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Alicia Vikander é a garota dinamarquesa

Eddie Redmayne tem uma capacidade incrível de imitar pessoas em seus mínimos trejeitos, e isso ficou claro em “A Teoria de Tudo”, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator no ano passado por sua interpretação de Stephen Hawking. Seu rosto também se transforma com facilidade — a cada filme ele parece uma pessoa diferente. E em “A Garota Dinamarquesa”, que estreia hoje (11), não é diferente. Redmayne mostra de novo que, fisicamente, é um camaleão. Pelo papel de Lili Elbe, pintora dinamarquesa que fez uma das primeiras cirurgias de mudança de sexo de que se tem notícia, Redmayne concorre pela segunda vez seguida ao Oscar.

Seus dois filmes, aliás, têm bastante em comum. Como em “A Teoria de Tudo”, Redmayne interpreta uma personagem num casamento feliz, que vai se deteriorando à medida em que o marido passa por uma grande transformação. Nos dois filmes, seu personagem tem uma mulher que dá apoio o tempo inteiro mesmo às custas de um sofrimento pessoal (um papel clássico de mulheres no cinema, aliás). A diferença é que, enquanto em “A Teoria de Tudo” Felicity Jones era bem coadjuvante, em “A Garota Dinamarquesa” a mulher rouba a cena de Redmayne.

Alicia Vikander disputa o Oscar de melhor atriz coadjuvante neste ano pelo papel de Gerda Wegener, o que faz pouco sentido. Está certo que se ela concorresse ao prêmio de atriz a briga seria mais acirrada — Brie Larson é a favorita, mas Saiorse Ronan e Cate Blanchett também estão no páreo –, mas é ela quem carrega o filme. Não que Redmayne esteja mal. Mas sua atuação é muito mais física que emocional. Lili estuda os gestos de mulheres na rua, paga uma prostituta para poder observá-la, estuda o próprio corpo no espelho e faz dieta para ficar magérrima. Redmayne, que imita como poucos, capta bem a parte corporal da transformação, mas é Vikander quem faz chorar.

Quando o filme começa, Gerda e o marido, Einar, têm um casamento de causar inveja. Eles não se desgrudam, passam os fins de semana na cama, conseguem se comunicar com um olhar numa multidão, têm uma bela vida social e tentam ter um filho. Um dia, a modelo que Gerda estava pintando se atrasa para uma sessão e ela pede para o marido vestir meias e sapatos femininos para que ela possa adiantar o trabalho. Ali, algo muda em Einar. Nos dias seguintes ele pede primeiro para que a mulher não tire a camisola nova na cama e, logo depois, veste a mesma camisola por baixo das roupas.

Gerda não faz muitas perguntas e inclusive sugere que ele vá vestido de mulher a uma festa e se apresente a todos como Lili, uma prima de Einar do interior. Ela o ensina a se maquiar, a andar de salto, a escolher as roupas. Para Gerda, aquilo não passa de uma brincadeira, até que ela vê Lili beijar um homem na festa. Mas a essa altura seu casamento nunca mais seria o mesmo. Einar começa a se portar como Lili com mais e mais frequência, até que ele começa a sonhar os sonhos de Lili e Einar desaparece completamente.

Alicia Vikander em 'A Garota Dinamarquesa'
Alicia Vikander em ‘A Garota Dinamarquesa’

A trajetória de Lili não é nada fácil. Quase ninguém, ali no começo do século 20, entendia o que ela estava passando. Foi vítima de transfobia, médicos tentaram interná-la e a fizeram passar por sessões de radiação, dizendo que ela era esquizofrênica entre vários outros diagnósticos terríveis. Mas, por causa da performance de Vikander, é o sofrimento de Gerda que se sente mais na pele. Em certo momento, quando sua carreira começa a deslanchar e ela vai sozinha a uma festa de abertura de sua exposição em Paris, ela volta para casa aos prantos, diz que o marido deveria ter ido com ela e pede para que Einar apareça só um pouco, ao que Lili responde que isso não é mais possível.

Einar já não existe mais. Lili e Einar são pessoas completamente diferentes, que não têm nem paixões em comum. Quando Gerda sugere que Lili pinte, ela responde: “Eu quero ser uma mulher, não uma pintora”, ao que ela responde: “Existem pessoas que são as duas coisas”. A transformação física de Redmayne é impressionante, mas o filme se preocupa mais com a parte estética do que com o que se passa na cabeça de Lili.

Enquanto isso, embora Gerda continue ao lado de Lili até o fim, ajudando-a se recuperar das cirurgias para a mudança de sexo — mesmo achando que elas eram perigosas –, ela é bem mais que “a mulher sofredora que dá apoio”. Sua jornada como personagem é tão ou mais importante quanto a de Lili: vemos claramente seu conflito interno, seu amargor, suas decepções, seus momentos de fraqueza. Em um momento, inclusive, Gerda é chamada por alguém de “a garota dinamarquesa” do título. Faz sentido. O filme é 100% de Vikander.

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‘Joy’ é propaganda de esfregão

O filme “Joy” começa com um aviso que diz algo como: “A todas as mulheres corajosas (talvez o adjetivo não seja esse. Mas insira aqui uma característica positiva que está valendo) do mundo. Essa é a história de uma delas”. Parece um bom prenúncio em uma temporada de filmes predominantemente masculinos — “Spotlight”, “A Grande Aposta”, “Os Oito Odiados”, “O Regresso”, “Creed”. Maravilha, veremos uma história bem contada sobre uma mulher? Não é bem isso que vem pela frente. Mas o filme foi indicado como melhor comédia no Globo de Ouro, então pelo menos dá pra rir, certo? Quem dera. Talvez tenha uma boa história para ser contada sobre Joy Mangano, criadora de um esfregão milagroso, mas certamente não é a que está no filme. “Joy”, que estreia no dia 21, é tão desinteressante que o melhor contexto para assistir a ele é num avião, pra matar o tempo antes de dormir.

Jennifer Lawrence, de novo em parceria com o diretor David O. Russell, estava cotada para o Oscar antes que qualquer um tivesse assistido ao filme — o que é uma maluquice, ainda que a previsão estivesse certa. Mas sua escalação para o papel de Joy, na verdade, é um equívoco. Não que Lawrence não esteja bem. Só que é esquisitíssimo ver alguém dizer para a atriz de 25 anos que ela não tem a vida toda pela frente, “só alguns bons anos”.

Joy é uma mulher divorciada, que não foi à faculdade para ajudar os pais a tocar a vida depois da separação deles, com dois filhos que tem dificuldade para sustentar e que tem pesadelos (literalmente, falta muita sutileza ao filme) sobre como sua vida foi desperdiçada. Difícil de comprar vendo alguém de 25 anos na tela. Difícil de vender também, apesar de Lawrence ganhar pontos (e prêmios, como o Globo de Ouro) pela tentativa.

Mas esse não é o principal problema do filme. Lawrence já viveu mulheres mais velhas nos filmes de O. Russell – “O Lado Bom da Vida” e “Trapaça”, ambos melhores que “Joy”. O problema é o roteiro, com personagens profundos como um pires. A meia-irmã de Joy é uma chata que implica com ela aparentemente sem motivo (se o cinema é cheio de “bromances” e grandes amizades masculinas, o mesmo não se pode dizer de parcerias entre mulheres, quase sempre rivais), a mãe passa o dia no quarto vendo novela sabe-se lá por que, a avó só está no filme para fazer uma narração hiper cafona que serve de muleta para o diretor. Lá pelas tantas aparece Bradley Cooper num papel que não vai a lugar nenhum. Robert De Niro também está lá para fazer um discurso de “não sei por que deixei você acreditar que era mais que uma dona de casa” para a própria filha sem que entendamos o motivo da crueldade.

Joy é uma inventora desde pequena, como o filme não para de jogar na sua cara. A avó, narradora, reforça esse ponto constantemente e mais de uma vez vemos um flashback da pequena Joy construindo uma fazenda de papel e dizendo que não precisa de um príncipe, só de suas invenções, como se não desse pra ter tudo na vida. Quando finalmente ela cria o esfregão, o filme deixa um pouco sua família de lado e se volta para as dificuldades de uma mulher entrar no mundo dos negócios. Parece que vai deslanchar, mas é uma esperança vã. Tudo dá errado, até o momento em que Joy corta os próprios cabelos em frente ao espelho (alerta de clichê) e os problemas se resolvem magicamente. Nada como um bom cabelo curto para conferir força e determinação a alguém.

A mensagem é que se você realmente quiser algo e persistir, vai dar certo. Nem sempre é assim. O filme tem bons momentos aqui e ali, mas não passa muito disso. O esfregão, pelo menos, é bom. “Joy” seria excelente se fosse uma propaganda: se você não tem um desses em casa, ele te convence a comprar.

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‘Carol’ e a faísca que não vira fogo

Em uma longa entrevista dada à revista New York no ano passado, Quentin Tarantino deu uma declaração polêmica sobre os filmes que disputam o Oscar hoje em dia: “Eles são bons, mas não sei se eles têm a permanência que uns filmes dos anos 90 ou 70 tinham (…). Metade desses filmes da Cate Blanchett — são essas coisas ‘de arte’. Não estou dizendo que são ruins, mas não sei se eles são longevos ”. Concorde-se ou não com a afirmação, é essa a impressão que deixa “Carol”, filme de Todd Haynes com Cate Blanchett que estreia nesta quinta (14) nos cinemas.

Baseado em um livro de Patricia Highsmith, “Carol” é lindo. Para usar o termo de Tarantino, é mesmo um filme “de arte”. Tudo em “Carol” é muito bonito: os figurinos do início dos anos 1950, a trilha sonora, os enquadramentos. Cada cena parece uma fotografia. Dá pra dizer o mesmo da história: é bonita. Carol (Cate Blanchett) está se divorciando do marido, Harge (Kyle Chandler), quando seu olhar cruza com o da vendedora Therese (Rooney Mara) numa loja de departamentos, perto do Natal. Naquele primeiro encontro é possível ver o encantamento de uma pela outra, ainda que Therese não saiba direito o que aquilo significa. É um belo começo para uma história de amor.

 

Apesar de o filme se chamar “Carol”, é bem mais uma história de Therese. Carol é uma mulher segura e já tinha se relacionado com uma amiga de infância, informação que o marido usa ao seu favor no processo de separação para conseguir a guarda da filha. Já Therese é bem mais nova, nunca se apaixonou e não sabe muito bem o que quer. Namora um rapaz apaixonado por ela apesar de não sentir o mesmo, trabalha numa loja sonhando em ser fotógrafa, mas não tem coragem de montar um portfólio com seu trabalho. Therese anda sem rumo, dizendo sim para tudo e sem tomar as rédeas da própria vida, até que Carol aparece.

(Aliás, um pequeno parêntese. Não faz sentido que Rooney Mara esteja na disputa pelo Oscar de atriz coadjuvante, já que ela é no mínimo tão protagonista quanto Cate Blanchett. É até mais, mas vamos dar uma colher de chá para o estúdio, que não quis colocá-la para concorrer diretamente com a colega – sabiamente, o Globo de Ouro não caiu nesse papo e indicou as duas a melhor atriz em filme de drama.)

Como a fotografia, tudo no filme é meticuloso, pensado. A história se desenvolve lentamente (talvez um pouco devagar de mais) e é tudo bastante sutil, quase frio de tão delicado. Depois de conversar brevemente com Therese, Carol deixa um par de luvas sobre o balcão, que a vendedora, com o endereço da cliente em mãos, logo devolve. Carol agradece com um convite para um almoço, que se desdobra em uma visita a sua casa, outra visita e, por fim, uma viagem de carro pelos Estados Unidos.

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Cate Blanchett e Rooney Mara em 'Carol'
Cate Blanchett e Rooney Mara em ‘Carol’

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Demora para que algo aconteça realmente entre elas e o público acompanha o início do relacionamento quase em tempo real, sentindo a tensão crescente entre as duas. Mesmo quando a tensão se concretiza não tem aquele momento épico de filmes românticos, com a declaração às lágrimas, a corrida para impedir que a pessoa entre no avião ou a perseguição de carro. “Carol” é um filme calmo e a faísca entre Therese e Carol nunca chega a virar fogo.

Essa sutileza toda exige boas atuações para que o filme dê certo. “Carol” seria bem chato se a dupla não fosse boa como é. Mara e Blanchett estão perfeitas e conseguem transmitir muito com poucas palavras e gestos contidos. Rooney Mara é uma figura bem peculiar, de fala baixa, sorrisos tímidos, maquiagem escura e roupas com um quê de fantasmagórico. O papel da contida e ingênua Therese é feito sob medida para ela. E Cate Blanchett nasceu para interpretar mulheres ricas e elegantes — parece saída direto da casa de Carol nos anos 1950.

Aí voltamos para a declaração de Tarantino. “Carol” é sim um filme bonito, “de arte”, e também é um filme bom. Mas lembraremos dele em 20 anos? Talvez seja injusto fazer essa pergunta, porque no fim do ano, quando se faz listas dos melhores filmes dos últimos 12 meses, percebe-se que pouca coisa é realmente memorável — é o caso de outro favorito ao Oscar, “Spotlight”, também legal, porém não incrível. Mas, no fim das contas, “Carol” é meio assim: é bom, é lindo de se ver, mas falta aquela sensação de “uau” saindo do cinema que os filmes longevos costumam deixar.

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Em ‘Creed’, Rocky ainda é o cara

De cara, “Rocky” e “Star Wars” não têm muito em comum. Talvez dê pra achar uma semelhança forçando a barra, mas são filme bastante diferentes. Isso deixa ainda mais curioso o fato de que, quase 40 anos depois do lançamento das franquias, após filmes que não emplacaram muito, novos longas das séries sejam lançados com tanto sucesso usando mais ou menos a mesma receita. Diante da tarefa de ter que agradar uma multidão de fãs ansiosos e frustrados com a trilogia iniciada nos anos 90, J.J. Abrams fez praticamente um reboot da história original de George Lucas. “O Despertar da Força” tem muito de “Uma Nova Esperança”. Deu certo: o público recebeu o que queria e todos saíram contentes. O mesmo acontece com “Creed”: você viu algo muito parecido em “Rocky”. E é incrível.

No filme, Michael B. Jordan é Adonis, filho que Apollo Creed — o boxeador rival de Rocky no primeiro filme, que depois vira seu amigo — teve fora do casamento. Depois de uma temporada em orfanatos e reformatórios, Adonis vai morar com a viúva do pai, que quer para ele uma vida diferente do pai. A princípio tudo vai bem: Adonis vive numa casona, tem um carrão e acaba de ganhar uma grande promoção em seu trabalho num escritório. Mas a sombra de Apollo ainda paira ao seu redor e o que ele quer mesmo é lutar.

Para realizar o sonho, Adonis deixa Los Angeles rumo à Filadélfia para pedir a Rocky que seja seu treinador. No começo ele recusa, mas não é surpresa pra ninguém quando ele volta atrás. E, é claro, antes do fim do filme o sobrenome de Adonis terá chamado a atenção de um campeão de boxe, que o desafia. Como Rocky, Adonis é um azarão. Como Rocky, ele é muito melhor do que todos pensam. E dá-lhe cenas de treino: Adonis corre pelas ruas, pega galinhas para ganhar velocidade, treina onde dá. Tudo saído do início da série, em referências que o próprio filme escancara (“as galinhas estão ficando mais lentas”, reclama Rocky ante o desempenho do pupilo).

São poucas as surpresas — principalmente para quem assistiu ao trailer –, mas não importa. “Creed” é o tipo de filme que faz rir, chorar (sim, quem for do tipo que chora no cinema faz bem em levar uns lenços) e torcer por Adonis como se você o conhecesse há anos e ele estivesse disputando uma luta real. Michael B. Jordan é muito bom, mas o filme tem dois grandes trunfos: Sylvester Stallone, que foi aplaudido de pé ao ganhar o Globo de Ouro de ator coadjuvante, e Ryan Coogler, diretor de 29 anos em seu segundo longa — e que foi contratado nesta semana pela Marvel para dirigir “Pantera Negra”.

Ao receber o prêmio, Stallone disse que Rocky Balboa é seu melhor amigo. Parece verdade. Talvez o ator nunca faça outro papel tão bem, mas Rocky parece uma extensão dele. Quando criou Rocky, numa história já famosa, lhe ofereceram centenas de milhares de dólares pelo roteiro, desde que ele desse o papel do protagonista para outro ator. Stallone, tão azarão quanto seu personagem, não tinha cara de ator de Hollywood. Mas bateu o pé e ficou com o papel, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar em 1977. Essa conexão com Rocky é visível. Stallone está super engraçado, comovente quando precisa, sem medo de rir de si mesmo e muito fofo — adjetivo talvez inusitado para Stallone, mas fazer o quê, é verdade. Os prêmios são merecidos. Rocky ainda é o cara.

Michael B. Jordan e Sylvester Stallone
Michael B. Jordan e Sylvester Stallone

Mas a principal arma do filme é Coogler, que também assina o roteiro. De vez em quando “Creed” coloca um pé no piegas, mas o diretor nunca o deixa ficar cafona. É um filme sobre um boxeador azarão, é um filme de amor, é um filme sobre pai e filho — tudo isso foi feito muitas e muitas vezes. Mas o diretor dá a sua cara ao negócio e deixa “Creed” um pouco diferente daquilo que já vimos. Adonis treina correndo na rua e batendo em sacos de pancada, mas também se coloca em frente à imagem de seu pai lutando com Rocky num telão, imitando seus movimentos, e trava lutas contra sua própria imagem num espelho. São cenas simples, mas esteticamente bonitas. A luta final, então, é demais. Dá pra se sentir dentro do ringue. É difícil explicar por que, mas “Creed” dá a impressão de que estamos vendo algo novo, apesar da história pouco original.

Ava DuVernay, de “Selma”, recusou a direção de “Pantera Negra” dizendo sentir que não conseguiria fazer dele um filme seu. Talvez ela esteja certa e seja mais difícil fazer algo diferente e colocar sua marca em franquias, em histórias que todo o mundo conhece. Mas Ryan Coogler mostra que pode dar certo. Pode dar muito certo.

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O Frankenstein de Tarantino

Quentin Tarantino tem uma autoestima invejável. Em entrevista à revista “GQ” em dezembro, disse que queria ter mais Oscars de roteiro original que “qualquer um que já tenha vivido”. Quatro prêmios — um a mais que Woody Allen e dois a mais do que já tem — já seria o bastante. “E isso em dez filmes, para quando eu morrer eles nomearem o Oscar de roteiro original de ‘o Quentin’”, afirmou. Bem, se houver justiça no mundo, seu terceiro Oscar não virá de “Os Oito Odiados”. Seu principal problema, talvez, seja justamente o excesso de autoestima de Tarantino. Primeiro, faltam cortes ao filme — são três horas, o que por si só não é um problema, mas são três horas desnecessárias. Nem toda ideia do diretor merece estar na tela. E, mais importante, termina-se o longa com a sensação de já ter visto algo assim antes, na obra do próprio Tarantino. É uma grande reciclagem de ideias.

“Os Oito Odiados”, que estreia hoje (7), carrega um pouco de cada projeto de Tarantino. No filme, Kurt Russell é John Ruth, um caçador de recompensas que quer levar a prisioneira Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) para ser executada e embolsar uma bela quantia. Uma nevasca, no entanto, faz com que ele tenha que interromper sua jornada e procurar abrigo numa hospedaria com outros sete homens, todos igualmente misteriosos e “odiosos” (melhor tradução para o título original, “The Hateful Eight” do que “odiados”).

Samuel L. Jackson é Marquis Warren, também caçador de recompensas; Walton Goggins é Chris Mannix, o novo xerife local; Tim Roth é o carrasco Oswaldo Mobray; Brude Dern é Sandy Smithers, general que lutou na Guerra Civil americana do lado dos Estados Confederados; Demián Bichir é o mexicano Bob, que cuida da hospedaria na ausência da dona; Michael Madsen é o caubói Joe Gage e James Parks é o cocheiro O.B, o único ali que parece não ter interesses escusos. Pelo menos é isso o que cada um diz ser, de cara dá para ver que não se deve colocar a mão no fogo por nenhum deles.

Como em “Cães de Aluguel”, todos ficam confinados no mesmo espaço, ninguém (nem o espectador) sabe quem é confiável ou não e, como é de praxe com Tarantino, muito sangue é derramado até o fim do filme. Nem as reviravoltas chegam a ser muito surpreendentes se você viu o primeiro trabalho do diretor. De “Django Livre”, o filme tem um pé no faroeste, boa dose de sadismo e os impropérios racistas. De “Pulp Fiction”, tem a estrutura, com uma divisão de capítulos que não respeita a ordem cronológica e histórias que se amarram no fim. Como “Bastardos Inglórios”, tem a vingança como um dos temas principais.

Samuel L. Jackson em "Os Oito Odiados". Crédito: Divulgação
Samuel L. Jackson em “Os Oito Odiados”. Crédito: Divulgação

Basicamente, “Os Oito Odiados” é um Frankenstein de outros longas de Tarantino. Isso não torna o filme ruim ou chato (é bom deixar claro: ele não é). Seu maior problema talvez tenha sido o excesso de cenas cortáveis, que não são nem essenciais nem particularmente boas. Edição é importante e saber cortar é quase tão essencial quanto saber fazer. O ponto alto: o filme é lindo (lindo mesmo, é uma pena que tenha “O Regresso” como forte concorrente ao Oscar de fotografia). Há imagens muito bonitas na neve, cada cor no figurino dos personagens tem razão de ser e as cenas são muito amplas, o que dá uma sensação bem teatral de estar vendo um palco inteiro, em que todos atuam o tempo todo. As performances, aliás, também são ótimas e ajudam a segurar até os momentos meio modorrentos. Jennifer Jason Leigh, a única mulher do filme (parece regra nessa safra de potenciais indicados ao Oscar), é maravilhosa — ameaçadora, mordaz e poderosa, apesar de passar o tempo todo presa –, Bruce Dern é demais mesmo falando pouco e Samuel L. Jackson é Samuel L. Jackson, ame ou odeie.

Mas nos filmes do cineasta a surpresa é importante e os finais tendem a ser impactantes. “Os Oito Odiados” é construído para ter o mesmo impacto, espera-se que você saia com aquela sensação de “uau” e, caso você já tenha visto um Tarantino na vida, dificilmente será um caso. Se você tiver que levar um só filme do diretor para uma ilha deserta ou colocar numa caixa para gerações futuras acharem, não é a melhor escolha. Todos os originais são melhores que a cópia.

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‘Spotlight’ é o novo ‘Argo’

Quase seis meses antes do Oscar deste ano, ainda em setembro, um crítico da revista New York afirmou: “Spotlight” era o favorito a levar o prêmio de melhor filme. O tempo passou e o panorama continua parecido. Não dá pra dizer que o filme de Tom McCarthy esteja com a estatueta no bolso, mas se você quiser fazer uma aposta pouco arriscada, “Spotlight” é uma ótima opção. É, realmente, o típico filme pra Oscar: história real, elenco famoso (Michael Keaton, Rachel McAdams, Mark Ruffalo e por aí vai), personagens inspiradores. Não muito diferente de, digamos, “Argo” ou “O Discurso do Rei”, que carregam uma bênção e uma maldição: ok, levaram o Oscar, mas ninguém mais se lembra muito deles hoje. “Spotlight” tem cara de quem vai seguir o mesmo caminho.

Isso não quer dizer que o filme, que estreia na próxima quinta, não seja bom. Ele é. É pouco provavél que alguém saia arrependido por ter gastado duas horas do seu dia no cinema vendo “Spotlight”, o que é sempre uma vitória. Mas o filme não é essa coca-cola toda, apesar de ter uma nota de 97% no Rotten Tomatoes. Uma tese para explicar tanto confete: “Spotlight” foi feito sob medida para jornalistas. É aquele filme capaz de fazer um adolescente pensar “hum, talvez eu queira ser repórter”, que dá ao recém-formado a esperança de mudar o mundo com um texto e que faz repórteres e editores pensarem que, bem, talvez tenham escolhido a profissão certa. “Spotlight” é o sonho de quem trabalha em uma Redação.

 

Spotlight é o nome de uma equipe do jornal americano Boston Globe que existe desde a década de 1970 com liberdade para passar meses ou até anos investigando uma história, a fundo, sem ter que se preocupar com as notícias do dia em circunstâncias normais. Em 2001, em sua primeira reunião de pauta com os editores do jornal, o recém-chegado editor-executivo Marty Baron (Liev Schreiber) pede para que os jornalistas do Spotlight engavetem tudo o que estavam fazendo para se dedicarem a uma reportagem sobre um caso de pedofilia envolvendo um padre da cidade. Segundo uma colunista do jornal, um advogado local teria provas sigilosas de que o alto clero da Igreja Católica sabia e havia acobertado o escândalo. Baron quer essas provas para abalar o sistema.

Essa era só a ponta de um novelo desenrolado ao longo de meses pelos jornalistas Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams), Michael Rezendes (Mark Ruffalo), Walter Robinson (Michael Keaton) e Matt Carroll (Brian d’Arcy James). A apuração começa com um padre e vai crescendo, crescendo, até que eles chegam a uma lista de quase 90 padres molestadores de crianças. Durante meses os repórteres conversam com vítimas, com advogados que tinham a dimensão do problema e ajudaram a empurrá-lo pra debaixo do tapete, procuram padres, esmiúçam documentos, vão a bibliotecas, fóruns, gastam a sola do sapato na rua e vão ao jornal nos fins de semana para continuar trabalhando, num esforço que rendeu mais de 600 histórias.

É o jornalismo dos sonhos: contar histórias relevantes, que façam diferença na vida das pessoas, com tempo para investigar de verdade. Em suas pesquisas, a equipe percebe que boa parte das pistas estavam disponíveis para todos, ali mesmo no jornal, em pequenas matérias picotadas escondidas nas páginas internas dos cadernos, pras quais ninguém deu muita atenção. As mesmas evidências que eles encontravam tinham sido enviadas anos antes para outros jornalistas do Boston Globe e ignoradas. Só que ninguém havia juntado as peças para formar o quebra-cabeças. Não foi um furo de reportagem que caiu no colo de alguém: foi fruto de muito trabalho, árduo e pouco glamouroso. Não à toa, os repórteres do Spotlight ganharam o Pulitzer. Suas reportagens mostram, basicamente, como o jornalismo é importante. É um filme que deve agradar todos os públicos, mas, nesse sentido, é especialmente irresistível para a crítica.

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Michael Keaton e Mark Ruffalo. Crédito: Divulgação
Michael Keaton e Mark Ruffalo. Crédito: Divulgação

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De certa forma, “Spotlight” lembra “A Grande Aposta”, outro filme que provavelmente disputará o Oscar. São duas boas histórias reais, com elencos enormes cheios de coadjuvantes e nenhum protagonista (e, ressalte-se, quase nenhuma mulher), sobre pessoas que olharam ao redor e entenderam a dimensão verdadeira de algo importante.

Mas “A Grande Aposta”, que conta a história de um grupo de pessoas que previu antes do mundo a crise econômica de 2008 e enriqueceu com isso, é mais original. Adam McKay, que foi roteirista do “Saturday Night Live” e diretor de “O Âncora”, consegue transformar uma crise difícil de entender em algo compreensível e engraçado. O diretor tenta fazer algo diferente, como colocar famosos em situações esdrúxulas para explicar termos econômicos (Margot Robbie numa banheira tomando champanhe, Selena Gomez num cassino…), personagens quebram a quarta parede e o filme todo é salpicado de cultura pop.

“Spotlight” é legal? Sim. É bem feito? Sem dúvidas. Conta uma história relevante? Definitivamente. O elenco é bom? Muito. Vale o ingresso? Com certeza. Mas é quadradinho. Pode até ganhar o Oscar, mas não é lá muito marcante.

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O novo “Star Wars”: a crítica sem spoilers

Como alguém que assistiu recentemente às duas trilogias de “Star Wars”, na ordem de lançamento, minha expectativa para “O Despertar da Força” era baixa. A lembrança mais recente era a de Hayden Christensen em uma das piores atuações de todas as galáxias. Pra que mexer de novo nesse vespeiro? Não era melhor deixar a memória da trilogia original em paz? Depois de ver o sétimo episódio, a conclusão: ele está bem mais para trilogia original do que para a nova. Aliás, ele é muito (muito) parecido com o primeiro filme, “Uma Nova Esperança”.

Aqui vai só a premissa da história, o que acontece nos primeiros minutos ou já aparecia nos trailers, para ilustrar as semelhanças. Rey (Daisy Ridley) mora num planeta deserto e sabe pouco sobre sua família, até se envolver com o droide BB-8, que carrega em si uma informação importante para a rebelião. (Para quem não se lembra, Luke Skywalker também morava num planeta deserto, sabia pouco sobre sua família e se envolveu com a rebelião ao encontrar o droide R2-D2, que carregava uma informação importante.) Tem também o personagem que, como Han Solo, só quer salvar a própria pele até aderir à rebelião, um vilão mascarado que obedece a um vilão ainda maior e misterioso, heróis que não sabiam ser heróis até descobrirem a existência da Força.

[olho]Abrams apelou para a memória afetiva do público[/olho]

O diretor J.J. Abrams seguiu à risca a receita original de George Lucas e construiu uma história para aplacar a saudade dos fãs da série — numa das primeiras sessões do filme ouvia-se suspiros, gritinhos quando um personagem original como C-3PO aparecia e muitos bateram palmas. Outros tantos devem ter chorado (foi o caso de um amigo, pelo menos). Abrams apelou para a memória afetiva do público.

Mas seguir os passos de “Uma Nova Esperança” não seria garantia de nada e a receita poderia ter desandado. “O Despertar da Força” é um filme divertido, às vezes bem engraçado — Poe Dameron (Oscar Isaac) é um dos destaques nesse sentido. Não tem nenhum personagem tonto e irritante, como Jar Jar Binks, o que é sempre um motivo de comemoração. Os atores novos são bons, infinitamente melhor que os intérpretes de Anakin Skywalker ou mesmo Natalie Portman, bem ruim como a Padmé Amidala nos três primeiros episódios.

E o mais importante: os personagens novos são legais. Leia já era uma boa heroína, inteligente, corajosa e hábil com uma arma. Mas era apenas uma mulher num mar de personagens masculinos e ela foi colocada num biquíni dourado e escravizada por uma lesma gigante (que os fãs mais fervorosos de “Star Wars” perdoem a descrição) até ser resgatada por Luke. Rey tem a companhia de outras ótimas personagens femininas: a própria Leia, Maz Kanata (Lupita Nyong’o), e até uma vilã, a capitã Phasma (Gwendoline Christie). Se Luke tem um contraponto nessa trilogia nova, é Rey, a verdadeira protagonista e heroína da trama. Finalmente uma mulher (vamos descontar aquelas que não falam e só fazem figuração) pega num sabre-de-luz! O vilão, Kylo Ren (Adam Driver), não é nenhum Darth Vader, mas é complexo e tem potencial. E Driver, com aquela voz profunda, nasceu para fazer esse papel.

[olho]Os anos passaram e tudo praticamente voltou ao início[/olho]

O filme não é perfeito. Quem assistiu a “O Retorno de Jedi” e nunca mais parou pra pensar ou voltou ao universo de “Star Wars” pode não entender direito como fomos da festa dos ewoks para comemorar a derrocada do Império à guerra que vemos no início. Os anos passaram e tudo praticamente voltou ao início, com os rebeldes em desvantagem na luta contra os vilões. A motivação de alguns personagens também é um pouco nebulosa e não há exatamente uma conclusão. Na trilogia original, cada filme tinha um arco próprio e um fim de verdade. “O Despertar da Força” é um episódio inicial de algo maior, não amarra várias de suas pontas e deixa muitas dúvidas no ar.

Falta originalidade ao roteiro? Talvez. Mas, de qualquer forma, “O Despertar da Força” é um filme bem, bem legal, e apaga o gosto amargo que “A Vingança dos Sith” tinha deixado na boca. Já é um mérito e tanto.

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O novo “Star Wars”: a crítica com spoilers

Aviso importante: esse texto tem spoilers. Não muitos, porque o filme não se presta a isso, a verdade é essa, não acontece nada que se voce souber vai estragar sua experiência. Bem, acontece uma coisa, e eu vou ter que contar no final. Afinal, Luke Skywalker está vivo? Se bandeou para o Lado Negro? Vai ser encontrado? Essa é a única questão que você precisa chegar no cinema sem saber. E sim, esse texto tem essa informação.

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“O Despertar da Força” começa de maneira quase idêntica a “Uma Nova Esperança”. Sabe-se lá por que, os rebeldes, que tinham ganho a briga no fim de o “Retorno de Jedi”, parece que não ganharam, e são, de novo, rebeldes. O Império agora se chama Primeira Ordem, e briga com a República. Sim, começa complicado. Os caras que tinham ganho não ganharam, ninguém explica direito como isso se deu, e o Império, que na verdade era a República, já que apareceu quando fecharam o Senado (que era a República), aquela coisa toda, agora briga com a República que… tinha deixado de existir quando o Senado Imperial apoiou o Palpatine.

Aceitemos, então, que a segunda trilogia nunca aconteceu, já que esta parece ser a grande mensagem de J. J. Abrams ao mundo, e que portanto República e Império podem co-existir — e brigar.

O Império, de novo, tem um único objetivo: acabar com os Jedi. Os rebeldes, de novo, têm um objetivo: achar os Jedi porque eles podem salvar o universo. Repare: o uso do “de novo” aqui não é acidental, porque a sensação de “de novo” é constante, é ela que domina 99% do filme.

Se não vejamos: o filme começa, de novo, com alguém colocando uma mensagem secreta dentro de um dróide. Que, de novo, se perdeu de seu dono, e precisa ser levado de volta aos rebeldes. BB-8 é um dróide pra lá de bacana, mais bacana até do que R2-D2, mas, mesmo assim, é um dróide com uma mensagem secreta que precisa ser levado de volta para os rebeldes. De novo, esse dróide cai, num passe de mágica, nas mãos de uma pessoa que “tem a Força”, embora você, de novo, não saiba disso até um pouco mais na frente no filme.

[olho]Aceitemos, então, que a segunda trilogia nunca aconteceu, já que esta parece ser a grande mensagem de J. J. Abrams ao mundo[/olho]

Beleza, vou parar com o “de novo” agora, porque aqui começam algumas diferenças entre o primeiro filme e o novo. Primeira coisa: tudo acontece rápido demais. Se no “Guerra nas Estrelas” original demora um tempo até Luke encontrar Obi Wan, decidir segui-lo, perceber que tem um poder etc., neste tudo acontece rápido demais, como se o filme devesse ter quatro horas mas só pudesse ter duas.

Enfim, o dróide está com um piloto, o melhor piloto da frota rebelde, ele é capturado, deixa o dróide pra trás, e depois é resgatado por um Stormtrooper arrependido. Esses caras fogem, e caem no planeta Jakku, de espetacular nome — o mesmo onde o piloto havia deixado o dróide. Ali, os espera Rey, que era, até então, uma catadora de lixo. Ou melhor: Rey só encontra o Stormtrooper, Finn, já que o piloto desaparece. Rey estava com o dróide, diga-se, ele apareceu um dia na esquina da casa dela.

Aqui temos que começar com o “de novo” de novo, porque , quando vão escapar de Jakku — porque sabiam que a Primeira Ordem queria pegar BB-8 –, eles encontram uma nave abandonada. Que é, simplesmente, a Millenium Falcon.

Não é que eu não esteja disposto a deixar espaço para a fantasia, certo? Se você não aceita que existe naquele universo algo que se chama “A Força”, e que isso não só é normal como é legal, nem deveria ir ao cinema. A questão é que os elementos fantásticos da primeira trilogia — robôs rodando na areia — se apóiam em uma narrativa coerente e consistente. Algumas coisas acontecem “por acaso”, e isso é OK — na vida coisas acontecem por acaso. Mas o dróide ser encontrado por alguém que tem a Força já é um acaso. Essa mesma pessoa achar uma nave espacial abandonada e ela ser a Millenium Falcon já começa a ser acaso demais. Vamos deixar pra lá o fato de que Jakku é quase uma cópia de Tattooine.

Tudo é rápido demais quando Rey e Finn são interceptados por Han Solo e Chewbacca. De repente, estão todos em um planeta “fora do sistema”, e Rey é “atraída” pelo sabre de luz de Luke, que estava escondido por lá — sério. E, ao tocá-lo, começa a ter visões.

Neste momento, já conhecemos o vilão, ou melhor, os vilões. O novo malvadão master é um Golum gigante, e eu juro pra você que quando anotei isso no cinema eu não sabia que era o mesmo ator que fez o Golum. O novo Darth Vader é filho de Han Solo com a princesa Leia, e presta homenagens ao capacete queimado de Darth Vader — também sabe-se lá por quê. Sua passagem para o lado negro não é clara, mas quero acreditar que isso vai ficar claro nos próximos filmes. Assim como não é claro porque Luke Skywalker se isolou, e se escondeu, e aí temos o argumento central da história, que se desenrola como uma busca por ele: o Império, para eliminá-lo, e com isso acabar com “o último Jedi”, e os rebeldes, para trazê-lo de volta, para que ele possa treinar “a próxima geração Jedi”.

Porque Luke se esconde é o ponto fraco do enredo. Em tese, porque estava treinando o filho de Leia — e outros Jedi –, cujo nome, aliás, é Kylo Ren, e Ren se revoltou e quebrou tudo. E virou malvado, por algum motivo. Sério? O cara está treinando a próxima geração de bonzinhos, aí um vira mau, e o que ele faz é falar “aí, fodam-se, fui!”? Não cola.

Mas voltemos à história: o Império então invade esse planeta para pegar BB-8, não pega, mas captura Rey. Finn, que estava vazando da batalha, então volta e vai junto com Han Solo procurar por ela. Eles fazem uma parada na base dos rebeldes, que é quando aparece a Princesa Leia (que agora se chama General alguma coisa, não vou procurar o nome, é a Princesa Leia). Os rebeldes, então, são descobertos pelo Império, que vai usar contra eles sua nova grande arma. Isso, de novo, eu esqueci do “de novo”, porque a arma é nada mais do que uma Estrela da Morte muito maior, e eu posso dizer pra você, do alto de quem montou uma Estrela da Morte de Lego, que essa daí eu não vou montar nem fodendo, amigo, é dez vezes maior. Mas não passa de uma Estrela da Morte, inclusive por dentro, inclusive, de novo, vai ter a cena em que a Rey tem que passar de um lado para outro mas não tem ponte. Sério!

E aí qual é a história de novo? Os rebeldes têm que entrar lá, desarmar o escudo protetor e depois atirar no oscilador para destruir a arma de novo! E de novo os caras conseguem! De novo não tem ninguém protegendo o escudo, basta render uma pessoa, que estava desacompanhada andando tranquila pela estrela, pra desarmar tudo. É absolutamente fácil demais.

Nesse momento do ataque, de novo, no planeta também estão rolando uns fights. Finn, que era só um Stormtrooper fugitivo, enfrenta Kylo Ren, que tem a Força e é do Lado Negro, com o sabre de luz, e dá briga! E Rey, que tinha a força mas tinha acabado de ficar sabendo, usa ela como um velho Jedi, escapa dos vilões e no final derrota Kylo Ren numa briga rápida e chinfrim.

E então aparece um mapa para Luke! Assim, de repente. Um mapa! Não há uma jornada para achar o cara, uma aventura. A aventura é outra, é para salvar “o mapa”, que na verdade era só metade do mapa. Quando essa metade é salva, a outra aparece miraculosamente — estava dentro de R2-D2 — e em cinco minutos acharam o Luke. Mas… se o cara queria se esconder, por que deixou o mapa dentro do robô?

***

A primeira grande briga que tive com o meu melhor amigo foi quando ele tentou estabelecer algum tipo de semelhança entre a filosofia de “Matrix” e a série “Guerra nas Estrelas”. Faz tempo, fumava-se muita maconha na época e eu já perdoei ele, mas não foi fácil. Matrix é apenas uma boa idéia, talvez até uma excelente idéia, transformada em um filme de ação mais ou menos. Não há qualquer tipo de “filosofia” ali pelo simples fato de que é tudo explícito, explicado, raso. Não é, evidentemente, o caso da primeira trilogia de Star Wars. E é, evidentemente também, o caso da segunda trilogia. O primeiro filme da primeira trilogia era um filme de ficção científica doidão, feito para adultos e que podia ser entendido, e apreciado, por adolescentes e crianças. A segunda trilogia era um caça-níqueis feito para inspirar produtos e videogames em que tudo tinha que ser explicado. É por isso que ela é uma bosta, e a primeira é sensacional.

Deste ponto de vista, faz sentido “matar” a segunda trilogia e fazer um esforço para afirmar a nova fase como uma continuação da primeira, O problema é que “continuação” não é a mesma coisa que “repetição”. Ao não querer se desprender do original, J. J. Abrams não se afasta o suficiente dele. Faz o mesmo filme, com detalhes diferentes. O que é frustrante, e só pode ser entendido se considerarmos que estamos falando apenas de uma base para uma nova trilogia. E que o segundo e o terceiro filme vão trazer a história nova, que ainda não apareceu.

Da maneira como termina esse Episódio VII, podemos até supor que o Episódio VIII será tão somente o próximo Episódio IV, mas com Luke treinando Rey no lugar de Yoda treinando Luke.

Não vou tentar convencer você de que eu vi Star Wars em 1977 porque deve haver em algum lugar uma menção ao fato de que eu nasci em 1973, e o filme não faria muito sentido para um moleque de 4 anos. Em 1983, porém, quando foi lançado “O Retorno de Jedi”, eu vi no cinema — e já tinha assistido os dois anteriores. É claro que minha primeira relação com o filme, aos dez anos, foi diferente da que tive depois, aos 12, aos 16, mas há uma diferença significativa para quem viu o filme pela primeira vez muitos anos depois: a primeira vez que vi Yoda, eu não podia ter idéia de que aquele era um mestre Jedi. Eu não sabia que Darth Vader era o pai de Luke Skywalker até o final de O Império Contra Ataca, e mesmo assim, certeza mesmo só no terceiro filme. Star Wars, para mim, não é uma experiência cinematográfica, sou pretensioso, tenho ambições intelectuais, cinema é cinema, eu curto, Star Wars é uma outra parada, é um universo. Você não compra uma camiseta, um chaveiro do Yoda, uma mochila do R2D2 porque Star Wars é seu filme preferido, mas porque aquele universo fez sentido pra você, te capturou.

Nesse sentido, a segunda trilogia é decepcionante para o público adulto também bastante por isso: não há nada de cativante ali, tirando talvez o visual do planeta Naboo – embaixo e em cima d’água.

A nova trilogia de Star Wars está no universo certo, tem a temperatura, o clima certo. Mas precisa acrescentar algo, criar algo. Não pode ser só um “Star Wars para chamar de meu” dessa geração. Este primeiro filme absolutamente não faz isso. Que ele seja, portanto, só uma caracterização, uma maneira de (re) estabelecer o clima, o ambiente. Porque se for só isso que foi até aqui, terá sido bastante decepcionante.

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Crítica Televisão

Jessica Jones, a anti-heroína

Das séries inspiradas em personagens da Marvel e da DC Comics, “Jessica Jones” é a com menos cara de série de super-heróis que existe. Jessica é a mais humana das heroínas. Não tem uniforme, não quer salvar ninguém, não usa um codinome e não explica direito como ganhou seus superpoderes. Seus poderes, aliás, nem são tão super assim. Ela é forte o suficiente para parar um carro em movimento (em baixa velocidade, ela ressalta) e pula bem alto. E é meio que isso. Sem ofensa às produções de heróis, talvez por esse motivo “Jessica Jones”, que estreia na sexta (20) no Netflix, seja uma das melhores do gênero.

A própria escolha de Jessica para protagonizar uma série é interessante. Diferente do Demolidor, que também ganhou uma série do Netflix neste ano, ela é pouco conhecida pelo público não iniciado nos quadrinhos. Criada por Brian Michael Bendis em 2001, ela aparece pela primeira vez na história “Alias” já como uma heroína aposentada, que trabalha como investigadora particular, em um dos quadrinhos mais adultos que a Marvel já fez.

Nas páginas dos quadrinhos, aos poucos, sua história sombria foi revelada. Colega de Peter Parker — o Homem-Aranha — na escola e apaixonada por um dos membros do Quarteto Fantástico, ela fez parte dos Vingadores usando o nome Safira durante um tempo. Sua trajetória mudou quando ela conheceu o vilão Zebediah Kilgrave — o Homem-Púrpura –, capaz de controlar a mente das pessoas e fazer com que elas obedeçam a todas as suas ordens, mesmo as mais macabras. Quando ele ordena que Jessica assassine o Demolidor, ela quase é morta pelos Vingadores e, depois disso, decide aposentar o uniforme e tentar levar uma vida normal.

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Marvel's Jessica Jones
Jessica Jones dando o famoso enquadro. Crédito: Divulgação

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Na série (ou pelo menos em seus sete primeiros episódios, que o Netflix liberou para a imprensa), não há nada desse preâmbulo. No primeiro capítulo Jessica (Krysten Ritter) já aparece como investigadora e seu passado como super-heroína quase não é mencionado. Sabemos de cara que ela só se veste de preto, vive em seu escritório mal-ajambrado, bebe muito e tenta afastar os poucos amigos que tem. Como nos quadrinhos, sua trajetória é trágica e tem o dedo de Kilgrave (David Tennant).

Em seu primeiro caso na série, um casal a procura para pedir que encontre a filha, uma atleta universitária que desapareceu. Durante a investigação, Jessica acaba chegando a Killgrave, que ela acreditava estar morto. Diferente da HQ, Kilgrave não tem a pele roxa. No início, inclusive, ele mal aparece e fica sempre encoberto por sombras. Mesmo assim, sua simples presença assusta bem mais do que qualquer vilão fortão de séries como “The Flash” ou “Supergirl”.

Se o embate com Kilgrave fosse físico, Jessica teria chances. Mas é psicológico e, fora a força, Jessica é uma pessoa normal, vulnerável, suscetível a esse tipo de abuso, sobre o qual ganhamos mais detalhes a conta-gotas. O que Kilgrave consegue fazer com suas vítimas é aterrorizante. Ver o Super-Homem em ação é previsível. Ver Jessica Jones, nem um pouco. Tanto pelo fato de ela não ser invencível como pelo fato de não ter só bondade no coração e tomar decisões questionáveis. Ela é uma mistura curiosa de herói com anti-herói. Em vez de tentar salvar Nova York ou o mundo, Jessica quer salvar a si mesma.

Uma boa produção de super-herói precisa de um bom vilão. O de “Jessica Jones” é excelente. Durante a temporada, Jessica enfrenta só um inimigo, mas é um inimigo tão poderoso, que fez tão mal a ela, que você quase torce para que ela não chegue perto dele. É como ver o mocinho procurar o monstro num filme de terror. Sem saber quem está dominado por Kilgrave ou onde ele está, paira um clima de filme de terror na série. O impulso é gritar toda hora para que Jessica não abra a porta ou não vire aquela esquina. Da trilha sonora à paranoia da protagonista e à pouca luz, tudo contribui para deixar a série mais tensa a cada episódio.

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Crítica

O final sombrio de ‘Jogos Vorazes’

Desde que o último livro da série “Harry Potter” foi dividido em dois no cinema, em 2010, outras sagas best-seller para “jovens adultos” — “Crepúsculo”, “Divergente” e “Jogos Vorazes” — seguiram o mesmo caminho. Faz sentido para os estúdios, que aproveitam mais um ano de grandes bilheterias, mas não muito para os espectadores. O primeiro filme geralmente sai prejudicado: é devagar, anticlimático, cheio de cenas que poderiam muito bem ter caído na sala de edição. É o caso de “Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1”, do ano passado, o mais fraco da série.

Aviso: este texto contém spoilers do filme.

Felizmente, “Jogos Vorazes: A Esperança – O Final” é bem melhor. Talvez seja, inclusive, o melhor da franquia. O longa começa praticamente do ponto onde parou a primeira parte, como se fosse um filme só e o espectador tivesse feito uma pausa para ir ao banheiro e beber uma água que se estendeu por um ano. Não há uma cena de contexto ou nada que ajude a lembrar o que aconteceu no filme anterior. O bonde já está andando, e rápido — o que pode ser um choque (a pergunta “quem é esse cara mesmo?” pode passar algumas vezes na cabeça de alguém menos apaixonado pela franquia).

Em pouco tempo, porém, o estranhamento passa. O ritmo continua rápido no resto do filme, mas isso é uma qualidade. “O Final” mistura bem os pontos fortes de seus antecessores: a ação e a tensão dos jogos vorazes dos primeiros filmes com a trama política do terceiro. Um breve resumo para quem precisa: depois de ser resgatada da arena da 75ª edição dos jogos — em que os participantes devem se matar até que só sobre um vencedor –, Katniss (Jennifer Lawrence) vira um símbolo da rebelião contra a capital de Panem e seu presidente, Snow (Donald Sutherland).

Após passar “A Esperança” escondida, gravando propagandas para estimular a revolução e esperando o resgate de Peeta (Josh Hutcherson), sequestrado pela capital no fim dos jogos, Katniss finalmente parte para a ação. Com outros rebeldes ilustres, como Gale (Liam Hemsworth), Finnick (Sam Claflin) e o próprio Peeta, Katniss parte para a capital com uma equipe de vídeo encarregada de filmá-los em ação a tiracolo. Como sempre, porém, ela desobedece as ordens que tem e resolve ir atrás de Snow para matá-lo por conta própria.

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Jennifer Lawrence como Katniss. Crédito: Divulgação
Jennifer Lawrence como Katniss. Crédito: Divulgação

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Nesse trajeto, “Jogos Vorazes” mostra que é um bom filme de ação, capaz de agradar a todos os públicos, inclusive quem torce o nariz para a literatura de “jovens adultos” e suas franquias distópicas. Enquanto tenta chegar até Snow, o grupo se depara com armadilhas dignas das arenas de jogos vorazes: bombas, pisos que desabam com o toque, armas que disparam ao sentir a presença de alguém, avalanches de lama, muros que sobem do nada e fecham passagens, bestantes (animais geneticamente modificados pela capital) furiosos.

O perigo está sempre ali do lado — literalmente, já que Peeta sofreu um tipo de lavagem cerebral durante o sequestro e tenta matar Katniss sempre que pode. Depois de um filme menos movimentado, a ação é bem-vinda. Até porque é bem executada (pense na batalha final de “Harry Potter”. É o oposto).

ZONAS CINZENTAS

Mas “A Esperança” é mais que um filme de ação: é um filme político. “Star Wars” ou “Harry Potter” também falam da luta de rebeldes contra vilões em prol da democracia e da igualdade, por exemplo, mas “Jogos Vorazes” mostra também os efeitos dessa guerra nas pessoas e as zonas cinzentas que há nessa batalha. É uma trama mais próxima da realidade. Katniss não é, como Harry ou Luke Skywalker, “a escolhida” ou predestinada a nada. É uma garota razoavelmente comum, que, por circunstâncias além do seu controle, se torna líder de uma revolução. Como uma pessoa normal numa situação dessas, às vezes ela surta, chora, diz que não consegue ser o modelo que todos esperam, trava.

Não é o ideal de herói, mas é alguém com quem o público consegue se identificar. Katniss tem várias camadas, que Jennifer Lawrence leva bem para a tela — não dá pra dizer o mesmo das outras pontas do triângulo amoroso que ela forma com Peeta e Gale. Justiça seja feita, Hutcherson está bem melhor nesse filme que nos outros, retratando as consequências psicológicas de ter sido torturado pela capital.

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Jennifer Lawrence e Liam Hemsworth
Jennifer Lawrence e Liam Hemsworth. Crédito: Divulgação

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O filme também mostra como até pessoas que lutam do mesmo lado podem ter opiniões diferentes. Para Gale, por exemplo, todos que não se rebelaram estão automaticamente aliados à capital e merecem morrer — e para atingir esse fim todos os meios são válidos. Katniss, por outro lado, não acha que na guerra vale tudo e é contra matar civis. São dois “mocinhos” e duas posições opostas.

Por pensar assim, Katniss quase perde a vida. A cena é interessante: ao destruir o local onde um distrito pró-capital guardava suas armas, ela pede para que uma passagem seja aberta para que quem quiser se render possa sair de lá. Um desses homens, em quem ela não quer atirar, a coloca na mira de sua arma. Por que ele deveria poupar sua vida, ele pergunta. Não foram os rebeldes quem destruíram seu distrito e mataram seus companheiros? Katniss não tem explicação para lhe dar e responde: “Não sei”.

Aos poucos ela descobre também que os objetivos da líder dos rebeldes, Alma Coin (Julianne Moore), não são tão nobres assim. Entre essas sagas para jovens adultos, “Jogos Vorazes” é provavelmente a menos maniqueísta. Katniss e Peeta, por exemplo, matam quando precisam para sobreviver e (mais ela do que ele) não são imunes à vontade de se vingar, da forma que for.

É um filme sombrio, mas o que esperar de uma série que tem como premissa prender 24 crianças numa arena cheia de armas e armadilhas até que só uma delas sobreviva?