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Entre os muros da escola de música

Em uma estreita rua no bairro do Ipiranga, já perto de Heliópolis, um prédio grande chama a atenção entre as vendinhas e casas. Crianças não param de entrar: sozinhas, em duplas, acompanhadas pelos pais, ou vindas de um grande ônibus amarelo que para ali na frente de tempos em tempos, levando e trazendo crianças do bairro, passando pela entrada da favela até chegar ali. É lá que fica, desde 2005, o Instituto Baccarelli, que dá aulas gratuitas de música para 1.300 jovens, boa parte vindos da comunidade vizinha.

O Instituto, criado em 1996 pelo maestro Silvio Baccarelli, é inspiração para o filme “Tudo que Aprendemos Juntos”, que estreia hoje (3). Nele, Lázaro Ramos é um violinista talentoso que trava na hora de uma importante audição para a Osesp e, sem outro trabalho, aceita dar aulas na favela de Heliópolis para um grupo de 25 adolescentes que se prepara para uma apresentação para uma ONG.

Não é propriamente um filme “baseado em fatos reais”, mas tem uma proximidade grande com o trabalho do Instituto. Parte dos jovens atores vem, inclusive, de suas salas de aula, escolhidos através de testes. É o caso de Thais Plastina, contrabaixista de 22 anos, e Lucas Andrade, flautista de 20, que hoje fazem parte da Orquestra Sinfônica de Heliópolis e fazem sua estreia no cinema. Os dois eram estudantes do Instituto quando a equipe do diretor Sérgio Machado passou por lá fazendo testes, já que queria que todos os atores fossem músicos da comunidade — Lucas mora em Heliópolis e Thais, no Jardim Patente, ali perto.

 

Coral do Instituto Baccarelli
Coral do Instituto Baccarelli

O primeiro contato de Thais com a música foi por meio de um teclado dado pelo avô, que o pegou depois que alguém o jogou fora. Era tão pequenininha que nem se lembra ao certo de quando foi. Só diz que aquilo nunca foi um hobby. Desde que encostou num instrumento, soube que era aquilo que queria fazer, apesar de não ter nenhum músico na família. “Foi um susto pra eles, mas dei a cara a tapa. Era isso que eu queria.”

Ainda criança começou a cantar na igreja. Aos 14 anos, uma amiga da escola falou do Instituto, que dava aulas gratuitas de música. “Eu nem acreditei. Precisei vir ver”, diz, um dia antes da estreia do filme numa sala de aula do Instituto. Ela queria aprender a tocar cello, mas não passou no teste. A mesma amiga sugeriu que ela tocasse contrabaixo como ela, já que seu professor tinha vagas. “Pensei que depois mudaria de instrumento, mas depois você se apega. Gostei da frequência grave. Brinco que o contrabaixo me escolheu.” Para pagar seu instrumento, vendeu trufas durante um ano no Instituto.

Lucas entrou no Instituto ainda mais novo, aos oito anos — há aulas de musicalização para crianças desde os quatro anos de idade –, quando a sede ainda ficava na Vila Mariana, na casa de Silvio Baccarelli. Ele dedilhava um violão encostado em casa, até que o levaram ao Instituto. Começou na percussão e odiou. Pensou em deixar as aulas, até que ouviu uma aula de flauta e se apaixonou. Hoje, toca flauta transversal e piccolo, também da família das flautas.

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FOGO EM HELIÓPOLIS

No filme de Sérgio Machado, o professor de violino que desperta nos alunos da comunidade a paixão pela música chega lá a contragosto e não tem intenção de criar raízes. Seu objetivo é ganhar tempo enquanto não passa em outra audição para a Osesp. Na vida, foi diferente. O Instituto foi criado pelo maestro depois de um incêndio ter atingido Heliópolis. Ele viu aquilo pela televisão e quis ajudar a comunidade de alguma forma. Procurou uma escola pública da região e passou a ensinar instrumentos de orquestra a um grupo de 36 alunos em seu próprio imóvel.

Anos mais tarde, a Prefeitura lhe cedeu um terreno. A organização Pró-Vida construiu o primeiro prédio, com três andares e salas de aula e ensaio. Suas paredes são levemente curvas, o que é quase imperceptível aos olhos, para que a acústica seja a melhor possível. Um segundo prédio foi construído pela Eletrobras.

Hoje, os corredores andam cheios de crianças, que correm em grupos pelos corredores. Até chegar na porta da sala de aula. Enquanto cerca de cem jovens — de pequeninos a já adolescentes — ensaiam uma apresentação do coral com músicas de Natal para a Catedral da Sé, três meninas quietinhas olham pelo vidro e se perguntam se podem entrar, só para assistir.

Dentro das salas, as aulas são levadas a sério. Em um momento, o maestro interrompe a apresentação, quando o coral já está acompanhado por uma orquestra, e aponta para um grupo: “Ou vocês me ajudam ou saem. Não é a primeira vez que vejo vocês dando risada”. Filmados para um canal de TV, os músicos falham. O maestro para o ensaio: “Não tem TV aqui. Somos só nós aqui”. A concentração volta.

Mais de mil alunos hoje são de Heliópolis. Há dois jeitos de entrar no Instituto: para aqueles que estão iniciando e querem aprender um instrumento, é preciso ser morador da região e estar matriculado em uma escola pública. Quem tem um nível avançado de algum instrumento sinfônico pode fazer um teste para as Orquestras Juvenil e Sinfônica de Heliópolis, as únicas que permitem membros de fora da comunidade. Regida por Isaac Karabtchevsky é composta por alunos avançados do Instituto. Pelo quinto ano consecutivo, a Orquestra teve uma temporada regular de concertos na Sala São Paulo.

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DEDICAÇÃO TOTAL

Quem toca nas orquestras continua tendo aulas no Instituto e a rotina, dizem Thais e Lucas, é puxada. Há uma aula individual semanal de instrumento, há aulas de naipes e ensaios com a Orquestra. A partir de uma idade é preciso escolher entre levar o instrumento a sério e fazer outras atividades. Lucas dançava num grupo em São Caetano e o largou — assim como as aulas de computação e o futebol. O único momento em que deixaram os estudos um pouco de lado foi durante a gravação do filme, em 2012.

Todos os membros do elenco tiveram de fazer aulas no Instituto. Lucas também passou por algumas dificuldades, já que em “Tudo que Aprendemos Juntos” ele toca viola, e não flauta. “Nunca tinha tocado. Como a gente é músico, tem uma noção. Mas foi punk aprender”, conta. Hoje diz que só pega o instrumento de vez em quando. Para Thais, uma das dificuldades foi “dublar” seu instrumento. As músicas eram gravadas previamente em estúdio, pelas orquestras do Instituto, e ela tinha que fingir tocar em cena, sem encostar nas cordas. “Só fazendo aquela cara de quem está tocando”, brinca Lucas.

Embora o Instituto Baccarelli não apareça no filme, os dois dizem que ele está lá o tempo todo. As músicas foram tocadas por seus alunos, os professores deram aulas a todos do elenco (inclusive ao diretor, que diz ter sido um desastre como músico) e há muito deles mesmos ali. Tem um pouco de improviso? “Um pouco?”, Thais gargalha. “A gente não tinha roteiro!”, completa Lucas. Eles explicam um pouco melhor: Sérgio Machado tinha alguma ideia de como a cena iria se passar, mas a partir disso a bola estava com ele.

Em uma cena, Laerte, o personagem de Lázaro, pega um papel que circula entre os alunos e vê que ali estão escritas as notas da música, não como notas numa partitura, que eles não sabiam ler, mas por extenso: dó, ré, mi… Ele pergunta o que é aquilo. “O Joabe estava lá só pra acompanhar e diz: ‘ué, são notas, professor’. A gente queria dar risada, mas não podia”, lembra Lucas. Também em uma cena de sala de aula, Laerte diz que eles passarão a ter aulas de sábado. Os alunos debatem: alguns trabalham, outros têm que ajudar em casa, nem todo o mundo pode… Até que uma das meninas faz um desabafo emocionado sobre a importância daquelas aulas em sua vida. Tudo verdade, tudo espontâneo.

Lucas diz que todos os meninos do filme viraram irmãos. Ver o resultado nas telas foi o momento mais emocionante de sua vida, conta. “A gente se emociona muito com a mensagem. É um trabalho muito bonito. E se ver num trabalho desses…”, diz Thais. “A pena é que a gente vai concorrer com ‘Star Wars’.”