Quando “Mad Max: Estrada da Fúria” estreou em maio do ano passado, George Miller já havia passado mais de uma década trabalhando no projeto. Catorze anos antes, o diretor atravessava a rua quando teve uma ideia para mais um “Mad Max” — coisa que não pensava em fazer. Deixou o pensamento de lado. Mas dois anos depois, num voo dos Estados Unidos para a Austrália, não conseguiu dormir e começou a desenvolver a ideia. A princípio, o protagonista seria Mel Gibson, o mesmo dos três filmes anteriores da série. Mas depois do 11 de Setembro, em 2001, o dólar americano se desvalorizou em relação ao australiano e eles perderam boa parte da verba para fazer o filme.
O projeto atrasou, mas de vez em quando uma notícia ou outra a respeito do filme pipocava. Em 2013, por exemplo, o site IGN afirmou que uma de suas fontes havia assistido a uma versão não finalizada do filme e que estava incrível. “‘Mad Max’ talvez seja ótimo”, dizia o título da reportagem. Mas quando estreou, “Mad Max” era mais um de uma série de sequências, remakes, reboots que tanto aparecem hoje em dia em Hollywood. Quando o último “Mad Max” tinha chegado aos cinemas, em 1985, o ator Nicholas Hoult — o Nux de “Estrada da Fúria” — não era nem nascido. Fazia muito tempo. Entre esses filmes, Miller havia dirigido dois filmes sobre o porquinho Babe e duas animações sobre pinguins que cantam e dançam (“Happy Feet”). O que esperar de um novo “Mad Max”?
UM ANO ATRÁS
Qualquer que fosse a expectativa, a realidade provavelmente a superou — só o fã mais incrivelmente otimista poderia ter esperado um sucesso maior. A crítica foi praticamente unânime e “Mad Max: Estrada da Fúria” foi um dos filmes mais bem avaliados do ano passado. No Rotten Tomatoes, que dá uma nota aos filmes baseado em críticas de muitos veículos, o longa tem hoje 97% de aprovação — um pouco mais que o vencedor do Oscar de melhor filme deste ano, “Spotlight”, que tem 96%.
Um exemplo, da Atlantic: “Foram 30 anos desde que o diretor George Miller (ou qualquer um) fez um filme de Mad Max, e era fácil ver essa nova sequência/reboot/o que for com certa quantia de ceticismo. Mas o ceticismo queima como vapor no calor da árida distopia que Miller criou. Estrada da fúria é um filme B nota A+, um filme de ação tão vívido e visceral, tão impactante em concepção e extraordinário em execução, que é quase uma revelação”. Para a New Yorker, é uma das raras ocasiões em que uma continuação é melhor que os filmes anteriores e que, embora não dê pra saber se vai sobreviver ao tempo “pro bem ou pro mal, ‘Mad Max: Estrada da Fúria’ tem tudo que a gente deseja de um filme agora e leva isso ao limite”.
Além de sucesso de crítica, “Mad Max” foi bem em público. Segundo o site Box Office Mojo, o filme arrecadou no mundo US$ 378,4 milhões — o custo foi de aproximadamente US$ 150 milhões. Mais: o filme ganhou mais prêmios no Oscar deste ano que qualquer outro (foram seis vitórias). Não só dominou as categorias técnicas como também chegou como candidato com chances em categorias como melhor filme e, principalmente, diretor. Mas como “O Discurso do Rei” (sucesso de crítica e vencedor do Oscar) e “Star Wars: A Ameaça Fantasma” (sucesso de público) estão aí para provar, nada disso basta para que um filme não caia no esquecimento ou seja lembrado com carinho.
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NOS DIAS DE HOJE
Na semana passada, um ano depois do lançamento de “Mad Max: Estrada da Fúria”, um novo trailer do novo “Os Caça-Fantasmas” — com uma equipe de mulheres caça-fantasmas — foi recebido com desdém no YouTube — o primeiro foi o trailer com mais avaliações negativas no site (mais de 800 mil). Alguns exemplos de comentários, entre os primeiros na página do vídeo enquanto este texto era escrito (sério, não é preciso muito esforço pra achar opiniões do gênero): “Vamos arruinar um filme original e colocar só mulheres pra agradar feministas misândricas! Se isso não é sexista, eu não sei o que é” ou “Tá vendo? Feminismo e igualdade não funcionam”.
No dia 16, um usuário do YouTube postou um vídeo que já passou de 1 milhão de visualizações em que diz que não irá assistir ao filme, irritado com o fato de que o elenco original não voltou e que o uso do nome “Os Caça-Fantasmas” é uma forma fácil de o estúdio ganhar dinheiro. No caso, ele não chega a dizer que não quer assistir ao filme porque as protagonistas são mulheres, mas em um minuto é fácil elencar pelo menos 20 filmes que sejam reboots/continuações de outros com atores diferentes — de “Jurassic World” a “Onze Homens e um Segredo” passando por vários filmes de super-heróis. Vamos ter o terceiro Homem-Aranha desde 2002 e ninguém reclamou assim quando Tom Holland ganhou o papel.
Nem o sucesso de “Mad Max: Estrada da Fúria” foi capaz de mudar essa discussão. Apesar de o personagem de Tom Hardy estar no título, a verdadeira protagonista do filme é a Furiosa de Charlize Theron. A história toda é sobre mulheres, na verdade, e Max é apenas um auxiliar na história delas. Furiosa é parte da equipe do tirano Joe, que controla o acesso da população à água num mundo árido. Mas, sem que ele saiba, ela resgata suas cinco jovens esposas, selecionadas para que ele se reproduza, e parte de carro em busca a um paraíso verde controlado por mulheres. Em uma das cenas, bastante simbólica, Furiosa usa Max para se apoiar enquanto atira. Elas não são donzelas em perigo, são personagens completas, que partem para a ação. Não à toa, grupos de direitos masculinos manifestaram seu descontentamento à época do lançamento. Familiar?
Outro exemplo recente: neste mês, Kevin Feige, da Marvel, disse que, dentre os personagens dos filmes lançados até agora que não tinham ganhado um filme solo, eles estavam “mais comprometidos emocionalmente e criativamente” em fazer um longa da Viúva Negra. Scarlett Johansson estreou no papel em “Homem de Ferro 2”, em 2010. Desde então Capitão América, Thor e Homem Formiga ganharam seus próprios filmes, e já há datas para que Homem-Aranha (de novo: o terceiro desde 2002!) e Pantera Negra se juntem a eles. Que bom que a Marvel está comprometida a fazer um filme da Viúva Negra — uma personagem com ótima história e interpretada por um dos nomes mais conhecidos do universo dos Vingadores –, mas enquanto não houver planos concretos isso significa pouco mais que nada.
Uma última notícia relacionada, também da última semana (não precisa ir longe): Shane Black, diretor de “Homem de Ferro 3”, declarou que o papel de Rebecca Hall no filme, como vilã, seria bem maior, mas que a Marvel vetou a ideia, dizendo que eles venderiam menos brinquedos assim. Afinal, todo o mundo sabe que meninas não gostam de brincar com bonecas, né?
Nesse sentido, “Mad Max” continua tão relevante um ano depois quanto no dia de seu lançamento. Pra quem, surpreendemente, ainda duvida que mulheres possam protagonizar bons filmes de ação ou acha que fazer sequências/reboots/remakes com mulheres nos papéis principais só pode dar errado, o filme prova que tudo isso é uma grande bobagem. Porque “Mad Max: Estrada da Fúria” é um filme de ação muito bom.
George Miller quis fazer algo que qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo pudesse entender sem legendas e deu muito certo. São poucas falas e um roteiro bem simples — tanto que foi pensado como um storyboard –, e o espectador já é jogado no meio da ação, sem muita explicação para quem são aquelas pessoas ou o que está acontecendo. Não é um filme que destaca as atuações, não é um filme para quem gosta de histórias complicadas e nem tem diálogos que as pessoas citarão daqui anos. Mas não há buracos, acontecimentos sem sentido, personagens incoerentes. É o anti “filme isca de Oscar” que alcançou o feito de competir de igual com igual com os dramas, raro para comédias ou filmes de ação.
Por ser um filme mais visual, vê-lo fora do cinema, numa tela de computador, por exemplo, é bem pior. Taí um filme para não ver no avião. Quanto maior a tela e melhor a resolução, melhor. Também sempre há o risco de que os efeitos especiais envelheçam mal, como em “Star Wars: A Ameaça Fantasma” (e, possivelmente, “X-Men: Apocalipse” — palpite pessoal). Por enquanto, não é o caso. Um ano depois de estrear nos cinemas, “Mad Max: Estrada da Fúria” continua 100% atual.
O novo filme dos X-Men estreia nesta semana, né?
Sim, na quinta (19). “X-Men – Apocalipse”.
E aí, é tão bom quantos os últimos?
Nossa, não.
Mas é ruim?
Não chega a ser ruim, ruim. Mas é bem médio. Pra se ver uma vez na vida — no avião, se não der pra ver no cinema.
O filme tem o Oscar Isaac, não? Como pode ser ruim?
Sim, ter o Oscar Isaac costuma ser ótimo, mas nesse caso não é tão legal na prática quanto parece na teoria.
Mas é o Oscar Isaac.
Verdade, mas…
Ai, jura?
Infelizmente. É um desperdício de Oscar Isaac.
Por quê?
Bom, pra começar a gente só vê o Oscar Isaac de verdade durante uns 30 segundos, no comecinho do filme. Depois ele aparece todo azul — mas não de um jeito legal, tipo Noturno azul, ou Fera azul ou Mística Azul (tem muita gente azul nesse filme). É um azul meio tosco, meio vilão dos Power Rangers. Você escala o Oscar Isaac, o namorado dos sonhos de metade da internet, e deixa ele irreconhecível! Seria ok se a maquiagem fosse bem feita, se o Apocalipse desse medo, fosse imponente. Mas não. Longe disso.
Ok, tudo bem que a aparência dele não seja das melhores, mas e o papel? Deve ser um bom vilão, né? Afinal, é o Apocalipse. Não faz sentido escalar o Oscar Isaac se for pra cobri-lo completamente e ainda ser um papel ruim.
Concordo, não faz sentido mesmo. Mas a vida é assim. As motivações do Apocalipse não chegam a ser incompreensíveis como as do Lex Luthor em “Batman vs. Superman” e esse é o maior elogio que podemos fazer a ele.
Mas qual é a dele?
A história começa no Egito antigo, com o En Sabah Nur, o primeiro mutante da Terra, adorado como um Deus. Ele é hiper poderoso e consegue transferir sua consciência de um corpo pro de outro mutante. Assim, ele fica eternamente jovem e ainda consegue pegar os poderes da pessoa. No comecinho do filme ele se transfere para o corpo do Oscar Isaac, só que durante essa passagem ele é traído, acaba soterrado e passa milênios debaixo da terra, adormecido. Esses são os primeiros cinco minutos do filme.
Certo, e aí?
Aí ele acorda nos anos 1980 de uma forma bem idiota que vamos deixar passar porque é spoiler. Ele acorda meio chocado com o fato de que os humanos estão dominando a Terra e resolve acabar com o mundo e recomeçar do zero com os mutantes que estiverem do seu lado. O plano não é lá muito elaborado mesmo: recrutar uns mutantes pra ajudá-lo (apesar de que ele conseguiria fazer tudo sozinho), tocar o terror e destruir tudo.
E esse En Sabah Nur é o Apocalipse?
Isso, apesar de não se referir a si mesmo assim. Quando a Moira MacTaggert, da CIA, vai explicar qual é a dele pro Professor Xavier, ela diz que ele é capaz de causar um… Apocalipse.
Uau.
Sim.
Continua.
Certo. O Apocalipse sempre tem quatro capangas mutantes. A primeira que ele recruta é a Tempestade, no Egito mesmo. Além do poder dela de controlar o clima, é a primeira mutante que ele encontra, então faz sentido ele trazer ela pro time. Entre os poderes do Apocalipse está fortalecer o poder dos outros e criar uniformes super legais. Depois de deixar a Tempestade mais forte e, no processo, deixar o cabelo dela branco, eles viajam e encontram a Psylocke, que também se junta a eles — apesar de ela não acrescentar muito ao time. É ela quem apresenta o Anjo, que é ainda menos relevante como guarda-costas de um vilão tão poderoso — tipo muito poderoso mesmo. Quase nem tem graça ver um vilão desses em ação.
Pô, mas legal, eu adoro esses personagens novos!
Não se anime muito, cada um deles tem tipo três falas no filme todo. O capanga que importa mesmo é o Magneto.
Por que eles escolhem o Magneto?
Não fica muito claro. Mas deve ser porque ele ficou famoso no último filme, depois de tentar assassinar o presidente americano. Não questiona muito, vai.
Ok.
Agora que esses quatro mutantes estão mais fortes e bem vestidos (com exceção da Psylocke, que podia estar menos “sexy” e mais confortável pra lutar), eles resolvem ir atrás do Professor Xavier. O Apocalipse é quase onipotente, mas ele acha o poder do Xavier o máximo e quer isso pra ele. Então ele vai atrás do Xavier e é aí que entram na história Mística, Fera e Mercúrio — que já apareceram nos dois últimos filmes da série — e Ciclope, Jean Grey e Noturno, que lutam pra destruir o Apocalipse.
É bastante personagem.
Sim, e é feito de um jeito em que nem todas as histórias ganham o espaço que merecem. É tudo bem corrido, muitas tramas diferentes.
Mas todos se encontram numa grande luta final?
Isso mesmo.
Então, no fim, tem vários super-heróis lutando uns contra os outros? Parece que eu já vi isso antes.
Sim, só neste ano aconteceu com o Batman e o Superman e com uma dúzia de heróis em “Capitão América: Guerra Civil”.
E esse filme tá mais pra Batman ou Capitão América?
Rapaz, bem no meio. No “Guerra Civil” a gente conhece bem todos os personagens e dá pra entender tanto as motivações de cada lado quanto as consequências dessa briga. Nesse X-Men não dá pra entender exatamente o que leva os capangas do Apocalipse (com exceção do Magneto, cuja versão Michael Fassbender já conhecemos de outros carnavais) a se juntarem a ele. O conflito simplesmente não é muito interessante. Não que seja uma briga totalmente sem pé nem cabeça, mas é só… um pouco previsível. Dominar o mundo é um plano genérico. O objetivo do Apocalipse é bem parecido com o do Cérebro de “Pinky e o Cérebro” em nível de profundidade.
Que desperdício de Oscar Isaac.
Nem me fale.
Tá, e a parte boa do filme?
As atuações são boas, apesar de o roteiro ser bem mais ou menos. O “bromance” entre o Magneto de Fassbender e o Professor Xavier de James McAvoy continua forte e os dois fazem o que podem com a história que recebem. Os novos atores também estão bem, principalmente aqueles do time Xavier, que têm mais tempo de cena. É legal ver o começo da relação do Ciclope com a Jean Grey, ver a Tempestade ganhar seu cabelo branco e ver o Professor Xavier finalmente ficar careca. O Mercúrio de Evan Peters também é bem legal, apesar de sua melhor cena ser repetida de “Dias de um Futuro Esquecido”.
Aquela em que ele vai mexendo nas coisas enquanto tudo está em câmera super lenta?
Essa mesmo. Foi a melhor parte do último filme e a demonstração dos poderes dele é um dos destaques desse. O papel não é dos maiores, mas Evan Peters mostrou que tinha carisma e humor lá em 2004 no filme tão ruim que chega a ser (quase) bom “Dormindo Fora de Casa” (que também tem a atual vencedora do Oscar Brie Larson, surpreendentemente) .
Peraí, não muda de assunto. E as lutas? São boas? Diz que sim?
Olha, pra quem gosta de destruição (pontes caindo, prédios indo pelos ares, explosões variadas) é um prato cheio. Tem muitos efeitos especiais — julgue como quiser. O trailer dá uma boa ideia.
Ok, então no fim das contas, é pra eu ver ou não?
Vá ver, claro. Você não vai sair achando que gastou duas horas e meia da sua vida à toa. Mas, como na primeira trilogia de “X-Men”, o terceiro é o pior. Depois de “Primeira Classe” e “Dias de um Futuro Esquecido”, e depois de filmes como “Deadpool” e “Capitão América: Guerra Civil” lançados neste ano, a gente esperava mais.
Dez anos atrás, no fatídico ataque do PCC e nas rebeliões que se seguiram, diversas histórias marcaram o Estado de São Paulo. Várias se perderam no mar de boatos, conflitos e confusões. Histórias como a de Araraquara, em que a penitenciária Sebastião Martins Silveira, em rebelião, sentiu a mão pesada de Antônio Ferreira Pinto, que acabara de assumir a Secretaria de Administração Penitenciária.
Convidamos o artista Rafael Coutinho para ilustrar uma história frequentemente esquecida, mas que mostra como o Estado de São Paulo estava em regime de exceção em 2006.
A data era propícia. Terminava a noite de Finados de 2009 quando Orlando Motta Júnior, o Macarrão, um dos líderes dos ataques do PCC que paralisaram São Paulo em 2006, ligou desesperado, de dentro de sua cela, para o 190 pedindo socorro: “Querem me matar! Me tirem daqui. Quero ser transferido!”
No dia anterior, um domingo, os “passarinhos” usaram o horário de visitas para levar a ordem (também conhecida como “salve”) da facção aos detentos da Penitenciária 1 de Avaré. Macarrão, então com 36 anos e condenado a 48 anos de reclusão, que cumpria pena em uma das celas do raio 1, deveria morrer. A ordem — acompanhada de uma arma de fogo — era da cúpula do PCC com aval do líder máximo da facção, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola.
Os detentos da P1 de Avaré passaram a segunda-feira serrando as grades e continuaram noite adentro. A intenção era chegar à cela de Macarrão e executá-lo ainda na madrugada de terça-feira. Mas o barulho imprevisível na noite dos mortos acordou a presa que, apavorada e acuada, usou o celular escondido na cela para pedir ajuda. Foi retirado e salvo pelos agentes penitenciários.
Segundo uma testemunha mantida em uma penitenciária de segurança máxima do Oeste Paulista, a execução seria em represália a um motim interno da facção promovido por Macarrão no final de 2008. Insatisfeito com a administração de Marcola, Macarrão teria obtido apoio de outros integrantes da Sintonia Final Geral, como é chamada a diretoria da facção, sediada na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, e se rebelado com seu grupo.
***
Macarrão era da alta cúpula do PCC. Na década de 1990, tinha cumprido pena na mesma penitenciária de Avaré com Marcola e outros líderes da facção e participado em 1999 da rebelião da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, o Piranhão, onde o PCC foi fundado, em 1993. Depois dos ataques, foi levado junto com Marcola para a Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, unidade em que a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) colocou todos os líderes da facção na esperança de evitar as rebeliões em série e de controlar os criminosos.
Em Venceslau, Macarrão se tornou um dos homens fortes do PCC, responsável pela Sintonia dos Gravatas, a ala dos advogados da facção. E também era uma espécie de porta-voz da Sintonia Final Geral, formada por nove integrantes. No entanto, desentendimentos com Marcola e a prisão de advogadas que prestavam serviços para a facção teriam causado o rompimento da relação.
Em julho de 2008, a polícia prendeu advogadas da facção após escutas feitas no celular de Macarrão. Segundo pessoas envolvidas na ação em conversas com a reportagem do Risca Faca, Marcola se irritou porque um informante do PCC já havia alertado para o monitoramento dos celulares e pediu que ninguém usasse os aparelhos. Macarrão desobedeceu e facilitou com isso a prisão das advogadas. Marcola decidiu que o custo das prisões seria bancado com dinheiro particular de Macarrão. Revoltado com a decisão do chefe da facção, Macarrão tentou derrubá-lo.
Durante o motim, Marcola teria sido agredido, sendo espancado por alguns companheiros, um deles essa testemunha, de codinome Chocolate, cujo nome é mantido em segredo pelas autoridades do sistema penitenciário. Marcola sofreu ferimentos e, sob ameaça de morte, aceitou repassar o comando para Macarrão e seu grupo. Assim, Macarrão assumiu durante cinco dias a chefia e tomou conhecimento de todas as atividades da facção mais perigosa do Brasil.
No entanto, por falta de controle da situação, Macarrão enfrentou resistência dentro do próprio grupo, que à sua revelia, negociava a volta de Marcola, e acabou expulsando Macarrão da Sintonia Final Geral. A expulsão ocorreu apenas cinco dias depois de Macarrão assumir o comando. Parece pouco, mas foi tempo suficiente para que ele conhecesse as principais informações da facção.
Ao reassumir o controle da Sintonia Final Geral, Marcola aceitou acordo com o grupo dissidente ao prometer não eliminar nenhum dos líderes, mas manteve a sentença de morte para os detentos que o espancaram. Ao ser derrotado e expulso do grupo, Macarrão conseguiu transferência da P2 de Venceslau. Mas só descobriu que também estava jurado de morte na noite de Finados de 2009.
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O caso é mantido em segredo pelas autoridades do sistema e pelo próprio PCC. Há cerca de duas semanas, Chocolate, um dos agressores de Marcola, teve de ser transferido para uma ala mais segura do sistema, porque integrantes do PCC descobriram o presídio onde ele cumpre pena no Seguro – uma ala destinada aos jurados de morte. “Ele está pedido e certamente, cedo ou tarde, será localizado e morto”, disse um agente que participou de sua remoção. Outros detentos que participaram do motim contra Marcola foram distribuídos pelo sistema e não há informação se foram executados ou não.
Atualmente, a localização de Macarrão é desconhecida por grande parte do sistema prisional – ele possivelmente vive agora com outra identidade.
Isso só foi possível porque, jurado de morte e pressionado pelo PCC, Macarrão tomou uma importante decisão: tornou-se colaborador das autoridades para delatar o PCC, transformando-se na figura mais emblemática da facção após os ataques de 2006. Resguardado por um programa de proteção de testemunhas, o ex-integrante do PCC colaborou com o Ministério Público na maior investigação sobre o crime organizado feita no País, concluída e divulgada em 2013.
A investigação, que durou três anos, produziu um raio X da facção: revelou quantos eram seus principais chefes (8), seu contingente (11,4 mil homens, 7,8 mil em SP), atuação (22 estados e DF), arsenal (100 fuzis, 30 metralhadores, 100 pistolas), movimentação (R$ 120 milhões por ano), planos e resgate de presos, ataques a policiais e nomes dos traficantes que forneciam cocaína e maconha à facção.
Oficialmente, Macarrão começou a colaborar com o Ministério Público em 19 de março de 2010, quando prestou depoimento sobre a morte de sua mulher, Maria Jucinéia da Silva, assassinada a tiros em 7 de setembro de 2009, então com 41 anos.
Na manhã daquele feriado, por volta das 8h30, Néia, como era conhecida, saía para a frente da casa de sua mãe para varrer a calçada, na Rua dos Evangélicos, bairro Campo dos Alemães, na zona sul de São José dos Campos. Distraída com a limpeza, Neia não percebeu que um carro preto se aproximou. Do banco de carona, um homem armado disparou várias vezes. Neia ainda conseguiu correr para dentro de casa, mas não resistiu e caiu, sem vida, no banheiro da residência, atingida por oito tiros.
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O homicídio foi encomendado por um tribunal paralelo do PCC, reunido pela Sintonia Final Geral dentro da P-2 de Venceslau. Na incapacidade de matar Macarrão, a facção optou por executar sua mulher. O Ministério Público obteve a gravação na qual Edilson Borges Nogueira, o Birosca, integrante da Sintonia Final Geral, afirma que o “salve” fora dado por conta de uma traição ocorrida dentro do PCC. Oficialmente, a traição seria a delação de Macarrão, que teria apontado outro integrante do PCC, Elvis Riola de Andrade, o Cantor, como autor dos disparos que mataram o agente Denilson Dantas Jerônimo, no dia 3 de maio de 2009, na cidade de Alvares Machado, próxima a Venceslau.
Considerado linha-dura, Jerônimo era agente do Centro de Readaptação Penitenciária (CRP) em Presidente Bernandes, unidade de internação e isolamento de presos periculosos. Jerônimo foi surpreendido com a namorada, dentro de seu carro, e morto com diversos tiros de pistola calibre 380. A namorada escapou ilesa. Segundo Macarrão, dois líderes da facção, Biroska e Gegê do Mangue (Rogério Jeremias Simone), além de Wagner Martins de Oliveira, o Boca, e José Luís Soares, o Nininho, planejaram o crime. Elvis, o Cantor, era puxador de samba da Gaviões da Fiel e foi preso em 27 de maio de 2010.
O assassinato da mulher de Macarrão agravou a crise interna na facção. O caldeirão começou a ferver. Macarrão prometeu eliminar todos os parentes dos detentos da cúpula do PCC e a facção jurou revidar matando mais parentes de Macarrão. A ameaça de Macarrão fez com que as mulheres dos líderes usassem carros blindados e escoltados com seguranças nas visitas aos maridos na P-2. A movimentação chamava atenção das pessoas que passavam pelo local, com os carrões à prova de bala e dos seguranças. No entanto, recolhido e sob proteção do programa de testemunhas, Macarrão não cumpriu sua promessa.
“Não tínhamos essa noção de que Macarrão pudesse ganhar tanta força dentro da facção”, disse um ex-diretor de inteligência da SAP, especialista em PCC, que participou das ações para frear a facção. “Para nós, ele era apenas o quinto na ordem de importância, embora fosse um organizador de rebeliões, talvez o principal incentivador do PCC, além de porta-voz da diretoria e responsável pelos advogados”, contou. “Mas não duvido de que ele possa ter derrubado Marcola e ficado no comando por alguns dias”, completou a fonte, que foi ameaçada de morte por Macarrão por ter influenciado em decisão que levou o detento a cumprir pena no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) após uma rebelião.
Outra autoridade do sistema confirmou as informações, dizendo que Chocolate, por motivos de segurança, está em uma ala de seguro de uma Penitenciária de Segurança Máxima do interior de São Paulo. “Logicamente, trata-se de um detento que está condenado à morte pelo PCC, que controla grande parte das penitenciárias e por isso há necessidade de muitos cuidados”, disse a autoridade. “A informação que temos é de que ele é procurado pelo PCC por ter espancado Marcola durante um motim interno do PCC.”
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A história da delação de Macarrão colocou em risco anos da construção daquela que é chamada de fase “Paz e Amor” do PCC. Depois dos ataques de 2006, o PCC, influenciado pelos ensinamentos do ex-guerrilheiro chileno Maurício Hernandez Norambuena, sequestrador de Washington Olivetto, mudou sua estratégia de atuação, deixando de praticar grandes assaltos para fazer do tráfico de drogas (maconha e cocaína, principalmente) sua principal fonte de receita. Com isso, em 2010, o PCC já participava de 90% dos pontos de tráfico do Estado de São Paulo.
“Além das bocas que já existiam, o PCC abriu novos pontos em praticamente todas as cidades do Estado, incluindo municípios pequenos, de 10 ou 15 mil habitantes”, diz o juiz corregedor Emerson Sumariva Júnior, da Vara de Execuções Criminais de Araçatuba, responsável por 30 mil processos de 15 mil detentos.
A intenção era se desfazer da imagem de violência que ficara após os ataques, quando o PCC matou também civis, e reduzir a possibilidade de penas longas ou mesmo a morte de seus integrantes. A estratégia deu certo, auxiliada pelos interesses da segurança pública estadual em ver reduzidos os crimes de homicídios no Estado. “A queda das estatísticas de violência é proporcional ao sucesso da atividade do PCC”, afirma um ex-diretor da SAP, especialista em PCC, que atuou na custódia de líderes da facção e prefere não ter o nome revelado por motivos de segurança.
A facção tem entre seus maiores clientes os detentos do sistema penitenciário do Estado de São Paulo, que abrigava, até dia 9 de maio de 2016, um total de 230.743 detentos em 164 presídios — 90% deles, segundo o Ministério Público Estadual, sob o controle da “família”, como é chamado o PCC entre seus “irmãos”.
Enquanto paralisava as ações midiáticas, o PCC aprimorava a venda de drogas. Passou a entregar maconha e cocaína em consignação, o que fez com que usuários se transformassem em pequenos traficantes. A tática de arrecadação é simples: o PCC entrega a droga, que é vendida em consignação, e depois passa para fazer o recolhimento do dinheiro e ainda cobra uma comissão da venda, o chamado “bicho-papão”. Com isso, na ânsia de vender mais para comprar droga para uso, os novos traficantes passaram a vender indiscriminadamente, atingindo como público crianças de 10 e 11 anos, que até então eram preservadas pelos antigos traficantes.
Além disso, o PCC afrouxou suas regras, dentro e fora dos presídios. “Para se ter uma idéia, a facção incluiu em seu regimento dois artigos em que os tribunais passam a atuar em pequenas causas, como brigas de vizinhos e de marido e mulher, numa tentativa de apaziguar os ânimos”, diz o especialista. “Até mesmo os ‘ratos de mocó’, que são os presos que furtam pertences dos colegas de presídio são perdoados, o que não acontecia antes”, conta.
Outra mudança foi deixar de pressionar os detentos dos presídios controlados pela facção, que antes dos ataques eram obrigados a entrar para a facção. “Hoje não há mais isso, o detento entra para a facção e também colabora só se quiser”, relataram agentes ouvidos pela reportagem. A intenção é deixar a situação calma dentro dos presídios, com os detentos fazendo uso do entorpecente e os traficantes atuando sem ser incomodados. “A automação de presídios possibilitou isso, porque afasta o agente dos detentos. O preso fica de um lado e os agentes de outro”, diz o especialista. Segundo ele, o fim das blitze semanais simultâneas nos presídios, comuns antes de 2006 para impedir as rebeliões em série, também deu mais tranquilidade aos traficantes para vender a droga aos colegas da prisão.
A estratégia “Paz e Amor” do PCC, somado ao constante aumento de consumo de drogas causado pela superpopulação carcerária, deu tão certo que praticamente quadruplicou a receita do crime organizado com o tráfico. O faturamento, que segundo um livro-caixa do PCC era de R$ 4,8 milhões/mês em 2008, saltou para R$ 16 milhões/mês em 2015, de acordo com dados da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário.
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No fim de semana do mais recente Dia das Mães, centenas de mulheres, todas vestidas num único traje — calças legging, camisetas largas e chinelos — subiam a rua que dá acesso à Penitenciária de Valparaíso, onde há dez anos foi iniciada a megarrebelião promovida pelo PCC durante os ataques de maio. Naquele mês, 76 unidades prisionais enfrentaram motins. Desde então a situação está aparentemente calma nos presídios paulistas. Mas só aparentemente.
Carregando grandes sacolas plásticas, com diversos tipos de produtos (de papel higiênico a alimentos preparados horas antes), essas mulheres — algumas com crianças e bebês, filhos de detentos, alguns gerados em visitas íntimas — reclamavam das péssimas condições do presídio. Elas avisavam que os 1.800 detentos da unidade não estão satisfeitos com o tratamento recebido, e que, por isso, voltavam, depois de muitos anos, a falar sobre a possibilidade de ocorrer uma nova “megarrebelião”, independentemente da vontade do crime organizado, que controla 90% dos presídios paulistas.
Cristiane de Oliveira Silva, que mora em São Paulo, gastou cerca de R$ 500,00 em passagens para viajar 1,2 mil km de ida e volta a Valparaíso, mas não pôde visitar o irmão, preso há 20 dias na unidade. “Eles disseram que os documentos que enviei para autorizar minha visita não chegaram, mas meu irmão confirmou o recebimento. Eu ainda telefonei aqui e ninguém me disse nada. Poderiam ter evitado essa despesa para minha família”, disse ela, antes de cair no choro.
A falta de assistência jurídica aos presos é apenas um dos problemas. “Temos de trazer de tudo, desde sabonete e materiais de limpeza a alimentos, porque a comida é pouca. Faltam remédios e até água e papel higiênico”, contava Marizene Pereira Souza, 42 anos, acompanhada da filha, Barbara Souza Rocha, de 18 anos, que saíram na noite de sexta-feira de São Paulo para visitar Marcelo Souza Rocha, filho de Marizene e irmão de Barbara, preso há sete meses em Valparaíso.
A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) negou que haja precariedade nas unidades prisionais do Estado. Em nota, a assessoria da SAP informa que não faltam remédios, produtos de higiene e que a assistência judiciária funciona a contento. Segundo a SAP também não há racionamento de água, “porém é feito um controle (principalmente no horário noturno), visando evitar o desperdício”.
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A precariedade com que vivem os presos no interior das cadeias voltou a acender a panela de pressão do sistema carcerário paulista e pode colocar abaixo a política atual do PCC. Três dias dias antes da visita da reportagem, o serviço de inteligência da SAP havia interceptado mensagens que davam conta de infiltração de armas de fogo no presídio e de ações para promover rebeliões em Valparaíso e Itirapina.
“Recebemos a informação de que haveria ações de fora para dentro e de dentro para fora para quebrar as cadeias”, disse um agente da inteligência. “Então tivemos de chamar a PM e transferir presos”, afirmou. A Força Tática da PM foi chamada, mas não precisou entrar nos presídios. Mesmo assim, cerca de 120 detentos foram transferidos das duas unidades.
As últimas rebeliões nessas unidades foram em 7 de outubro de 2009 em Valparaíso, com dez reféns, e em 15 de julho de 2013 em Itirapina, com 68 reféns e dois detentos mortos. Em um levantamento rápido, a reportagem apurou a ocorrência de dez rebeliões após 2006, metade delas após 2011, embora a SAP informe que desde 2011 não há rebeliões no Estado de São Paulo.
Em Valparaíso a principal reclamação é com a falta de assessoria jurídica, alimentação e falta de espaço para os presos dormirem. “Há um colchão para cada preso, mas por falta de espaço, eles ficam fora da cela. Os presos se viram lá dentro com a quantidade de colchões que conseguem colocar na cela”, disse um agente. Segundo ele, em uma cela para oito presos, convivem 14 ou 16 homens.
“Eles se viram como podem, dois por cama, dividem o chão da cela e em alguns casos dormem até no espaço do banheiro”, disse outro agente. O fornecimento de água é cortado à noite por economia e nos dias quentes, o corte é feito durante o horário do banho de sol para que haja água suficiente para todos tomarem banho e matarem a sede.
O presídio de Valparaíso tem capacidade para 873 presos, mas contava 1.747 na quinta-feira, 12 de maio. Há dez anos, durante a megarrebelião, a unidade estava com 1.161 detentos. A superlotação é praticamente a mesma em todas as unidades. De acordo com dados da SAP, atualmente há cerca de 231 mil detentos em 164 unidades prisionais. Em 2006, eram 121 mil detentos para 144 unidades prisionais. A média subiu de 840 para 1.408 detentos por unidade, um aumento de 70% em dez anos, enquanto o número de unidades aumentou apenas 13%. Reportagem da Ponte sobre o Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, em que mais de 5 mil presos vivem, relata o local como “o novo Carandiru”.
“É um problema do Executivo, que deveria construir mais presídios. O lógico seria educar a população para reduzir os índices de criminalidade, mas a curto prazo somente a construção de novas unidades é que pode amenizar esse problema”, comentou o juiz Emerson Sumariva Júnior, da Vara de Execuções Criminais de Araçatuba.
A SAP diz que as medidas de segurança, aliadas ao trabalho dos agentes penitenciários, “permitem que a SAP opere suas unidades dentro dos padrões de segurança estabelecidos, inclusive sem qualquer registro de motim, rebelião ou fugas ao longo dos últimos cinco anos”.
Se depois de 2006 o PCC manteve-se como um monstro adormecido dentro dos presídios e bocas do Estado de São Paulo, a situação precária do sistema prisional está criando a mais perigosa das situações: a explosão da panela de pressão e a volta de dias de terror, como aqueles vividos há dez anos.
Os policiais estavam com medo, dentro de suas bases, esperando novos ataques ou novas instruções. O que viesse primeiro. Perto do meio-dia, os telejornais vespertinos passavam imagens dos ataques no dia anterior — nos bastidores, os produtores tentavam confirmar o boato de que um tiroteio teria acontecido em Higienópolis, bairro nobre no centro da cidade. Falavam sobre portas de universidades metralhadas. Histórias desencontradas.
A população estava assustada. Três em cada dez estudantes não foram às aulas na manhã daquele dia — e nada menos que 5,5 milhões de pessoas, aproximadamente metade da população da Grande São Paulo, não tinham como chegar ao trabalho por causa da falta de ônibus. Afinal, os motoristas também estavam apavorados. Da 25 de Março à Daslu, o comércio fechou antes do cair do sol.
Por volta das 18 horas daquela segunda-feira, 15 de maio de 2006, São Paulo era uma cidade fantasma.
Passados dez anos dos ataques promovidos pelo Primeiro Comando da Capital em maio de 2006, parece improvável que a facção repita uma ação coordenada capaz de paralisar o Estado, mobilizar todas as forças políticas e deixar um rastro de mortes — foram 493 em nove dias, de acordo com o Instituto Médico Legal. Desde então, especialistas e autoridades buscam entender a motivação dos ataques, com opiniões divergentes.
Uma pesquisa inédita, porém, traz evidências que apontam um novo caminho para compreender por que o PCC resolveu parar São Paulo. E a explicação tem a ver com a queda nos índices de criminalidade. A partir de dados do Disque-Denúncia e da Secretaria de Segurança Pública do Estado, dois economistas e um sociólogo encontraram indícios fortes de que o PCC aproveitou o levante de 2006 para expandir seu domínio territorial sobre as favelas paulistanas.
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“Tudo isso não passa de ficção. Em São Paulo, não existe crime organizado”, disse o então secretário de Segurança Pública, Benedicto de Azevedo Marques, em maio de 1997. Ele havia sido confrontado com um suposto estatuto do PCC, divulgado à época. Essa é outra mudança perceptível: após os ataques, declarações de autoridades buscando diminuir o poder da facção praticamente sumiram. Ninguém duvida da autoridade de Marco Willians Herbas Camacho, nome completo de Marcola, chefão do PCC que começou sua carreira criminosa aos 10 anos de idade e hoje, aos 48, é o bandido mais influente do país à exceção de alguns políticos.
Em todos os presídios pelos quais passou, distribuídos por cinco Estados e o Distrito Federal, Marcola causou preocupação às autoridades. Em maio de 2006, o governo paulista decidiu transferir o detento a um presídio de segurança máxima no interior do Estado, no qual seria submetido ao regime disciplinar diferenciado — sem direito a TV, rádio, livros e jornais e com apenas duas horas diárias de banho de sol.
Não saiu como planejado.
Simultaneamente ao início da transferência de 735 presos, que segundo o governo seriam ligados ao PCC, a facção pôs em execução um plano para instaurar o terror em São Paulo. “A ordem para os ataques já tinha sido dada antes de a remoção dos presos ser efetuada”, afirma o procurador de Justiça Criminal Márcio Christino, um dos pioneiros no Ministério Público de São Paulo a investigar o PCC. Uma versão divulgada, mas jamais confirmada, dava conta de que os ataques seriam um revide por Marcola ter sido extorquido por policiais corruptos, sem qualquer relação com as transferências. “A remoção dos presos foi efetuada para tentar evitar que as ordens fossem cumpridas, ou seja, para tentar pressionar ou segurar os atentados”, acrescenta Christino. Os primeiros ataques ocorreram na periferia paulistana e na Grande São Paulo na noite do dia 12 de maio, sexta-feira pré-Dia das Mães, somados a três rebeliões em penitenciárias no interior. Como quem não quer nada, o caos entrou pela porta da frente, puxou uma cadeira e se fez presente, especialmente na capital.
No sábado, Marcola e outros líderes do PCC chegaram à sede do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), onde deveriam ficar incomunicáveis por até 20 dias, antes de serem finalmente levados à prisão de segurança máxima de Presidente Bernardes. Enquanto isso, lá fora, o levante foi escancarado: ocorreram 63 atentados em 23 cidades, deixando 25 agentes públicos mortos — policiais militares e civis, agentes penitenciários e guardas municipais. À noite, o delegado Godofredo Bittencourt, diretor do Deic, se reuniu com Marcola na tentativa de negociar uma saída. “Agora é tarde”, retrucou o bandido, segundo uma das testemunhas do encontro. Na tentativa de responder à altura, a cúpula do governo paulista se encontrou, já durante a madrugada, para traçar estratégias. O secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, definiu a tática que considerava ideal: “Distribua os armamentos de grosso calibre e vamos partir para cima”, ele afirmou, segundo se recorda o advogado Nagashi Furukawa, então titular da pasta de Administração Penitenciária presente na reunião.
O Dia das Mães passou com a certeza de que a efetividade da Polícia Militar havia aumentado. Ao passo em que o PCC expandiu sua tática de terror, com 80 presídios paralisados a mando da facção e 156 atentados realizados, as mortes causadas pelas ações diminuíram em comparação aos dias anteriores. E, naquele dia, diversos suspeitos foram mortos em combate com a PM. Segundo as informações coletadas nos boletins de ocorrência daquele período, o Dia das Mães apresentou o pico de mortes durante toda a crise — 107 civis foram mortos a tiros num único dia, no Estado de São Paulo.
Na segunda-feira, escolas e comércios fecharam, menos ônibus circularam e a capital paulista ficou deserta. Numa época em que os celulares cumpriam principalmente sua função inicial, as ligações telefônicas em São Paulo atingiram seu recorde histórico. A população, aterrorizada, buscava informações confiáveis em meio a um sem-fim de boatos e das respostas lacônicas do governo paulista. Os ataques e rebeliões cessaram na terça-feira, dia 16, mas mortes ligadas ao levante ocorreram pelo menos até o dia 20. As estimativas de vítimas no período variam de 493, número adotado pelo IML com base em laudos necroscópicos, a 564, quantidade calculada pelo sociólogo Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com base em boletins de ocorrência.
A possível ação de agentes públicos em grupos de extermínio, durante o período, foi investigada, mas ninguém foi denunciado. O Ministério Público requisitou à PM, judicialmente, os registros dos pedidos de checagem de antecedentes criminais feitos por policiais no período dos ataques. O objetivo era descobrir se algum dos civis mortos e com indícios de execução tiveram seus antecedentes consultados. Em resposta à Justiça, o coronel Ailton Araújo Brandão, comandante da PM à época, disse que o sistema “parou de funcionar por problemas de desgaste natural pelo uso, não mais gravando as comunicações do Centro de Operações da Polícia Militar”. Christino, que tentou investigar o caso pelo Ministério Público, encontrou a mesma situação. “Nós chamamos o fabricante, pedimos para ele fazer uma perícia, e o fabricante disse que havia um defeito na máquina, uma tomada que tinha saído.”
Para Fernando Delgado, advogado e professor de direito na Universidade Harvard, “o Estado tomou uma postura de revide, que teve fortes indícios de execuções sumárias e envolvimento de autoridades estatais em grupos de extermínio”. Ele coordenou uma pesquisa que analisou causas e consequências para os ataques do PCC. Além de equívocos na política prisional e a corrupção de agentes públicos, Delgado aponta a resposta do governo aos ataques como um dos erros cometidos. “Esse revide seria ilegal e não contribuiria para a segurança pública, pelo contrário, alimenta-se um ciclo de violência que está instalado”, argumenta o advogado.
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Para entender como o PCC foi capaz de executar uma ação articulada de tamanho porte — que ocorreu, lembre-se, com boa parte de seus líderes sob guarda 24 horas da Polícia Civil — é necessário, antes, compreender a origem da facção. A célula inicial do Primeiro Comando da Capital foi formada, em 1993, no anexo da Casa de Custódia de Taubaté, local notório tanto por abrigar detentos perigosos como por suas más condições de habitação. O estado precário do Piranhão, como os detentos chamavam o presídio, foi uma das justificativas para a criação do PCC. Sob o mote “liberdade, justiça e paz”, presente em seu estatuto, a facção dizia lutar “contra as injustiças e a opressão dentro das prisões”.
Conforme os membros fundadores foram transferidos para outras cidades, o PCC se difundiu no sistema prisional. Idemir Carlos Ambrósio saiu do Piranhão em 1994. Mas Sombra, como era conhecido um dos oito integrantes iniciais do PCC, continuou no sistema prisional paulista, transferido para Araraquara. “Com seu espírito de liderança, conquistou rapidamente dezenas de adeptos”, escreve o repórter Josmar Jozino, no livro “Cobras e Lagartos: A Vida Íntima e Perversa nas Prisões Brasileiras”, em que narra a história do Primeiro Comando. “Por ser o primeiro batizado da facção, Sombra sempre teve o direito de batizar novos ‘soldados’ e de dizer quem era ou quem não era ‘irmão’.”
Passaram-se anos e o PCC manteve-se abaixo do radar das autoridades, crescendo por meio de “batizados” feitos entre “irmãos”. As primeiras menções à facção na imprensa datam de 1997, quatro anos após seu surgimento, e aparecem com pouca frequência. Desde então, as principais fontes de renda do grupo mantiveram-se as mesmas: mensalidades de integrantes — tanto dos que estão presos como dos que estão soltos —, crimes de oportunidade (como roubos a banco e sequestros) e, principalmente, tráfico de drogas. A expansão territorial do PCC aconteceu em duas direções: para dentro das prisões e para cima das bocas de fumo paulistas. De modo geral, em troca de uma parcela dos negócios, o PCC fornece segurança para seus membros. E segurança, quando se atua em um mercado ilegal, é um bem muito importante. Assim, a receita do PCC só fez aumentar desde que a facção foi criada. O procurador Christino estima em “alguns milhões de reais” a receita mensal deles atualmente.
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Especialistas e autoridades concordam que a estrutura capilar estabelecida durante mais de uma década pelo PCC foi crucial para a eficiência do levante, em maio de 2006. As interpretações para entender o que a facção ganhou com os ataques, no entanto, variam. Logo após os atentados, o governo de São Paulo continuou sob críticas pelo descontrole nos presídios do Estado. Uma das respostas foi a demissão do secretário de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, e a nomeação de Antônio Ferreira Pinto, mais alinhado ao titular da Segurança Pública, como seu substituto. Ex-promotor e ex-policial militar, Ferreira Pinto era visto como linha-dura, e a primeira medida de sua gestão determinou que amotinados que destruíssem suas celas não fossem transferidos a outros presídios.
“Com isso, eles entenderam a mensagem de que eram apenas manobrados pela facção, porque os presídios ocupados pelas lideranças sempre permaneceram inteiros, e eles nunca perderam um dia de visita, nunca perderam um dia de sol”, afirma o ex-secretário, hoje aposentado. Ferreira Pinto acredita que os líderes do PCC exercem sua influência para tornar os membros de baixo escalão meros peões, sujeitos somente aos interesses dessas próprias lideranças. Seria uma forma de buscar legitimidade, o que o ex-secretário rechaça. “Nunca nós os dignamos a conversar com eles, bandido é bandido e polícia é polícia”, ele afirma. “Eles não têm status nenhum”, posiciona-se.
O procurador Christino argumenta no mesmo sentido, mas reconhece que o PCC conseguiu seu lugar à mesa de negociação. “Muito embora eles não tenham nenhum lucro, nenhum ganho patrimonial, eles tiveram um ganho político muito grande, porque se lançaram como uma entidade influente socialmente”, afirma o membro do Ministério Público. A destruição dos presídios, para Christino, também teve influência na definição dos ataques: “O que o PCC pretendia naquela época era inutilizar o presídio que não fosse do agrado deles, para que ele fosse desmobilizado e não fosse mais usado”.
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Uma pesquisa inédita traz dados que sugerem outro motivo para a facção ter realizado os ataques: expansão territorial. O economista João Manoel Pinho de Mello, professor do Insper, investigou a hipótese em parceria com o economista Ciro Biderman e o sociólogo Renato Sérgio de Lima, ambos professores da Fundação Getulio Vargas. A partir de bases de dados do Disque-Denúncia e da Secretaria de Segurança Pública paulista, à qual Mello teve acesso durante uma pesquisa financiada pelo Banco Mundial, o trio estudou como o PCC expandiu seu território nas favelas em São Paulo.
Antes dos ataques, a facção estava presente em pouco mais de 40% das favelas paulistanas, aproximadamente, índice que saltou para mais de 70% até o fim de 2006 — e manteve crescimento estável até pelo menos o fim de 2009, até onde vão os dados da pesquisa. A partir de menções à facção em ligações do Disque-Denúncia e aos dados do governo, os pesquisadores foram capazes de estabelecer uma linha do tempo comparando a entrada do PCC em determinado local e uma possível influência nos índices criminais de lá.
No mesmo período, a tendência geral das ocorrências de tráfico e de porte de entorpecentes foi de queda. Entre 2013 e 2015, de acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública, ambos os tipos de ocorrência variaram pouco: apresentaram queda em 2014, em comparação ao ano anterior, e subiram em 2015, para patamar equivalente ao inicial. O Risca Faca solicitou ao governo de São Paulo uma entrevista com o secretário de Governo, Saulo de Castro Abreu Filho — titular da Segurança Pública durante a crise de 2006 —, para falar sobre o PCC, mas o pedido foi negado.
Para o ex-secretario Ferreira Pinto, o sucesso comercial do PCC é resultado de uma política de combate às drogas que deixou de atrapalhar: “A facção ganha muito dinheiro no tráfico. Por que eu, pertencente à facção, vou atentar contra o Estado, se o Estado não me incomoda?”, ele critica. Mello, do Insper, coloca o mesmo argumento em outras palavras, a partir de outra perspectiva: “Se o poder público está disposto a ser cínico o suficiente para conviver com o tráfico de drogas, ótimo”, resume o economista.
Esse é um dos mais delicados temas relacionados ao crime organizado. Afinal, uma facção é capaz de atuar por conta própria a fim de diminuir os índices criminais? “O que a gente estima é que o PCC, ao entrar numa favela, comparado com uma favela onde ele não está, causa uma queda nos crimes violentos — homicídio, agressão e homicídio culposo”, afirma Mello em seu escritório na faculdade, buscando uma resposta científica ao problema. “Só que a gente não encontra nenhum efeito sobre crimes contra o patrimônio, que inclusive era mais fácil de encontrar, porque crime contra o patrimônio é uma coisa comum.”
Ele cogitava duas hipóteses para explicar a queda nos índices: a da competição, na qual os crimes violentos caem simplesmente porque o PCC deixa de ter adversários, e a da justiça, na qual o PCC assume o papel de provedor do bem público no lugar do Estado. Como apenas os crimes violentos apresentaram queda, Mello pende a confirmar a primeira hipótese.
O Primeiro Comando da Capital jamais repetiu uma mobilização tão grande quanto a realizada há dez anos. Por quê? “Dentro do paradigma proibicionista, a evidência que está sendo construída é que é melhor enfrentar um grupo só”, analisa o economista. Em outras palavras, enquanto as políticas antidrogas não mudarem, tende a ser melhor para o governo enfrentar um PCC só, em vez de vários cartéis, como ocorre no México. Além disso, a facção conseguiu se manter sem dissidências. “É simples, a liderança que está prevalecendo hoje é uma liderança forte, que está conseguindo se manter”, afirma Christino.
A pesquisa de Mello, do Insper, vai no mesmo sentido. O estudo mostra que há formas de diminuir os crimes causados pelo comércio ilegal de drogas, sem necessariamente acabar com o tráfico. Por exemplo, incentivando a venda apenas em lugares fechados, como bares, para tirar traficantes das ruas, onde tiroteios são mais prováveis. Ou, como cantaram os Racionais MCs: “O movimento dá dinheiro sem problema, e o consumo tá em alta como manda o sistema”.
Marcela Vale trocou os chinelos na areia pelos sapatos no asfalto. Desde sua recente mudança para São Paulo, a cantora carioca está feliz de uma forma diferente. Abre a janela, repara nos prédios, contempla as pessoas e suas relações. A mudança geográfica, afinal, não veio só. Coincidiu com a chegada de seus 30 anos, uma transformação mais íntima – e com o lançamento de seu primeiro álbum.
Mahmundi é seu nome. Tanto do disco, como do projeto, como da cantora. O termo tem diversos significados. “Eu me tornei Mahmundi porque acabei compreendendo melhor quem eu era. Não é a projeção de um personagem”, define. “É um processo de entendimento enquanto indivíduo.”
O álbum nasce dessa autopercepção artística. Em um processo de imersão, sua casa no Rio de Janeiro tomou as formas de um estúdio em janeiro de 2015. A produção foi feita por ela mesma. O resultado é um compilado de canções que lhe agradavam, algumas inclusive já publicadas. “Quase uma mixtape”, em suas palavras.
[olho]“Eu me tornei Mahmundi porque acabei compreendendo melhor quem eu era”[/olho]
A comparação com o retrô das fitas cassetes caseiras é adequada. Isso porque Mahmundi tem uma pegada oitentista que não é intencional, mas é natural dado o ressurgimento dos anos 1980 na cultura pop. Essa é sua inspiração: aquilo que escutava nas rádios ou nos discos que comprava, “de Calypso a Phil Collins, tudo que soa bem, que é confortável, que é bom”.
Foi assim, aliás, que ela aprendeu música: a partir daquilo que era ouvido e cantado pelas pessoas. Desde a descoberta musical com o gospel durante a pré-adolescência no bairro de Marechal Hermes, periferia do Rio; até o trabalho como produtora musical da casa de shows Disco Voador.
“Não quis direcionar para essa ou aquela época, para São Paulo ou para o Rio de Janeiro. Acho que consegui unificar ali um sentimento do mundo. Tem piano e sintetizador; tem o trap de Wild, a refrescância de Hit, a volta de Calor do Amor”, diz. “Quis fazer canções boas o bastante para você me ligar e batermos esse papo sobre música.”
Sua busca por algo intimista neste primeiro trabalho não foi um processo solitário. Ao contrário, contou com olhares alheios como o de seu amigo Hugo Braga, o Yugo, pesquisador musical que está por trás da direção de seus clipes e do visual do álbum. “Foi alguém que olhou para mim quando eu não me via”, lembra ela.
A grande vitória de Mahmundi, para ela, é que seu som esteja tocando em fones de ouvido mundo afora, sua intenção desde o início. Se, há cinco anos ela começava em sites MySpace e Soundcloud; agora ela lança sua obra em serviços de streaming e no YouTube. Muito disso é possível pela direção artística de Carlos Eduardo Miranda, acostumado a trabalhar com artistas independentes no selo Stereomono.
Marcela, assim, fica livre para desenvolver sua criatividade. E Mahmundi se beneficia disso. Seu processo de composição, por exemplo, é próprio. Como toca mais do que escreve, suas letras vêm depois da composição melódica. Assim, Mahmundi é um álbum que fala de amor, verão e mar de forma polifônica. Tanto na voz quanto na melodia.
“O objetivo do meu trabalho é que ele se comunique com as pessoas. A mudança pra São Paulo me deu esse olhar sobre o indivíduo. Eu posso estar aqui, mas sempre projetei minha música para ser de qualquer lugar.”
Talvez por isso ela diga que sua “alma continua com o pé na areia” mesmo com a chegada do (fraco) inverno paulistano. “Acho bonito como os espaços estão sendo apropriados aqui em São Paulo. Os grafites, os estudantes ocupando as escolas…”
Enquanto descobre uma nova cidade, Marcela não se preocupa com o tempo. Sabe que está em trânsito aqui, ainda quer ir para Portugal, para o Japão, para o Nordeste. Na bagagem, tem material e interesse em novos timbres. “Quem sabe não lanço um disco de pagode”, ela ri. “Mahmundi é caminhada. Mas a música é o centro disso tudo. E, sem música, eu não estaria em nenhum lugar.”
Dois anos atrás, a primeira temporada da série “True Detective”, da HBO, figurou em quase todas as listas de melhores programas do ano de críticos de televisão. No ano seguinte, foi a vez de “Making a Murderer”, do Netflix, mostrar que histórias de crime estavam mesmo em alta e provocar discussões intermináveis nas redes sociais. “Killing Fields”, que estreou no Discovery nos Estados Unidos no começo do ano e chegou na segunda (2) ao Brasil, é uma mistura desses dois programas. Como “Making a Murderer”, trata-se da investigação de um crime real. Como “True Detective”, acompanha dois detetives parceiros, com personalidades diferentes, que tentam resolver um caso de 1997.
Diferente de outras produções centradas em crimes reais, como o próprio “Making a Murderer” ou a primeira temporada do podcast Serial, que recuperam casos já encerrados, “Killing Fields” se passa em tempo real, mostrando as investigações à medida em que elas acontecem. Tipo um “Big Brother” policial, em que o espectador não sabe nem se haverá um desfecho no fim das contas — as filmagens, que começaram em agosto do ano passado, continuaram depois da estreia. A temporada se centra no caso da estudante Eugenie Boisfontaine, cujo corpo foi encontrado em decomposição em Iberville Parish, cidade com menos de 35 mil habitantes na Louisiana, nos Estados Unidos. Na época, o detetive Rodie Sanchez não conseguiu resolver o caso. Quase 20 anos depois, ele deixa sua aposentadoria para retomar a investigação, dessa vez acompanhado pelo jovem detetive Aubrey St. Angelo — resultando num conflito de personalidades, como bom programa policial, e de gerações.
O programa poderia muito bem ser uma ficção. Primeiro, pelos personagens. A premissa “detetive aposentado retoma caso antigo que nunca deixou de assombrá-lo ao lado de colega jovem e de personalidade agressiva”, por exemplo, tem toda cara de uma série qualquer. Depois, pelo cenário. A paisagem do sul da Louisiana — cenário da primeira temporada de “True Detective” — também contribui para a atmosfera de mistério. Pela geografia do local, na zona rural do Estado, é possível esconder corpos com facilidade. E pelo clima, esses corpos entram em decomposição com rapidez. Some isso à grande presença de vermes, urubus e jacarés que comem os cadáveres e se chega ao que se chama de “killings fields”, campos de assassinato, ideais para esconder pessoas mortas.
Mas “Killing Fields”, o programa, não é serie, e sim reality show — com pessoas pouco acostumadas com televisão e bem desinteressadas em virar celebridade (um tipo raríssimo de reality show, aliás). Como no caso de “Making a Murderer”, que transformou em celebridades momentâneas os advogados Dean Strang e Jerry Buting, que viraram símbolo do vestuário “normcore” anos 2000 e hoje fazem turnê nos Estados Unidos, “Killing Fields” é protagonizado por pessoas normais, do tipo que, ao comentar o resultado final do programa, dizem que a pior parte foi ouvir sua voz gravada (quem nunca). Os detetives responsáveis pelo caso sequer queriam aparecer na televisão.
“Eu não tinha ideia de que iria investigar esse crime. Quando me chamaram para dizer que iriam reabrir o caso eu soube que teria filmagem envolvida. Não queria fazer parte disso, não acho que essa profissão seja entretenimento. É serviço e dedicação”, diz St. Angelo, o mais novo, por telefone a um grupo de jornalistas de vários cantos do mundo, com respostas curtas de quem não está tão à vontade dando entrevistas. Mas se lhe dão uma tarefa, ele cumpre, e por isso só seguiu em frente. “Se vai envolver câmeras ao meu redor, vai envolver câmeras ao meu redor. Como um investigador e funcionário público, sei que há coisas que você deve deixar pra lá para continuar seu caminho. Eu só deixei as câmeras ficarem lá e continuei a investigar”, diz. Quando as câmeras eram ligadas, eles começavam a trabalhar como fariam em qualquer outro caso: examinando as evidências, seguindo as direções que elas apontam para tentar chegar a uma conclusão. Não mudou em nada ter alguém filmando ali, só o fato de que de vez em quando eles tinham de falar para os operadores de câmera andarem mais rápido porque iria começar a chover e o equipamento ia molhar, diz St. Angelo, pragmático.
“Os produtores falaram pra gente fazer o que geralmente fazia. Mas eu aprendi o que era mais conveniente para a câmera, sabe. Ficava: ok, nós vamos para esse bairro, você pode colocar o equipamento aqui para capturar a imagem que precisa. Aprendi o bastante sobre a indústria da mídia para conseguir trabalhar lado a lado com eles. Não foi difícil, só tínhamos mais gente de fora da investigação olhando pra gente.” A experiência, aliás, lhe deu um “novo apreço” pela televisão. “Nunca achei que a mídia poderia produzir algo tão bonito. Sempre pensei que, ok, a câmera filma e conta uma história, mas eles fizeram um produto lindo sobre essa mulher que foi assassinada”, afirma.
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Nesse caso, a ideia de fazer um programa sobre uma investigação de um crime veio antes do interesse por um caso particular. Se não fosse Eugenie Boisfontaine, seria outro — não há, portanto, dificuldades em se fazer novas temporadas, diferente de “Making a Murderer” ou “The Jinx”, da HBO, por exemplo, centrados em um personagem com uma história marcante. Quando soube que o Discovery iria fazer um programa sobre a investigação de um caso antigo, conta St. Angelo, o colega, Sanchez, pediu para que fosse reaberto o caso de Boisfontaine, que ele não havia conseguido solucionar no passado. Na época, o departamento tinha muitas investigações em andamento e quando as pistas se esgotaram o caso foi colocado de lado. Mas Sanchez nunca se esqueceu dele e a esperança era de que, com novas tecnologias, hoje ele pudesse ser resolvido.
Fazer televisão sobre crimes reais é uma tarefa delicada. Há o risco de cair no sensacionalismo, o risco de deixar de lado informações na edição e ficar unilateral ou parcial, e a dificuldade de expôr as famílias de vítimas. No caso, os parentes de Boisfontaine viram com bons olhos a abertura do caso e a atenção que os detetives deram ao caso, mesmo com uma equipe de TV acompanhando tudo. “Eles ajudaram muito, responderam todas as perguntas que precisávamos, sobre a vítima e pessoas envolvidas na vida da Eugenie Boisfontaine”, diz St. Angelo. Embora exista perigo da produção do programa atrapalhar os policiais, também há vantagens. Entre os aspectos positivos de levar um caso desses a público e de exibir a investigação na televisão enquanto ela ocorre está a possibilidade de conseguir dicas de espectadores, testemunhas que não se manifestaram na época. “Tivemos várias dicas e pessoas que vieram atrás pra dar informações. Algumas parecem meio esquisitas, mas mesmo quando você recebe esse tipo de informação tem que confirmar ou negar. Tivemos o benefício de ter umas duas pessoas que quiseram permanecer anônimas que deram informações que nos levaram a uma direção particular.”
St. Angelo, que já recebe pedidos de fotos nos Estados Unidos, é tão alheio ao mundo dos programas de televisão voltados ao crime que nem sabe dizer se os retratos que eles traçam se aproximam do dia a dia real de seu trabalho. Não viu, por exemplo, “Making a Murderer”, mas “ouviu que gerou bastante burburinho”. De vez em quando, assiste à série documental “Forensic Files”, que reconstitui investigações. E é só. “Mas não se compara a ‘Killing Fields’, que segue uma investigação ativa.” Ao arriscar uma explicação para o porquê de as pessoas se interessarem tanto pelo mundo da polícia, ele é curto e grosso: “É intrigante e vai além do trabalho normal das 9h às 17h”.
Quando escrevo para Pedro Bromfman para confirmar nossa entrevista para dali cinco minutos, ele responde que seu compromisso com o novo episódio de “Narcos” tinha sido adiantado e que ele teria que sair logo. Remarcamos. Mesmo o espectador mais atento do mundo provavelmente não reconheça o nome de Pedro, mas sua assinatura está em todos os episódios da primeira temporada da série do Netflix. É um tipo curioso de trabalho: se você está entretido na trama, é capaz de nem perceber o que Pedro fez. Porém, não dá pra saber como a série seria sem ele ali. Quer dizer: dá. Seria esquisitíssima. Como em outros trabalhos de José Padilha (“Robocop”, os dois “Tropa de Elite”, “Rio, Eu Te Amo”), Pedro é o compositor da trilha sonora da série.
Uma rápida passada de olhos por sua página no IMDb, o currículo de qualquer um envolvido em cinema ou televisão, revela trabalhos em outras produções bem variadas, passando pela comédia romântica “Qualquer Gato Vira-Lata”, com Cleo Pires e Malvino Salvador, o documentário “Mataram Irmã Dorothy” e, mais recentemente, “Em Nome da Lei”, filme de Sergio Rezende com Mateus Solano e Paolla Oliveira que estreou no fim de abril. A pré-estreia do filme, aliás, é motivo para a visita de Pedro, que mora nos Estados Unidos, ao Brasil. É a melhor parte do trabalho, diz ele, rindo. No resto do tempo, escrever trilhas “é mais transpiração que inspiração”, conta. Não dá pra ficar de papo pro ar, com a página em branco na frente, esperando a ideia chegar.
Pedro começou a fazer trilhas um pouco que por acaso, numa época não havia muita gente especializada nisso no Brasil. Começou a estudar música por volta dos dez anos de idade, quando ganhou o primeiro violão, dedicando-se à prática desde o início. “Queria realmente levar a sério, estudar composição e arranjo. Aos 18 anos fui pro Berklee College of Music, em Boston”, conta. Lá, estudou performance e composição. Voltou para o Brasil, montou uma banda, produziu discos e aí começou a fazer algumas coisas para comerciais, o primeiro passo pra nova carreira. Naquela época, gostava de cinema, mas nunca tinha pensado em trabalhar com isso. Seu negócio mesmo era tocar. Foi por iniciativa da mulher, diretora de cinema, que ele voltou aos Estados Unidos, para Los Angeles, onde sua trajetória profissional mudou.
“Eu estava um pouco frustrado com o mercado de música instrumental aqui no Brasil. Isso foi no começo dos anos 2000. Acabamos indo juntos pra Los Angeles e lá entrei de cabeça nesse mercado de trilhas”, lembra. “Fiz uma especialização lá e comecei a trabalhar com alguns compositores de trilha, fazendo música adicional, ajudando com programa de televisão, coisas assim. Eventualmente comecei a ter a minha chance.” Quando vinha para o Brasil batia na porta de produtoras para se apresentar, aproveitando o fato de que ainda não tinha muito gente que fizesse o que ele fazia. “Naquela época era um país com músicos maravilhosos, mas com pouca gente que entendia realmente como a trilha funciona. Hoje tem muito mais gente capacitada trabalhando. Mas em 2004, 2005, pouca gente se dedicava exclusivamente a isso. Começou a me abrir portas aqui também.”
O primeiro grande projeto fez barulho: “Tropa de Elite”, primeira colaboração sua com José Padilha. A continuação do filme, então, era a maior bilheteria nacional no Brasil até “Os Dez Mandamentos”, neste ano. “Estar lá [nos Estados Unidos] me abriu portas aqui, porque eu tinha especialização e experiência de longa data de composição e orquestração. E o fato de fazer filmes aqui — e um filme como ‘Tropa’, que viajou — começou a me abrir portas lá”, diz Pedro. “Sempre digo que não basta estar preparado e ter talento. Precisa de sorte nesse mercado de cinema. Você tem que estar no lugar certo na hora certa, conhecer as pessoas certas e aí estar preparado pra entregar e fazer o trabalho direito quando te chamarem.”
INTERLÚDIO
Ouça a cena prestando atenção na trilha sonora.
LIBERDADE CRIATIVA
Mas o que significa, exatamente, saber fazer trilha sonora? Não é como compor músicas para um disco próprio. Pra começo de conversa, tudo tem que estar de acordo com a visão do diretor. Numa produção americana, por exemplo, costumam chamar o compositor quando já há um primeiro corte do filme ou programa de TV. As fases de roteiro e filmagem já ficaram bem pra trás. “A cabeça de Hollywood é de que não é só arte, é indústria. É mais uma cabeça de cronograma, orçamento, bem certinha”, diz Pedro. Chegar tão tarde na produção não é o ideal para ele. “Eu gosto — é como trabalho com o Zé Padilha — de me envolver o quanto antes. Ler o roteiro, nem pra começar a gravar coisas, mas pra ter ideias, conversas criativas com o diretor, entender os personagens, qual a instrumentação que deve ser usada.”
No caso de “Narcos”, Pedro não foi à Colômbia, onde a primeira temporada foi gravada, mas recebia imagens assim que as filmagens começaram. “Eu já tinha lido o roteiro do piloto [primeiro episódio] e comecei a compôr música lá no início. Muitas das músicas que compus lá viraram os temas principais. Mas muitas vezes acontece também de você começar cedo, fazer algumas coisas e depois olhar as imagens e falar ‘não é bem por aí, vamos repensar’. Às vezes você lê o roteiro e acha que sabe tudo de que o filme precisa, mas aí você vê as primeiras cenas e realmente vê o tom do filme e das atuações, e é aí que você vê.”
Quanto antes o compositor entra no projeto, maior sua liberdade criativa. Quando um filme já chega nas suas mãos em um primeiro corte, muitas vezes já vem com uma música temporária. Sem música, fica estranho ver um filme e os editores colocam algo para ajudar no ritmo. “A música muitas vezes funciona de uma maneira subconsciente. Você nem está ouvindo realmente, mas se ela não estiver ali você não sente a parte emocional do mesmo jeito. Se você passa um filme sem a música a pessoa não chora, mas se você põe a sala inteira vai ficar emocionada porque é pele”, opina.
No caso de “Em Nome da Lei”, por exemplo, Pedro também participou desde o início e pôde dar suas opiniões a respeito de como deveria ser a música. “Obviamente se eu entrego uma faixa que [o diretor] não gosta ele diz que não é bem por aí. Mas num esquema bem colaborativo, de mandar uma coisa, ele responder, eu defender minha ideia”, diz. “Eu acho que é isso que o cinema é, realmente. Uma grande colaboração de todas as artes. O trabalho do diretor é conseguir unificar aquela visão e passá-la pra todos os departamentos do filme.”
Para ser um compositor de trilhas também é preciso ser versado em músicas de diferentes tipos. Cada projeto, ou cada gênero de filme, pede um tipo de música. “Já fiz trilha que era quase só tango do começo ao fim. ‘Robocop’ tinha uma orquestra de 80 músicos com mistura de música eletrônica”, diz. Hoje, acaba mais fazendo mais filmes de ação, o que considera normal pelo caminho de sua carreira. “As pessoas veem um filme de ação ou de drogas e falam ‘ah, gostei da música dele, vamos chamar pra fazer outro filme assim’. Qualquer oportunidade de sair um pouco disso, fazer uma comédia romântica, uma animação que for, eu abraço. Principalmente se for um projeto interessante. Obviamente a primeira decisão do sim ou do não é se o tema me interessa.”
E, é claro, produzir independente de inspiração. Nem sempre é fácil. “Toda vez que eu começo um projeto eu penso que não tenho ideia do que fazer. É como se eu esquecesse o que eu faço cada vez que eu começo. Aí passo duas semanas com o filme, digerindo, experimentando uma coisinha ou outra até a hora que a coisa engrena. Aí a gente encontra o tom e a instrumentação, e a partir dali a coisa flui”, diz. Mas mesmo antes de pegar no tranco ele se compromete a sentar no estúdio todo dia às 9h e trabalhar até as 18h. “Talvez no dia seguinte eu não goste de nada do que fiz. Mas todos os dias tem alguma coisa produzida. Música pra cinema é muito mais transpiração que inspiração. Inspiração é o que você absorveu ao longo da vida, de filmes que viu, músicas que ouviu, estudos que fez, instrumentos que aprendeu a tocar. No dia a dia a coisa é sentar e produzir.”
https://www.youtube.com/watch?v=U7elNhHwgBU
O resultado de tudo isso é fazer com que trilha e filme casem perfeitamente. Pedro diz que sabe que está diante de um grande filme quando ele presta atenção na trilha, mas nem tanto assim. Nesse caso ele ouve de novo a trilha em casa (entre os ídolos aponta Ennio Morricone, atual vencedor do Oscar por “Os Oito Odiados”, Thomas Newman, indicado a 13 Oscar — o último por “Ponte dos Espiões”, neste ano –, e Gustavo Santaolalla, que ganhou o Oscar por “Babel” e “O Segredo de Brokeback Mountain”).
Para quem quer começar a trabalhar com trilhas hoje há mais caminhos, inclusive especializações no Brasil. Há um mercado grande, particularmente, para trilha sonora de videogames, conta ele, que trabalhou no jogo “Max Payne”. “Foi meu primeiro e único trabalho até agora, mas é um mercado que cresce muito. Os fãs jogam o dia todo e aquela música fica embrenhada, eles são mais apaixonados pelas trilhas que os fanáticos por cinema”, diz. A experiência foi boa, mas no cinema há mais controle sobre a obra. “No videogame você faz a música, mas não tem como saber se aquilo que você escreveu vai tocar exatamente naquele momento. Todas as músicas têm que poder voltar pro começo e não terminar nunca até que você passe de um ponto, ou mude de fase. Aí começa uma nova música”, diz. No cinema, se ele escreveu aquilo para a cena X, sempre irá tocar na cena X.
Agora, além de trabalhar na segunda temporada de “Narcos” (acabou de terminar o quinto episódio e faz mais ou menos um capítulo a cada dez dias), faz a trilha da série “Rio Heat”, com Harvey Keitel. Também cita um projeto com José Padilha sobre o qual não pode falar (dias depois da entrevista, o Netflix revelou que vai exibir uma série do diretor sobre a Operação Lava Jato). O ritmo é forte, diz. “Não estou fazendo a música só pela música. Não interessa se ela é a mais bonita do mundo, se a melodia é a mais linda, estou fazendo a música pro bem de uma obra maior, ajudando uma cena e personagens. Esse é o grande lance.”
Neville D’Almeida começa o papo perguntando quanto tempo a entrevista vai demorar. Sugere duas conversas, de 15 minutos cada uma, para não cansar. Sabe como é, não é lá muito confortável falar tanto tempo seguido no celular. Mas logo de cara dá pra perceber que é impossível conversar por apenas 15 minutos com Neville. A conversa vai crescendo, crescendo, indo por caminhos improváveis — passando pelos dois únicos estadistas do mundo, em sua opinião, pela fase pornográfica de Picasso e pela série “Breaking Bad” — até que, quando você vê, já se passou uma hora. Neville também é daqueles que pergunta, como se estivesse numa conversa mesmo, não numa entrevista. Pergunta minha idade, minha opinião sobre o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e não fica satisfeito com uma resposta evasiva. “Quando você vier pro Rio a gente faz um vídeo”, promete.
Diretor de “A Dama do Lotação”, uma das cinco maiores bilheterias do cinema brasileiro, Neville volta ao cinema depois de 18 anos sem lançar um longa, com “A Frente Fria que a Chuva Traz”, que estreou no dia 28 de abril. O cineasta não mede as palavras para explicar a ausência de quase duas décadas das salas de cinema. “A resposta é: [por causa da] mediocridade e hipocrisia dos produtores brasileiros. Falta de visão, burrice, incapacidade diante dos verdadeiros talentos, que é o meu caso”, diz. Fazer cinema hoje sem fazer parte de panelinhas é praticamente impossível, em sua opinião. “Dá pra fazer, sim, mas os produtores não vão querer produzir e os exibidores não vão querer exibir.”
Segundo Neville, o Brasil é uma “república de filhos”. Só quem é parente de alguém bem relacionado consegue fazer cinema. “Os filhos estão sempre fazendo, fazendo. É uma coisa… Como chama isso? Essa coisa de família, dentro da política?” Nepotismo? “Isso, total. O cinema também é vítima disso.” Sem ter contatos em festivais, por exemplo, é dificílimo de emplacar um filme. “O Festival do Rio é um exemplo de nepotismo total e absoluto. Mais do que isso. Da falta de alternância de poder”, diz. Como dois casos positivos, cita os festivais de Brasília e Gramado, em que há uma rotatividade maior de curadores (“déspotas medíocres”, diz Neville). “Isso é muito saudável pra democracia. Mas aqui no Rio não é assim que se faz. Está há 20 anos a mesma turma. E é a ditadura do gosto. ‘Aqui é o que eu gosto, o que eu acho, o que eu penso.’ A censura acontece através das comissões dos festivais, de uma forma violenta, ditatorial, sem dar nenhuma satisfação pro cineasta. Seu filme não foi escolhido e acabou.”
O hiato terminou graças a um convite do produtor Carlos Alberto de Carvalho, que lhe chamou para fazer um filme baseado num texto do dramaturgo e ator Mário Bortolotto. “A gente escolheu ‘A Frente Fria que a Chuva Traz’ pela originalidade de falar de festas em favela”, diz ele. No filme, um grupo de fúteis jovens ricos do Rio de Janeiro aluga uma laje na favela para fazer festas cheias de sexo e drogas pelo fetiche de estar no morro. É um longa bem teatral: poucos personagens, ação que se passa em um único dia, concentrada em pouquíssimos cenários e muitos diálogos carregados de palavrões. Caras menos conhecidas dividem espaço com Bruna Linzmeyer e Chay Suede, em papéis que pouco lembram seus trabalhos em novelas da Globo — ela, uma prostituta que vai às festas atrás de drogas; ele, um cara que troca drogas por boquetes das amigas.
Mesmo sendo convidado para fazer o longa, a jornada de Neville não fácil nem curta. Foram sete anos desde o início do projeto até sua conclusão, “devido a censura dos editais e da Ancine”, segundo o cineasta. Sem financiamento, o filme demorou a sair. “Eles preferem diretores que fazem tudo politicamente correto. É espantoso”, reclama o diretor.
Se tem algo que Neville não é é politicamente correto. Um dos fundadores do cinema marginal, teve vários filmes censurados na época da ditadura militar. “A coisa mais importante pra um artista é um instrumento chamado liberdade. Eu, numa ditadura militar, numa caretice total, fiz um cinema desses a vida inteira. As consequências foram terríveis. Cinco filmes proibidos, jamais exibidos, falta de dinheiro, frustração, sofrimento, ansiedade. Mas valeu a pena. Não vou fazer o que a censura diz”, afirma. “Vou fazer o que não pode. Outros pensaram de forma diferente. Não faço filme pra puxar saco, pra agradar. Faço o que tem que ser feito porque sou um artista. Até no Vaticano tem o Davi pelado com o pau pra fora. O cinema hoje não tem isso.”
[olho]”Cansaram de matar na Terra, foram matar no espaço. Mas alguém fez sexo no espaço? O amor verdadeiro não existe no espaço, lá é só pra matar”[/olho]
A cruzada contra a caretice, usada para garantir público, é uma coisa que ele leva a sério. Quase não vai ao cinema “pra não ficar mal influenciado, pra não ficar vendo essas porcarias”. “Star Wars”? Careta. “Agora reeditaram ‘Star Wars’. ‘Star Wars’ é uma chanchada. Chanchada é o nome daquela porcaria. E os caras voltaram a fazer. A moda continua anos 70 careta. A caretice continua. Hoje é tudo anos 60 e 70: Batman, Superman, Star Wars. Só porcarias. O mundo está perdido”, diz. “Eles levaram a guerra pro espaço. Cansaram de matar na Terra, foram matar no espaço. Mas alguém fez sexo no espaço? O amor verdadeiro não existe no espaço, lá é só pra matar. Isso é lixo total.” Também não poupa críticas a seriados americanos. “Sei de todos, mas acho todos um lixo, um retrato medíocre da sociedade americana. Mais ainda: são todos iguais.” “Breaking Bad”? Porcaria. Em série americana, diz, só se reafirma a cultura da violência, do “quanto mais escroto melhor”. “Todo cara acaba com um revólver na mão e daqui está matando um, ou por causa de dinheiro ou sexo. Quem faz sexo tem que morrer. É um moralismo.”
Para seu jovem elenco, só elogios, justamente pela disponibilidade em sair da zona do conforto. Bruna foi a única convidada pelo diretor, que já tinha visto alguns de seus trabalhos e ficado impressionado com sua força dramática. “Ela tem 23 anos, mas parece que tem 40 em maturidade, em coragem de viver intensamente um personagem marginal”, elogia. Em sua opinião, muitos atores censuram os próprios personagens e só querem saber de fazer propaganda de sandália Havaianas. “É fácil ficar fazendo novela: abre a porta, fecha a porta, atende o telefone, desliga o telefone. Essas coisas medíocres estão em alta. Atrizes medíocres gostam de fazer propaganda de produtos medíocres mais do que de grandes personagens”, opina. Bruna foi chamada à casa de Neville, que lhe perguntou se ela estava disposta a viver o personagem intensamente. Topou. Já Chay Suede chegou ao diretor por meio de testes e foi “brilhante”. “Eu o considero um ator extraordinário. É muito bom trabalhar com ele, nos tornamos amigos. É um homem simples, honrado, sério, honesto, talentoso. Não é mascarado.”
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Depois de estourar como protagonista da primeira fase da novela “Império” e de interpretar um mocinho em “Babilônia”, Chay Suede realmente mostra outra faceta. “A Frente Fria que a Chuva Traz” mostra, de fato, pouca coisa. Moças de sutiã e olhe lá. Mas os diálogos são bem carregados e os temas, bem diferentes do que se vê na televisão, de onde veio. Liberdade, afirma Neville, é a única coisa que resta ao cinema para se manter relevante frente às outras formas de produção audiovisual. O que não sair da casinha ou a TV ou a internet podem fazer tranquilamente, e fazem. O bom cinema deve ser livre — o que não acontece no momento. “O cinema não é uma arte livre. É uma arte cativa, amarrada em correntes. Isso pode, isso não pode. É cheio de amarras. Não pode ser com a luz acesa, tem que ser com a luz apagada. O cinema do futuro é um cinema de arte”, diz. “Deus não está aqui pra reprimir. Ele quer os artistas livres. ‘Não pode fumar, não pode foder, não pode peidar.’ Deus quer os artistas com liberdade pra expressar sua época. Ele não trabalha na censura.”
Agora, Neville D’Almeida trabalha em dois projetos. Um deles se chama “A Dama da Internet”, sobre a mulher no Brasil de hoje. O segundo, “Bye Bye Amazônia”, é sobre a morte anunciada da floresta, causada por quatro fatores: “o etanol, a soja, o gado e a madeira”. “Você vê, por exemplo, que a Dilma colocou como ministra da agricultura a Katia Abreu, líder do agronegócio, da destruição não só da Amazônia, mas dessas coisas todas.” Espera não ficar mais tanto tempo afastado do cinema. “Acho que vou poder fazer”, diz, otimista.
Não havia horário para o fim do expediente no 12º andar do imponente edifício que ocupa, de forma triangular, as esquinas das ruas João Adolfo e Álvaro de Carvalho, a poucos metros da Avenida 9 de Julho, centro velho de São Paulo. Há 50 anos, no mês de abril de 1966, era lançada a edição inaugural da revista Realidade.
Naquele andar do prédio, antiga sede da então novíssima Editora Abril, estavam homens com idade entre 25 e 30 anos, bem alinhados em camisa, gravata e terno de tergal e, também, bem pagos – em comparação com profissionais da época na mesma função. Essa era a turma de 66, uma equipe de jovens jornalistas escolhida a dedo para compor essa nova proposta editorial, uma revista mensal, com textos e fotos que exibissem o Brasil (e o mundo) de uma forma única e, até então, inédita em solo nacional.
Os últimos dias de 1966 eram de ansiedade para esses repórteres e editores – era assim a cada fechamento de edição. No caso, a próxima capa era a de número dez, chamada de Edição Especial – A mulher brasileira, hoje. Mesmo prevista para circular em janeiro de 1967, já estava certo que as bancas a receberiam ainda no mês de dezembro. A revista Realidade, em seu primeiro número, registrou 250 mil exemplares vendidos em poucos dias. Em tempos de rádio e com a televisão ainda em crescimento no país, a publicação chegou a ter 450 mil exemplares impressos. Atualmente, segundo os últimos dados da Associação Nacional de Editores e Revistas (ANER), a revista Claudia, maior publicação mensal em circulação, tem 420 mil exemplares impressos.
A edição foi pensada e desenhada para falar exclusivamente e, de uma forma inédita, sobre a mulher no Brasil. “Não sei como surgiu a decisão [da edição], mas acho que foi a consequência natural do que a revista vinha fazendo”, relembra o então repórter José Carlos Marão.
Nos últimos meses, o conteúdo da revista vinha abordando, de forma mais pontual, o universo feminino. A edição número quatro foi encartada com um cartão-resposta, que perguntava o que os brasileiros pensavam do divórcio. A revista trazia depoimentos sobre filhos não reconhecidos, viúvas sem herança e casos de discriminação com a situação jurídica das separações. O retorno foi animador para a redação: cerca de 15 mil respostas. “Naquele tempo, sem computadores, o resultado da pesquisa foi tabulado ‘na unha’, só sairia na edição 8, onde pela primeira vez, pelo que eu saiba, foi publicada uma pesquisa completa, com resultados por sexo, idade, escolaridade”, conta Marão.
A “evolução” do tema em pautas da revista, segundo o jornalista, teria motivado a elaboração da Edição Especial – A mulher brasileira, hoje.
***
Hoje já clássica, a capa da edição veio toda em azul. O desenho de uma lupa focava no rosto de uma mulher, registrada pelo fotógrafo norte-americano George Love (1937-1995). O sumário explicava a opção pelo design de capa: “Uma mulher colocada sob a lente de aumento sintetiza o espírito desta edição especial: mostrar como é a mulher brasileira”.
Em uma carta ao leitor sob o título O trabalho que elas deram, o então diretor Roberto Civita explica que a proposta da edição surgiu, seis meses antes, numa longa conversa ao pé da lareira. “Falamos da revolução tranquila e necessária – mas nem por isso menos dramática – que a mulher brasileira estava realizando.”
Um dos eixos da edição estava baseado na publicação de uma pesquisa nacional sobre o sexo feminino, que teve suas conclusões – algumas surpreendentes para os editores – publicadas na íntegra.
Durante 40 dias no ano de 1966, a revista espalhou dez pesquisadores pelo Brasil com o objetivo de entrevistar 1,2 mil mulheres e ouvir o que elas tinham a dizer sobre temas como família, consumo e sexo. Os dados foram computados pelo Instituto Nacional de Estudos Sociais e Econômicos (Inese) e os resultados apresentados na íntegra em seis páginas da publicação.
Dentre os números reunidos havia, por exemplo, que 97% das mulheres ouvidas dizia acreditar em Deus – sendo que 11% já haviam duvidado. Que 40% das entrevistadas achavam que a mulher é mais inteligente que o homem; 59% respondeu que não e 1% preferiu não responder. E sobre sexo, 67% das entrevistadas continuam achando que a mulher deve casar virgem; 81% das analfabetas tiveram essa opinião; 54% entre as de nível universitário.
[olho]“Ao afirmar ter orgulho de ser mãe solteira, ela foi pioneira do movimento de vanguarda de libertação da mulher dos grilhões medievais”[/olho]
As reportagens abordavam temas como saúde, comportamento, humor, artes, religião, revelando mulheres fortes, batalhadoras, inovadoras e marginalizadas. Apesar de a maioria dos textos serem assinados pelo time de jornalistas da casa, quase todos homens, algumas mulheres foram convidadas para integrar a equipe. Daisy Carta realizou uma pesquisa para uma pauta sobre a “superioridade natural das mulheres”; Carmen da Silva teve contato com milhares de cartas para elaborar um artigo sobre “consultórios sentimentais”, e Gilda Grillo escreveu uma impactante entrevista com uma anônima mãe solteira.
Gilda havia voltado recentemente para o Brasil. Ainda na juventude tinha viajado para estudar na França e Nova York onde conheceu pessoalmente nomes como Greta Garbo, Marilyn Monroe, Simone de Beauvoir, François Truffaut, Catherine Deneuve. “A entrevista com a mãe solteira foi marcante para mim pela enorme coragem que ela teve, naquele tempo”, recorda Gilda, hoje vivendo no Rio de Janeiro, há 30 anos atuando como terapeuta. A autora da reportagem lembra que a mulher recusou-se a casar com o pai da criança se o motivo fosse apenas o filho, o que, na visão da terapeuta, era fora do comum para a época. “Ela foi pioneira do movimento de vanguarda de libertação da mulher dos grilhões medievais.”
Exemplares recolhidos
No entanto, a maior polêmica sobre a revista viria do talento de uma outra mulher, a fotógrafa Claudia Andujar. Nascida na Suíça, chegou ao Brasil nos anos 1950 e realizou trabalhos para a editora Abril. Foi casada com o fotógrafo Love, autor da capa. Posteriormente, sua atuação com as comunidades indígenas ficaria mundialmente conhecida – hoje, há um pavilhão inteiro sobre sua obra no Inhotim, em Minas Gerais. No número dez de Realidade, ela acompanhou o repórter Narciso Kalili em Bento Gonçalves (RS), para registrar o trabalho de uma parteira, publicado em sete páginas.
A foto da parteira dona Odila, de luvas, no momento exato em que acompanha o nascimento do bebê, com a mãe deitada em uma cama de lençóis amarrotados, uma imagem que foi dividida na dobra entre as páginas 72 e 73, motivou uma decisão judicial inusitada.
O Curador de Menores do Estado de São Paulo, Luiz Santana Pinto, requereu ao Juiz de Menores, Arthur de Oliveira Costa, a “imediata e sumária apreensão desta publicação, onde seja encontrada à venda nesta comarca”. O requerimento foi feito no mesmo dia em que a revista chegou às bancas, 30 de dezembro de 1966. O magistrado aceitou e despachou a ordem que os serviços de vigilância e rondas especiais recolhessem os exemplares.
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“A revista foi apreendida por ordem de um Juiz de Menores!”, exclama José Hamilton Ribeiro, à época na redação de Realidade e na ativa até hoje, aos 80 anos, no programa Globo Rural. “Começa aí o absurdo de um governo totalitário: a censura pode vir de qualquer canto, a ditadura se espraia pelas cabeças de todos que têm um pouquinho de poder”, prossegue. O Brasil iniciava o segundo ano de uma ditadura militar que começou com o Golpe de 1964 e que se prolongaria por 21 anos.
Em uma publicação no Diário Oficial, o juiz classificava que a revista tinha “algumas reportagens obscenas e profundamente ofensivas à dignidade e à honra da mulher, ferindo o pudor e, ao mesmo tempo, ofendendo a moral comum, com graves inconvenientes e incalculáveis prejuízos para a moral e os bons costumes”.
No dia seguinte, como descreve a historiadora Rosana Ulhôa Botelho, em seu artigo “Golpes contra a Realidade“, foi a vez do Juiz de Menores da Guanabara, Cavalcanti de Gusmão, adotar medida semelhante. Cerca de 200 mil exemplares já estavam à venda nas bancas. Por volta de 230 mil ainda estavam na gráfica da editora e foram retidos.
“Vista hoje, essa proibição fica ainda mais ridícula, é de dar risada, censurar fotos de um momento glorioso da vida humana, feitas com apuro artístico!”, reforça Ribeiro. “Só mesmo a mente equivocada de uma ‘otoridade’ para ver assim”, brinca.
“A gente sabia que alguns pontos [da edição], como a foto do parto, provocariam discussões”, afirma José Carlos Marão. “A gente esperava boa repercussão de alguns dos temas, como o divórcio. Mas, quando a notícia chegou na redação, a reação foi de perplexidade”, lembra. O jornalista conta que o departamento comercial foi o primeiro a saber.
Segundo Marão, a “venda da revista era tão rápida que não conseguiram apreender muitas – e jornaleiros espertos, percebendo um bom negócio, também esconderam seus exemplares, para a venda futura”.
Em 2011, Roberto Civita (1936-2013), diretor editorial do Grupo Abril, contou para o Jornal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) que “só depois descobrimos que os magistrados tinham sido incitados por um telefonema do Governador de São Paulo (Laudo Natel) que, por sua vez, havia recebido uma ligação indignada do cardeal da arquidiocese (Dom Agnelo Rossi, 1913-1995)”.
A edição seguinte, de fevereiro de 1967, trouxe todo o conteúdo da acusação dos magistrados, bem como a defesa, em forma de reportagem. A capa continha uma ironia: uma foto do renomado fotógrafo americano David Drew Zingg (1923-2000), com o rosto dela, Gilda Grillo. “O Victor Civita então aproveitou para rir da cara da censura, colocando uma moça dando um grande sorriso com o rosto coberto de purpurina. Essa moça era eu”, conta Gilda.
Uma decisão judicial favorável à revista seria dada 21 meses depois, mas os exemplares recolhidos já haviam sido destruídos.
Para Marão, o episódio com a Justiça, dois anos antes do rigoroso Ato Institucional nº 5, deixava claro que os holofotes estavam voltados à Realidade. “O que deu para sentir foi o quanto aquela revista nova, que estava ainda na sua edição número 10, já era muito importante no País”, diz.
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Não é preciso explicar muito o quão diferenciada era a redação de Realidade. Basta ler o primeiro parágrafo da reportagem que causou a apreensão das revistas nas bancas, vindas da Studio 44, máquina de escrever portátil da Olivetti, operada por Narciso Kalili.
A cidade de Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, vive no fundo de um vale cercado por montanhas cobertas de trigo, cevada e parreiras verde-brilhante. O povo fala alto e os gestos acompanham as palavras – a colonização foi feita por imigrantes italianos. Chamam-se a si mesmos gringos embora tenham nascido, em sua maioria, no Brasil. As casas são de madeira e há muitas flôres em seus jardins. O pão é feito em casa e em tôdas as mesas estão o galetto e a polenta. Depois que a indústria começou a sustituir a agricultura, êles fixaram-se na cidade e transformaram-se em operários e comerciantes. Os hospitais foram surgindo e o progresso acabou com muitas tradições, uma delas a parteira que atendia a domicílio. Mas muita gente de Bento Gonçalves ainda não troca a dona Odila pelo médico. Esta é a história de um de seus partos.
“O destino me colocou ali, naquele momento em que diversas circunstâncias históricas se confluíram para gerar um fenômeno jornalístico reconhecido em sua época”, explica José Hamilton Ribeiro, que afirma ainda reconhecer “certas facetas de nosso jornalismo”, especialmente às propostas voltadas à pesquisa, investigação e ao apuro em relação ao texto.
[olho]“A mulher hoje é, sim, bem menos perseguida e tem direito à voz de uma forma que naquele tempo poucas mulheres se arrogaram a ter”[/olho]
E ao utilizar dessas virtudes jornalísticas para falar das mulheres, a revista deu de cara com os rigorosos valores e costumes da época. “Fico imaginando como seria se, naquele tempo, alguém falasse em união de gays ou casais em seu segundo ou terceiro casamento e que, apesar disso, criam os filhos com amor e harmonia”, reflete José Carlos Marão, que ouviu três mulheres divorciadas que optaram por usar nomes fictícios na edição. “O que chamavam de ‘divórcio’ era, para muitos, coisa do demônio e, para outros, uma imoralidade.”
Mas, e se colocada em perspectiva, qual o impacto de uma publicação como a Edição Especial – A mulher brasileira, hoje, passados cinquenta anos? Gilda Grillo, apesar de ter vivido grande parte desse período fora, afirma que a realidade da mulher mudou drasticamente. “A mulher hoje é, sim, bem menos perseguida e tem direito à voz de uma forma que naquele tempo poucas mulheres se arrogaram a ter”, diz.
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Sérgio carrega o sobrenome de seu pai, Narciso Kalili, repórter que assinou a tão comentada reportagem “Nasceu!”. O filho conta que o autor não falava muito sobre o assunto. “Meu pai não gostava muito de viver do passado, de falar do passado. Estava sempre ligado no presente. Era uma característica dele. Sempre com muitos projetos, sempre em ebulição”, lembra.
Lamenta, também, não ter tido tanto tempo para tratarem desse tema. “Ele morreu muito cedo (em 1992). Não deu tempo de conversar muito sobre o passado”, diz.
Sua homenagem ao legado do pai – e de toda equipe – virá em formato audiovisual. Ao lado de Marcelo Souza, filho do então editor de texto, Sérgio de Souza (1934-2008), pretendem produzir uma série e um documentário sobre “a turma que fez Realidade e que, posteriormente, continuou na imprensa alternativa”. Os trabalhos estão em andamento e alguns depoimentos já foram gravados.
“Meu pai gostava de dizer que o tempo passou, mas que ele não havia se corrigido. Dizia que era um jornalista fora de moda”, lembra Sérgio, ao dizer que o pai continuava humano, companheiro, idealista, sensível e buscando trazer justiça com a profissão para os mais pobres. Kalili também dizia que “jornalismo imparcial não existe”. Seu último texto escrito antes de partir foi o prefácio da primeira edição de Rota 66 (Record), de 1992, livro-reportagem de Caco Barcellos. “Lá ele disse que jornalista tem lado e que Caco escolheu o lado do povo. Ele estava falando dele também.”
“Ano que vem eu quero estar na praia, vendendo minha arte… das coisas que a natureza dá pra gente.” Foi com essa resposta meio desconexa que uma jovem atriz disfarçada de atrasada do ENEM 2013 ganhou a simpatia dos internautas brasileiros e virou ícone de uma juventude, digamos, pouco ambiciosa. Mesmo desmascarada, a personagem Milena ainda aparece na foto de perfil da página “Ajudar o povo de humanas a fazer miçanga” — criada pela curitibana Dominique Vargas, que trocou de faculdade sete vezes antes de descobrir que sabia fazer humor no Facebook.
Em 2012, Eric Barone morava em Seattle e tinha acabado de terminar o curso de Ciência da Computação quando se candidatou a algumas vagas de emprego. Ninguém telefonou. Desanimado com as pressões da vida adulta, mas acolhido pela namorada e amigos “boêmios”, resolveu fazer sua própria versão do colar de miçangas do povo de Humanas: um joguinho simples que serviria como exercício de programação e nada mais. O passatempo acabou se transformando em quatro anos de autoexílio de apartamento, busca pelo sentido da vida e, graças a uma rotina de trabalho de até 10 horas diárias, no maravilhoso jogo Stardew Valley. Lançado em fevereiro de 2016, o RPG conquistou uma das comunidades mais empolgadas da história do indie e vendeu mais de 1 milhão de cópias só nos dois primeiros meses.
Embora até o horroroso Farmville já tenha explorado a vida no campo, Stardew Valley é uma criatura bem diferente. Com seu jeito amigável, parece ter encontrado o terreno perfeito no coração de uma geração que conhece bem a insatisfação profissional e as perguntas que levam ao caminho da simplicidade. Seria Stardew o jogo terapêutico feito sob encomenda para o novo milênio? Para entender esse fenômeno, conversamos com seu criador, Eric Barone, com desenvolvedores brasileiros que acompanham a comunidade indie e com jovens que decidiram viver mais perto da natureza sem o auxílio de computadores.
Um lugarzinho chamado nostalgia
O protagonista de Stardew Valley tem um privilégio que o próprio Eric Barone, os atrasados do ENEM e milhões de moradores do Brasil em crise não tiveram: uma resposta fácil. Quem oferece a saída de emergência é o avô, numa carta planejada para um futuro em que o “fardo da vida moderna” se tornaria insuportável. A praga “do bem” se concretiza já na cena seguinte, quando encontramos o neto, agora adulto e deprimido, em um dos cubículos de uma grande empresa chamada Joja Corporation. Entre seus colegas de escritório está um cadáver em decomposição que ninguém recolheu da mesa de trabalho — uma simpática gravura do capitalismo.
[olho]Entre seus colegas de escritório está um cadáver em decomposição que ninguém recolheu da mesa de trabalho — uma simpática gravura do capitalismo[/olho]
Na conveniente cartinha, nosso herói ou heroína descobre que herdou uma fazenda na cidade de Pelican Town, na região fictícia que dá nome ao jogo. E o remetente já avisa que essa história não tem nada de original: “A mesma coisa aconteceu comigo muito tempo atrás. Tinha perdido de vista o que mais importa na vida… conexões reais com as pessoas e com a natureza. Então larguei tudo e fui para o lugar a que eu realmente pertencia”. De maneiras que talvez só a psicanálise explique, Eric Barone também parece ter buscado refúgio no universo em que se sentia mais à vontade: o exercício que decidiu fazer naqueles dias de desemprego começou como um clone capenga de um dos jogos de videogame que mais assombraram sua infância, o simulador de fazenda Harvest Moon.
Em uma conversa por e-mail e DMs pelo Twitter, em meio à fama recém-adquirida e à falta de tempo, Eric conta que foi o gameplay “simples, doméstico e pacífico” que o atraiu no primeiro título da franquia, lançado em 1996 para Super Nintendo. “A maioria dos RPGs leva o jogador a uma aventura grandiosa e cheia de perigos. Em comparação, ‘Harvest Moon’ era seguro e reconfortante”, relembra. “E tem a ideia romântica de que a vida no campo é mais real, mais natural. Acho que uma parte de mim também buscava isso.”
É tudo tão familiar que não dá para saber onde as semelhanças entre Stardew Valley e Harvest Moon começam e terminam. A sensação de perder tempo demais com uma atividade ingênua e constrangedora, mas estranhamente prazerosa, é uma delas. Outra está nos ciclos da natureza que regem a plantação de frutas e legumes, a criação de animais e o relacionamento com a comunidade. Cada dia propõe um espaço aberto para que o jogador possa planejar seus objetivos como quiser, apenas aceitando que o fazendeiro, trabalhador que é, dorme cedo e acorda com as galinhas. Cada mês equivale a uma das quatro estações do ano e traz sementes exclusivas, comemorações sazonais e oportunidades imperdíveis de fazer negócio. Por mais idealista que seja, o personagem precisa vender o que produz para sobreviver (ou para ficar rico, mesmo, nada contra).
[olho]Para a geração que cresceu com SNES e Mega Drive, o jogo é a própria carta do vovô, mas seu presente é o agradável refúgio da nostalgia[/olho]
Parece natural, também, que as fitas do passado tenham influenciado diretamente a estética da homenagem. Os gráficos de Stardew Valley — que Eric refez várias vezes enquanto suas técnicas evoluíam ao longo do tempo — trazem o que a era 16-bit tinha de mais vistoso. São cores vivas, folhas pequeninas voando com o vento e seres humanos com um rostinho que você não enxerga direito, mas simpatiza bastante. Para a geração que cresceu com SNES e Mega Drive, o jogo é a própria carta do vovô, mas seu presente é o agradável refúgio da nostalgia.
Quem acompanhou o trabalho dos desenvolvedores independentes nos últimos anos sabe que o “retrô” não é uma escolha tão incomum: já tinha acontecido em sucessos como FEZ, Braid e Terraria, para citar só alguns. Eric explica que a opção vai além do impacto emocional: “Enquanto a gente envelhece e as novas gerações chegam aos 20 anos, o período que chamamos de ‘retrô’ também vai mudando. Mas tem uma coisa: alguns estilos de arte envelhecem melhor que outros. Gráficos em pixel art 2D, por exemplo, ainda têm uma cara ótima para os jovens de hoje, mas os gráficos 3D da era do Playstation 1 ficaram horríveis”.
Thais Weiller, pesquisadora e game designer que fez parte da equipe dos jogos nacionais Oniken e Odallus, ambos com gráficos 8-bit, vê a tendência também como um caminho necessário para que equipes indie sobrevivam. “Um jogo em pixel art, apesar de ser muito trabalhoso, pode ser feito por uma ou poucas pessoas, como o próprio Stardew Valley. Um jogo 3D ou com pintura digital já envolve mais horas de trabalho e diferentes habilidades, o que torna tudo mais difícil para uma equipe pequena.”
As coisas que a natureza dá
Em Pelican Town, o primeiro contato com a plantação tende a ser modesto e até desastroso: o jogador mais descuidado corre o risco de demorar para entender algumas das mecânicas, já que não há nada parecido com um tutorial. Conversar com os moradores da vizinhança pela primeira vez não é lá grande coisa, embora o personagem possa, se cultivar uma paixão com muito esforço, casar e ter filhos. Pescar também não relaxa ninguém — o minigame difícil rendeu muita reclamação. Nas minas, o herói, munido de espadinha e picareta, pode tanto encontrar tesouros e riquezas quanto sucumbir ao ataque de insetos e morcegos. Muitas dessas experiências meio truncadas, meio vida real, só começam a fazer sentido com a prática e mostram a inteligência do design do jogo.
Chamar o protagonista de Stardew Valley de “fazendeiro”, na verdade, não faz jus a seus talentos. Com os ingredientes que se multiplicam já nas primeiras estações, nasce um artesão. Não basta plantar, regar (à exaustão) e colher. Uva e morango vão para os potes de geleia, rabanete e berinjela fazem ótimos picles, leite fresco se transforma em queijo, ovos em maionese — itens que o menu chama de “Artisan Goods”. Peixes, vegetais, farinha e açúcar também se misturam em receitas na cozinha da casa — só não vale carne: Eric é vegetariano e disse não se sentir à vontade com o abate dos animaizinhos. Com recursos como madeira, pedra e fibra, é possível fazer anéis, espantalhos e objetos de decoração. Encontrando diferentes minerais, o personagem se torna um colecionador excêntrico e colaborador frequente do museu da cidade.
A variedade impressionante de flores, frutos e surpresas que Eric Barone criou, sozinho em casa, faz com que ele também ganhe ares de colecionador ou artesão. “Dá pra ver o quanto cada coisinha foi feita com carinho”, diz Thiago “Beto” Alves, game designer da produtora Black River Studios.
Há objetivos maiores que organizam o inventário e guiam as conquistas. Um deles é a reconstrução do Community Center, um espaço comunitário que promete trazer uma vida melhor à pequena população. Mas nem o amor ao próximo é obrigatório: no começo da história, o jogador mais incoerente tem opção de entregar o casarão abandonado à mesma Joja Corporation que o fazia infeliz. Já os festivais e comemorações, inspirados em datas como Natal e Dia das Bruxas, se espalham pelo calendário e levam a comunidade às ruas, às vezes para fazer nada em conjunto, como na apática “Flower Dance”. Na “Stardew Valley Fair”, feira em que produtores locais expõem sua produção, dá vontade sincera de mostrar o melhor da fazendinha aos visitantes.
[olho]Eric Barone diz ser um defensor dessa fuga controlada que os videogames oferecem[/olho]
Como acontece em aventuras pouco lineares, que deixam o destino à sua escolha e costumam durar mais, Stardew Valley tem muita chance de inaugurar um período de isolamento, o famoso “adeus, vida social!”. Na versão atual, a narrativa principal chega ao fim no começo do terceiro ano de tempo do jogo, mas há registros de jogadores que investiram mais de 400 horas de vida real. Beto conta, rindo, que completou 66 horas em dez dias. Na última vez que chequei, eu estava com 55 horas de jogo.
Entre gamers um pouco compulsivos, parece haver um acordo silencioso: o exagero está permitido quando, no fundo, se entregar a uma jornada como a de Stardew Valley também é um jeito de realizar o sonho de “largar tudo e ir morar no mato” sem sair do conforto da cidade. Eric Barone diz ser um defensor dessa fuga controlada que os videogames oferecem: “Como jogador, gosto muito de jogos imersivos que me tirem da rotina. Não é que eu esteja tentando evitar minhas responsabilidades, mas gosto de tirar uma folga da consciência normal”.
Menos sarcasmo, mais carinho
Stardew Valley tem a seu favor o charme do passado e as armadilhas do vício, mas esses não são os únicos motivos por trás de seu sucesso instantâneo. Na opinião do game designer Beto Alves, a proximidade entre criador e público é uma das vantagens da cena independente. Pela internet — que ironicamente não existe em Pelican Town, um lugarejo movido a papel de carta e TV de tubo —, Eric Barone conseguiu se manter muito próximo dos futuros fãs. Na fase de desenvolvimento, recheou o blog oficial com novidades redigidas sem cerimônia e seu perfil no Reddit com anedotas e respostas amistosas às perguntas de anônimos. Como se não bastasse, Eric tem usado o Twitter para divulgar novidades, fazer enquetes sobre novos conteúdos e até ajudar jogadores com bugs ou arquivos danificados.
Toda essa generosidade despertou uma reação igualmente generosa na comunidade virtual. Também no Reddit, fãs chegaram a enviar cópias originais para usuários com menos recursos financeiros ou uma versão falsificada no HD, numa corrente de ódio à pirataria e amor ao desenvolvedor. Em poucos meses, a página no Steam — que também vende a ótima trilha sonora, feita adivinha por quem? — registrou mais de 18 mil resenhas positivas, enquanto os votos negativos não passam de 400.
Voltando à ficção, alguns dos personagens de Pelican Town falam de forma tão gentil, tão direta, tão despida do humor irônico da internet que parecem um pouco anestesiados, meio fora do ar. Seria herança da Nintendo ou apenas um jeito econômico de escrever? “Foi uma escolha consciente. Acho que meu jeito acabou aparecendo”, diz Eric. E aproveita para alfinetar: “Na vida real, não sou muito fã de sarcasmo e piadas internas. Acho que geralmente são uma forma de diminuir os outros”.
Essa abordagem tão pessoal ainda é rara mesmo na cena indie, opina Beto. “Hoje há uma receptividade maior para esse tipo de jogo. Vejo isso pelo impacto que ‘Firewatch’, ‘Her Story’, ‘Life is Strange’, por exemplo, tiveram. Na minha opinião todos eles atingem, cada um à sua maneira particular, questões sensíveis aos jogadores e, por isso, geram um engajamento muito grande.”
Há estereótipos, como o adolescente atlético, o médico hipocondríaco e a mãe preocupada, que aparecem em Stardew Valley para tentar driblar as expectativas do jogador, revelando aos poucos uma personalidade mais rica. Imperfeitos, Pam e Linus mostram elementos sombrios que ajudam a equilibrar o clima alegre da cidade. Ela, que mora num trailer e trabalha como motorista de ônibus, é uma mulher de meia-idade com problemas com o alcoolismo. Ele, que vive em uma barraca de acampamento — único ambiente privado da cidade em que o protagonista consegue entrar a qualquer momento — e às vezes vasculha o lixo dos vizinhos, um dia revela o inesperado: “O ar límpido do campo é tudo que preciso conhecer. Vivo aqui porque escolhi”.
[olho]“O ar límpido do campo é tudo que preciso conhecer. Vivo aqui porque escolhi”[/olho]
Ao contrário do que os mais humanitários pensariam, Eric Barone apoia as decisões de Linus: “Ele está feliz de verdade com a vida que tem. É um lembrete para que a gente não tire conclusões sobre as pessoas antes de tentar entender de onde vieram”. Diante desse conflito, o desafio do jogador é não se sentir cúmplice do inimigo, a própria Joja Corp: se o protagonista tem tanta terra, por que não divide um pouco com o novo amigo que passa frio em sua tenda no inverno rigoroso — vestindo apenas um traje amarelo de homem das cavernas sem calças por baixo?
Viver de amor e geleia caseira
Até o começo de 2016, Eric Barone era um desenvolvedor com um currículo vazio que não se imaginava vivendo o dia a dia de um escritório ou trabalhando em equipe — comportamentos que, para muitos, ainda estão ligados a uma carreira sólida. Em seu perfil no Reddit, ele conta que o momento “fundo do poço” veio mais ou menos um ano antes do lançamento de Stardew: em uma reunião de família, sua avó comentou que não acreditava mais que o neto um dia terminaria aquele tal joguinho de videogame.
Hoje, Eric e sua produtora de um homem só, a ConcernedApe, têm propostas de trabalho e projetos para o futuro. “Encontrei meu ‘emprego dos sonhos’, com certeza. Sei que sou muito privilegiado por estar nessa posição e que isso é impossível para muita gente. A verdade cruel é que sempre será necessário que existam pessoas fazendo o pior trabalho para que o mundo continue girando”, pondera.
[olho]”A verdade cruel é que sempre será necessário que existam pessoas fazendo o pior trabalho para que o mundo continue girando”[/olho]
Eric conta que a narrativa de Stardew Valley, além da óbvia inspiração em “Harvest Moon”, surgiu quando notou em si mesmo e nos amigos uma dificuldade de lidar com o “vazio da vida moderna”. Ele não costuma enumerar os elementos que compõem esse vazio, talvez intuindo que o público já o conheça bem. “Acho que é uma história com que muitas pessoas podem se identificar”, diz. Thiago “Beto” Alves concorda que essa é uma das qualidades do jogo: “É um momento bem apropriado, em que muitas pessoas estão buscando a fuga da rotina caótica. Eu mesmo já pensei em largar tudo e viver no mato, mas ainda tenho coisas que gostaria de fazer. Ainda não é o momento (risos)”.
A ideia de um estilo de vida mais consciente ou menos sujeito ao vazio a que Eric se refere parece guiar muitos dos jovens nascidos entre 1970 e 1990. O emprego estável, tão importante para outras gerações, não tem mais o mesmo apelo. No lugar do fast food, do fast fashion e do carro do ano, ressurgem a bicicleta, o consumo sustentável e um jeito mais cuidadoso de tratar a comida. Escolhas a que alguns atribuem o termo “hipster” são, para outros, experiências de pertencimento e cidadania.
No Brasil, se a crise aumentou o desemprego, também pode ter encorajado o espírito empreendedor de quem tem condições mínimas para abrir o próprio negócio. Com o maior interesse na alimentação saudável, o setor dos orgânicos vem crescendo há alguns anos. Nesse cenário, o fascínio por ideias “menos urbanas” parece ganhar espaço.
Caio Tavares queria encontrar uma vida “mais conectada à natureza” quando saiu de São Paulo, onde trabalhava com planejamento em agências de publicidade, para morar na Chapada Diamantina. “Durante um período de descontentamento com minhas escolhas profissionais, esbarrei em uma coisa chamada permacultura. Isso mudou minha forma de olhar e pensar o mundo”, explica. Hoje, numa espécie de Stardew Valley realista, Caio se dedica ao cultivo de alimentos, mas diz buscar um meio-termo para seguir a transição do urbano para o rural.
Em sintonia acidental com Eric Barone, Caio — que desativou seu perfil no Facebook há poucos dias — se refere ao cotidiano nas grandes cidades e sua “lógica do capital” como “a máquina de amassar gente”. Para ele, a vontade de fugir da máquina não aumentou, as ferramentas é que evoluíram. “O que vejo, sim, é uma busca por alternativas, mesmo que nos ambientes urbanos. Composteiras e minhocários de apartamento, por exemplo, têm gerado discussões nos papos de bar.” E completa: “O êxodo urbano é a onda”.
Para quem não pode viver integralmente esse novo fugere urbem, uma das alternativas é levar um pouco da ideia de natureza para casa — seja em forma de samambaia, compota, bordado ou roupa produzida de forma artesanal. Em São Paulo, a Jardim Secreto Fair reúne pequenos produtores e suas criações em “jardins escondidos” por vários bairros. Em três anos e 12 edições, os 15 expositores do começo se multiplicaram: hoje são 120. No início circulavam pelo evento 300 pessoas, na última edição foram 5 mil.
Criadoras do projeto, as amigas Claudia Kievel e Gladys Tchoport veem um “lance de consciência coletiva” na busca que une expositores — que têm de 18 a 50 anos — e visitantes — de 25 a 40. E uma mudança de comportamento na crise: “As pessoas estão não só dando mais valor a quem faz com cuidado, mas também estão percebendo que produzir suas próprias coisas faz muito mais sentido. Comprar do pequeno produtor funciona melhor”, conta Claudia.
Como acontece na “Stardew Valley Fair” da ficção, a insatisfação com os empregos tradicionais motivou muitos dos artesãos que participam da feira paulistana. “A maioria dos expositores tinha trabalhos tradicionais e resolveu mudar. Alguns ainda têm e levam os dois caminhos juntos. Quem tem medo de abandonar a vida segura em um emprego acaba levando como hobby”, explica Gladys.
‘Achievements’ da realidade
Enquanto o trabalho de escritório e o sucesso profissional ficam cada vez mais impopulares, o buzz em torno de Stardew Valley mostra que ainda há espaço para jogos de videogame que convidam o jogador a, vejam vocês, trabalhar por horas a fio. Nas últimas décadas, quem aprecia o gênero talvez já tenha acumulado experiência na administração de cidades, zoológicos, hospitais, prisões e restaurantes. Mas será possível que o ser humano possa gostar mais de trabalhar de mentira do que quando há dinheiro real envolvido? O que fizemos com nossas vidas?
A pesquisadora Thais Weiller tem uma explicação: “O ‘trabalho’ do jogo é uma experiência que foi feita para ser prazerosa. Tem duração certa, com intervalos para feedbacks e bonificações. Se toda atividade laboral tivesse um pouco mais desse cuidado, com certeza o trabalho ‘real’ poderia ser bem mais divertido”. Eric Barone concorda, observando que as pessoas gostam de trabalhar quando há “propósito real” naquilo que fazem, não quando se sentem presas a funções “chatas e repetitivas”.
Em busca de propósito e prazer, uns voltam para o campo, outros para o campo pixelado do videogame da infância — e o que poderia ser “egotrip” improdutiva ganha mais sentido quando alcança o outro. Quem se dedica a Stardew Valley na solidão no computador compartilha o espírito do tempo, as boas intenções e a má postura com Eric Barone. Em resposta a uma pergunta meio cínica sobre seus sentimentos naqueles quatro anos em que aperfeiçoava o jogo, ele resume seu objetivo ao mesmo tempo humildão e ambicioso: “Trazer mais alegria para o mundo”.
Sem meias palavras: “Capitão América: Guerra Civil” é um filme ótimo – e não só um “filme de herói” ótimo. Lançado pouco tempo depois de “Batman vs Superman”, fica ainda melhor (desculpe, Ben Affleck, você fez o que pôde). No papel, há bastante coisa em comum entre os dois filmes: uma discussão sobre a destruição nas cidades causadas pelas épicas batalhas entre heróis e vilões, o valor de vidas individuais em comparação com o bem maior, que é conter os tais vilões, super-heróis cujas visões divergem e, por isso, brigam em longas sequências de ação. O ponto de partida é mais ou menos parecido, mas os caminhos tomados por cada filme são muito diferentes.
Enquanto por décadas estudiosos debaterão as motivações de Batman, Superman e, principalmente, Lex Luthor, em “Capitão América” é possível entender o lado de cada personagem, sentir as dúvidas que cada um deles tem sobre suas posições e a dificuldade que é ficar contra um amigo. Mas não coloquemos o carro na frente dos bois e vamos à premissa: uma batalha dos Vingadores em Lagos, na Nigéria, resulta na destruição de um prédio e na morte de inocentes. Não é a primeira vez que isso acontece, como o filme lembra a seguir, retomando lutas como as de “Vingadores: Era de Ultron”, na fictícia Sokovia, e de “Os Vingadores”, em Nova York. Cada vitória contra um vilão vem com um preço. Até então, os Vingadores agiam por conta própria, e o governo americano quer colocar o fim nessa situação, fazendo um acordo para controlá-los, num esforço entre outros países do mundo. Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades e a nova regra é: super-heróis também devem se sujeitar à regulação.
Logo dois lados se formam. Tony Stark, o Homem de Ferro (Robert Downey Jr.), movido pela culpa, é a favor do acordo. Do seu lado ficam Visão (Paul Bettany), Máquina de Combate (Don Cheadle) e a Viúva Negra (Scarlett Johansson) — e os novos recrutas Homem-Aranha (Tom Holland) e Pantera Negra (Chadwick Boseman). Cada um ali tem uma razão, que não cabe aqui explicar. Capitão América, porém, acha que é fundamental que eles mantenham a liberdade. E se houver uma ameaça e eles não puderem agir? Para ele, o mundo estará mais seguro se os heróis puderem resolver os problemas do jeito que acharem melhor — é um mundo estranho em que o bilionário quer mais regulação do Estado e o ex-militar patriota vai contra o governo – algo que só faz sentido por causa de todos os outros filmes da série, que nos prepararam para esse momento.
Com o Capitão América ficam a Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen), Gavião Arqueiro (Jeremy Renner), Falcão (Anthony Mackie) e o Homem-Formiga (Paul Rudd). O clima ali já não era dos melhores e fica ainda pior quando Bucky Barnes (Sebastian Stan), melhor amigo do Capitão América, entra no meio da história: um lado quer capturá-lo, outro quer salvá-lo.
[olho]Ajuda o fato de que os filmes da Marvel hoje quase funcionam como uma série de televisão, uma narrativa longa formada por vários episódios separados[/olho]
É uma boa discussão e o roteiro, redondinho, faz com que todos os lados da questão sejam razoáveis, coerentes. Ajuda o fato de que os filmes da Marvel hoje quase funcionam como uma série de televisão, uma narrativa longa formada por vários episódios separados. Sabemos quem é o Capitão América, já o vimos em vários filmes diferentes. Também sabemos quem é o Homem de Ferro, sabemos o quanto está em jogo para cada um deles. Quando, na cena do trailer, Capitão América diz para o Homem de Ferro que Bucky é seu amigo e ele responde “eu também era”, há um peso ali. Com tantos personagens em cena (realmente, são muitos), é difícil dar a cada um seu próprio arco, construir pessoas complexas, com motivações compreensíveis e diferenças difíceis de serem resolvidas.
Os novos personagens, aliás, são quase todos introduzidos com perfeição. O Pantera Negra de Chadwick Boseman, que tem um papel importante na trama, anima para seu primeiro filme solo, que estreia em 2018. Como alguém que não tinha embarcado completamente na ideia de um terceiro Homem-Aranha em tão pouco tempo, devo dar o braço a torcer e reconhecer que a participação de Tom Holland é excelente. Seu herói tem personalidade, empolga e é engraçado. Outro ponto a favor de “Capitão América”: o filme não é só (ótimas) lutas e grandes discussões. Ele é divertido — e as melhores piadas não foram reveladas no trailer. O ponto fraco é o vilão, Zemo (Daniel Brühl). Ele não compromete, mas é apenas ok. Em um filme com tantos heróis, era de se esperar um vilão mediano.
Que Robert Downey Jr. seja todo o ano o ator mais bem pago do mundo, à frente de, por exemplo, Jennifer Lawrence com seu conjunto “Jogos Vorazes + X-Men + várias indicações ao Oscar”, não cansa de me surpreender. Mas foi com seu Homem de Ferro que a Marvel inaugurou esse universo, com tantas histórias entrelaçadas. Foi uma estratégia e tanto, do ponto de vista deles (quem acompanha o universo provavelmente vai continuar vendo os filmes) e do espectador, que sabe que em algum ponto do ano vai ter um filme que pode ser incrível, mas no mínimo será reconfortante como uma macarronada de domingo. No caso de “Capitão América: Guerra Civil”, felizmente, o nível está mais próximo do “incrível”.