio ou concentrado durante uma partida do campeonato, dá a impressão que estamos diante de um silencioso coroinha na missa de domingo, mas, quando ele começa a falar, é possível ver nitidamente a figura de um atleta completo, muito consciente de seu papel tanto para a equipe da paIN Gaming quanto para a evolução do LoL no Brasil.

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Pergunto, é claro, sobre a jogada por ele coordenada e que resultou na conquista do Barão durante a fatídica semifinal contra a Keyd. Sem titubear, Kami já desvia qualquer hipótese de uma valorização pessoal e divide a conquista com a equipe. “O Mylon perguntou se eu tinha Flash, que é um feitiço super importante que precisava ter naquele momento crucial (ele possibilita um curto teletransporte) e eu falei ‘tenho’, daí o SirT foi para um lado eu fui para um outro a gente cobriu varias áreas”,narra ele, como se essa passagem já estivesse cristalizada em sua mente. “O Takeshi, da Keyd, sentiu que tinha de me parar, mas eu estava muito forte e em nenhum momento achei que estivesse em perigo – eu matei ele e fui na direção do bônus, mas o engraçado foi que falei que tinha roubado o Barão antes mesmo de ter conseguido, sei lá, porque senti que ia roubar”, relatou.

Dentre as tantas qualidades que costumam descrever o jogador, a principal é a antecipação. Na visão do analista de LoL, gstv, “é muito difícil vê-lo errando, ele é um cara que consegue pensar 10 segundos antes de todos e ver tudo o que vai acontecer nesse jogo durante esse tempo”.

Há também uma capacidade de improvisação muito grande em suas habilidades. O próprio caçador Revolta, da Keyd, me disse dias antes da semifinal que “o Kami é um cara que, se precisar inventar alguma coisa caso eles estiverem desesperados, ele vai inventar e vai fazer dar certo”.

“Ele está jogando muito bem e atravessa um momento muito bom da carreira em que, profissionalmente, ele se destaca”, conclui gstv.

Com um cabelo raspado nas laterais e um topete levemente espetado, pintado de azul, Kami afirmou estar vivendo a melhor fase da carreira dele nos eSports. “É um momento bastante feliz pois, finalmente, todo nosso trabalho duro está dando resultado palpável dentro de jogo. Acho que a paiN sempre teve a fama de ter, individualmente, os melhores jogadores, mas havia muita dificuldade para encaixar o grupo, se unir e jogar em bloco”, comenta o atleta, que desde o início da vida profissional, nunca deixou o time.

O atleta relaciona boa parte do desempenho positivo alcançado no CBLoL à preparação interior que os jogadores estão tendo. Há cerca de três meses, a paiN escalou dois psicólogos da área esportiva, de alta performance, que estão em contato constante com os atletas. Com jogadores de futebol e vôlei no currículo, os profissionais trabalham vários aspectos, desde a resolução de problemas individuais, conversas em grupo e até mesmo exercícios de respiração dentro e fora da partida. “Eles passam a confiança, desenvolvem um trabalho motivacional muito forte, além de integrar o grupo.”

O jovem sofreu ao deixar Florianópolis, onde vivia com a mãe, para passar a conviver na puxada rotina de uma das gaming houses de São Paulo. Ele vê na figura materna, Sandra, sua maior apoiadora. “Ela não perde um evento hoje em dia e já está até fazendo cosplay, embarcou completamente, está pensando em criar um vlog”, conta orgulhoso. Apesar da distância, se falam e trocam mensagens diariamente entre a pesada rotina de treinos.

No dia 15 de agosto de 2014, Kami fez contato com a mãe para tratar de um assunto que eles já haviam conversado e que ele decidira abordar em uma postagem, naquele dia. Sandra ficou um pouco preocupada, mas apoiou totalmente a atitude do filho que, em um depoimento para os mais de 405 mil seguidores no Facebook, contou ser homossexual.

Em um discurso bastante sincero e leve, o atleta escreveu: “Vocês vivem me perguntando se eu fico incomodado com ‘Kami, você é gay?’ nas streams. Pois bem, agora que eu posso responder: não, nunca me senti incomodado, e, de verdade, eu queria muito responder ‘sim’, mas tinha medo das reações”. A publicação, que já ultrapassa 44 mil curtidas e 3,5 mil compartilhamentos, foi bastante comentada nas redes sociais e virou notícia na mídia que cobre League of Legends.

“Foram dois os motivos que me levaram a ter me assumido publicamente”, me disse o atleta, que seguiu enumerando: “O primeiro foi pelo fato de eu sempre buscar ser muito honesto com os fãs, e era algo que eu queria ter feito antes mas por alguns motivos acabei fazendo apenas naquele dia; o segundo foi para tentar ajudar, claro que não tenho muito poder sobre isso, mas se eu pudesse mostrar para uma pessoa e fazer diferença para ela, já teria sido suficiente”.

Apesar de alguns comentários negativos, Kami orgulha-se do balanço feito naquele dia em seu Facebook, em que ele perdeu 800 curtidas, mas ganhou 2.200. “Então, esses 800 podem ir com Deus!”

Deixei a imponente gaming house da paiN e, assim, concluí a série de etapas de aprendizagem para uma total imersão no mundo dos competidores do Campeonato Brasileiro de League of Legends – desafio que me propus lá atrás, enquanto conversava com meu tapeceiro. Estava tão maravilhado com o conhecimento adquirido que saí da casa e me esqueci de ir ao banheiro urinar. Fui para o carro tão apertado que parecia que eu tinha um guaxinim arranhando minha bexiga por dentro. Em meio a essa pressão física que eu atravessava – em que uma lombada mal feita poderia transformar o automóvel em banheiro químico –, passei a refletir, também, sobre o que se passava na cabeça dessa garotada do CBLoL.

Imagine só o tamanho do desafio que eles têm de encarar, ainda nos idos dos seus vinte poucos anos. Deixar a família, passar horas convivendo com estratégias e personificando as habilidades de seus campeões.

No dia 8 de agosto, paiN Gaming e INTZ vão se enfrentar no formato melhor de cinco, a partir do meio-dia no Allianz Parque, na zona oeste de São Paulo. As duas equipes têm se preparado com intensidade, seja nas gaming houses, como é o caso da paiN e sua agenda maluca de treinos e discussões; e também da ganhadora da primeira etapa do CBLoL, a INTZ, que fez um “bate-volta” nos Estados Unidos para um treinamento intensivo de seus atletas.

O estádio abarrotado de fãs vai se unir ao público dos cinemas do Brasil inteiro e ao provável recorde de audiência online – apesar de a Riot não confirmar nenhuma expectativa, pessoas ligadas ao dia a dia dos eSports apostam que a marca de 200 mil espectadores pode ser atingida.

Esses garotos carregam um mundo nas costas. Um mundo bem peculiar, habitado por campeões em uma arena virtual que arrebata fanáticos por todo o globo terrestre. Da minha parte, posso dizer que me senti honrado de, por pelo menos alguns dias, poder caminhar entre as lendas.

Agora deixa eu parar o carro aqui porque sei que nesse posto de gasolina tem um banheirinho ali de fundo.