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Sertão em ritmo de HQ

Criado em São Paulo, Homero Olivetto passava os verões com os avós em Aracaju, no Sergipe, ouvindo histórias do cangaço e de Lampião. Enquanto estudava em Salvador, ouvindo mangue beat, escreveu 20 anos atrás um conto que mistura suas experiências por essas diferentes cidades do Brasil. Em 2006, transformou a história no roteiro do filme de ação “Reza a Lenda”, uma história do sertão embalada numa roupagem bem pop. “É um universo de história em quadrinhos”, tenta explicar Cauã Reymond, o dúbio protagonista Ara.

Os primeiros minutos do filme, com estreia prevista para janeiro, são uma síntese do que vem pela frente. Duas amigas viajam à noite por uma estrada de terra no Nordeste, quando cruzam com um bando de motoqueiros perseguidos pela polícia. As motos passam zunindo pelas laterais do carro, a motorista consegue desviar de uma viatura, que capota e pega fogo, mas colide com a outra. É um filme de ação. Em seguida vem um letreiro explicativo. Reza a lenda, diz o texto, que a imagem de uma santa seria capaz de fazer chover no sertão ao ser colocada no lugar certo. Existe um bruxo que sabe dizer onde está a tal santa e para onde ela deve ser levada. Mas para que ele revele seus segredos, é necessário pagar um preço. É também um filme sobre fé.

Ara é um menino órfão quando conhece Pai Nosso (Nanego Lira), líder religioso que quer ver o milagre da santa e reúne um grupo de crianças, a quem ensina sobre a fé, para realizar a missão. Já na pele de Cauã, Ara integra o tal grupo de motoqueiros armados que rouba a santa do poderoso Tenório (Humberto Martins) depois de assassinar boa parte de seus capangas. Tenório — cujo pai matou sua mãe, fez buchada com suas tripas e serviu o prato a um grupo de convidados — não deixa barato e, para achar a gangue, deixa uma trilha de mortos em seu caminho, e amarra pedaços de seus corpos em balões de São João. Tanto Ara quanto Tenório são religiosos e nenhum dos dois hesita em matar em nome da santa.

Ao duelo dos dois se soma um triângulo amoroso, que envolve Severina (Sophie Charlotte), parte do grupo de Ara e Pai Nosso, e Laura (Luisa Arraes), sobrevivente do acidente de carro que inicia o filme mantida como refém pelos motoqueiros. Mas nem de longe é um filme romântico. Tem quase mais cenas de sexo na terra seca do sertão do que diálogos (“É o personagem mais silencioso que já fiz”, diz Cauã).

LADO POP

Segundo Homero, o filme é todo construído com base na realidade, em pesquisas feitas no local. “A seca existe, as estradas estão lá, as motos substituíram os cavalos. O lado pop da coisa é muito mais de linguagem do que o que está sendo contado. O que está sendo contado é real, é o que está lá. Mesmo a parte estética, como a roupa dos motoqueiros, foi construída a partir do tempo que a gente passou lá”, diz o diretor. “A gente colocou uma lente das nossas referências pop e ampliou. Foi essa a brincadeira que a gente fez. Era importante estar baseado na realidade pra criar essa fantasia. Até pra humanizar os personagens, pra entender as escolhas deles.”

O cenário é o sertão, mas o ritmo do filme muitas vezes lembra uma história em quadrinho ambientada na cidade. A trilha sonora, por exemplo, é bem urbana. “Ela tem uma função narrativa, porque eu queria fazer um sertão fantasioso e moderno. Queria tentar mostrar um lado diferente”, diz Homero. “A ligação afetiva que eu tenho do sertão como as minhas referências de paulistano, onde fui criado, me deram a ideia de fazer essa mistura. Me pareceu bem normal, orgânico”, conta. “Achei o máximo poder fazer um filme tão diferente. É novo. Não lembro de nenhum filme assim no Brasil”, diz Sophie.

Cauã e Luisa passam boa parte do filme montados numa moto que cruza o terreno deserto — ela quase sempre sem capacete na sua garupa. O ator tirou a habilitação para poder pilotar a moto, mas diz que “não adiantou muito”. “Logo que a gente começou a filmar eu tomei um tombaço. O pé ainda dói um pouco. Adoro moto, mas sou super medroso. Hoje em dia, tomar um tombo e ficar três meses parado pra mim é impossível, devido à rotina de trabalho que a gente tem.”

Numa conversa com jornalistas depois da exibição do filme, alguém pergunta se ele e Luisa precisaram de dublês. “Na hora que a moto empina sou eu. Mas a Luisa sem capacete não é ela, é outra pessoa”, brinca Cauã. “Tive que confiar muito na autoescola que ele fez”, responde a atriz. “Eu me lembro até hoje de um momento engraçado. A gente estava filmando num posto de gasolina e eu tinha que dar a volta e entrar na cena. A Luisa estava na minha garupa e eu falei: ‘tá preparada?’. E ela: ‘tô, né’. Aí eu botei a moto em vruuuuum, cento e pouco por hora. Estava me sentido o máximo. Me senti incrível, pilotando naquela velocidade com ela, seguro. Quando tirei o capacete ela bateu no meu ombro e disse: ‘e aí? Tá com a autoestima boa agora?’. Eu estava me exibindo”, conta ele, rindo. “Foi divertido.”

Para Cauã, as cenas de ação e violência são puro entretenimento, como numa história em quadrinhos. E defende as ações de seu personagem até o fim. “Vejo o Ara como um personagem criado numa situação extremamente árida, passando muitas dificuldades com esse líder que é o Pai Nosso. Um cara preparado pra tudo, pra trazer a chuva pro sertão, pra acabar com a seco. Ele está disposto a tudo, até porque foi a forma que ele aprendeu”, avalia.

Sophie Charlotte em 'Reza a Lenda'. Crédito: Divulgação
Sophie Charlotte em ‘Reza a Lenda’. Crédito: Divulgação

DA BABILÔNIA AO SERTÃO

Humberto Martins (“Nosso Tommy Lee Jones”, diz Cauã) não é tão positivo em relação a seu personagem. Solicitado a descrever Tenório, o ator tem bastante a dizer:

“Sou um cara de certa forma crente. É claro que a gente tem que ter bastante, vamos dizer, esperança, porque sem esperança a gente não atinge nada. Mas sou muito pragmático com relação à realidade do ser humano, do planeta Terra. Desde o que eu entendo de história, falei isso pra um repórter agora, desde a antiga Babilônia, Pérsia, aí veio o reino grego, Roma, entre outras coisas, vejo que a humanidade está muito mal administrada pelos seus governantes, pelas pessoas de poder, que são responsáveis pelas nossas vidas, pelo que acontece no cotidiano das nossas vidas. Esse filme retrata no Tenório uma base de consistência totalmente existencial, além do tempo, atemporal, desses governantes, dessas pessoas de poder que pensam muito em si, no ego. O Tenório acha uma afronta roubarem a santa dele, um desrespeito, ao prestígio, a tudo que ele exerce. Tudo dentro do ego”, diz.

“Eu vejo que a gente evolui muito em tecnologias, tecnologia medicinal, tem coisas boas nas evoluções humanas e científicas, de conhecimento do planeta, do que devemos fazer. Estamos vivendo um momento muito, muito preocupante e decisivo pra nossa humanidade, em todos os sentidos. Esse filme vem de uma forma muito conveniente no momento. Vejo ele dentro de uma realidade possível, muito possível. Daqui um tempo isso acontecer dentro dos Estados, você tá entendendo? Daqui a pouco até um Estado começar a brigar com o outro pelo recurso que o outro tem. Não vejo isso muito longe, não. Da maneira que vai. Principalmente no Brasil, onde os recursos são ignorados através dos nossos governantes. Vejo que ele tem uma pegada humanitária, política, muito forte”, continua.

“O Tenório é um cara que quer se manter no poder. Ele mantém a santa como uma… Ele acredita, é claro. Também, ele não tem outra coisa em que acreditar. Ele foi criado assim. Acho que ele é um protótipo do DNA formado pelo pai, que é um bárbaro. Tudo isso se impregnou dentro dele, por isso ele toma essas atitudes até impensadas, porque está dentro da genética dele. Todos somos assim, cópias da nossa criação, desde onde viemos. Cientificamente provado, não sou eu que estou dizendo isso, não. Dentro desse princípio ele justifica tudo o que faz. Dentro dessa involução que eu vejo dos poderosos desde a antiga Grécia, que se constitui até hoje. Pode até ter boa intenção em tudo, tentar um reservatório novo de água, não sei o quê. Mas o ego prevalece. O ego, a arrogância, a prepotência”, afirma.

“Esses garotos da motocicleta são heróis que resolvem confrontar esse poder máximo, você tá entendendo? Essa é a grande esperança que eu acho que pode existir. Tenório é um ser muito ignorante. Ele acredita na religião pela religião que foi formada da sua cidade, da vida, da sua área, da sua terra, pelo pai, a mãe e tal, não sei o quê. Mas ele não tem um conhecimento profundo sobre isso, sobre isso e a humanidade, o que isso representa, Deus, essas coisas. Ele não tem. É o cultural muito baixo. Muito baixo conhecimento que ele desenvolve na sua postura de vida”, diz.

“Ele comete essas atrocidades apenas pelo ego e pela vaidade de querer mostrar a força e confrontar friamente. O Nordeste sempre foi uma terra violenta dentro desses interiores. De famílias matarem as outras a tiros para tomar a terra das outras e se tornarem ricos assim. Lembro quando fiz ‘Gabriela’, estudei muito sobre isso. Era assim que eles tomavam a fazenda dos outros, na marra mesmo. Matavam até os descendentes pra não sobrar nenhum. Tem um pouco dessa cultura na região, violenta. Do espaço já ser difícil, da procriação de gado, de plantio, tudo. O que predomina no ser humano, que é a sobrevivência”, finaliza.

Cauã Reymond o interrompe para brincar sobre uma possível sequência do filme: “Humberto, você acha que no ‘Reza a Lenda 2’, se Deus quiser que tenha o dois, o Marcinho vem com tudo, então, porque ele é bem mau?”. “Marcinho?”, pergunta Humberto. “É, seu filho [do personagem]!” “Sim, vem na genética”, ri Humberto. “Sem spoiler!”, pede Homero.