Como alguém que assistiu recentemente às duas trilogias de “Star Wars”, na ordem de lançamento, minha expectativa para “O Despertar da Força” era baixa. A lembrança mais recente era a de Hayden Christensen em uma das piores atuações de todas as galáxias. Pra que mexer de novo nesse vespeiro? Não era melhor deixar a memória da trilogia original em paz? Depois de ver o sétimo episódio, a conclusão: ele está bem mais para trilogia original do que para a nova. Aliás, ele é muito (muito) parecido com o primeiro filme, “Uma Nova Esperança”.
Aqui vai só a premissa da história, o que acontece nos primeiros minutos ou já aparecia nos trailers, para ilustrar as semelhanças. Rey (Daisy Ridley) mora num planeta deserto e sabe pouco sobre sua família, até se envolver com o droide BB-8, que carrega em si uma informação importante para a rebelião. (Para quem não se lembra, Luke Skywalker também morava num planeta deserto, sabia pouco sobre sua família e se envolveu com a rebelião ao encontrar o droide R2-D2, que carregava uma informação importante.) Tem também o personagem que, como Han Solo, só quer salvar a própria pele até aderir à rebelião, um vilão mascarado que obedece a um vilão ainda maior e misterioso, heróis que não sabiam ser heróis até descobrirem a existência da Força.
[olho]Abrams apelou para a memória afetiva do público[/olho]
O diretor J.J. Abrams seguiu à risca a receita original de George Lucas e construiu uma história para aplacar a saudade dos fãs da série — numa das primeiras sessões do filme ouvia-se suspiros, gritinhos quando um personagem original como C-3PO aparecia e muitos bateram palmas. Outros tantos devem ter chorado (foi o caso de um amigo, pelo menos). Abrams apelou para a memória afetiva do público.
Mas seguir os passos de “Uma Nova Esperança” não seria garantia de nada e a receita poderia ter desandado. “O Despertar da Força” é um filme divertido, às vezes bem engraçado — Poe Dameron (Oscar Isaac) é um dos destaques nesse sentido. Não tem nenhum personagem tonto e irritante, como Jar Jar Binks, o que é sempre um motivo de comemoração. Os atores novos são bons, infinitamente melhor que os intérpretes de Anakin Skywalker ou mesmo Natalie Portman, bem ruim como a Padmé Amidala nos três primeiros episódios.
E o mais importante: os personagens novos são legais. Leia já era uma boa heroína, inteligente, corajosa e hábil com uma arma. Mas era apenas uma mulher num mar de personagens masculinos e ela foi colocada num biquíni dourado e escravizada por uma lesma gigante (que os fãs mais fervorosos de “Star Wars” perdoem a descrição) até ser resgatada por Luke. Rey tem a companhia de outras ótimas personagens femininas: a própria Leia, Maz Kanata (Lupita Nyong’o), e até uma vilã, a capitã Phasma (Gwendoline Christie). Se Luke tem um contraponto nessa trilogia nova, é Rey, a verdadeira protagonista e heroína da trama. Finalmente uma mulher (vamos descontar aquelas que não falam e só fazem figuração) pega num sabre-de-luz! O vilão, Kylo Ren (Adam Driver), não é nenhum Darth Vader, mas é complexo e tem potencial. E Driver, com aquela voz profunda, nasceu para fazer esse papel.
[olho]Os anos passaram e tudo praticamente voltou ao início[/olho]
O filme não é perfeito. Quem assistiu a “O Retorno de Jedi” e nunca mais parou pra pensar ou voltou ao universo de “Star Wars” pode não entender direito como fomos da festa dos ewoks para comemorar a derrocada do Império à guerra que vemos no início. Os anos passaram e tudo praticamente voltou ao início, com os rebeldes em desvantagem na luta contra os vilões. A motivação de alguns personagens também é um pouco nebulosa e não há exatamente uma conclusão. Na trilogia original, cada filme tinha um arco próprio e um fim de verdade. “O Despertar da Força” é um episódio inicial de algo maior, não amarra várias de suas pontas e deixa muitas dúvidas no ar.
Falta originalidade ao roteiro? Talvez. Mas, de qualquer forma, “O Despertar da Força” é um filme bem, bem legal, e apaga o gosto amargo que “A Vingança dos Sith” tinha deixado na boca. Já é um mérito e tanto.
A estreia de um novo “Star Wars” mexe com as pessoas. No começo, foi fácil resistir a entrar no clima. Mas aí vieram os trailers, os comentários alucinados no Facebook, os pôsteres e — o golpe final — o fofíssimo robô BB-8. De repente, a internet estava cheia de discussões sobre a verdadeira natureza de Jar Jar Binks, o personagem mais chato da galáxia. Depois de três filmes meia-boca, porém, fica a dúvida: vale tanta animação? Quão bom é de fato “Star Wars”? Quais são os melhores filmes? Depois de muita análise, o nosso veredicto é simples: a franquia é boa. Mas nem tudo relacionado a seu universo é automaticamente bom. Longe disso.
Alguns livros e filmes além de criar personagens e uma trama, criam todo um universo, o que permite que novas histórias, antes e depois da original, sejam criadas. “Harry Potter”, por exemplo, vai ganhar spin-offs no cinema e no teatro. Nas telas, Eddie Redmayne será o magizoólogo Newt Scamander em “Animais Fantásticos e Onde Habitam”, ambientada décadas antes de “Harry Potter”, mas com o mesmo universo de bruxos.
Mas a possibilidade de criar novas histórias não significa que elas sejam necessariamente tão boas quanto as originais. O que tornou “Harry Potter” e a trilogia original de “Star Wars” produtos de sucesso é o conjunto da obra: universos interessantes com bons personagens e boas tramas. Ambientar um livro num futuro distópico, numa escola de magia ou numa galáxia muito, muito distante, por si só, não é garantia de nada. Quando se espera algo tão legal quanto o original, a decepção pode ser grande. A expectativa é cruel.
A trilogia original de “Star Wars” é muito boa. O primeiro filme, o mais fraco dos três, já é interessante. O trio de mocinhos protagonista é excelente: um garoto que só tem bondade no coração, um cafajeste charmoso e uma princesa que não tem nada de donzela em apuros. Há uma boa trama política, uma história de amor, ação, um alívio cômico que aparece na medida certa (C3-PO) e um vilão antológico. Nos filmes seguintes, com a descoberta de que — alerta de spoiler para quem viveu numa bolha nos últimos 30 anos — Luke Skywalker e Leia Organa são irmãos e filhos de Darth Vader, a trilogia ganha ainda um elemento de drama familiar e fica ainda melhor. Tudo deu certo.
Na teoria, a trilogia iniciada nos anos 90 também poderia ser boa. A premissa, pelo menos, é ótima: mostrar como o jedi Anakin Skywalker foi para o lado negro da força e virou o vilão Darth Vader, como os jedis foram dizimados, a formação do Império, o nascimento de Luke e Leia. Tem muito material. A execução é que foi ruim. George Lucas pegou vários dos mesmos elementos que deram certo nos três primeiros filmes, mas fez tudo errado com eles.
Como na trilogia original, tem política. Mas é tudo tão mais complicado que, para pessoas estreando no universo “Star Wars” ou há muito tempo afastadas dele, umas consultas ao Google ajudam. Há também uma história de amor, mas muito ruim. No primeiro filme, é estranho ver o romance nascente entre uma rainha, ainda que adolescente, e uma criança. Nos seguintes, Anakin força a barra com Padmé e não consegue entender que “não” significa não. Também não ajuda o fato de Hayden Christensen, o Anakin, ser um péssimo ator e Natalie Portman estar longe de seu melhor momento.
O alívio cômico, Jar Jar Binks, em vez de fazer rir, provoca em iguais medidas constrangimento, irritação e ímpetos violentos. E um vilão do calibre de Vader faz falta (Darth Maul? Pffff, por favor. Só seu sabre de luz, com duas pontas, é legal). Nem a transformação de Anakin em Vader é lá essas coisas. Falta sutileza: desde o começo ele é desobediente, irritadiço, com tendências ditatoriais, e um chato que só reclama. Yoda devia ter seguido seu primeiro instinto e se recusado a treiná-lo.
Pode parecer estranho dizer que os efeitos especiais dos filmes dos anos 1970/80 envelheceram melhor que os dos anos 1990/2000, mas é verdade. Na trilogia original, as estranhas criaturas espaciais são representadas por bonecos ora fofos — como Yoda –, ora curiosamente bizarros — escolha qualquer um no bar em que Luke conhece Han Solo. De qualquer forma, os bonecos são simpáticos. Nos filmes mais recentes, muitas criaturas são digitais, e os efeitos evoluíram muito de lá pra cá, e os efeitos envelheceram mal. Novamente Jar Jar Binks é o exemplo negativo. Mesmo Yoda é computadorizado no final, perdendo boa parte do seu charme.
Vale o mesmo para os livros de “Star Wars”. São muitos, escritos por vários autores e ambientados em épocas diferentes. São histórias tão diferentes que é impossível generalizar e dizer que os livros, como um todo, são bons ou ruins. Há dezenas de livros de “Star Wars” disponíveis, que contam histórias de antes da era da velha república, da época dos filmes e depois de “O Retorno de Jedi”. Alguns livros giram em torno de um só personagem (grande, como Han Solo, ou menor, ou do oficial Wilhuff Tarkin, comandante da Estrela da Morte).
Entre todos, “Marcas da Guerra”, de Chuck Wendig, é o único ambientado após “O Retorno de Jedi” que pertence ao cânone — coleção de livros oficiais, que existem no mesmo universo dos filmes. A maioria dos livros tem o selo “Legends”: são histórias que não têm impacto no que acontece no cinema e não dão pistas para o que vem por aí. Mesmo assim, esses volumes têm seus fãs.
Os mais populares da coleção são os da trilogia Thrawn, de Timothy Zahn. Publicada nos anos 1990, entre as trilogias cinematográficas, foi responsável por uma nova onda de interesse pelo universo de George Lucas. A história de Zahn se passa após a derrocada do Império e ganhou o selo “Legends” quando um novo filme foi anunciado. No livro, por exemplo, Leia engravida de gêmeos e Luke se casa. Vai saber o que acontece nos filmes.
Mas “Marcas da Guerra” é o único livro a dar pistas do que vem pela frente. Como os personagens do livro e do novo filme não são os mesmos e os dois foram feitos por pessoas diferentes, não dá para usá-lo como base para especular como será “O Despertar da Força”, só para sentir o clima de como andam as coisas na galáxia distante. O autor conta histórias de diferentes personagens, alguns do lado do Império, outros do lado da Nova República. Tem menos ação do que um fã da série está acostumado — é como se fosse um prólogo mesmo, um mosaico de como a galáxia está após a morte de Darth Vader e do Imperador (spoiler: não está nada bem, aqueles Ewoks começaram a dançar antes da hora).
Pelo menos, o livro mostra que ainda existem boas histórias para contar: diferente do que o final de “O Retorno de Jedi” dá a entender, com a festa de ewoks comemorando a morte do Imperador e de Darth Vader, a paz não foi alcançada na galáxia. O Império foi enfraquecido, mas a guerra está só começando.
Resta saber onde o sétimo filme se encaixará no ranking de melhores filme da série, que, por enquanto, está assim:
6) Episódio 1: A Ameaça Fantasma
Tão bom quanto uma visita ao dentista. O mundo estava certo ao dizer que Jar Jar Binks era o pior personagem de toda a série. Sem graça, irritante, é só ele aparecer em cena (e pior, abrir a boca) pra você sentir uma vontade súbita de ir ao banheiro sem pausar o filme. O ator que faz o Anakin Skywalker, coitado, é péssimo — e nunca mais fez outro trabalho como ator. Nada de emocionante acontece e a corrida de pod racers é maçante e poderia ser cortada facilmente. A luta de sabres de luz entre Darth Maul, Qui-Gon Jinn e Obi-Wan Kenobi é o único bom momento — e acontece só no final. Até lá é um suplício. Se a história for justa, esse filme será esquecido e virará apenas uma memória apagada na mente de todos nós.
5) Episódio 2: Ataque dos Clones
A boa notícia: outro ator faz Anakin. A má notícia: ele talvez seja pior que o primeiro. Impressionante, é “Star Wars”, eles podiam escalar qualquer ator do mundo, e escolheram Hayden Christensen. A química dele com Natalie Portman (Padmé Amidala) é praticamente inexistente e é difícil torcer pelo romance deles, que é o que leva Anakin ao lado negro da força. Ver Yoda como computação gráfica dá uma tristeza. Pelo menos tem menos Jar Jar e a trama de Obi-Wan investigando o exército de clones é até que legal. Se o filme se centrasse nele, talvez fosse melhor.
4) Episódio 3: A Vingança dos Sith
Hayden Christensen ainda está mal, mas melhora como Anakin. Dos filmes da trilogia nova, é o mais cheio de acontecimentos. O motivo que leva Anakin ao lado negro da força é um pouco idiota: convencido de que se juntar a Palpatine pode impedir a morte de Padmé, ele se volta contra os jedi. Mas ele não se deu conta de que ele ia perdê-la justamente por isso? E no fim das contas ela morre mesmo, o que é bem frustrante. Pelo menos o final, com a luta entre Obi-Wan (o melhor personagem da trilogia) e Anakin, é bom. E nem que seja por pura curiosidade, é legal descobrir o que aconteceu para Vader precisar daquela máscara e armadura e finalmente ver a transformação do vilão.
3) Episódio 4: Uma Nova Esperança
Não ter o romance entre Padmé e Anakin e Jar Jar Binks já faz do episódio 4 melhor que os três filmes da trilogia nova. Mas ainda não tem o mestre Yoda e como não se sabe que Darth Vader é pai de Luke e Leia há menos coisa em jogo. Para quem já sabia desse fato ao ver o filme, o clima de romance e azaração entre Luke e Leia é bem esquisito. É uma boa introdução para a história e a destruição da Estrela da Morte é legal, mas a história melhora quando Luke se torna um jedi.
2) Episódio 6: O Retorno de Jedi
Em “How I Met Your Mother” uma teoria é apresentada: quem nasceu antes de 1973 e já era grandinho no lançamento do filme não gosta dos ewoks. Quem nasceu depois, os adora. Talvez seja verdade. Como alguém que só viu a trilogia nova no cinema: eles são fofíssimos. O filme tem momentos divertidos (o resgate de Han Solo, preso por Jabba), boas lutas e um desfecho emocionante entre Darth Vader/Anakin e Luke.
1 ) Episódio 5: O Império Contra-Ataca
Ganha do “Retorno de Jedi” por ter Yoda montado nas costas de Luke, aprendiz de jedi. É, aliás, a primeira aparição de Yoda, forte candidato e melhor personagem da série. Tem também o momento mais famoso de “Star Wars”, a revelação de que Darth Vader é pai de Luke (pra quem viu o filme sem saber o spoiler, deve ter sido um momento e tanto). Como se não bastasse, tem outra frase clássica: depois de ouvir uma declaração de amor de Leia, Han Solo responde com “eu sei”. Grandes momentos em um grande filme.
Aviso importante: esse texto tem spoilers. Não muitos, porque o filme não se presta a isso, a verdade é essa, não acontece nada que se voce souber vai estragar sua experiência. Bem, acontece uma coisa, e eu vou ter que contar no final. Afinal, Luke Skywalker está vivo? Se bandeou para o Lado Negro? Vai ser encontrado? Essa é a única questão que você precisa chegar no cinema sem saber. E sim, esse texto tem essa informação.
***
“O Despertar da Força” começa de maneira quase idêntica a “Uma Nova Esperança”. Sabe-se lá por que, os rebeldes, que tinham ganho a briga no fim de o “Retorno de Jedi”, parece que não ganharam, e são, de novo, rebeldes. O Império agora se chama Primeira Ordem, e briga com a República. Sim, começa complicado. Os caras que tinham ganho não ganharam, ninguém explica direito como isso se deu, e o Império, que na verdade era a República, já que apareceu quando fecharam o Senado (que era a República), aquela coisa toda, agora briga com a República que… tinha deixado de existir quando o Senado Imperial apoiou o Palpatine.
Aceitemos, então, que a segunda trilogia nunca aconteceu, já que esta parece ser a grande mensagem de J. J. Abrams ao mundo, e que portanto República e Império podem co-existir — e brigar.
O Império, de novo, tem um único objetivo: acabar com os Jedi. Os rebeldes, de novo, têm um objetivo: achar os Jedi porque eles podem salvar o universo. Repare: o uso do “de novo” aqui não é acidental, porque a sensação de “de novo” é constante, é ela que domina 99% do filme.
Se não vejamos: o filme começa, de novo, com alguém colocando uma mensagem secreta dentro de um dróide. Que, de novo, se perdeu de seu dono, e precisa ser levado de volta aos rebeldes. BB-8 é um dróide pra lá de bacana, mais bacana até do que R2-D2, mas, mesmo assim, é um dróide com uma mensagem secreta que precisa ser levado de volta para os rebeldes. De novo, esse dróide cai, num passe de mágica, nas mãos de uma pessoa que “tem a Força”, embora você, de novo, não saiba disso até um pouco mais na frente no filme.
[olho]Aceitemos, então, que a segunda trilogia nunca aconteceu, já que esta parece ser a grande mensagem de J. J. Abrams ao mundo[/olho]
Beleza, vou parar com o “de novo” agora, porque aqui começam algumas diferenças entre o primeiro filme e o novo. Primeira coisa: tudo acontece rápido demais. Se no “Guerra nas Estrelas” original demora um tempo até Luke encontrar Obi Wan, decidir segui-lo, perceber que tem um poder etc., neste tudo acontece rápido demais, como se o filme devesse ter quatro horas mas só pudesse ter duas.
Enfim, o dróide está com um piloto, o melhor piloto da frota rebelde, ele é capturado, deixa o dróide pra trás, e depois é resgatado por um Stormtrooper arrependido. Esses caras fogem, e caem no planeta Jakku, de espetacular nome — o mesmo onde o piloto havia deixado o dróide. Ali, os espera Rey, que era, até então, uma catadora de lixo. Ou melhor: Rey só encontra o Stormtrooper, Finn, já que o piloto desaparece. Rey estava com o dróide, diga-se, ele apareceu um dia na esquina da casa dela.
Aqui temos que começar com o “de novo” de novo, porque , quando vão escapar de Jakku — porque sabiam que a Primeira Ordem queria pegar BB-8 –, eles encontram uma nave abandonada. Que é, simplesmente, a Millenium Falcon.
Não é que eu não esteja disposto a deixar espaço para a fantasia, certo? Se você não aceita que existe naquele universo algo que se chama “A Força”, e que isso não só é normal como é legal, nem deveria ir ao cinema. A questão é que os elementos fantásticos da primeira trilogia — robôs rodando na areia — se apóiam em uma narrativa coerente e consistente. Algumas coisas acontecem “por acaso”, e isso é OK — na vida coisas acontecem por acaso. Mas o dróide ser encontrado por alguém que tem a Força já é um acaso. Essa mesma pessoa achar uma nave espacial abandonada e ela ser a Millenium Falcon já começa a ser acaso demais. Vamos deixar pra lá o fato de que Jakku é quase uma cópia de Tattooine.
Tudo é rápido demais quando Rey e Finn são interceptados por Han Solo e Chewbacca. De repente, estão todos em um planeta “fora do sistema”, e Rey é “atraída” pelo sabre de luz de Luke, que estava escondido por lá — sério. E, ao tocá-lo, começa a ter visões.
Neste momento, já conhecemos o vilão, ou melhor, os vilões. O novo malvadão master é um Golum gigante, e eu juro pra você que quando anotei isso no cinema eu não sabia que era o mesmo ator que fez o Golum. O novo Darth Vader é filho de Han Solo com a princesa Leia, e presta homenagens ao capacete queimado de Darth Vader — também sabe-se lá por quê. Sua passagem para o lado negro não é clara, mas quero acreditar que isso vai ficar claro nos próximos filmes. Assim como não é claro porque Luke Skywalker se isolou, e se escondeu, e aí temos o argumento central da história, que se desenrola como uma busca por ele: o Império, para eliminá-lo, e com isso acabar com “o último Jedi”, e os rebeldes, para trazê-lo de volta, para que ele possa treinar “a próxima geração Jedi”.
Porque Luke se esconde é o ponto fraco do enredo. Em tese, porque estava treinando o filho de Leia — e outros Jedi –, cujo nome, aliás, é Kylo Ren, e Ren se revoltou e quebrou tudo. E virou malvado, por algum motivo. Sério? O cara está treinando a próxima geração de bonzinhos, aí um vira mau, e o que ele faz é falar “aí, fodam-se, fui!”? Não cola.
Mas voltemos à história: o Império então invade esse planeta para pegar BB-8, não pega, mas captura Rey. Finn, que estava vazando da batalha, então volta e vai junto com Han Solo procurar por ela. Eles fazem uma parada na base dos rebeldes, que é quando aparece a Princesa Leia (que agora se chama General alguma coisa, não vou procurar o nome, é a Princesa Leia). Os rebeldes, então, são descobertos pelo Império, que vai usar contra eles sua nova grande arma. Isso, de novo, eu esqueci do “de novo”, porque a arma é nada mais do que uma Estrela da Morte muito maior, e eu posso dizer pra você, do alto de quem montou uma Estrela da Morte de Lego, que essa daí eu não vou montar nem fodendo, amigo, é dez vezes maior. Mas não passa de uma Estrela da Morte, inclusive por dentro, inclusive, de novo, vai ter a cena em que a Rey tem que passar de um lado para outro mas não tem ponte. Sério!
E aí qual é a história de novo? Os rebeldes têm que entrar lá, desarmar o escudo protetor e depois atirar no oscilador para destruir a arma de novo! E de novo os caras conseguem! De novo não tem ninguém protegendo o escudo, basta render uma pessoa, que estava desacompanhada andando tranquila pela estrela, pra desarmar tudo. É absolutamente fácil demais.
Nesse momento do ataque, de novo, no planeta também estão rolando uns fights. Finn, que era só um Stormtrooper fugitivo, enfrenta Kylo Ren, que tem a Força e é do Lado Negro, com o sabre de luz, e dá briga! E Rey, que tinha a força mas tinha acabado de ficar sabendo, usa ela como um velho Jedi, escapa dos vilões e no final derrota Kylo Ren numa briga rápida e chinfrim.
E então aparece um mapa para Luke! Assim, de repente. Um mapa! Não há uma jornada para achar o cara, uma aventura. A aventura é outra, é para salvar “o mapa”, que na verdade era só metade do mapa. Quando essa metade é salva, a outra aparece miraculosamente — estava dentro de R2-D2 — e em cinco minutos acharam o Luke. Mas… se o cara queria se esconder, por que deixou o mapa dentro do robô?
***
A primeira grande briga que tive com o meu melhor amigo foi quando ele tentou estabelecer algum tipo de semelhança entre a filosofia de “Matrix” e a série “Guerra nas Estrelas”. Faz tempo, fumava-se muita maconha na época e eu já perdoei ele, mas não foi fácil. Matrix é apenas uma boa idéia, talvez até uma excelente idéia, transformada em um filme de ação mais ou menos. Não há qualquer tipo de “filosofia” ali pelo simples fato de que é tudo explícito, explicado, raso. Não é, evidentemente, o caso da primeira trilogia de Star Wars. E é, evidentemente também, o caso da segunda trilogia. O primeiro filme da primeira trilogia era um filme de ficção científica doidão, feito para adultos e que podia ser entendido, e apreciado, por adolescentes e crianças. A segunda trilogia era um caça-níqueis feito para inspirar produtos e videogames em que tudo tinha que ser explicado. É por isso que ela é uma bosta, e a primeira é sensacional.
Deste ponto de vista, faz sentido “matar” a segunda trilogia e fazer um esforço para afirmar a nova fase como uma continuação da primeira, O problema é que “continuação” não é a mesma coisa que “repetição”. Ao não querer se desprender do original, J. J. Abrams não se afasta o suficiente dele. Faz o mesmo filme, com detalhes diferentes. O que é frustrante, e só pode ser entendido se considerarmos que estamos falando apenas de uma base para uma nova trilogia. E que o segundo e o terceiro filme vão trazer a história nova, que ainda não apareceu.
Da maneira como termina esse Episódio VII, podemos até supor que o Episódio VIII será tão somente o próximo Episódio IV, mas com Luke treinando Rey no lugar de Yoda treinando Luke.
Não vou tentar convencer você de que eu vi Star Wars em 1977 porque deve haver em algum lugar uma menção ao fato de que eu nasci em 1973, e o filme não faria muito sentido para um moleque de 4 anos. Em 1983, porém, quando foi lançado “O Retorno de Jedi”, eu vi no cinema — e já tinha assistido os dois anteriores. É claro que minha primeira relação com o filme, aos dez anos, foi diferente da que tive depois, aos 12, aos 16, mas há uma diferença significativa para quem viu o filme pela primeira vez muitos anos depois: a primeira vez que vi Yoda, eu não podia ter idéia de que aquele era um mestre Jedi. Eu não sabia que Darth Vader era o pai de Luke Skywalker até o final de O Império Contra Ataca, e mesmo assim, certeza mesmo só no terceiro filme. Star Wars, para mim, não é uma experiência cinematográfica, sou pretensioso, tenho ambições intelectuais, cinema é cinema, eu curto, Star Wars é uma outra parada, é um universo. Você não compra uma camiseta, um chaveiro do Yoda, uma mochila do R2D2 porque Star Wars é seu filme preferido, mas porque aquele universo fez sentido pra você, te capturou.
Nesse sentido, a segunda trilogia é decepcionante para o público adulto também bastante por isso: não há nada de cativante ali, tirando talvez o visual do planeta Naboo – embaixo e em cima d’água.
A nova trilogia de Star Wars está no universo certo, tem a temperatura, o clima certo. Mas precisa acrescentar algo, criar algo. Não pode ser só um “Star Wars para chamar de meu” dessa geração. Este primeiro filme absolutamente não faz isso. Que ele seja, portanto, só uma caracterização, uma maneira de (re) estabelecer o clima, o ambiente. Porque se for só isso que foi até aqui, terá sido bastante decepcionante.
Para Max Geller, o pintor Pierre-Auguste Renoir é péssimo. Ele acha que Renoir é tão ruim, mas tão ruim, que criou uma conta no Instagram com o nome Renoir Sucks at Painting (em tradução livre, algo como Renoir é uma droga como pintor), que angariou fãs pelo mundo até se tornar um movimento, com direito a manifestações em portas de museus com cartazes dizendo coisas como “Deus odeia Renoir”. Sua demanda: remover pinturas do francês das paredes dos museus. Max é o primeiro a admitir que usa humor em suas ações, mas por trás da fachada cômica tem uma crítica de verdade. O Renoir Sucks at Painting quer, na verdade, discutir a diversidade nas artes plásticas.
Como exemplo, ele cita o Brasil, com seus museus construídos numa terra “roubada por colonizadores europeus, que hoje penduram arte europeia que nem é tão boa dentro deles”. “Especialmente no contexto do Brasil, Renoir Sucks at Painting é uma acusação contra o eurocentrismo”, afirma. “O movimento pode ser tão sério quanto você está disposto a levá-lo. Acho que falar sobre quem vai a museus e quem fica de fora é muito importante. Não é uma piada. Não é uma piada falar de como mulheres e pessoas que não são brancas são mal representadas. Seria louco sugerir no Brasil que os únicos artistas bons são homens brancos europeus. Mas se você for a um museu, pode sair achando isso. Esse é o problema.”
[olho]”Seria louco sugerir no Brasil que os únicos artistas bons são homens brancos europeus. Mas se você for a um museu, pode sair achando isso. Esse é o problema.”[/olho]
Outros pintores brancos e europeus poderiam ter sido escolhidos para representar o movimento, Max confessa. Mas há algo de especial em Renoir, em sua opinião. Os dedos que ele pinta parecem tentáculos, a pele das pessoas é cadavérica e ele retrata mulheres da mesma forma como pinta flores e prédios. “Ele literalmente objetifica as mulheres. Ele não dá a elas nenhum tipo de agência, elas só existem sob seu olhar masculino e isso é uma droga”, afirma. Também critica a participação de Renoir no projeto colonizador francês. “Ele foi para a Argélia e voltou com quadros que mitificam e facilitam a dominação colonial. Isso é uma bosta. E é uma bosta também porque seus cenários parecem vegetação podre e não árvores.”
Tirar todas as obras de Renoir de circulação é uma meta surreal e não é isso que o movimento almeja. “Um objetivo realista é incluir pessoas que costumam ficar de fora das conversas. Não estou interessado em ser o cara que diz ‘esse Renoir é ok’ e ‘esses cem são péssimos e não deviam estar em museus’. Eu quero democratizar a conversa sobre arte e incluir mais vozes. Especialmente vozes que não são de homens brancos descendentes de europeus”, diz.
A repercussão do movimento o surpreendeu. Semanas atrás era só um cara com uma conta no Instagram, e agora diz ter falado com mais de 200 pessoas de países diferentes sobre suas ideias. Há grupos em diferentes cidades americanas organizando suas próprias manifestações e Max conta ter visto recentemente uma foto de um protesto em Tel-Aviv, em Israel, em que pessoas reclamavam de Renoir e dos museus voltados à arte europeia. “É um problema no mundo todo, com colônias importando arte da Europa como monumento à dominação ocidental. Não é bom, na minha opinião.”
Um dos motivos para os grandes museus exibirem tanta arte de homens europeus, em sua opinião, é que as pessoas que tomam essas decisões não representam todos na sociedade. “Não somos fortes o suficiente para forçar diretores de museus a contratar tipos de pessoas diferentes, mas somos fortes o suficiente para fazer nossa presença sentida. O ato de protestar em museus e aumentar a conscientização a respeito do acesso a eles é o primeiro passo.”
MERITOCRACIA
Nem todo o mundo vê o movimento com bons olhos. Uma herdeira de Renoir, por exemplo, deixou um comentário pouco amistoso em dos primeiros posts de Max no Instagram. “Quando seu tataravô pintar qualquer coisa que valha US$ 78,1 milhões (o que seria US$ 143,9 milhões hoje) você vai poder criticar. Enquanto isso, dá pra dizer que o livre mercado falou e Renoir NÃO é uma droga como pintor”. “Ela ficou muito chateada e usou, na minha opinião, um argumento muito insano sobre o livre mercado. O que, pra mim, foi ótimo”, conta Max.
Ela não foi a primeira nem a última a dizer que devemos deixar o mercado livre para decidir o valor das coisas e que,se Renoir está nos museus, é porque merece e o mercado reconheceu. “Acho ótimo que essa seja a melhor resposta que os críticos tenham, porque é patético. Olhe ao seu redor. Se você ler o jornal hoje vai ver que todas as histórias terríveis que estão lá foram causadas pelo livre mercado”, diz. “Não é uma surpresa que as pessoas que escolham os indicados ao Oscar sejam majoritariamente brancas. Da mesma forma, não é uma surpresa que os curadores de museus sejam majoritariamente homens. É um problema estrutural. É racista e misógino dizer que é uma questão de mérito e não de acesso.”
Outros dizem que pedir para tirar Renoir dos museus é uma forma de censura. Ninguém poderia afirmar que algo não merece estar exposto. “Censura é uma questão de poder e o movimento literalmente não tem nenhum. Não estamos em posição de censurar. Eu acuso os museus de censurar arte que não seja de um europeu. Porque eles podem colocar outro tipo de arte lá e não colocam. Somos um movimento que tenta pressionar museus a serem mais inclusivos.”
Ok, mas e o valor histórico? Supondo que se concorde com as posições do Renoir Sucks at Painting, não valeria a pena manter as pinturas de Renoir na parede pelo que elas representam na história da arte? Max reflete. “Não estou dizendo para tirarmos toda a arte europeia dos museus. Digo que devemos pensar melhor no que vai nas paredes. Tem que ter menos, mas não tirar tudo. Alguns museus têm 15 Renoirs. Pra que tanto? Especialmente quando eles não têm nenhum quadro de mulher ou de um negro.”
Seus planos são ousados. Além de continuar os protestos nas portas de museus, o movimento quer começar uma campanha de financiamento coletivo para tentar comprar um quadro de Renoir e queimá-lo ao vivo. Sério? “Tentar fazer isso vai levar a uma discussão que estou interessado em ter. Conseguir comprar a pintura não é tão importante quanto dar início a essa conversa”, afirma. “Você tem que entender, se eu pareço ambicioso é porque semanas atrás eu só tinha um perfil no Instagram e agora isso deu a volta ao mundo. O céu é o limite.”
A certa altura de “A Grande Aposta”, alguém faz um comentário super complicado sobre economia e o personagem de Ryan Gosling diz algo como: “Esse papo faz você se sentir burro ou entediado? Bem, é esse o objetivo. Wall Street adora usar termos confusos pra você achar que só eles conseguem fazer o que fazem”. A crise de 2008, para quem não acompanhou com atenção ou estava mais preocupado com o nascimento dos gêmeos de Angelina Jolie e Brad Pitt e a greve dos roteiristas americanos, é um pouco assim. Todo o mundo sabe que ela aconteceu, alguns sabem mais ou menos como ela aconteceu e nem tantos sabem realmente como foi. “A Grande Aposta” desenha para você entender.
Baseado em um livro de Michael Lewis, cujos textos inspiraram também “O Homem que Mudou o Jogo” e “Um Sonho Possível”, o filme conta a história de alguns personagens reais que perceberam antes dos outros que a bolha imobiliária iria estourar e ficaram ricos com isso. Pela sinopse não parece, mas é uma comédia — afinal, o diretor é Adam McKay, de “O Âncora” e ex-roteirista do “Saturday Night Live” — e tudo é feito para facilitar. Quase um “a crise de 2008 para leigos”.
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O filme, que estreia em janeiro no Brasil, tem três núcleos principais que não conversam um com o outro. Christian Bale é Michael Burry, um investidor que trabalha descalço e de bermuda enquanto escuta rock num volume altíssimo, e o primeiro a perceber que a crise era inevitável por fazer algo que ninguém tinha feito antes: olhar o que estava acontecendo. Antecipando-se ao estouro da bolha, começou a apostar contra o mercado imobiliário, comprando em diferentes bancos uma espécie de seguro para caso as hipotecas que todos os americanos faziam não fossem pagas — para a alegria dos banqueiros, que acreditavam que o mercado imobiliário era o mais seguro de todos.
Ryan Gosling é Jared Vennett, funcionário de um banco que descobre o que Burry está fazendo, vê que aquilo tudo faz sentido e leva a informação para Mark Baum (Steve Carell), que também começa a apostar contra o mercado. Por fim, dois jovens investidores (Finn Wittrock e John Magaro) leem o plano de Vennett e também entram na jogada, com a ajuda do ex-banqueiro Ben Rickert (Brad Pitt, produtor do filme). Os protagonistas fazem uma aposta arriscada e é normal torcer para que eles vençam. Só que como Rickert aponta, se eles ganharem boa parte do país vai perder suas casas, suas economias, suas aposentadorias. Não tem mocinhos ali.
É possível entender a trama com zero conhecimento de economia, até porque McKay é didático. Depois de algumas cenas mais complexas, celebridades aparecem em diferentes situações explicando os termos para leigos. Margot Robbie (“O Lobo de Wall Street”) toma um banho de espuma enquanto toma champanhe, Selena Gomez joga blackjack num cassino e Anthony Bourdain reaproveita peixes velhos em seu restaurante enquanto explicam conceitos de economia. Mas como a explicação vem depois das cenas complexas, ajuda ir para o cinema com uma base mínima do que aconteceu.
Em termos bem (bem) simples, o que Burry descobre é que muita gente havia financiado suas casas nos Estados Unidos sem ter condições de arcar com empréstimos. Os bancos americanos juntavam diversas hipotecas em pacotes com vários níveis de risco e as vendiam para investidores. As mais seguras rendiam menos juros, mas mesmo assim tinham um retorno bom. Empolgados, começaram a emprestar mais e mais dinheiro para quem quisesse comprar casas, mesmo sem entrada ou garantias de que essas pessoas pudessem pagar. Burry percebeu que isso não poderia durar e investiu mais de 1 bilhão de dólares num seguro contra a inadimplência. Enquanto o calote não acontecesse, ele deveria pagar altos prêmios aos bancos. Mas quando a bolha finalmente estourasse, ele ficaria rico.
O que aconteceu todo o mundo já sabe: Burry estava certo, cada vez mais pessoas deixaram de pagar seus empréstimos e entregaram suas casas aos bancos, a oferta de imóveis cresceu, o valor de cada um deles caiu, bancos e investidores se viram com um monte de batatas quentes nas mãos e a economia quebrou. No fim das contas, o governo americano salvou os bancos da falência, deixando a população que perdeu tudo arcar com as consequências. Os protagonistas do filme se dão bem, mas não tem final feliz.
Imagens reais (fotos, clipes musicais, vídeos) são misturadas às descobertas devastadoras que os personagens fazem: casas abandonadas por pessoas que não conseguiram pagar suas dívidas, gente com vários empréstimos ao mesmo tempo, vendedores inescrupulosos de hipotecas, que nem se preocupavam em explicar as cláusulas aos clientes, agências de risco que avaliavam investimentos de risco como seguros. Havia problemas em todas as engrenagens do sistema e, sete anos depois, muita gente já se esqueceu deles. McKay não quer que as pessoas se esqueçam. É um filme político, quase educativo, mas sem ser chato.
Em janeiro de 1986, onze anos depois de ter sido envenenado por um sapo da espécie dendrobata, o naturalista Augusto Ruschi se viu condenado. O veneno, acreditava ele, havia contaminado 95% de seu fígado. Nos últimos meses, o naturalista acelerara o ritmo de trabalho para concluir os dois livros que estava escrevendo, mas suas forças diminuíam a cada dia. Ele ofegava, dormia mal, sofria com febres e hemorragias nasais. Depois de uma vida desbravando as florestas e matas do país, já não conseguia percorrer longas distâncias.
Temendo pelo pior, chamou um de seus amigos mais próximos, o jornalista Rogério Medeiros, e lhe fez um último pedido. Queria ser enterrado na Reserva Biológica de Santa Lúcia, a mata de 279 hectares cobertas de orquídeas e bromélias que ajudou a tombar.
“Mas tem que ser aqui?”, questionou Medeiros, argumentando que, no Brasil, “não se enterra ninguém fora do cemitério”. Ruschi foi irredutível. Era lá, no paraíso das plantas e dos pássaros, que havia realizado a maior parte de sua obra. A outro grande amigo, o cronista Rubem Braga, confidenciara: depois da morte, sonhava em ser carregado pelos beija-flores.
O naturalista já não tinha perspectivas de curar sua doença, quando recebeu um telefonema de Brasília. Então repórter do Jornal do Brasil, Medeiros estava com Ruschi no dia da ligação.
“Era um ministro do [então presidente] José Sarney, não lembro qual…”, conta o jornalista por telefone, do Espírito Santo, onde mora atualmente. “Eles falaram: conseguimos a ajuda dos índios… O Ruschi adorou a ideia e aceitou se tratar com eles.”
A ligação apenas oficializou um desejo acalentado pela opinião pública à época. Diante daquela doença desconhecida, prestes a matar uma das mais ilustres figuras científicas do país, o governo e a sociedade brasileira buscaram, na tradição de seus índios, uma solução mágica. Sem outra alternativa, o Brasil recorreu às suas próprias raízes. E descobriu, entre deslumbramento e desespero, um processo autóctone, até então desprezado em seu sonho de desenvolvimento.
***
Aos 70 anos, Augusto Ruschi acumulava uma longa lista de serviços prestados para o meio ambiente. Como botânico e ornitólogo, catalogou centenas de espécies de plantas e animais, em especial orquídeas e beija-flores. Como ativista ecológico, foi dos poucos a enfrentar a Ditadura Militar contra o desmatamento da Amazônia. Ganhou notoriedade ao ameaçar com uma espingarda o ex-governador do Espírito Santo, Élcio Álvares, quando este tentou destruir a estação biológica de Santa Lúcia para plantar palmito.
Visionário, Ruschi alertou desde cedo para os perigos dos agrotóxicos e da monocultura de eucalipto. Ainda em 1951, previu, em um congresso na ONU, que as reservas ecológicas se transformariam nos bancos genéticos e habitats do futuro. Seus esforços tinham sido recompensados com medalhas e condecorações no Brasil e no exterior, mas só então, com os dias contados, o cientista ganhava a merecida atenção da imprensa nacional.
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Em 1975, Ruschi buscava novos exemplares de beija-flores, seu animal fetiche, na Serra do Navio, Amapá, quando se deparou com dezenas de dendrobatas, pequenos sapos coloridos e, consequentemente, venenosos. Pediu ajuda aos índios que o acompanhavam para capturá-los, mas estes se recusaram. O naturalista não os imitou. Um dia depois de apanhar sozinho trinta sapos, foi internado de Macapá com o coração acelerado.
[olho]”Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”[/olho]
Ruschi estava contaminado. Ano após ano, silenciosamente, a peçonha foi corroendo sua saúde. O fato permaneceu desconhecido do grande público até ser revelado pelo Jornal do Brasil, no dia 12 de janeiro de 1986. Assinada por Rogério Medeiros, a reportagem soava como uma espécie de obituário antecipado. Uma chamada estrondosa na capa daquele edição dominical anunciava que o fígado do “defensor intransigente das florestas” já se encontrava “irremediavelmente comprometido”.
Três dias depois, foi a vez do colunista Affonso Romano de Sant’Anna escrever uma crônica emocionada, que mobilizaria os governantes do país.
“Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”, anunciava o poeta e ensaísta.
Sant’Anna foi o primeiro a colocar os índios na jogada. Seu texto conclamava as autoridades a buscarem uma cura para aquele que ele definia como um “monumento nacional”. Se os laboratórios mais sofisticados não a tivessem, sugeria o colunista, talvez os povos da Amazônia, conhecedores da letalidade dos dendrobatas, encontrassem uma alternativa.
“Mas não podemos assistir a essa tragédia tropical achando que Édipo tem mesmo que matar seu pai e Antígona seus filhos”, continuava. “Não podemos ler assim impotentes a crônica de uma morte anunciada, como se fosse uma novela de García Márquez. Alguém tem que ter um remédio.”
O texto sensibilizou a opinião pública. De uma hora para outra, todos queriam ajudar. Homeopatas ofereceram seus serviços e admiradores imploravam por uma intervenção do Palácio do Planalto. Especializada em retratar a flora amazônica, a pintora inglesa Margaret Mee embarcou aos Estados Unidos para informar botânicos americanos sobre o estado de saúde do naturalista.
Em Brasília, o texto caiu nas mãos do então presidente José Sarney, que enxergou uma oportunidade para ganhar simpatia da opinião pública. Em seu segundo ano no cargo, o maranhense sofria para administrar um país destroçado por 20 anos de Ditadura Militar. Mesmo concorrendo com planos de congelamento de preços e denúncias de corrupção, o caso Ruschi dominava rádios e jornais. Todos os dias, uma nova notícia sobre o cientista ilustrava a capa do Jornal do Brasil.
Sarney não perdeu tempo: no avião em que voltava de Manaus, pediu ao Ministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, que a Funai procurasse a ajuda dos índios. Em um primeiro momento, o órgão indigenista se ofereceu para contatar os Waiapi, povo indígena da Serra do Navio, onde Ruschi havia sido contaminado, em busca de um antídoto. Finalmente, receberam no Palácio do Planalto o cacique Raoni, já internacionalmente reconhecido por sua luta pela preservação da Amazônia, e acordaram uma pajelança.
“Mas por que ele não avisou antes?”, perguntou o cacique, ao ser informado da doença que acometia Ruschi. Raoni encomendou o colhimento de uma raiz da selva chamada atorokon, cuja maceração e cozimento serviria de antídoto para o veneno. “Primeiro, bate a raiz e põe na água quente; quando vira água, pinga no olho; depois bebe um pouco; depois toma banho”, explicou. Um avião da FAB saiu de Brasília com destino ao Parque Nacional de Xingu para buscar o pajé Sapaim, que iria auxiliar Raoni no tratamento.
Cacique dos Txucarramães, Raoni havia sido tema de um documentário premiado com o Oscar, em 1978, e narrado por Marlon Brando. Nascido em 1930 no Mato Grosso e pertencente a um dos ramos da etnia caiapó, aprendera português aos 20 e poucos anos com os célebres indigenistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Boas. Um dos irmãos de Raoni também fora envenenado por um sapo dendrobata, e o cacique garantia agora conhecer o seu antítodo. Ele, porém, não era reconhecido como pajé, nem mesmo entre os caiapós. Como o tratamento exigia um pajé, convocaram também Sapaim, um kamayurá do Alto Xingu, considerado um dos maiores xamãs dos povos indígenas, inciado e consagrado pelo espírito Mamaé.
A passagem dos dois índios pelo Rio de Janeiro, onde iriam tratar Ruschi, foi um prato cheio para a mídia da época. Com seu disco de madeira no lábio inferior, Raoni era uma figura fácil de marcar. O jeito enigmático de Sapaim, que pela primeira vez saía de sua aldeia para visitar uma cidade, também foi motivo de folclore. A mídia acabou focando nos aspectos mais superficiais da cultura indígena. Como o interesse de Sapaim pela música da banda RPM, cuja fita-cassete levou para o Xingu (“Quero ouvir muito o som dessa fita, muito boa”). Ou o comportamento informal de Raoni, que não se conteve e soltou um estrondoso “grito de Tarzan” durante um encontro no Palácio do Planato, não se sabe bem por quê (ao seu lado, o ministro Costa Couto ficou envergonhado e resolveu sair às pressas).
Jornalistas do mundo inteiro vieram cobrir o episódio. Nas disputadas coletivas, os repórteres repetiam a mesma pergunta: como homem de ciência, o naturalista acreditava na fé dos índios? Não estaria ele se rendendo ao “curanderismo”? Ruschi, que já conhecia bem os povos do Xingu, tentou desfazer a oposição ciência/medicina popular. Em suas respostas, sempre enfatizava o conhecimento dos poderes das plantas pelos índios, lembrando que a medicina deles tinha dois mil anos, “muito mais tempo do que a nossa”.
“Até agora enfrentamos problemas com soro antiofídico, com gente morrendo todo dia em decorrência de picada de cobra. No entanto, nesses 50 anos de vida na Amazônia, vi os índios ingerirem chás e serem curados de veneno”, afirmou o naturalista em uma entrevista coletiva no Rio de Janeiro, às vésperas da pajelança.
[olho]Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”[/olho]
“Houve uma cultura sensacionalista, que, aliás, ainda é atual”, lembra o biólogo André Ruschi, segundo dos três filhos de Augusto, em entrevista por e-mail. “Uma parte da mídia foi interessante e prestou significativos serviços. Mas ainda muito superficial. Pouco investigativa. Havia alguns interesses comerciais que estavam sendo mobilizados formando-se um jogo comercial no mercado, oculto do público, da grande mídia.”
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Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”, diagnosticou. Para o cacique, era preciso urgentemente “tirar o sapo” de dentro de seu paciente. A Sarney, contou ter visto Ruschi em sonho, numa lagoa cheia de anfíbios: “Ele já virou um sapo, mas esse sonho pode ser um bom presságio”. Os jornais reproduziram as palavras do cacique sem nenhum contexto, ignorando qualquer cosmologia por trás delas. Também pouco falaram do papel dos espíritos e dos sonhos na cura.
“O pajé fala com o doente de dia e de noite vai dormir. Quando sonha, sai do corpo e acompanha o espírito-guia, que no caso de Sapaim se chama Ypotramaé [mamaé da flor, ‘ipoty + mamaé’]”, explica o médico e antropólogo Wesley Aragão, que acompanhou Sapaim em suas pesquisas de campo. “O mamaé-guia do pajé o leva para uma floresta, em ‘viagem fora do corpo’, e lhe mostra quais ervas deve usar e que procedimento deve tomar, no dia seguinte, com o paciente. O pajé ao estilo de Sapaim age sempre desta forma. Todos têm o seu espírito guia com quem conversam de dia, em clarividência suposta, ou de noite, no sonho. No rito de cura, este sonho terapeutico com o espírito é determimante. Inclusive em termos de prognóstico”.
Segundo Wesley, o pajé é apenas um médium — quem realmente cura é o espírito, no caso Mamaé. Daí a importância do sonho.
“É o Mamaé quem diz tudo: se o doente vai viver, se vai sarar definitivamente ou temporariamente, o que ele deve fazer, o que o pajé deve fazer como e por quanto tempo. Tudo é o Mamaé quem diz. E o sonho é o momento de melhor comunicação entre aqui e o além, onde vive o Mamaé [no Mamaéretam, a terra dos espíritos]”.
***
Às 9h da manhã do dia 23 de janeiro de 1986, os índios chegaram pintados com tinta de jenipapo, como manda a tradição. O ritual aconteceria no casarão do Parque Lage, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro, e iria durar três dias e três noites. De manhã, durante a primeira sessão, os índios cobriram-se de urucum e sopraram a fumaça de um charuto de folhas de trinta centímetros no corpo do naturalista. Vinte minutos mais tarde, Raoni inclinou-se sobre ele, massageou-o com unguento e foi tirando, a partir de seu pescoço, uma substância escura e mal-cheirosa. Era, segundo Raoni, o veneno do dendrobata.
Na segunda sessão, à tarde, Raoni e Sapaim preparam um chá com a raiz de atorokon. A erva foi fervida e espalhada sobre Ruschi. Depois, os índios fumaram novamente o charuto e retiraram mais uma vez a substância. A cada sessão, ela vinha mais clara e em menor quantidade.
Ainda há controvérsias sobre a s funções exercidas por Raoni e Sapaim. Em suas entrevistas mais recentes, este último afirma que, por não ser pajé, Raoni não sabia os procedimentos de pajé.
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“O que Sapaim me disse é que Raoni só quis aparecer perante os brancos como pajé para mostrar sua pessoa, seu povo, impor sua autoridade”, revela Wesley. “Em decorrência disto, Raoni na ocasião disse muitas coisas sem sentido, e fez algumas ‘performances’ para simular a condição de pajé”.
[olho]”Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo”[/olho]
Entre todos os jornalistas, Rogério Medeiros foi o único autorizado a presenciar os rituais. No dia 24 de janeiro, ele publicou um relato no qual descrevia a última sessão:
“No encerramento, Sapaim disse que o veneno já estava diminuindo muito no corpo de Ruschi. E Ruschi, com a voz mais firme, muito tranquilo, sem dor — o que ressaltou logo — disse para mim, com os olhos muito acesos — o que não fazia há meses: ‘Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo’.”
Aos repórteres, Augusto Ruschi afirmava estar totalmente recuperado. Os sangramentos haviam parado e seu intestino voltara a funcionar normalmente, algo que não acontecia há anos. Também dormia melhor — e até sonhava. “Estou sentindo um gosto de vida”, disse a Medeiros. Mas, apesar das manchetes e entrevistas otimistas, o naturalista ainda sofria de insuficência hepática grave, causada por uma cirrose. A retirada tardia do veneno pela pajelança lhe ajudou a recuperar forças, mas não trouxe a cura. Ele morreria quatro meses depois, aos 71 anos, em Vitória, de cirrose viriótica.
A autópsia não revelou nenhum traço de veneno. Para os médicos, tudo indica que a cirrose foi derivada pelo consumo excessivo de remédios contra a malária — e não pelos sapos. A morte por hepatite C, inoculada em coleta de sangue normal para exames de rotina, foi confirmada pelo seu médico particular e assessor de pesquisas, o cardiologista Pedro José de Almeida. Segundo André Rushi, o óbito não foi devidamente esclarecido na época por causa de um desentendimento entre Ruschi e Almeida.
Sapaim, por outro lado, acreditava que o naturalista estava enfraquecido por um câncer, conta Wesley Aragão.
“O que Sapaim me contou é que o envenenamento de Rushi não teve nada a ver com Mamaé, que é um envenanamento físico de fato, que o ‘sapo mijou nele’ e que o ‘veneno entrou nele’ e estava matando ele aos poucos”, relembra o antropólogo. “O que Sapaim diz ter feito foi ‘tirar o veneno do sapo do corpo de Ruschi’. Segundo Sapaim, este se encontrava ‘muito mal’, ‘quase morrendo’, ‘nao tinha voz, não aguentava andar e sangrava pelo nariz’. Quando ele tirou o veneno, Ruschi voltou a andar, a falar normal e parou de sangrar. Perguntei uma vez a Sapaim por que, então, Ruschi morreu alguns meses depois. Ele me respondeu que ‘a parte dele foi feita, ele tirou o veneno, mas Ruschi morreu de câncer porque estava já enfraquecido’.”
***
Em seu ato final, Ruschi fez o Brasil abrir os olhos para a medicina indígena. A intensa — e sensacionalista — exposição de seu tratamento trouxe uma visibilidade inédita, ainda que fugaz, para a ciência dos povos do Xingu. Raoni e Sapaim sabiam que o que estava em jogo ia muito além da saúde do cientista: “Nós dois temos que curar direito, senão o branco não acredita e brinca com índio”, declarou o cacique.
Em uma sociedade descrente, paralisada no labirinto da Década Perdida, o termo “pajelança” ganhou a boca do povo, como uma solução mágica para todos os males do momento. Se o xamanismo indígena podia salvar um dos mais ilustres brasileiros, por que não resolveria os outros problemas do Brasil? O banqueiro Marcílio Marques Moreira chegou a afirmar que o país precisa de “uma pajelança econômica”. E até o jogador Sócrates, que enfrentava uma lesão aparentemente incurável, cogitou chamar Raoni para dar um jeito em seu tornozelo.
“Curado”, Ruschi fez elogios públicos aos indígenas, à “cultura linda” que o havia socorrido. E foi pessoalmente agradecer José Sarney pela intervenção. Já o antropólogo Darcy Ribeiro e o político Mário Juruna — primeiro e único deputado federal indígena do país — acusaram o presidente de usar politicamente os índios. Ribeiro, aliás, também temia que o episódio provocasse uma corrida de brancos a aldeias indígenas, em busca de tratamento.
Sua preocupação tinha fundamento. Graças ao episódio, Raoni e Sapaim alcançaram status de celebridade, fazedores de milagre. Durante a pajelança, pacientes brancos correram ao Parque da Cidade pedindo à dupla que os examinassem. Houve até quem temesse que o local se tornasse um local de romaria: “A fama dos pajés está se espalhando, começa a aparecer gente pedindo informações”, disse um guarda. Assediado enquanto passeava no Centro do Rio, Raoni ouviu de uma senhora: “Esse aí tem que ser ministro da saúde”.
“Durante os dias de pajelança, Raoni e Sapaim ficaram concentrados no Parque da Cidade, não saíram de lá, e os jornalistas se instalaram ali por perto, esperando novidades”, lembra o fotógrafo Custodio Coimbra, do jornal “O Globo”, que na época cobriu o episódio pelo “Jornal do Brasil”. “Quando o tratamento acabou, os índios saíram para fazer compras na Casa Turuna [tradicional loja de fantasias do Rio] e toda a imprensa foi atrás, porque eles tinham virado uma atração na cidade.”
Em um dos seus plantões no Parque da Cidade, o fotógrafo ganhou um charuto de Sapaim, feito provavelmente com as mesmas ervas usadas na pajelança.
“Vi ele de longe, e fiz um sinal. Ele me chamou e deu o charuto de presente. O pessoal queria experimentar ali mesmo, mas eu preferi fumar em casa. Na época era comum fazermos projeções lá na minha casa, e em duas delas fumamos o charuto. Fazia uma fumaceira danada. E até dava um barato.”
[olho]”O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”[/olho]
Em sua coluna, Affonso Romano de Sant’Anna chegou a sugerir a exploração de uma farmacopeia que unisse “a sabedoria indígena e o que há de mais avançado na indústria química”. Raoni, porém, descartou qualquer possibilidade de industrializar a raiz atorokon. “A raiz não pode vender para o branco. Os brancos já têm seus remédios”, enfatizou.
“O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”, diz a antropóloga Gisela Macambira Villacorta, especializada em antropologia da religião e da saúde, e professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. “A repercussão na mídia trouxe à tona algo que já estava ocorrendo no cotidiano: a redescoberta, por não-indígenas, dos sistemas de cura tradicionais. Isso acontece em função da crise da saúde no país, mas também da crise da medicina ocidental, da relação entre paciente e médico, que era e ainda é de muita distância. Na relação com o pajé, o paciente participa mais da cura, ambos são protagonistas, vivem junto o processo.”
No dia 26 de janeiro daquele ano, uma reportagem no “Jornal do Brasil” mostrava que o caso Ruschi havia devolvido o prestígio das ervas medicinais, com a busca de remédios naturais crescendo a cada dia. Um movimento superficial e momentâneo, mas que deixou marcas, acredita André Ruschi. Ele conta que, quando foi delegado do Conselho Estadual de Saúde do E. ES nas Plenárias Nacionais de Saúde, entre 1999 e 2006, conseguiu a aprovação do reconhecimento oficial das terapias alternativas, que foram incluídas no SUS e no ensino oficial dos cursos de medicina. A referência ao nome “Ruschi”, segundo ele, ajudou a fortalecer os argumentos junto aos delegados.
“A ciência médica é produto da coleta de informações populares que vão sendo confirmadas de maneira técnica para que possamos reproduzi-las de maneira consciente”, diz ele. “Portanto, [o caso] trouxe à luz, de maneira mais evidente, como ocorre este processo de assimilação de conhecimentos e desenvolvimento cultural.”
Quase três décadas após a pajelança, Raoni se tornou um ícone da preservação ambiental e da cultura ancestral, mas não deu continuidade a sua experiência como pajé. Sapaim se tornou conhecido especialmente entre pessoas brancas, urbanas, ligadas a movimentos new age, e continua atendendo pacientes famosos, como Leonardo DiCaprio e Gisele Bünchen. Já os alertas de Augusto Ruschi, que no dia 12 de dezembro de 2015 completaria 100 anos, nunca estiveram tão atuais.
“A ausência de política florestal leva o país a um desastre ambiental permanente com desertificação na maior parte do território nacional. Ele sempre advertiu sobre esta tendência. O combate aos agrotóxicos, a rejeição à monocultura, a política de criação de Unidades de Conservação são legados universais do pensamento de Ruschi, amplamente aceitos e adotados em todas as nações”, enumera André, que continua o trabalho do pai na Estação Biologia Marinha Ruschi, uma escola de ecologia dedicada à pesquisa, educação e cultura. Ele lamenta, no entanto, que a instituição continue sofrendo perseguições políticas e lutando contra a falta de apoio governamental.
Após a morte de Ruschi, não demorou um mês para o que o Espírito Santo começasse a sofrer uma nova onda de desmatamentos, que atingiu até sua terra natal, Santa Teresa, na região serrana Estado. Rogério Medeiros, que em 1995 escreveu o livro “Ruschi — o agitador ecológico” (Editora Record), lamenta que o legado do naturalista ainda não seja devidamente reconhecido em sua própria região.
“O mundo respeita Ruschi, mas o Estado inteiro do Espírito Santo, da Academia aos políticos, o odeia. Porque tudo que ele falou que ia acontecer no Estado já está acontecendo. Os estragos das mineradoras, a natureza se vingando, a situação do Rio Doce… Ele previu tudo isso.”
Acompanhar as indicações do Globo de Ouro para a televisão é sempre uma surpresa. Diferente do Emmy, em que é mais ou menos fácil prever a lista, o prêmio, que divulgou hoje (10) seus candidatos, é mais favorável a séries iniciantes, às vezes troca quase todos os indicados em uma categoria de um ano para o outro e olha com carinho para as séries originais dos serviços de vídeo sob demanda — e não só para as já figurinhas fáceis “House of Card”, “Orange Is the New Black” e “Transparent”.
Nesse ano não foi diferente. Foi um bom ano para o Netflix. “Narcos” concorre a dois dos prêmios principais: melhor série de drama e melhor ator em série de drama, com Wagner Moura (grande surpresa, mas infelizmente ele disputa com o favorito Jon Hamm, pelo fim de “Mad Men”). “Master of None” e “Better Call Saul” tiveram seus protagonistas, Aziz Ansari e Bob Odenkirk, indicados a melhor ator. “Orange Is the New Black” tem duas indicações, “House of Cards” e “Grace & Frankie”, uma. Até no cinema o Netflix foi indicado, com Idris Elba disputando o prêmio de melhor ator coadjuvante. Quase todas suas séries foram contempladas.
A Amazon também foi surpreendentemente bem. “Transparent” já é barbada, costuma concorrer e ganhar em todas as premiações de TV. Neste ano não foi diferente e tem a chance de repetir os prêmios de 2015 de melhor série de comédia e melhor ator em série de comédia e ainda concorre em melhor atriz coadjuvante. Mas nesse ano o serviço ainda conseguiu duas indicações para a pouco comentada “Mozart in the Jungle”, protagonizada por Gael García Bernal. E talvez a maior surpresa de todas: “Casual”, série do Hulu, também concorre a melhor série cômica.
É uma felicidade ver “Modern Family”, “The Big Bang Theory”, “Homeland” ou Maggie Smith (boa, mas chega, né?) completamente fora da disputa. Ou mesmo não ter ganhadores do ano passado, como a série “The Affair”, a atriz Ruth Wilson (da mesma série), ou Kevin Spacey (“House of Cards”). O Globo de Ouro fez escolhas menos óbvias, indicando “Scream Queens”, “Crazy Ex-Girlfriend”, “The Grinder”, “Blunt Talk” e “Mr. Robot”. Até Lady Gaga disputa um prêmio, como atriz de filme para a TV ou minissérie, por “American Horror Story: Hotel”.
Como todo bom prêmio, o Globo de Ouro também cometeu algumas injustiças. Indicar “Game of Thrones”, em sua pior temporada, no lugar de “Mad Men” é um insulto. “UnREAL”, uma das melhores estreias do ano, ou “The Americans”, que teve um ano incrível, seriam alternativas melhores. E se era para escolher um medalhão, que fosse “House of Cards”. “Game of Thrones” não fez por merecer. E quantas personagens Tatiana Maslany tem que interpretar para ser indicada pela série sobre clones “Orphan Black”? Na comédia, “Master of None” e “You’re the Worst” mereceriam uma indicação como melhor série também. Mas o Globo de Ouro é tão louco que quem sabe eles entrem no ano que vem.
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NA GRANDE TELA
No cinema, a situação se inverte um pouco e as surpresas são poucas. Como na maioria das categorias tem uma divisão entre filmes de comédia e de drama, quase todos os favoritos encontram uma vaga. Jennifer Lawrence, por exemplo, foi ignorada pelo sindicato de atores pelo filme “Joy”. Mas como as favoritas (Brie Larson, Cate Blanchett e Saoirse Ronan) vão se digladiar na disputa no drama, ela tem boas chances na comédia (Amy Schumer e Melissa McCarthy são algumas das concorrentes). Nessas categorias ainda tem o fato de que Oscar e Globo de Ouro discordam em relação a que prêmio certas atrizes devem disputar. No Oscar, Rooney Mara (“Carol”) e Alicia Vikander (“A Garota Dinamarquesa”) vão tentar como coadjuvantes, onde têm mais chance. No Globo de Ouro, concorrem ao prêmio principal mesmo.
O mesmo acontece na disputa de melhor ator. Matt Damon, até essa semana onipresente na lista de favoritos a ganhar uma indicação ao Oscar pelo sucesso “Perdido em Marte”, ficou de fora pelo sindicato dos atores. Como ator de comédia, também tem grandes chances, favorecido pelo fato de que Steve Carell e Christian Bale podem se anular na briga ao concorrer pelo mesmo filme, “A Grande Aposta”.
Talvez o grande esnobado tenha sido Johnny Depp, por “Aliança do Crime”. É o tipo de papel perfeito para premiações: envolve uma transformação física, é uma história real e ele interpreta um psicopata. Ficou um pouco mais fácil para Leonardo DiCaprio, que pode finalmente ganhar seu Oscar em 2016 (seu papel também é perfeito para prêmios, já que ele comeu fígado cru de bisão e dormiu pelado na carcaça de um animal). Outra ausência: “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, considerado candidato a uma indicação ao Oscar, não entrou na lista de filmes estrangeiros.
Pensando no número inclusivo de candidatos, talvez a lista de melhor diretor seja a mais significativa, já que une as duas categorias em uma só. Lenny Abrahamson, de “O Quarto de Jack”, e David O. Russell, de “Joy: O Nome do Sucesso”, por exemplo, ficaram de fora e perderam o lugar para George Miller, de “Mad Max: Estrada da Fúria”. De qualquer forma, tem sido raro o diretor vencedor do Globo levar o troféu no Oscar — Richard Linklater, que ganhou por “Boyhood” neste ano, que o diga.
Com todo o mundo incluído, a lista de indicados ao Globo de Ouro no cinema não é muito polêmica e nem é o melhor termômetro para o Oscar. Nem os resultados significam muita coisa, aliás, já que frequentemente os resultados das premiações divergem (DiCaprio tem dois Globos de Ouro, por exemplo). De qualquer forma, o prêmio é divertido. Com os atores bebendo em mesas grandes, como num casamento, e apresentadores com menos medo de forçar a barra nas piadas, o Globo de Ouro é uma ótima parada na longa temporada anual de premiações.
A lista completa de indicados:
CINEMA
FILME DE DRAMA
“Carol”
“Mad Max: Estrada da Fúria”
“O Regresso”
“O Quarto de Jack”
“Spotlight – Segredos Revelados”
FILME DE COMÉDIA
“A Grande Aposta”
“Joy: O Nome do Sucesso”
“Perdido em Marte”
“A Espiã que Sabia de Menos”
“Descompensada”
DIRETOR
Todd Haynes, “Carol”
Alejandro Iñárritu, “O Regresso”
Tom McCarthy, “Spotlight – Segredos Revelados”
George Miller, “Mad Max: Estrada da Fúria”
Ridley Scott, “Perdido em Marte”
ATRIZ EM DRAMA
Cate Blanchett, “Carol”
Brie Larson, “O Quarto de Jack”
Rooney Mara, “Carol”
Saoirse Ronan, “Brooklyn”
Alicia Vikander, “A Garota Dinamarquesa”
ATRIZ EM COMÉDIA
Jennifer Lawrence, “Joy: O Nome do Sucesso”
Melissa McCarthy, “A Espiã que Sabia de Menos”
Amy Schumer, “Descompensada”
Maggie Smith, “A Senhora da Van”
Lily Tomlin, “Grandma”
ATRIZ COADJUVANTE
Jane Fonda, “Youth”
Jennifer Jason Leigh, “Os Oito Odiados”
Helen Mirren, “Trumbo”
Alicia Vikander, “Ex-Machina: Instinto Artificial”
Kate Winslet, “Steve Jobs”
ATOR EM DRAMA
Bryan Cranston, “Trumbo ”
Leonardo DiCaprio, “O Regresso”
Michael Fassbender, “Steve Jobs”
Eddie Redmayne, “A Garota Dinamarquesa”
Will Smith, “Um Homem entre Gigantes”
ATOR EM COMÉDIA
Christian Bale, “A Grande Aposta”
Steve Carell, “A Grande Aposta”
Matt Damon, “Perdido em Marte”
Al Pacino, “Não Olhe para Trás”
Mark Ruffalo, “Sentimentos que Curam”
ATOR COADJUVANTE
Paul Dano, “Love & Mercy”
Idris Elba, “Beasts of No Nation”
Mark Rylance, “A Ponte dos Espiões”
Michael Shannon, “99 Homes”
Sylvester Stallone, “Creed: Nascido para Lutar”
ROTEIRO
Emma Donoghue, “O Quarto de Jack”
Tom McCarthy, Josh Singer, “Spotlight – Segredos Revelados”
Charles Randolph, Adam McKay, “A Grande Aposta”
Aaron Sorkin, “Steve Jobs”
Quentin Tarantino, “Os Oito Odiados”
FILME DE ANIMAÇÃO
“Anomalisa ”
“O Bom Dinossauro”
“Divertida Mente”
“Snoopy & Charlie Brown: Peanuts, o Filme”
“Shaun: O Carneiro”
CANÇÃO ORIGINAL
“Love Me Like You Do”, “Cinquenta Tons de Cinza”
“One Kind of Love”, “Love & Mercy”
“See You Again”, “Velozes & Furiosos 7”
“Simple Song No. 3”, “Youth”
“Writing’s on the Wall”, “007 Contra Spectre”
FILME ESTRANGEIRO
“The Brand New Testament”
“The Club”
“The Fencer”
“Cinco Graças”
“O Filho de Saul”
TELEVISÃO
SÉRIE DE DRAMA
“Empire”
“Game of Thrones”
“Mr. Robot”
“Outlander”
“Narcos”
ATOR EM SÉRIE DE DRAMA
Jon Hamm, “Mad Men”
Rami Malek, “Mr. Robot”
Wagner Moura, “Narcos”
Bob Odenkirk, “Better Call Saul”
Liev Schreiber, “Ray Donovan”
ATRIZ EM SÉRIE DE DRAMA
Caitriona Balfe, “Outlander”
Viola Davis, “How to Get Away With Murder”
Eva Green, “Penny Dreadful”
Taraji P. Henson, “Empire”
Robin Wright, “House of Cards”
SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
“Casual”
“Mozart in the Jungle”
“Orange Is the New Black”
“Silicon Valley”
“Transparent”
“Veep”
ATRIZ EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
Rachel Bloom, “Crazy Ex-Girlfriend”
Jamie Lee Curtis, “Scream Queens”
Julia Louis-Dreyfus, “Veep”
Gina Rodriguez, “Jane the Virgin”
Lily Tomlin, “Grace & Frankie”
ATOR EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
Aziz Anzari, “Master of None”
Gael García Bernal, “Mozart in the Jungle”
Rob Lowe, “The Grinder”
Patrick Stewart, “Blunt Talk”
Jeffrey Tambor, “Transparent”
MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
“American Crime”
“American Horror Story: Hotel”
“Fargo”
“Flesh & Bone”
“Wolf Hall”
ATOR EM MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
Idris Elba, “Luther”
Oscar Isaac, “Show Me a Hero”
David Oyelowo, “Nightingale”
Mark Rylance, “Wolf Hall”
Patrick Wilson, “Fargo”
ATRIZ EM MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
Lady Gaga, “American Horror Story: Hotel”
Sarah Hay, “Flesh & Bone”
Felicity Huffman, “American Crime”
Queen Latifah, “Bessie”
Kristen Dunst, “Fargo”
ATRIZ COADJUVANTE EM TV
Uzo Aduba, “Orange Is the New Black”
Joanne Froggatt, “Downton Abbey”
Regina King, “American Crime”
Judith Light, “Transparent”
Maura Tierney, “The Affair”
ATOR COADJUVANTE EM TV
Alan Cumming, “The Good Wife”
Damien Lewis, “Wolf Hall”
Ben Mendelsohn, “Bloodline”
Tobias Menzies, “Outlander”
Christian Slater, “Mr. Robot”
Criado em São Paulo, Homero Olivetto passava os verões com os avós em Aracaju, no Sergipe, ouvindo histórias do cangaço e de Lampião. Enquanto estudava em Salvador, ouvindo mangue beat, escreveu 20 anos atrás um conto que mistura suas experiências por essas diferentes cidades do Brasil. Em 2006, transformou a história no roteiro do filme de ação “Reza a Lenda”, uma história do sertão embalada numa roupagem bem pop. “É um universo de história em quadrinhos”, tenta explicar Cauã Reymond, o dúbio protagonista Ara.
Os primeiros minutos do filme, com estreia prevista para janeiro, são uma síntese do que vem pela frente. Duas amigas viajam à noite por uma estrada de terra no Nordeste, quando cruzam com um bando de motoqueiros perseguidos pela polícia. As motos passam zunindo pelas laterais do carro, a motorista consegue desviar de uma viatura, que capota e pega fogo, mas colide com a outra. É um filme de ação. Em seguida vem um letreiro explicativo. Reza a lenda, diz o texto, que a imagem de uma santa seria capaz de fazer chover no sertão ao ser colocada no lugar certo. Existe um bruxo que sabe dizer onde está a tal santa e para onde ela deve ser levada. Mas para que ele revele seus segredos, é necessário pagar um preço. É também um filme sobre fé.
Ara é um menino órfão quando conhece Pai Nosso (Nanego Lira), líder religioso que quer ver o milagre da santa e reúne um grupo de crianças, a quem ensina sobre a fé, para realizar a missão. Já na pele de Cauã, Ara integra o tal grupo de motoqueiros armados que rouba a santa do poderoso Tenório (Humberto Martins) depois de assassinar boa parte de seus capangas. Tenório — cujo pai matou sua mãe, fez buchada com suas tripas e serviu o prato a um grupo de convidados — não deixa barato e, para achar a gangue, deixa uma trilha de mortos em seu caminho, e amarra pedaços de seus corpos em balões de São João. Tanto Ara quanto Tenório são religiosos e nenhum dos dois hesita em matar em nome da santa.
Ao duelo dos dois se soma um triângulo amoroso, que envolve Severina (Sophie Charlotte), parte do grupo de Ara e Pai Nosso, e Laura (Luisa Arraes), sobrevivente do acidente de carro que inicia o filme mantida como refém pelos motoqueiros. Mas nem de longe é um filme romântico. Tem quase mais cenas de sexo na terra seca do sertão do que diálogos (“É o personagem mais silencioso que já fiz”, diz Cauã).
LADO POP
Segundo Homero, o filme é todo construído com base na realidade, em pesquisas feitas no local. “A seca existe, as estradas estão lá, as motos substituíram os cavalos. O lado pop da coisa é muito mais de linguagem do que o que está sendo contado. O que está sendo contado é real, é o que está lá. Mesmo a parte estética, como a roupa dos motoqueiros, foi construída a partir do tempo que a gente passou lá”, diz o diretor. “A gente colocou uma lente das nossas referências pop e ampliou. Foi essa a brincadeira que a gente fez. Era importante estar baseado na realidade pra criar essa fantasia. Até pra humanizar os personagens, pra entender as escolhas deles.”
O cenário é o sertão, mas o ritmo do filme muitas vezes lembra uma história em quadrinho ambientada na cidade. A trilha sonora, por exemplo, é bem urbana. “Ela tem uma função narrativa, porque eu queria fazer um sertão fantasioso e moderno. Queria tentar mostrar um lado diferente”, diz Homero. “A ligação afetiva que eu tenho do sertão como as minhas referências de paulistano, onde fui criado, me deram a ideia de fazer essa mistura. Me pareceu bem normal, orgânico”, conta. “Achei o máximo poder fazer um filme tão diferente. É novo. Não lembro de nenhum filme assim no Brasil”, diz Sophie.
Cauã e Luisa passam boa parte do filme montados numa moto que cruza o terreno deserto — ela quase sempre sem capacete na sua garupa. O ator tirou a habilitação para poder pilotar a moto, mas diz que “não adiantou muito”. “Logo que a gente começou a filmar eu tomei um tombaço. O pé ainda dói um pouco. Adoro moto, mas sou super medroso. Hoje em dia, tomar um tombo e ficar três meses parado pra mim é impossível, devido à rotina de trabalho que a gente tem.”
Numa conversa com jornalistas depois da exibição do filme, alguém pergunta se ele e Luisa precisaram de dublês. “Na hora que a moto empina sou eu. Mas a Luisa sem capacete não é ela, é outra pessoa”, brinca Cauã. “Tive que confiar muito na autoescola que ele fez”, responde a atriz. “Eu me lembro até hoje de um momento engraçado. A gente estava filmando num posto de gasolina e eu tinha que dar a volta e entrar na cena. A Luisa estava na minha garupa e eu falei: ‘tá preparada?’. E ela: ‘tô, né’. Aí eu botei a moto em vruuuuum, cento e pouco por hora. Estava me sentido o máximo. Me senti incrível, pilotando naquela velocidade com ela, seguro. Quando tirei o capacete ela bateu no meu ombro e disse: ‘e aí? Tá com a autoestima boa agora?’. Eu estava me exibindo”, conta ele, rindo. “Foi divertido.”
Para Cauã, as cenas de ação e violência são puro entretenimento, como numa história em quadrinhos. E defende as ações de seu personagem até o fim. “Vejo o Ara como um personagem criado numa situação extremamente árida, passando muitas dificuldades com esse líder que é o Pai Nosso. Um cara preparado pra tudo, pra trazer a chuva pro sertão, pra acabar com a seco. Ele está disposto a tudo, até porque foi a forma que ele aprendeu”, avalia.
DA BABILÔNIA AO SERTÃO
Humberto Martins (“Nosso Tommy Lee Jones”, diz Cauã) não é tão positivo em relação a seu personagem. Solicitado a descrever Tenório, o ator tem bastante a dizer:
“Sou um cara de certa forma crente. É claro que a gente tem que ter bastante, vamos dizer, esperança, porque sem esperança a gente não atinge nada. Mas sou muito pragmático com relação à realidade do ser humano, do planeta Terra. Desde o que eu entendo de história, falei isso pra um repórter agora, desde a antiga Babilônia, Pérsia, aí veio o reino grego, Roma, entre outras coisas, vejo que a humanidade está muito mal administrada pelos seus governantes, pelas pessoas de poder, que são responsáveis pelas nossas vidas, pelo que acontece no cotidiano das nossas vidas. Esse filme retrata no Tenório uma base de consistência totalmente existencial, além do tempo, atemporal, desses governantes, dessas pessoas de poder que pensam muito em si, no ego. O Tenório acha uma afronta roubarem a santa dele, um desrespeito, ao prestígio, a tudo que ele exerce. Tudo dentro do ego”, diz.
“Eu vejo que a gente evolui muito em tecnologias, tecnologia medicinal, tem coisas boas nas evoluções humanas e científicas, de conhecimento do planeta, do que devemos fazer. Estamos vivendo um momento muito, muito preocupante e decisivo pra nossa humanidade, em todos os sentidos. Esse filme vem de uma forma muito conveniente no momento. Vejo ele dentro de uma realidade possível, muito possível. Daqui um tempo isso acontecer dentro dos Estados, você tá entendendo? Daqui a pouco até um Estado começar a brigar com o outro pelo recurso que o outro tem. Não vejo isso muito longe, não. Da maneira que vai. Principalmente no Brasil, onde os recursos são ignorados através dos nossos governantes. Vejo que ele tem uma pegada humanitária, política, muito forte”, continua.
“O Tenório é um cara que quer se manter no poder. Ele mantém a santa como uma… Ele acredita, é claro. Também, ele não tem outra coisa em que acreditar. Ele foi criado assim. Acho que ele é um protótipo do DNA formado pelo pai, que é um bárbaro. Tudo isso se impregnou dentro dele, por isso ele toma essas atitudes até impensadas, porque está dentro da genética dele. Todos somos assim, cópias da nossa criação, desde onde viemos. Cientificamente provado, não sou eu que estou dizendo isso, não. Dentro desse princípio ele justifica tudo o que faz. Dentro dessa involução que eu vejo dos poderosos desde a antiga Grécia, que se constitui até hoje. Pode até ter boa intenção em tudo, tentar um reservatório novo de água, não sei o quê. Mas o ego prevalece. O ego, a arrogância, a prepotência”, afirma.
“Esses garotos da motocicleta são heróis que resolvem confrontar esse poder máximo, você tá entendendo? Essa é a grande esperança que eu acho que pode existir. Tenório é um ser muito ignorante. Ele acredita na religião pela religião que foi formada da sua cidade, da vida, da sua área, da sua terra, pelo pai, a mãe e tal, não sei o quê. Mas ele não tem um conhecimento profundo sobre isso, sobre isso e a humanidade, o que isso representa, Deus, essas coisas. Ele não tem. É o cultural muito baixo. Muito baixo conhecimento que ele desenvolve na sua postura de vida”, diz.
“Ele comete essas atrocidades apenas pelo ego e pela vaidade de querer mostrar a força e confrontar friamente. O Nordeste sempre foi uma terra violenta dentro desses interiores. De famílias matarem as outras a tiros para tomar a terra das outras e se tornarem ricos assim. Lembro quando fiz ‘Gabriela’, estudei muito sobre isso. Era assim que eles tomavam a fazenda dos outros, na marra mesmo. Matavam até os descendentes pra não sobrar nenhum. Tem um pouco dessa cultura na região, violenta. Do espaço já ser difícil, da procriação de gado, de plantio, tudo. O que predomina no ser humano, que é a sobrevivência”, finaliza.
Cauã Reymond o interrompe para brincar sobre uma possível sequência do filme: “Humberto, você acha que no ‘Reza a Lenda 2’, se Deus quiser que tenha o dois, o Marcinho vem com tudo, então, porque ele é bem mau?”. “Marcinho?”, pergunta Humberto. “É, seu filho [do personagem]!” “Sim, vem na genética”, ri Humberto. “Sem spoiler!”, pede Homero.
Quinze anos depois de entrar pela última vez em uma loja de card games, me vejo novamente rumo a um desses oásis perdidos de jogos analógicos, ainda tão escondidos do grande público. A mochila nas costas, dessa vez, não abriga uma imensa pasta cheia de cards e decks, mas a mente já se encontra tentando emular os mesmos sentimentos daquela época. Magic: The Gathering esteve na minha vida entre 1995 e 2000 – joguei, colecionei, troquei cards, participei de torneios e até mesmo tive alguns cards roubados. Tanto tempo depois o jogo continua firme e forte, mas algo mudou.
Magic: The Gathering é um Trading Card Game (TCG), ou jogo de cartas colecionáveis, no qual cada jogador tem um baralho de cartas, chamado “deck”, que ele próprio constrói a partir de uma coleção imensa de cartas já lançadas. As cartas fazem o papel de mágicas de diversos tipos (criaturas, encantamentos, feitiços), que juntas em um deck formam uma estratégia, com o objetivo de reduzir os pontos de vida do adversário a zero. Pelo menos era assim há quinze anos, e provável que regras assim, tão essenciais, não tenham mudado tanto. Mas os cabelos…
É essa a missão que me fez ir até a Bazar de Bagdá, loja de card games na Zona Norte de São Paulo. A intenção era a de acompanhar um torneio chamado PPTQ – Preliminary Pro Tour Qualifier, que qualifica jogadores (ou “duelistas”, bem mais legal) para os Pro Tour Qualifiers, que por sua vez dão vaga para os Pro Tour, torneios profissionais de nível mundial, que acontecem quatro vezes ao ano. Claro que tudo isso me foi explicado bem depois – tudo o que eu conhecia de torneios até então era o sistema suíço, “fantasmas” (quando o número de jogadores é ímpar alguém sempre tem a sorte de ficar de bobeira em uma rodada).
Assim que abri a porta da loja, revivi uma cena bastante comum na minha adolescência: jovens com pastas, mochilas nas costas, todos escorados no balcão da loja, esperando o início do torneio, conversando e trocando cards – pelo menos essa última eu imaginei que estivessem fazendo, o que se provou errado logo depois. “Vai jogar o torneio?”, alguém sacou na minha direção, como um Raio (um mana vermelho, três de dano em qualquer alvo). “Não, vou só acompanhar”, respondi já sem nenhuma atenção voltada para mim, como se esperassem pela resposta.
Um novo mundo de Magic
Posso dizer com segurança que, na época em que joguei, não havia um décimo da quantidade e variedade de produtos ligados a Magic que vi naquela loja. Lembro-me bem de pastas decoradas e deck shields, “plastiquinhos” individuais para proteger os cards, itens que não eram fáceis de serem adquiridos com o dinheiro do lanche da escola convertido em nerdices. O que eu vi na Bazar foi uma miríade de pastas, cases, protetores, dados marcadores de pontos de vida, “playmats” (um “tapetinho” que se usa para cobrir um dos lados da mesa onde se joga), e várias outras coisas coloridas que chamam muita atenção.
E não foi só no vasto universo dos acessórios que Magic se transformou num mundo estranho e terra de novas maravilhas. A gama de produtos oficiais aumentou muito de quinze anos para cá, e pobre de nós que comprávamos apenas “boosters” e “decks”. O duelista hoje tem acesso a baralhos pré-montados (bons e ruins, segundo relatos), caixas promocionais com brindes, edições especiais, de colecionadores, além de cards avulsos vendidos pelas lojas, chamados de “singles”.
Magic: The Gathering foi lançado em 1993 pela Wizards of the Coast, então uma empresa de garagem com poucos jogos no portfólio. Uma simples e rápida pesquisa mostra que hoje a WotC tem hoje em suas prateleiras os dois maiores bastiões quando se fala em jogos analógicos: Dungeons & Dragons, o mais famoso e jogado dos RPGs (Role-Playing Games), e Magic – além de ser uma subsidiária da gigante dos brinquedos Hasbro. “Bala na agulha” é a palavra que eu buscava e que representa bem o momento da empresa, que nos últimos anos investiu pesado em marketing e desenvolvimento de novos produtos e estratégias para os jogos.
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“Atenção, duelistas do segundo PPTQ da Bazar de Bagdá! A lista de jogos da primeira rodada já está disponível! Tomem seus lugares e aguardem o sinal dos juízes para dar início ao duelo!” – soou nos auto-falantes da loja Leonardo “Estranho” Martins, o juiz principal de um time de três árbitros responsáveis pelo torneio, todos eles vestidos a rigor – sapato, calça social e uma camisa com o bordado oficial, indicando que eram, afinal, juízes oficiais. Isso eu realmente nunca tinha visto: um nível de profissionalismo, excelência e seriedade que não era comum naquele Magic que eu jogava entre amigos, “na zoeira”. Nítida também era a questão da idade dos duelistas – todos certamente na fase dos “vinte e poucos”, a maioria nos “vinte e muitos”. Com vinte, ninguém mais da minha antiga turma ainda tinha um card sequer.
Informação é a chave
O que melhor explica as mudanças em muitos (quase todos, aliás) setores da sociedade é a universalização da o acesso à informação. Claro que o Magic se beneficiou disso e abraçou a causa. “A disseminação da informação foi o que mais mudou no Magic de quinze ou vinte anos para cá, e com a internet, o jogo e suas estratégias foram se difundindo muito mais”, explica Estranho. Faz sentido: sem a internet, pouca ou nenhuma informação chegava até nós, sempre por meio de informativos ou revistas que cobriam eventos e torneios internacionais, com meses de atraso. “Hoje, dá para acompanhar torneios de alta competitividade e em nível mundial, como o Pro Tour, em tempo real, via streaming”, comenta.
Eduardo Beraldo, o “Dudão”, um dos sócios da Bazar de Bagdá, lembra um período no qual a internet engatinhava e, para o Magic, as revistas eram o principal baluarte de dados para trocas. “No começo, nossa referência para cartas e informações de forma geral era a Duelist, revista que só conseguíamos em bancas de importados”, conta. A grande referência para trocas e eventuais vendas de cards veio depois: a InQuest, com quase metade das páginas dedicadas a imensas listas de preços de referências de cards. “Ninguém vendia ou trocava cards de uma coleção nova sem antes conferir seus valores na InQuest.”
A informação de qualidade estratégica também foi um dos grandes diferenciais que a disseminação digital trouxe ao jogo, melhorando a experiência dos duelistas. “Foi na época da InQuest que começaram a sair os artigos sobre arquétipos (tipos de estratégias de deck e de jogo), e ao mesmo tempo torneios internacionais como os Pro Tour, Mundial e Latino-Americanos começaram a ter grande importância”, revela Dudão. A internet, ainda segundo o lojista e jogador (Dudão venceu o PPTQ mencionado acima), fomentou essa busca dos jogadores por informações a respeito de arquétipos e estratégias. “Dias atrás tivemos um torneio aqui na loja e, ao mesmo tempo, passava no telão o streaming do primeiro torneio oficial da nova coleção, “Battle for Zendikar”. Todo mundo colado na tela, vendo as novas cartas, novas estratégias e os novos decks que ela trouxe”, completa.
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Embora o Magic seja um jogo de alta complexidade (a comparação com o xadrez é recorrente no meio), ele hoje se mostra simples e de fácil acesso para o iniciante, diminuindo o fator de intimidação que a complexidade traz e, por consequência, afasta o jogador novato. Para completar, Magic já virou jogo para computador, tablet e celular, indo além das mesas e angariando mais e mais jogadores – que, pelas versões de software e aplicativos, têm mais facilidade em entender as regras. “Hoje, é fácil entrar no Magic, mas dominá-lo é outra história”, emenda Estranho.
A profissionalização
Torneios oficiais, mundiais, estabelecimento de estratégias e um mercado (oficial e paralelo) sólido são elementos cruciais para a germinação de um ambiente profissional e de duelistas profissionais. E foi o que aconteceu. Magic: The Gathering completou 20 anos em 2013 contando com uma massa fiel de duelistas “federados” de todos os níveis, uma ampla rede de lojas onde se realiza torneios oficiais e não-oficiais, e torneios de nível mundial nos quais se paga (muito) bem. O último Pro Tour, que aconteceu em Milwaukee, EUA, premiou seus vencedores com a soma de 250 mil dólares. Dá para viver.
Um dos melhores representantes brasileiros da atualidade nesse mundo é Willy Edel, carioca eleito para a turma de 2015 do Hall of Fame do Magic, segundo brasileiro a conquistar o feito (o primeiro foi Paulo Vitor Damo da Rosa, em 2012). Willy foi campeão do Pro Tour de Toronto, em 2012, e campeão brasileiro no ano seguinte, tendo ainda se classificado “Top-8” em diversos outros Pro Tour e Grand Prix. Toda essa trajetória fez com que Willy fosse indicado e conquistasse o cobiçado anel do Hall of Fame – sim, é como no Super Bowl.
Para Willy, o Magic está bem diferente hoje em comparação com os primeiros anos, e acabou se tornando referência para muitos outros jogos que foram surgindo ao longo do tempo. “Mudou completamente. Antigamente, 99% do público era casual, havia pouquíssimas lojas, poucos torneios, basicamente nada que favorecia a vertente competitiva. Hoje há vários incentivos, e para muitos o Magic virou profissão”, explica.
Se o jogo se profissionalizou, podemos comprovar também que os ambientes seguiram o mesmo caminho? Em toda a minha trajetória no Magic, tive como “base de atuação” uma locadora de games que vendia decks e boosters como alternativa para os jogos eletrônicos – e lá jogávamos de maneira bem casual, trocávamos cartas e muito raramente comprávamos um do outro. Isso também mudou? Para Willy, sim. “A troca de cartas ainda existe, mas é bastante rara nas lojas, e não sem motivo: por que limitar seus ‘parceiros de troca’ se hoje todas as lojas têm um estoque bastante amplo de cards avulsos para vender? A vida hoje é mais simples e fácil”, esclarece.
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Apesar do contexto profissional no qual o jogo se encontra hoje, trilhar o caminho “sério” não é nada fácil. Praticamente todos os torneios grandes são fora do Brasil, e a rotina de treinos, viagens e hospedagem pode ser assustadora para a maioria dos duelistas que iniciam nessa vida. Para ajudar esses duelistas profissionais de primeira viagem, Willy presta auxílio com relação a todos os fatores envolvidos nessas jornadas rumo aos grandes torneios. “Quando sou procurado, ensino os primeiros passos, desde marcar a passagem a reservar hotel. Se a pessoa está disposta a treinar sério para o evento, eu tento incluí-la no meu grupo de treinos. É muito difícil entrar no circuito profissional, então esta pode ser a única oportunidade desta pessoa, por isso tento ajudar no que posso e mostrar que tem que ser algo levado a sério”, revela Willy, conhecido no meio por essa atitude como “Godfather” do Magic.
Magic é um jogo de muitas possibilidades, inclusive de carreira. Leo “Estranho” Martins é um árbitro de nível 2, credenciado e graduado pela própria Wizards of the Coast. Se ele “apita” por hobby? “Somente em 2015, já viajei quase dez vezes para o exterior para ser juiz em grandes eventos”, conta. Estranho abandonou a graduação em Filosofia na Unifesp e um cargo público na Secretaria Estadual da Educação para se dedicar apenas ao ofício de árbitro de Magic.
O papel das lojas
Desde seu início, a cultura do Magic esteve ligada de forma íntima às lojas que comercializam os cards e outros produtos relacionados. A loja está para o Magic assim como o campinho de bairro está para o futebol, nas devidas proporções. E se nos primeiros anos esses ambientes eram simples pontos de encontro e espaço para duelos (além da venda de produtos), hoje as lojas de Magic são verdadeiras “células” que agregam jogadores em um ambiente profissionalizado.
É nas lojas que o jogador conhece pessoas e tem contato físico, real e presencial com cartas, decks e o principal: joga Magic com diferentes pessoas. Willy emenda: “Em lojas o jogador faz amigos, joga torneios, compra suas cartas e tem chance de começar ali uma carreira profissional”.
Em uma busca no site LigaMagic, um agregador de torneios e lojas, encontrei mais de 50 lojas na cidade de São Paulo e um total de 230 estabelecimentos no estado. No site é possível também fazer busca por torneios a serem realizados – localizei 49 torneios durante todo o mês de novembro de 2015, só na cidade de São Paulo. No próprio site da Wizards of the Coast o duelista pode usar o localizador de lojas e torneios, que também retorna dezenas de resultados para a cidade de São Paulo. Ou seja: opções não faltam para o duelista iniciante, intermediário e experiente. “O jogo se chama Magic: The Gathering, e para mim o “Gathering” (“reunião”) é a grande razão do seu sucesso”, completa Willy.
Fora do circuito
Apesar da força e relativa importância da rede de lojas e da comunidade de jogo que as envolve, alguns duelistas de longa data preferem se manter à parte de todo o esquema. É o caso do também carioca radicado em São Paulo Rodrigo Esper – seu ambiente de jogo, na verdade, é a sala do apartamento que divide com amigos também duelistas na região central de São Paulo.
A experiência de Esper com o jogo – começou nos primórdios, com a jurássica Quarta Edição, que saiu no Brasil em 1995 – sem dúvida o credenciaria para estar entre alguns dos mais proeminentes duelistas da comunidade. Mas, por opção, se manteve em círculos restritos de jogo, bem no estilo “entre amigos”. “Comecei como todo mundo, na lojinha de bairro que era meio locadora, meio loja de coisas nerds, mas logo me mantive em grupinhos mais restritos, sem me envolver muito em comunidades”, conta. Esper considera que o clima de intensa disputa que permeia o ambiente do Magic de forma geral tem conotação negativa. “Não queria competir, só jogar entre amigos mesmo. Todo mundo se conhecia e sabia das cartas e dos decks de cada um”, revela.
Entendi bem o que ele quis dizer, e compartilho de certas aflições que vivi quando adolescente em ambientes assim. Há uma certa insegurança em se lidar com alguns tipos de nerds, em epecial os mais “hardcore”. “Tem um tipo de nerd que é bem difícil de se lidar, são arrogantes, chatos, não compartilham conhecimento, te desprezam. Isso faz perder totalmente o prazer na coisa”, confessa.
Esper chegou a parar de jogar em determinado momento, quando viveu uma experiência traumática: “Roubaram meu deck, o principal deck. Desanimei”. Um bom deck de Magic, com 60 cartas, diversas raras, pode ser vendido de forma avulsa por boas centenas de reais (dependendo do deck, pode chegar na casa dos quatro dígitos). Ao mesmo tempo, segundo ele, muitos dos seus amigos duelistas também paravam de jogar e vendiam as cartas. Fiz a mesma coisa em 2000, quando parei e vendi minhas cartas (e recuperei quase tudo que investi), acompanhando a tendência de todos os outros da turma. Estávamos crescendo, indo para a faculdade e “virando adultos”.
Claro, adultos não jogam Magic – ou pelo menos não gostam muito de admitir isso. Jogam futebol, sinuca e tomam cerveja, mas não jogam Magic. Como bem postulou Esper, “jogar magic não é maneiro”. Eu mesmo, na época em que jogava, mantinha minhas atividades em segredo dos amigos de escola, que preferiam andar na rua e jogar futebol. Duelos, trocas e papos de Magic só com quem também jogava e via aquilo como uma coisa legal demais, mas entendia que a maioria das pessoas não absorvia facilmente.
O hiato de Esper com o Magic durou bons anos, pontuados por uma ou outra aquisição esporádica. “Não contava para ninguém, não era uma coisa bem vista, estava velho.” Estamos velhos. A vida, também conhecida como “convenções sociais absurdas”, travestida de consciência/responsabilidade, nos cobra se aparecermos em casa com um deck turbinado para torneio, ou com aquele combo imbatível que inventamos. Não há espaço e não é maneiro. Mas a verdade é que o mundo mudou nas duas últimas décadas: o que era tido como estranho, nerd e esquisito virou cultura popular — a tal cultura pop — e jogar esse tipo de jogo, e também jogos de tabuleiro, se transformou em uma forma de entender que podemos gostar daquilo que nos agrada sem preocupações. E isso, por consequência, transformou o ato de gostar de Magic em algo cool.
A história do Esper ajuda a comprovar isso. Fotógrafo profissional e sócio de uma agência, Esper cobria eventos, festas e shows no Rio. “Foi quando descobri uma galera que jogava escondido. Cara de banda, advogado – e a gente ficava de cara, porque aquele cara era muito maneiro para jogar Magic!”. Que “a vida” me perdoe, mas se um cara de banda joga Magic e tudo bem, não sei o que eu estou fazendo da minha vida. Jogar Pokémon, quem sabe? Já joguei e foi maneiraço.
Jogo Magic e sou maneiro, sim
A imersão no mundo do Magic a que me submeti nas últimas semanas foi altamente revigorante, mesmo descobrindo o quanto o jogo mudou desde que o abandonei – principalmente porque as mudanças parecem mesmo ter sido feitas de forma consciente, planejada e visando a oferecer ao duelista diferentes formas de abordagem e de encarar o jogo como um todo.
Em 2015, Magic The Gathering completa 22 anos de existência, gozando de boa popularidade (a quantidade de lojas e torneios disponíveis não deixa mentir), mas ainda permanece oculto de boa parte do público, sendo para a maioria das pessoas que o conhece uma vaga lembrança da adolescência – ou apenas “aquele joguinho de cartas estranho que fulano brincava na escola”. Essa lembrança distante ajuda a manter o jogo no “submundo” e em níveis de popularidade bem inferiores aos que o videogame, por exemplo, alcançou nos últimos anos.
Por outro lado, Magic parece estar em um patamar bem consolidado, com sinais claros de que não vai definhar e cair no limbo dos jogos ultra alternativos – pelo menos não em um futuro próximo. Bora, então, montar um deck e jogar uns torneios?
O que você acha do Bill Murray? Talvez essa seja a única pergunta que importa para decidir se vale ou não a pena assistir ao especial de Natal de Sofia Coppola com o ator, “A Very Murray Christmas”, que estreia hoje no Netflix. Se você o ama, possivelmente vai gostar de vê-lo cantar durante quase uma hora. Se não, é provável que apenas ache o programa estranho.
O Netflix começou a diversificar sua oferta de produções originais com séries faladas pelo menos em parte em espanhol e elenco latinoamericano, como “Club de Cuervos” e “Narcos”. Mesmo assim, uma parte significativa do seu conteúdo próprio praticamente só tem apelo para o público americano — ou pelo menos pouco apelo para o público brasileiro. É o caso de vários especiais de stand-up com comediantes pouco conhecidos por aqui e do especial de Natal.
No programa, Bill Murray é contratado para fazer um show natalino ao vivo na televisão americana, com vários convidados ilustres — passando por George Clooney, Paul McCartney e o papa Francisco — na plateia. Só que uma nevasca em Nova York impede que aviões pousem, carros circulem e estações de metrô funcionem. Ninguém aparece no local e Murray quer desistir. Suas produtoras, Amy Poehler e Julie White, o obrigam a se apresentar. A partir daí, o programa é uma viagem.
São muitos convidados (Miley Cyrus, George Clooney, Maya Rudolph, Michael Cera, Rashida Jones, Chris Rock, a banda Phoenix…) em cenas cujo único sentido é fazer todos cantarem músicas natalinas tradicionais nos Estados Unidos. Algumas apresentações, como a de Miley Cyrus, são boas. Outros convidados não cantam tão bem e fica a dúvida: era pra ser bom ou era pra ser engraçado? (Ver Clooney cantando não faz rir, mas pelo menos é curioso.)
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A trama, se é que se pode chamar de trama, é bem solta: no hotel em que sua apresentação está marcada, Murray se sente solitário, quase triste. No bar, conversa com cozinheiros, garçons, e tenta reunir um casal que brigou no dia de sua festa de casamento, à qual ninguém foi. Em certo ponto, Murray começa a sonhar e aí a história passa a fazer menos sentido ainda. Mas a intenção nunca foi fazer uma trama consistente. Segundo Sofia Coppola, que escreveu um depoimento sobre o especial para o site Vulture, o programa não era pra ter lógica mesmo.
Ela queria prestar uma homenagem aos antigos especiais de Natal na televisão americana, em que vários convidados aleatórios, principalmente músicos, participavam de uma trama sem sentido, como quando David Bowie e Bing Crosby cantaram “Peace on Earth” e “Little Drummer Boy” em 1977 ou programas com os Carpenters e Dean Martin. Para ela, esse tipo de especial remetem a uma memória afetiva, de sua infância.
“Eram memórias vagas de como era ser criança, como cápsulas do tempo — Dean Martin parece queimado de sol, como se tivesse acabado de andar no seu conversível. Não quero ser mal-educada falando algo de sua qualidade, mas eles eram divertidos de ver”, escreveu ela. “Acho que a mágica do show business se une com a das festas de fim de anode um jeito legal. Adoro o sentimento não linear, sem lógica, de que tudo pode acontecer, e as músicas que aparecem do nada. Foi ótimo olhar para esse modelo e fazer nossa versão exagerada disso.”
Coppola resume bem o que é o especial do Netflix. Para quem o Natal traz esse tipo de memória, pode ser legal assistir a uma versão daquilo com atores e cantores que fazem sucesso hoje em dia. “A Very Murray Christmas” é pouco comum, diferente dos outros programas que estão no Netflix. É uma mistura de melancolia, humor e nonsense. Mas não dava para esperar algo muito diferente disso vindo do ator.
Em uma estreita rua no bairro do Ipiranga, já perto de Heliópolis, um prédio grande chama a atenção entre as vendinhas e casas. Crianças não param de entrar: sozinhas, em duplas, acompanhadas pelos pais, ou vindas de um grande ônibus amarelo que para ali na frente de tempos em tempos, levando e trazendo crianças do bairro, passando pela entrada da favela até chegar ali. É lá que fica, desde 2005, o Instituto Baccarelli, que dá aulas gratuitas de música para 1.300 jovens, boa parte vindos da comunidade vizinha.
O Instituto, criado em 1996 pelo maestro Silvio Baccarelli, é inspiração para o filme “Tudo que Aprendemos Juntos”, que estreia hoje (3). Nele, Lázaro Ramos é um violinista talentoso que trava na hora de uma importante audição para a Osesp e, sem outro trabalho, aceita dar aulas na favela de Heliópolis para um grupo de 25 adolescentes que se prepara para uma apresentação para uma ONG.
Não é propriamente um filme “baseado em fatos reais”, mas tem uma proximidade grande com o trabalho do Instituto. Parte dos jovens atores vem, inclusive, de suas salas de aula, escolhidos através de testes. É o caso de Thais Plastina, contrabaixista de 22 anos, e Lucas Andrade, flautista de 20, que hoje fazem parte da Orquestra Sinfônica de Heliópolis e fazem sua estreia no cinema. Os dois eram estudantes do Instituto quando a equipe do diretor Sérgio Machado passou por lá fazendo testes, já que queria que todos os atores fossem músicos da comunidade — Lucas mora em Heliópolis e Thais, no Jardim Patente, ali perto.
O primeiro contato de Thais com a música foi por meio de um teclado dado pelo avô, que o pegou depois que alguém o jogou fora. Era tão pequenininha que nem se lembra ao certo de quando foi. Só diz que aquilo nunca foi um hobby. Desde que encostou num instrumento, soube que era aquilo que queria fazer, apesar de não ter nenhum músico na família. “Foi um susto pra eles, mas dei a cara a tapa. Era isso que eu queria.”
Ainda criança começou a cantar na igreja. Aos 14 anos, uma amiga da escola falou do Instituto, que dava aulas gratuitas de música. “Eu nem acreditei. Precisei vir ver”, diz, um dia antes da estreia do filme numa sala de aula do Instituto. Ela queria aprender a tocar cello, mas não passou no teste. A mesma amiga sugeriu que ela tocasse contrabaixo como ela, já que seu professor tinha vagas. “Pensei que depois mudaria de instrumento, mas depois você se apega. Gostei da frequência grave. Brinco que o contrabaixo me escolheu.” Para pagar seu instrumento, vendeu trufas durante um ano no Instituto.
Lucas entrou no Instituto ainda mais novo, aos oito anos — há aulas de musicalização para crianças desde os quatro anos de idade –, quando a sede ainda ficava na Vila Mariana, na casa de Silvio Baccarelli. Ele dedilhava um violão encostado em casa, até que o levaram ao Instituto. Começou na percussão e odiou. Pensou em deixar as aulas, até que ouviu uma aula de flauta e se apaixonou. Hoje, toca flauta transversal e piccolo, também da família das flautas.
FOGO EM HELIÓPOLIS
No filme de Sérgio Machado, o professor de violino que desperta nos alunos da comunidade a paixão pela música chega lá a contragosto e não tem intenção de criar raízes. Seu objetivo é ganhar tempo enquanto não passa em outra audição para a Osesp. Na vida, foi diferente. O Instituto foi criado pelo maestro depois de um incêndio ter atingido Heliópolis. Ele viu aquilo pela televisão e quis ajudar a comunidade de alguma forma. Procurou uma escola pública da região e passou a ensinar instrumentos de orquestra a um grupo de 36 alunos em seu próprio imóvel.
Anos mais tarde, a Prefeitura lhe cedeu um terreno. A organização Pró-Vida construiu o primeiro prédio, com três andares e salas de aula e ensaio. Suas paredes são levemente curvas, o que é quase imperceptível aos olhos, para que a acústica seja a melhor possível. Um segundo prédio foi construído pela Eletrobras.
Hoje, os corredores andam cheios de crianças, que correm em grupos pelos corredores. Até chegar na porta da sala de aula. Enquanto cerca de cem jovens — de pequeninos a já adolescentes — ensaiam uma apresentação do coral com músicas de Natal para a Catedral da Sé, três meninas quietinhas olham pelo vidro e se perguntam se podem entrar, só para assistir.
Dentro das salas, as aulas são levadas a sério. Em um momento, o maestro interrompe a apresentação, quando o coral já está acompanhado por uma orquestra, e aponta para um grupo: “Ou vocês me ajudam ou saem. Não é a primeira vez que vejo vocês dando risada”. Filmados para um canal de TV, os músicos falham. O maestro para o ensaio: “Não tem TV aqui. Somos só nós aqui”. A concentração volta.
Mais de mil alunos hoje são de Heliópolis. Há dois jeitos de entrar no Instituto: para aqueles que estão iniciando e querem aprender um instrumento, é preciso ser morador da região e estar matriculado em uma escola pública. Quem tem um nível avançado de algum instrumento sinfônico pode fazer um teste para as Orquestras Juvenil e Sinfônica de Heliópolis, as únicas que permitem membros de fora da comunidade. Regida por Isaac Karabtchevsky é composta por alunos avançados do Instituto. Pelo quinto ano consecutivo, a Orquestra teve uma temporada regular de concertos na Sala São Paulo.
DEDICAÇÃO TOTAL
Quem toca nas orquestras continua tendo aulas no Instituto e a rotina, dizem Thais e Lucas, é puxada. Há uma aula individual semanal de instrumento, há aulas de naipes e ensaios com a Orquestra. A partir de uma idade é preciso escolher entre levar o instrumento a sério e fazer outras atividades. Lucas dançava num grupo em São Caetano e o largou — assim como as aulas de computação e o futebol. O único momento em que deixaram os estudos um pouco de lado foi durante a gravação do filme, em 2012.
Todos os membros do elenco tiveram de fazer aulas no Instituto. Lucas também passou por algumas dificuldades, já que em “Tudo que Aprendemos Juntos” ele toca viola, e não flauta. “Nunca tinha tocado. Como a gente é músico, tem uma noção. Mas foi punk aprender”, conta. Hoje diz que só pega o instrumento de vez em quando. Para Thais, uma das dificuldades foi “dublar” seu instrumento. As músicas eram gravadas previamente em estúdio, pelas orquestras do Instituto, e ela tinha que fingir tocar em cena, sem encostar nas cordas. “Só fazendo aquela cara de quem está tocando”, brinca Lucas.
Embora o Instituto Baccarelli não apareça no filme, os dois dizem que ele está lá o tempo todo. As músicas foram tocadas por seus alunos, os professores deram aulas a todos do elenco (inclusive ao diretor, que diz ter sido um desastre como músico) e há muito deles mesmos ali. Tem um pouco de improviso? “Um pouco?”, Thais gargalha. “A gente não tinha roteiro!”, completa Lucas. Eles explicam um pouco melhor: Sérgio Machado tinha alguma ideia de como a cena iria se passar, mas a partir disso a bola estava com ele.
Em uma cena, Laerte, o personagem de Lázaro, pega um papel que circula entre os alunos e vê que ali estão escritas as notas da música, não como notas numa partitura, que eles não sabiam ler, mas por extenso: dó, ré, mi… Ele pergunta o que é aquilo. “O Joabe estava lá só pra acompanhar e diz: ‘ué, são notas, professor’. A gente queria dar risada, mas não podia”, lembra Lucas. Também em uma cena de sala de aula, Laerte diz que eles passarão a ter aulas de sábado. Os alunos debatem: alguns trabalham, outros têm que ajudar em casa, nem todo o mundo pode… Até que uma das meninas faz um desabafo emocionado sobre a importância daquelas aulas em sua vida. Tudo verdade, tudo espontâneo.
Lucas diz que todos os meninos do filme viraram irmãos. Ver o resultado nas telas foi o momento mais emocionante de sua vida, conta. “A gente se emociona muito com a mensagem. É um trabalho muito bonito. E se ver num trabalho desses…”, diz Thais. “A pena é que a gente vai concorrer com ‘Star Wars’.”
O que “Everybody”, dos Backstreet Boys, “…Baby One More Time”, de Britney Spears, “Roar”, de Katy Perry, e “Shake It Off”, de Taylor Swift, têm em comum? Todas têm na lista de autores um mesmo nome: Max Martin. O sueco, único compositor na lista dos 50 melhores da revista Rolling Stone a ter construído uma carreira a partir dos anos 90, é uma máquina de fazer hits. Tanto que, neste ano, Justin Bieber declarou não sentir que “ligar pro Max Martin e pedir pra ele te escrever um hit” é fazer música de verdade. Para muitos cantores pop hoje em dia é assim que funciona: em busca de um novo sucesso, procura-se Martin — que costuma entregar o que promete.
Max Martin é o mais bem-sucedido de um pequeno grupo de compositores e produtores da Escandinávia por trás de grande parte dos maiores hits das últimas décadas. Seu mentor, o também sueco Denniz PoP (1963-98), foi responsável por canções como “All That She Wants”, do Ace of Base, e “As Long As You Love Me”, dos Backstreet Boys. Já os noruegueses Tor Erik Hermansen e Mikkel Storleer Eriksen, conhecidos como Stargate, fizeram “Worth It”, do Fifth Harmony, “Don’t Stop the Music”, de Rihanna, e “Irreplaceable”, de Beyoncé.
No livro “The Song Machine” (Editora WW Norton, 288 págs., R$ 150 em papel e R$ 52 em versão digital), o jornalista da New Yorker John Seabrook mostra como a produção de hits é praticamente industrial. Criadas em pouco tempo por equipes munidas apenas de um computador, essas canções seguem quase uma receita, na qual a letra importa pouco e as batidas misturam, em suas palavras, vodca e MDMA ao pop chiclete de antigamente.
A imagem do cantor compositor, sentado na cama com um violão escrevendo suas canções num caderno, não tem lugar no mundo pop de hoje. Quem mais se aproxima disso é Taylor Swift, conhecida por falar de todas suas desventuras amorosas em suas músicas. Mas mesmo ela não costuma compor sozinha. Das 13 canções de seu último disco, “1989”, apenas uma tem só seu nome nos créditos. Max Martin aparece como compositor nos maiores sucessos: “Style”, “Blank Space”, “All You Had to Do Was Stay”, “Shake It Off”, “Bad Blood”, “Wildest Dreams” e “How You Get the Girl”. O mesmo vale para Adele. Em “25”, que lançou neste mês, todas as canções têm coautores — Martin entre eles.
Seabrook, que levou quase quatro anos nas pesquisas para o livro, não é exatamente um fã de pop. Seu gosto pessoal pende mais para o rock, mas descobriu anos atrás que o gênero era um ótimo tema para conversar com seu filho adolescente, que controlava o rádio a caminho da escola e escutava canções nas quais ele nunca tinha ouvido falar.
Nos últimos anos, fez alguns artigos sobre música pop para a New Yorker, meio que por acaso. “Nunca fui um escritor de música pop. Sempre me interessei por canções, nos momentos de inspiração e em como ideias podem virar dinheiro”, conta. “Mas meio que caí nesse tema. Começou com uma ideia que um editor da revista sugeriu.” Nas páginas da revista, escreveu sobre o pop coreano, sobre o produtor e compositor Dr. Luke, discípulo de Max Martin, e sobre o próprio Martin. Um texto seu de 2012, no qual traçava um perfil da equipe por trás do sucesso de Rihanna, foi inclusive publicado com o título “The Song Machine”, a máquina de canções.
UMBRELLA ELLA ELLA
Rihanna, aliás, é uma espécie de síntese do processo descrito por Seabrook. “Umbrella”, música que fez com que ela estourasse em 2007, não só não foi escrita por ela como nem foi escrita para ela. A história começa com o grupo de compositores de Atlanta formado por três homens. Um deles, Tricky Stewart, vinha de uma família de escritores de jingles que tinha no currículo canções para marcas como Coca-Cola e McDonald’s. Tricky cresceu em estúdios aprendendo a fazer músicas pegajosas e, por influência da mãe, estudou produção musical em vez de algum instrumento (assim ele teria mais futuro, pensou ela). Com outros membros de sua família, Tricky abriu a produtora RedZone Entertainment e durante anos trabalhou sem produzir um grande hit.
O jogo virou com “Umbrella”, uma criação conjunta. Kuk Harrell brincava com uma batida no computador quando Stewart entrou na sala e complementou o som com uns acordes no teclado. Terius Nash ouviu tudo, pegou um microfone, e começou a cantar algumas palavras aleatórias que vieram à cabeça. Assim nasceu o famoso refrão “under my umbrella ella ella ê ê”.
Sabendo que tinham algo bom em mãos, os três procuraram um artista para gravar a música. Tentaram Britney Spears, a cantora mais famosa que conheciam, mas ela recusou. Depois disso, tentaram o executivo L.A. Reid, que a mostrou para Rihanna, que, por sua vez, amou a canção e quis gravá-la. Os autores, porém, queriam alguém mais conhecido para “Umbrella” e, no início, negaram. Com a ajuda de Jay-Z, Rihanna acabou convencendo a equipe.
Mas o nascimento de um hit não é tão simples. É fundamental para que uma música toque bastante na rádio para estourar, e para que isso aconteça é necessária uma campanha pesada da gravadora. Segundo uma investigação da rádio pública americana NPR, citada pelo livro, uma gravadora desembolsa tranquilamente pelo menos 1 milhão de dólares para emplacar uma única música nas rádios, influenciando as datas e horários em que ela vai tocar e o número de vezes em que ela será repetida durante o dia. “As rádios precisam de música contagiante o suficiente para manter as pessoas ouvindo mesmo com os anúncios e as gravadoras precisam das rádios para vender suas músicas. Ambas precisam de hits”, escreve Seabrook.
POP ESCANDINAVO
“Umbrella” foi escrita por americanos, mas a origem dessa fábrica de canções está na Suécia nos anos 1990, com Denniz PoP, então um DJ de 28 anos parte do coletivo SweMix, que remixava sucessos dos Estados Unidos para o público europeu. O sonho de Denniz, conta Seabrook, era misturar as batidas dançantes dos clubes com o pop das rádios e seus refrões marcantes. Ele já havia trabalhado com algumas bandas quando recebeu uma fita com uma gravação de um quarteto chamado Ace of Base com uma mensagem: “Por favor, ouça essa fita e nos ligue”.
O DJ colocou a fita para tocar em seu carro e antes de terminar a canção já sabia que não queria trabalhar com eles. Mas seu rádio quebrou, a fita não saía e Denniz ficou ouvindo a música sem parar por duas semanas. Foi aí que teve o estalo. Mudou a melodia toda, colocou uma linha de baixo, deixou a música em acordes maiores, mas o refrão em menores, simplificou algumas coisas e batizou a composição de “All That She Wants”. A música foi um sucesso, inclusive nos Estados Unidos.
Denniz teve uma carreira curta, mas foi o responsável pelo Max Martin compositor. Martin era um cantor de glam-rock chamado Martin White quando assinou um contrato para trabalhar com Denniz, que o colocou sob sua asa. Denniz percebeu que Martin era melhor como compositor do que como cantor e o ensinou a usar o estúdio. Não há nenhuma gravação disponível na internet de Martin cantando, mas segundo Seabrook, que ouviu a versão do compositor de “…Baby One More Time”, sua voz é muito boa. Inclusive, ele envia suas versões das canções para o artista exatamente do jeito que ele quer que elas sejam cantadas.
Martin é bastante recluso e não quis falar com Seabrook, que contornou a questão usando entrevistas que ele havia dado a uma rádio sueca em 2008 que ainda não tinham sido traduzidas para o inglês. “Isso respondeu a maior parte das questões que eu teria perguntado”, afirma. O jornalista diz entender que Martin não goste muito de falar. “Ele é sueco! Eles não gostam muito de chamar a atenção. E como é melhor que todos achem que o artista escreve suas próprias músicas sua natureza reclusa encaixa muito bem com seu trabalho.”
E por que o pop deu tão certo na Escandinávia? Seabrook arrisca uma resposta. “ Nos Estados Unidos os compositores crescem com uma divisão entre pop e R&B que vem de categorias raciais de 60 anos atrás, mas que ainda são muito reais em termos de quem escreve cada música”, diz. “Pessoas brancas não escrevem R&B nos Estados Unidos. Mas na Suécia isso não é um problema. Pessoas como Max Martin se propuseram a escrever R&B para artistas negros, mas como são suecos, não saíram músicas exatamente desse gênero. Quando ele escreveu …Baby One More Time para o trio de R&B feminino TLC, elas ouviram a demo e disseram não.”
ME BATA MAIS UMA VEZ, BABY
Uma consequência curiosa desse arranjo é que as letras dessas músicas às vezes não fazem muito sentido. O refrão de “All That She Wants”, por exemplo, diz “all that she wants is another baby”, que seria algo como “tudo o que ela quer é outro bebê”. Frase estranha para uma música pop. O objetivo, conta o jornalista, era dizer “tudo o que ela quer é outro namorado”. A mesma coisa para “…Baby One More Time”. O nome original da música era igual ao refrão: “Hit Me Baby One More Time”, o que significa, ao pé da letra, “me bata mais uma vez, baby”. O que os autores queriam era dizer “me ligue de novo, baby”.
“As letras são menos importantes hoje fora do mundo do hip hop, em que ainda é importante que as frases signifiquem algo, sejam inteligentes ou chocantes. No pop as letras são só levemente melhores que na música disco”, afirma Seabook. “Em parte porque as músicas são construídas em torno da batida e da melodia e a letra é escrita em função delas. Na composição tradicional a letra nasce com a melodia. Agora ela vem no fim do processo.” E, é claro, porque como inglês não é a primeira língua dos compositores, às vezes as frases ficam truncadas.
Sem escrever suas próprias canções, os artistas perdem um pouco de seu controle criativo sobre a própria obra. “Mas eles ganharam poder com a ascensão das mídias sociais e controle sobre a própria imagem. Antes eles precisavam de repórteres musicais. Agora, não. Por isso as revistas de música estão desaparecendo”, afirma. Sobre as cantoras que fazem sucesso hoje, ele diz acreditar que são mais atrizes do que as divas de voz poderosa como Céline Dion e Whitney Houston. “Elas interpretam um papel e a música é como um roteiro. Se elas conseguem fazer diferentes papéis, como Rihanna e Nicki Minaj, melhor. Whitney Houston era sempre Whitney, não importava a música. Mas Rihanna muda a cada canção.”
Após passar anos em estúdio acompanhando processos de composição e produção, Seabrook diz que, embora existam segredos que não lhe contaram, não há uma fórmula secreta para escrever um hit. “Existe um processo industrializado que permite às pessoas que escrevam muitas músicas no mesmo tempo em que compositores levavam para escrever poucas. No livro, chamo isso de ‘track-and-hook’. Mas você ainda deve deixar a arte prevalecer em algum ponto do processo.”
O tal “track-and-hook” se refere à divisão entre a batida (track) e a melodia (hook), inventada por produtores de reggae na Jamaica. Lá, produtores faziam uma batida e convidavam vários cantores para gravar músicas a partir dela. “Hoje, o ‘track-and-hook’ virou o pilar da música popular. É comum que um produtor mande a mesma batida para várias pessoas — em casos extremos, até 50 — e escolha a melhor melodia entre elas.” Para Denniz PoP, conta Seabrook, compor era um esforço coletivo: como num programa de TV, em que vários roteiristas se reúnem numa sala e trocam ideias. Martin compartilha essa filosofia.
No site de John Seabrook há uma série de playlists para serem escutadas enquanto se lê o livro. Há uma divisão por capítulos, que engloba todas as canções citadas em ordem, e por produtor. “Ficou óbvio pela reação dos meus primeiros leitores que as pessoas largavam o livro para ouvir as músicas no YouTube. Idealmente você teria um livro em que você clicaria nas músicas quando elas aparecessem no texto. Mas esse tipo de livro não existe.”
Ouvir as canções dá uma boa dimensão do alcance de um grupo de produtores e compositores tão restrito que se pode contar nos dedos de uma mão. Pense em algum artista pop dos anos 1990 para cá: pelo menos uma música sua estará na playlist. Mas, segundo Seabrook, como todas as tendências na música, esse pop de hoje está fadado a acabar. Em breve? “Já passou da hora!”