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Cinema sem fim

Dias antes do início da 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2012, Renata de Almeida, organizadora do evento, deu uma entrevista à Folha de S.Paulo em que dizia que a Mostra é como uma “miragem”, que “nasce e morre todo ano”. Aquela era a primeira edição que Renata produzia do início ao fim sem a companhia do marido Leon Cakoff, idealizador e sinônimo da Mostra, morto um ano antes em decorrência de um câncer – uma semana antes da abertura da edição de 2011.

“Foi um ano de teste de sobrevivência para a Mostra. Por mais que eu trabalhasse com o Leon há mais de vinte anos, a Mostra era muito ligada à figura dele. Era uma situação um pouco crítica, em que eu não podia mostrar fraqueza e havia pressão de vários lados. Mas foi uma Mostra linda”, lembra Renata. Agora, quatro anos depois, ela está orgulhosa da edição que comemora os 40 anos da Mostra, um festival-maratona de cinema idealizado e nascido em São Paulo, que reúne milhares de cinéfilos de várias gerações em torno de novidades, raridades e retrospectivas de diretores de qualquer país possível de ser apontado num mapa; um ponto de encontro de cineastas que vão do iraniano Abbas Kiarostami (que morreu em julho e considerava Renata uma irmã) ao então desconhecido Quentin Tarantino.

Nas duas semanas de Mostra, que neste ano acontece de 20 de outubro a 2 de novembro, cerca de mil pessoas estarão envolvidas na projeção dos 322 filmes em 42 locais de exibição – inclusive no circuito SP Cine na periferia –, na organização dos encontros com diretores, na exposição sobre “Persona”, de Ingmar Bergman, no Itaú Cultural, nos diversos encontros e mesas, além dos profissionais de transporte, comunicação, tradução, legendagem e uma série de outras atividades. A sede da Mostra funciona em um pequeno prédio de dois andares em uma travessa da rua Augusta, a menos de cem metros do Espaço Itaú de Cinema, cujas salas recebem tradicionalmente os filmes selecionados para o festival. Nas semanas que antecedem a abertura, um “núcleo duro” de cerca de 30 pessoas trabalha de manhã até tarde da noite em um vaivém de caixas e materiais para colocar o festival em pé.

Tudo isso, naturalmente, tem um custo. “O mais difícil nesses dois últimos anos tem sido financiar a Mostra”, afirma Renata. A crise econômica dos últimos dois anos diminuiu o investimento dos patrocinadores, grande parte órgãos públicos e estatais, como a Prefeitura de São Paulo e a Sabesp. A redução do aporte da Petrobras foi especialmente sentida. “Já houve ano em que a Petrobras anunciava no encerramento da Mostra o patrocínio da próxima, mas isso não tem acontecido mais. O ideal seriam ter contratos por dois anos ou já ter o da próxima”, diz.

O orçamento ideal da Mostra, segundo Renata, é de R$ 8 milhões, mas o valor não tem sido alcançado nos últimos anos – apesar disso, a única ocasião em que o evento fechou no vermelho foi justamente na 36ª edição, a primeira sem Cakoff. A Mostra atual está trabalhando com um orçamento de cerca de R$ 6 milhões. A estratégia de Renata é cortar despesas naquilo que não vai prejudicar o público: festas, convidados, passagens e o que for possível na equipe. Se o corte precisar ser mais drástico, só aí se pensa em diminuir a quantidade de filmes. “Trazer um filme, no final, tem um custo muito caro: a tradução é cara, a legendagem é cara, tem o transporte, aluguel. Cada filme tem um custo grande.”

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Evento de lançamento da Mostra deste ano. Crédito: Divulgação
Evento de lançamento da Mostra deste ano. Crédito: Divulgação

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Mesmo assim, o modelo do festival permite adaptar a programação ao dinheiro disponível. “A Mostra é elástica, você pode fazer do tamanho do orçamento”, explica Renata. “A gente tenta cortar tudo que não atinge o público. A sessão ao ar livre no parque Ibirapuera com orquestra é uma sessão gratuita e que vai muita gente, é prioridade. A sessão no vão livre do MASP, que também virou uma sessão simbólica e é gratuita, a gente mantém.”

Aos 50 anos e envolvida com a produção da Mostra desde os 23, Renata ainda não se acostumou com a ideia de precisar pedir dinheiro todo início de ano, assim que as contas da Mostra anterior são fechadas, para fazer o próximo evento acontecer. “Sou super grata aos patrocinadores, graças a eles que a Mostra está acontecendo. São 40 anos, é uma Mostra comemorativa e conseguimos segurar quase tudo. Mas a realidade é que há uma data. Isso é desgastante”, diz.

Nos dias que antecedem a sessão de abertura da Mostra, no entanto, a angústia e o pessimismo – “o Brasil estava pessimista” – começam a dar lugar a uma sensação de dever cumprido ao ver, finalmente, as peças se encaixando: as confirmações de filmes na última hora, o catálogo ficando pronto, a curadoria finalmente tomando a forma de um festival de cinema. “A coisa mais emocionante para mim é quando você está aqui cansada, pensando ‘não vou fazer mais isso’, e quando a Mostra começa você sai pelos bares aqui perto e as pessoas estão com a programação na mão.”

Nesses cinco anos à frente da Mostra, Renata defende que a curadoria está muito forte, até com um caráter jornalístico em relação ao que vem acontecendo no cinema e no mundo. É a “parte boa” e a que ela mais gosta de fazer, um trabalho por tanto tempo dividido com Cakoff. Os focos e encontros ganharam importância – assim como a quantidade de filmes para ver e selecionar antes do festival. “Antes, uma pessoa, ou Leon ou eu, conseguia ver todos os filmes que vinham para a Mostra, em DVD. Hoje são 1,4 mil que vêm por link. Veja o quanto mudou em cinco anos”, ressalta. Uma equipe de dez pessoas faz esse trabalho, com o cuidado de manter um equilíbrio entre os países. Renata está cansada, mas a perspectiva das próximas semanas a deixa feliz.

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A história da Mostra de Cinema de São Paulo é indissociável de Leon Cakoff, seu idealizador e figura fundamental para a continuidade do evento – graças a ele, a Mostra resistiu à cretinice da censura durante a ditadura militar e atravessou os áridos anos de planos econômicos mirabolantes. Cakoff nasceu Leon Chadarevian, em 1948, na cidade de Aleppo, na Síria. Sua família, de origem armênia, imigrou para o Brasil quando ele ainda era criança. Antes de completar 20 anos, começou a carreira como jornalista nos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Durante o dia, era crítico de cinema no Diário de São Paulo; à noite, era repórter plantonista no Diário da Noite, jornal de estilo sensacionalista.

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Renata e Leon. Crédito: Imprensa Oficial
Renata e Leon. Crédito: Imprensa Oficial

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Embora o jornalismo das empresas de Chatô estivesse alinhado ao regime militar e não poupasse elogios ao governo, Cakoff já buscava em seus textos apontar para além do que a censura permitia: cineastas das revoluções e dos cinemas novos ao redor do mundo. No livro “Cinema sem fim”, publicado pela Imprensa Oficial na ocasião dos 30 anos da Mostra, Cakoff escreve:

“Como crítico de cinema já saía em defesa dos excluídos do sistema de distribuição. Meus preferidos estavam aqui mesmo no Brasil; no Japão de Kurosawa, Sugawa, Oshima, Shindo; na Itália de Fellini, Visconti, Pasolini; na França de Truffaut Brasson, Godard; na América de Cassavetes e Peckinpah. Estavam também no fervor dos maios de 1968, nas ideias em transe de cineastas que empunhavam câmeras como se fossem armas”

As tentativas de falar de um cinema fora do circuito nas páginas do jornal – e de denunciar que a censura existia, sim, e mutilava filmes a ponto de tornar-lhes incompreensíveis, renderam a ele o conselho de adotar o pseudônimo. O desencanto com as restrições da carreira de crítico de jornal incentivou Cakoff a se aproximar do Masp (o museu era uma iniciativa de Chatô, afinal) e de seu diretor, Pietro Maria Bardi.

A partir de 1975, Cakoff começou a organizar no auditório do museu pequenas revisões de cinematografias e diretores antes inacessíveis ao público brasileiro. Seu grande trunfo são os contatos com representações diplomáticas. “Descubro nos primeiros quatro anos de voluntariado no Masp que é possível romper o cerco das censuras com a ajuda prestimosa de consulados, embaixadas e representações culturais”, escreve. E continua: “Que posso trazer os filmes das minhas semanas temáticas por malas diplomáticas, que elas não podem ser violadas e remexidas por verdugos da ditadura militar”.

Cakoff relata que se sentia como um diplomata visitando embaixadas e consulados em busca de filmes para a programação do Masp. Apesar do sucesso de público – chegam a faltar datas no calendário do auditório – a censura continua a ser um problema. “Alguns (países), como a China, ou com o nome hipócrita de República Popular da China, provocam incidentes diplomáticos. O ciclo ‘Aproximação ao cinema chinês’ é proibido pela censura brasileira. A embaixada chinesa em Brasília protesta, a Polícia Federal me intima a depor, o Masp teme por retaliações e a imprensa especula”, rememora.

Cartaz da Mostra de 1997. Crédito: Imprensa Oficial
Cartaz da Mostra de 1977. Crédito: Imprensa Oficial

O grande salto das sessões concorridas no auditório do Masp para uma Mostra de Cinema no atual formato acontece em 1977, por ocasião do aniversário de 30 anos do museu. O monitor emprestado do Instituto Goethe ilumina a tela do auditório em sessões concorridas. Foram 16 longas e sete curtas selecionados, e o vencedor do festival foi “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, de Hector Babenco. “O público é o júri” se torna o lema da Mostra, que a cada ano ganha importância nos circuitos de festivais internacionais, na imprensa e, mais importante, com o público.

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Renata e Leon se conheceram em Nova York por meio de amigos em comum. Formada em rádio e TV pela FAAP e então estudante de cinema nos EUA, ela encontrou em Cakoff um parceiro para uma vida dedicada ao cinema. Sua primeira participação efetiva foi como produtora na 13ª edição, em 1989. O envolvimento pessoal e profissional com a Mostra a levou a rodar os festivais pelo mundo e a conhecer os mais importantes cineastas em atividade: Manoel de Oliveira, Wim Wenders, Akira Kurosawa – além de testemunhar o nascimento artístico de outros. Foi assim com Tarantino, que trouxe à edição de 1992 seu “Cães de Aluguel” e, como cinéfilo, enlouqueceu com a programação do evento e os arquivos do festival. Em São Paulo, Tarantino conheceua atriz portuguesa Maria de Medeiros, com quem trabalharia em “Pulp Fiction” pouco tempo depois. Maria se tornaria uma grande amiga de Renata de Almeida – no início da entrevista que fiz com ela, seu celular toca: é Maria, que está no Brasil, combinando de sair para jantar.

[olho]”Quando o Leon morreu, o pessoal falava: ‘mas quem você vai chamar?’”[/olho]

Selecionar os filmes para a Mostra, encontrar-se com cineastas – alguns avessos a exposição –, convencê-los a ir ao Brasil. Tudo isso era parte do trabalho da dupla. “Quando eu comecei, não mandavam nem VHS, então a gente viajava muito. Ia para Roterdã, emendava com Berlim, às vezes ia pra Hungria, tinha muito festival de cinema nacional. Em maio ia pra Cannes, às vezes pra Veneza. Naquela época, no começo dos anos 1990, as coisas eram mais lentas, era muito difícil conseguir um filme do Festival de Veneza”, lembra. Hoje em dia, o status mudou. Um filme concorrido, como o vencedor do prêmio do júri de Veneza, “Animais Noturnos”, de Tom Ford, pode ser exibido na coletiva de imprensa de lançamento da Mostra e está na programação do festival.

O casal teve dois filhos: Jonas, hoje com 18 anos, e Tiago, 14. O mais velho está no primeiro ano de cinema na FAAP e, segundo a mãe, vibra a cada filme confirmado para a Mostra. Por enquanto ela não acha uma boa ideia que ele trabalhe no festival. Prefere que trilhe o próprio caminho dentro do cinema. “E eu sou muito exigente, coitado de quem trabalha comigo”, diz. Cakoff tem outros dois filhos mais velhos, Laura e Pedro. O câncer de Cakoff, que havia aparecido pela primeira vez oito anos antes, exigiu muito do último ano de vida dele. Sua ausência, porém, teve o efeito de fortalecer em Renata os cuidados à frente da Mostra. “Quando o Leon morreu, o pessoal falava: ‘mas quem você vai chamar?’, me davam conselhos e eu: ‘não, sou eu mesmo, vou continuar fazendo o que eu sempre fiz. Vai ser mais duro porque era dividido, agora vai ser dividido com outras pessoas’”, lembra.

Para ela, era muito estranho ter de lidar com esse tipo de comentário. “Nunca me passou pela cabeça que eu seria incapaz de fazer, que eu precisava chamar outro homem. Isso nunca me passou pela cabeça, mas passou pela cabeça das pessoas. Curioso isso”, observa. Muito dessa postura se deve, segundo Renata, aos exemplos que ela teve em casa. A mãe é psicanalista e o pai é oftalmologista, que se conheceram na faculdade de medicina. Ambos trabalham até hoje. Renata é a filha do meio de três irmãs: a mais velha também é médica e a caçula é empresária. “Nunca na minha vida eu achei que não pudesse fazer algo por ser mulher. Porque eu tive uma mãe que saiu de Santos pra fazer medicina, se formou e teve uma relação de igualdade na minha casa”, lembra.

A identificação natural com o feminismo nunca a motivou, entretanto, a criar uma programação especial de mulheres na Mostra – do mesmo modo que o evento nunca dedicou sessões específicas a minorias. “Na Mostra não tem uma sessão gay ou de filme de mulheres, é uma opção nossa. Se tem um filme com personagens gays e uma visão sobre essa questão, eu quero que um homofóbico veja esse filme. Se tem um filme dirigido por mulher, com questões sobre mulher, é melhor um machista ver, ou uma mulher que não está ligada em questões de feminismo, que acha esse assunto chato, ver”, diz. “Quando você tenta etiquetar uma obra, por num escaninho, você corre o risco de pregar para convertidos. Eu defendo a reflexão.”

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O cartaz da Mostra deste ano, criado pelo cineasta italiano Marco Bellocchio (e que ilustra esta reportagem), dá indícios das escolhas da atual edição. O diretor se inspira em seu filme “Bom dia, Noite”, que conta a história do sequestro do ex-primeiro ministro italiano Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas. No centro do desenho, está um observador em meio a mãos em protesto, freiras em oração e uma reunião papal. Bellocchio será homenageado na Mostra, assim como o diretor polonês Andrzej Wajda, morto há poucos dias. Os dois são autores de filmografias fortemente políticas, que serão exibidas no evento.

[olho]”Se tem um filme com personagens gays e uma visão sobre essa questão, eu quero que um homofóbico veja esse filme”[/olho]

Mesmo em meio a uma programação tão extensa, a opção pela reflexão política se destaca. “A gente passou os dois últimos anos gritando muito e refletindo pouco, mesmo por conta dessa cultura da internet de dar uma resposta muito rápida, ter opinião para tudo”, diz Renata. “Foram dois anos de muitas certezas sobre tudo, parece um pouco religioso, dogmático. Ótimo as pessoas se manifestarem, mas é preciso escutar, é preciso refletir. A gente só pode se desobrigar de pensar quando existe o dogma, coisas que você acredita sem pensar, e isso só cabe dentro da religião. No resto da vida a gente tem de refletir sobre as coisas.”

Para Renata, o cinema tem esse poder raro de fazer o espectador sentar-se calado por duas horas, apenas vendo, ouvindo e refletindo. “Para mim, que falo muito, o cinema é um bom treino para ficar quieta e ouvindo”, ri. Pergunto o que ela acha da polêmica envolvendo o filme “Aquarius”: o protesto do elenco brasileiro no Festival de Cannes, a repercussão sobre o fato de não ter sido escolhido como representante do Brasil para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, supostamente por motivos políticos. Seria uma indicação de que o cinema poderia novamente pautar a discussão política no País? A resposta dela tem um tom cauteloso.

“Houve uma opção de pegar uma obra de arte por uma causa que se queria defender. Quando você decide fazer isso, você está defendendo sua causa, atingiu os objetivos que o Kleber (Mendonça Filho, diretor do filme) queria, mas você empobrece a obra”, diz. “Numa obra você tem o que o diretor quis dizer e tem o inconsciente do diretor, às vezes coisas que ele nem sabia, porque ele está ali como uma pessoa integral. Se você dá uma cartilha de como seu filme deve ser lido… ‘Aquarius’ é tão rico, tem tantas questões… fizeram essa opção, e foi o que aconteceu, mas ao mesmo tempo eu acho uma pena.”

[olho]”Ótimo as pessoas se manifestarem, mas é preciso escutar, é preciso refletir”[/olho]

À frente da Mostra, Renata precisa ser diplomática, trabalhar com as três esferas de governo e com a alternância de comando das gestões. Ela gosta de política, gosta de ler política nos jornais e lembra que a Mostra é “superpolítica”, mas só sobreviveu até hoje porque é apartidária. “Eu voto, tenho minhas crenças, mas não declaro meu voto. Se eu declarar meu voto, estarei fazendo isso em nome da Mostra. O dia em que a Mostra assumir um partido ela acaba. Acaba.”

Pesquisas internas da Mostra entre os espectadores revelam que de 10% a 20% do público do evento se renova a cada edição. E a quantidade de espectadores aumenta, mesmo com todas as opções fora da tela do cinema: TV a cabo, Netflix, torrents etc. Para Renata, a Mostra é um momento de encontro. São comuns as histórias de “amigos de Mostra”, que combinam de se encontrar durante o evento e que tiram férias para aproveitar a maratona cinematográfica, emendando um filme no outro. Certa ocasião, um casal chegou a apresentar a ela e a Cakoff duas filhas que nasceram de um casamento originado em uma fila da Mostra. Nas filas e nos bares da região da avenida Paulista, a Mostra é um assunto agregador. “São Paulo é uma cidade onde o medo é valorizado. E o paulistano é um pouco tímido no trato social, é difícil falar com quem não conhece. E a Mostra é uma oportunidade de se sentir parte de um grupo, as pessoas fazem amizade na fila, se conversam”, arrisca Renata.

Se por um lado a era da informação torna disponível qualquer filme em qualquer aparelho, legal ou ilegalmente, por outro é muito fácil perder-se em meio a tantas opções. Basta lembrar que um festival de cinema que começou há 40 anos exibindo 16 longas hoje precisa selecionar 300 entre 1,4 mil filmes que chegam via internet. “Quando a Mostra começou, durante a ditadura, você vivia num deserto de informação”, observa Renata. “A Mostra era uma gota no deserto, começou numa sala só no Masp e era um sucesso. Hoje a gente vive num oceano de informação, a gente é bombardeado com informação, e é uma era de informação fragmentada: a informação que a gente vê, a gente vê um pouco; estudos que a gente lê, a gente lê um pouco, a pessoa faz a seleção do parágrafo que lhe convém e que comprova a sua teoria. É tanta informação que as pessoas ficam perdidas nesse oceano. Acho que a Mostra, sem arrogância nenhuma, é como um amigo que chega e fala: ‘Olha, vi esse filme e é bem bacana. Você não quer assistir?’”

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O mundo bizarro da TV brasileira nos anos 90

Houve uma época em que as famílias se reuniam aos domingos e a televisão ligada mostrava, em plena tarde, mulheres dançando seminuas, crianças requebrando ao som de axé com letras de duplo sentido, homens famosos comendo sushi no corpo de mulheres ou se esfregando contra modelos numa banheira. Parece um pouco surreal hoje, mas não faz tanto tempo assim.

Nos anos 1990, a TV brasileira era outra. Na briga pela audiência, valia qualquer coisa: mostrar mortes ao vivo, ridicularizar pessoas com doenças, colocar crianças para trabalhara e fazer charme. Depois do fim da ditadura nos anos 80 e da expansão rápida da televisão aberta, o horário nobre virou vale-tudo. Os principais envolvidos eram Faustão e Gugu, o rei dos quadros com gente de pouca roupa participando de todos os tipos de prova.

Mas a baixaria rolava solta também em outros canais – Luciano Huck, que hoje reforma casas e carros em seu programa, apresentou ao mundo a Tiazinha e a Feiticeira, que faziam coisas como depilar rapazes no palco do seu “H”, na Bandeirantes. O cenário mudou um pouco no início dos anos 2000, por volta da época em que Gugu exibiu uma entrevista falsa com membros do PCC. Até então, a TV era “loucura, loucura, loucura” – pra citar o bordão de Huck. Depois, as coisas ficaram (um pouco) mais sérias.

O Risca Faca fez uma compilação, ano a ano, dos momentos marcantes mais bizarros da década, para fazer um retrato do que foram os loucos anos 90.


  • Gata molhada no Sabadão (SBT)
    Várias versões da premissa “garotas com pouca roupa são molhadas” já passaram pela TV brasileira. No “Domingo Legal” as garotas molhadas pelo menos tinham uma camiseta por cima. No “Sabadão Sertanejo” era outro nível. As “gatas molhadas” começavam sua participação como as do Gugu: parte de baixo do biquíni e camiseta. Mas, sob um chuveiro, sozinhas ou acompanhadas de um convidado do programa, como Luciano (da dupla com Zezé Di Camargo), elas dançavam e chegavam a tirar a parte de cima toda, mostrando os peitos para todo o mundo ver.

  • Chico Xavier no “Sabadão Sertanejo” (SBT)
    Mas nem tudo era baixaria no “Sabadão”. Depois das moças seminuas dançando, antes dos intervalos, o programa exibia mensagens edificantes de Chico Xavier.

  • Ratos de Porão no Milk Shake (Manchete)
    O programa, “Milk Shake”, era infantil. Mas a letra dos Ratos de Porão, nem tanto: “Sinto só gosto de sangue/ E vontade de fugir/ Violência pura agora é quase um prazer/ Não confio em mais ninguém”. Apesar da temática, as crianças da plateia aplaudiam e pulavam no cenário que lembra o filme “Branca de Neve”.


  • Prova dos batimentos cardíacos (SBT)
    Difícil precisar quando a prova dos batimentos cardíacos começou, mas ela era exibida no “Domingo Legal”, de Gugu, que estreou em 1993. Como em outras brincadeiras do programa, essa envolvia pouca roupa: um convidado se sentava numa cadeira ligado a uma máquina que monitorava sua frequência cardíaca. O desafio do convidado era manter a calma e o coração pouco acelerado enquanto alguém do sexo exposto fazia um strip tease em sua frente. O quadro tinha direito a pacote completo: música sensual, lingerie sexy e muita dança.

  • Prova da camiseta molhada (SBT)
    Gugu Liberato gostava de jogar água sobre mulheres em seu programa. Além da famosa banheira, o “Domingo Legal” apresentava a prova da camiseta molhada. Como no caso da banheira, as regras eram simples: modelos eram enfileiradas, vestindo parte de baixo de um biquíni e uma camiseta branca (sem nada por baixo). Quando elas eram molhadas, a camiseta transparente revelava um código, utilizado para abrir um cofre. E dá-lhe closes nos peitos expostos das modelos.


  • aqui-agora-netflix

    Suicídio no “Aqui Agora” (SBT)
    O SBT foi condenado a pagar uma indenização de R$ 1,05 milhão à família de Daniele Alves Lopes em 1994 por exibir seu suicídio no jornal “Aqui Agora”. Daniele ficou sentada por 15 minutos no beiral de um prédio até se atirar de uma altura de 25 metros, em imagens captadas pelo canal, que chegou à cena com os socorristas. A equipe do programa ainda levou os pais de Daniele, que não sabiam da morte da filha, à delegacia, exibindo suas imagens enquanto a reportagem afirmava que ela estava envolvida com drogas. A justiça considerou que o SBT teria usado indevidamente imagens da família e que havia causado danos morais a eles.


  • Prova da bexiga (SBT)
    Poderia ser uma prova de gincana em festa infantil, se não fosse um detalhe. Na prova da bexiga, no “Domingo Legal”, o objetivo era estourar o maior número de bexigas com o corpo. Mas em vez de sentar sobre a bexiga no chão, os participantes tinham que apertar a bexiga no corpo de uma modelo — de frente e de pé, sentando no colo dela de frente e de costas.

  • Short Dick Man na Xuxa (Globo)
    Não havia barreiras de língua quando se fala de letras inapropriadas em programas para criança nos anos 1990. Em 1995, Xuxa recebeu em seu programa o grupo 20 Fingers para cantar a música “Short Dick Man”. Como se intui pelo título, a mensagem da música é “não quero um homem de pau pequeno”. Mensagem enfática: “Que graça, um umbigo extra. Você precisa colocar as calças de novo, querido”. Pelo menos era em inglês.


  • Banheira do Gugu (SBT)
    Uma banheira, um homem, uma mulher, muitos sabonetes. Uma premissa das mais simples resultou no quadro de maior sucesso do “Domingo Legal”, do SBT. Exibido no horário mais família da televisão — a tarde de domingo — o quadro envolvia uma disputa entre homens e mulheres para ver quem pegava mais sabonetes numa banheira. Famosos como Rodrigo Faro, Daniel e Dinho dos Mamonas Assassinas entravam na água para tentar pegar os sabonetes enquanto mulheres de bíquini — como Luiza Ambiel e Nana Gouvêa — e homens de sunga tentavam impedir o convidado de alcançar seu objetivo, usando todos os recursos possíveis para dificultar a tarefa (rolava muita “mão boba”, resumiu Gugu, anos depois). Durante anos, a banheira do Gugu era o destino mais certeiro para quem queria ver closes em bundas e gente seminua ensaboada se esfregando.

  • Boquinha da garrafa (SBT)
    “A cinco é muito boa” ou “Capricha, Amanda, capricha!”, comentava Gugu Liberato enquanto um grupo de mulheres ralava na boquinha da garrafa no palco de seu domingo legal. Vestindo o uniforme clássico das dançarinas de axé (shortinho e top, tudo bem curto e bem colado), as mulheres sambavam sobre uma garrafa numa competição em várias etapas para ver quem dançava melhor.

  • Latininho no Faustão (Globo)
    Em 1996, Faustão recebeu em seu programa o garoto de 15 anos Rafael Pereira dos Santos, portador da síndrome de Seckel, distúrbio caracterizado por nanismo, microcefalia e retardo mental. Com 87 centímetros de altura, Rafael — vestido como o cantor Latino, que o acompanhou no palco, e apelidado de Latininho — foi comparado ao ET de Varginha. Durante o programa, Rafael dançou e chegou a se sentar no colo de Caçulinha. Anos mais tarde, a Globo foi condenada a lhe pagar 1 milhão de reais por ter humilhado o menino, expondo sua imagem “com nítida intenção de ridicularizá-lo, destacando suas restrições físicas e mentais através de lamentáveis e reprováveis comentários despidos do que se pode tolerar como admissíveis com um mínimo de bom senso”.


  • Ratinho descobre ET (SBT)
    Cláudio Chirinian ficou conhecido como ET, da dupla ET e Rodolfo, no programa do Ratinho. Durante minutos, o apresentador rodeou uma caixa, fazendo mistério antes de abri-la, dizendo que iria apresentar ao Brasil o extraterrestre de Olaria, depois de o repórter Rodolfo Carlos anunciar por dias que exibiria um ET ao vivo na TV. Pequeno e estrábico, Chirinian surgiu de dentro da caixa sem camisa, falando palavrões. O apelido de ET pegou e, com Rodolfo, foi contratado pelo SBT para participar do “Domingo Legal” e gravou um CD humorístico. Cláudio morreu em 2010.

  • Dani Boy (SBT)
    Ter crianças no palco não era empecilho para o “Sabadão Sertanejo” mostrar mulheres tomando banho. Enquanto Dani Boy — que ganhou o apelido por cantar músicas do Daniel — cantava rebolando a música “Cumade e Cumpade”, uma mulher dançava no chuveiro vestindo uma camiseta branca sem nada por baixo, com direito a closes em sua bunda. Do seu lado, uma moça de lingerie de oncinha fazia uma apresentação de pole dance. Mas foi no programa do Gugu, o “Domingo Legal”, que Dani Boy ficou famoso, trabalhando como assistente de palco depois de pedir emprego ao vivo.

  • Fantasia (SBT)
    Outra boa alternativa no SBT para ver modelos jogando jogos era o “Fantasia”, com quadros para crianças como o jogo da memória e palavras cruzadas — nos intervalos dos jogos, as modelos do programa cantavam karaokê. Era um programa com tanto apelo infantil, que a apresentadora Jackeline Petkovic, na época com 17 anos, foi apresentar o “Bom Dia & Cia” depois. Era também uma boa oportunidade de ver mulheres dançando de sainha e barriga de fora ou mesmo de bíquini. Em um dos momentos clássicos do programa, Carla Perez, de roupa de banho, pergunta a uma espectadora que joga uma espécie de forca se ela quis dizer “i de escola”. Não, “i de isqueiro”, responde ela. “E de esqueiro?”, pergunta Carla, inabalável.

  • Sushi Erótico (Globo)
    O nome é autoexplicativo. Em 1997, Faustão exibiu um quadro em que Oscar Magrini e Marcio Garcia comiam sushi (“o arroz é para conservar o peixe”, diziam ao explicar a diferença de sushi e sashimi) exposto no corpo de uma mulher nua em um restaurante. Discutindo o preço de um almoço desses, Caçulinha responde que pagaria 500 reais. Por mil dólares, diz Faustão, você pode ficar um ano com a mulher em casa servindo de bandeja. “É uma mesa especial”, define o apresentador. Entre as perguntas às mulheres com sushi no corpo: “Você não tem medo de uma mulher invejosa ir aí e te espetar com um garfo?”. O quadro, claro, terminou em axé.

  • Tiazinha no “H” (Bandeirantes)
    O programa “H”, apresentado por Luciano Huck, estreou na Bandeirantes em 1996 como uma alternativa para os jovens, como as séries “Anos Incríveis” e “Confissões de Adolescentes”. Em vez disso o “H” deu ao mundo a Tiazinha, uma dominatrix vestida com uma máscara, calcinha preta, corpete e meias sete oitavos que, munida de um chicote, depilava homens com cera quente no palco do programa. O “H” mudou depois pro horário da noite, mas dava ver pela plateia que seu público continuava adolescente (“quem aí comprou a Playboy da Tiazinha levanta a mão direita!”, gritou Luciano Huck enquanto ela rebolava em um dos programas).


  • Mulekada no SOS Nordeste (Record)
    Crianças também cantavam músicas de conteúdo pouco infantil sem causar estranhamento. Nos anos 1990, todo o mundo segurava o tchan e requebrava até o chão e isso incluía crianças. Criado em 1998, o grupo Mulekada, que se apresentava em vários programas de auditório, imitava o É o Tchan nos movimentos de dança e figurinos. “Na hora da dança requebra gostoso, rebola a bundinha, vai até o chão”, cantava um menino e duas meninas, devidamente vestidas em shortinhos, sacudindo cabelos e a pélvis sobre gritos de “requebra, loirinha!”.

  • “O Pinto” na Eliana (Record)
    No programa “Eliana no Parque”, em 1998, ficou provado que o axé era realmente um fenômeno infantil: a maioria das crianças sabia letra e coreografia de todo o tipo de axé com duplo sentido. “O pinto!”, grita Eliana, empolgada, antevendo o que vem por aí. “Esse pinto não é mole, esse pinto é safado”, canta o grupo enquanto duas dançarinas de biquíni mostram a dança à plateia de crianças, todas empolgadíssimas, num cenário hiper infantil, com direito a balões e roda gigante.

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A história oral da ‘TV Colosso’

Quando o “Xou da Xuxa” deixou a Globo em 1993, Boni precisava tapar um buraco na programação. Para isso, chamou o grupo gaúcho de teatro de bonecos 100 Modos para bolar alguma coisa curta. Eram só alguns meses no ar até Angélica assumir o horário. Luiz Ferré teve uma ideia: fazer um programa de TV sobre um programa de TV todo feito por cachorros.

A “TV Colosso”, que inicialmente ficaria só quatro meses no ar, acabou por ocupar as manhãs da Globo por quatro anos — por volta do meio-dia, quando o programa acabava, um cachorro com chapéu de chef de cozinha anunciava, com sotaque francês, “atención, tá na hora de matar a fome, tá na mesa, pessoal!” Quase mil episódios, um filme e dois discos depois, a “TV Colosso” acabou em 1997, dando lugar ao “Angel Mix”, de Angélica. Mas até hoje a sheepdog Priscila saracuteia por aí, aparecendo em programas de televisão ou eventos.

Quase 20 anos após seu fim, quem fez a “TV Colosso” conta ao Risca Faca as histórias por trás do programa.

As entrevistas foram levemente editadas para facilitar a compreensão.

AS ORIGENS

Luiz Ferré, criador do programa: Quando trabalhava como artista gráfico, queria fazer animação. A gente não tinha recursos, não tinha como fazer. Comecei a fazer bonecos de massinha e fotografar. Fazia esse tipo de ilustração, caricaturas de personagens políticos, músicos, fotografava e publicava no jornal. Mas eu queria animar. Encontrei com alguns amigos e a gente começou a fazer coisas de animação. A gente não sabia o que que era, mas era teatro de animação. Eu usava bonecos. Eram espetáculos de esquetes. A gente criou um grupo chamado 100 Modos e fez um espetáculo, sem saber o que era teatro de bonecos, de animação. A gente só fazia um espetáculo e sabia que as pessoas estavam curtindo. Nesse ano a gente ganhou todos os prêmios de teatro.

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Os moldes. Todas as fotos cedidas por Roberto Dorneles

A gente se apresentava num café muito pequenininho, o palco era do tamanho de uma mesa, os bonecos eram muito pequenos. Era um negócio experimental. Faz 25 anos, foi quatro anos antes da TV Colosso. Foi muito rápido. A gente passou por São Paulo e apareceu na Veja, na Folha, no Estadão. Era um espetáculo muito sem pretensão, era muito pequeno. Mas tinha um texto muito bacana. Foi um trabalho muito notado.

Quando a gente foi pro Rio de Janeiro a Globo fez matérias e a gente virou meio pauta geral, onde a gente passava a Globo fazia matéria. Era cinética, colorido, novidade. A Globo ficou de olho na gente. A gente fez o “Clip Clip”, um programa de clipes, com o Boninho. A gente fez “Plunct, Plact, Zuuum” com o Raul Seixas, Cazuza. Isso bem no início da história do grupo. Aí a gente começou a se apresentar um pouco em televisão.

O CONVITE

Luiz Ferré: Teve um momento em que o Boni e o Boninho já conheciam nosso trabalho em televisão. A Xuxa estava saindo do projeto Globo e iam entrar com a Angélica. A Angélica fez alguns pilotos do projeto, mas não agradavam muito. Não é que não agradavam, mas não dava muito certo. Não era ainda o que o Boni queria. Recebi um telefonema, estava em Porto Alegre, e ele falou: “Olha, Ferré, você me ajuda aqui? Eu tô com uma dificuldade de horário na parte da manhã, não tô conseguindo acertar um projeto que eu quero muito, com a Angélica. Se você pensar, você que faz bonecos, fez o ‘Clip Clip’, tem esse grupo de teatro, você não quer pensar em alguma coisa?”. “Qual é a pauta?” “Pensa no que você bem entender.” Tinha uma liberdade muito grande de pensar, de propor. Pensei que era um pepino, entrar no horário da Xuxa. Era pra ficar quatro meses, um tampão. “Quatro meses, faz aí, sem compromisso com nada, faz o que você curtir.”

[olho]”Pensa no que você bem entender”[/olho]

Roberto Dorneles, criador do programa: Em 1992 quando o programa infantil da Xuxa saiu pela primeira vez do ar (depois mais tarde voltou na Globo), o Boni precisava colocar algo no lugar que chamasse a atenção da audiência, e assim pensou num programa de bonecos. Mas não simples bonecos, e sim bonecos animatronics. A razão disso foi o seriado americano “A Família Dinossauro”, que na época estava fazendo um super sucesso. Até onde me contaram, ele abriu o leque com três opções: produzir os complexos bonecos dentro da própria Globo, trazer bonecos e equipe dos Estados Unidos ou chamar o 100 Modos. Ganhamos a concorrência com um protótipo de boneco que produzimos e trouxemos para gravar no Rio. E melhor: nos foi dada liberdade criativa desde que fizéssemos pelo menos alguns animatronics. Pronto! Penso que boneco agrada de cara a quase todo mundo, principalmente se você juntar a ele a forma de um animal, mais ainda se for de estimação e ainda mais se for cachorro.

O INÍCIO

Luiz Ferré: Pensei, putz, acho que vou fazer uma TV. Uma TV de cachorro. Acho que pode ser meio que uma cápsula em volta da Terra, uma nave capturando desenhos e filmes e mandando pra Rede Globo. Não sei se você conhece aquele seriado com bonecos, os “Thunderbirds”, um seriado inglês da década de 60. É muito divertido. Tinha um pouco essa estética de um espaço futurista retrô. A estética especulava um pouco sobre o que seria o futuro. Desenhei os cenários inspirado um pouco nos “Thunderbirds”, um pouco na ficção científica B, aquelas coisas de filmes americanos de viagens espaciais.

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Já queria fazer um negócio com cachorro, porque cachorro tem uma empatia muito grande. Levei pro Boni o projeto e ele só mandou aterrissar, não era pra ficar no espaço. Tanto que a abertura da “TV Colosso” parece uma nave espacial, e é uma nave, que é a construção da TV Colosso. Quem batizou o projeto foi o Boni. “Tem que chamar TV Colosso.” Falei: “Ok, legal”. Ele compôs a música de abertura, a letra é dele e do Massada, que era o hit maker da época.

MONTANDO O TIME

Monica Rossi, dubladora da Priscila: Mário Jorge de Andrade foi convidado para dirigir a dublagem do programa. Foi ele quem indicou todos os dubladores, que foram aprovados pela direção geral do programa. Eu e todo o elenco ficamos muito contentes com a aprovação, pois a concepção do programa era genial e seria a oportunidade de trabalharmos na construção dos personagens já que era um produto brasileiro, um projeto ousado e diferente de tudo o que estávamos acostumados a fazer na dublagem, onde temos que obedecer com a máxima fidelidade a obra que já está pronta.

Luiz Ferré: Pra escrever, roteirizar todos os quadros, eu tinha um briefing inicial, mas precisava de alguém, porque era um volume muito grande de texto. A gente fez 998 programas. Quase mil! Sem contar os especiais, com os especiais a gente passou de mil. Eu sou cartunista, gosto de charges, falei: “Vamos chamar uns camaradas cartunistas, que tenham uma coisa gráfica, que usam grafismo como ferramenta de ideia”. Chamei Laerte, Luiz Gê, Glauco… Conhecia alguns deles, como era cartunista, tive uns trabalhos no Salão do Humor de Piracicaba, cruzei com eles. A gente montou um time de super caras gráficos, com opinião, engajados, que não escreviam pra criança, mas que trabalhavam com humor.

Laerte no cenário da "TV Colosso"
Laerte no cenário da “TV Colosso”

Roberto Dorneles: Um humor sarcástico, nonsense, diferente e inesperado era o que buscávamos.

Luiz Gê, roteirista: Eu fiquei sabendo porque os cartunistas todos estavam meio dentro da proposta. Eu estava meio atrapalhado, sem emprego, sei lá. Estava precisando de trabalho. Aí falei com o Laerte e ele me pôs e foi assim que eu entrei.

OS ROTEIROS

Luiz Ferré: A gente tinha reuniões de pauta em que eu participava, em que passava todas as ideias. Aí todo o mundo ia pra casa e começava a mandar os textos pro Laerte, que fazia um filtro e mandava pra Globo. Na Globo tinha um pouquinho de calibragem, mas ia muito seco, quase direto. Depois a gente começou a aumentar um pouco o hall de redatores, manipuladores e personagens, na segunda temporada. É um processo muito raro pra uma TV que nem a Globo. A gente teve uma liberdade muito grande.

Luiz Gê: A proposta era meio diferente no começo. Era uma TV de cachorros no espaço. Era pra ser uma espécie de estação de orbital em que os cachorros estavam. Mas logo isso caiu e ficou uma estação normal mesmo. A partir dessa ideia que era muito incipiente, ainda muito no começo, a gente começou a se reunir, todo o mundo começou a propor coisas e a gente foi criando todo o universo da coisa. Aí ficava uma coisa meio difícil de estabelecer onde começava e onde terminava certas ideias, mas algumas eram bem claras quem tinha bolado, quem tinha tido a ideia. Essas reuniões eram muito engraçadas, era todo o mundo cartunista, a gente dava muita risada.

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Roberto Dorneles: [A gente tinha] praticamente [carta branca]. O Boni teve todos os méritos nesse aspecto, porque sabia do nosso potencial, entendeu e nos deu total condições de realizar uma proposta tão arrojada. Uma ou outra ideia ou personagem foi barrado, mas, hoje, pensando bem, também agradeço a ele, porque se era difícil manipular e cuidar de 50 bonecos… Aqui também faço uma menção ao Boninho que foi nosso diretor e grande parceiro dentro da Globo (ainda é), desde os tempos do programa “Clip Clip”.

[olho]”Laerte foi uma figura fundamental, era diretor de redação, editor de texto”[/olho]

Luiz Gê: O mais legal era que a gente se via bastante. As reuniões eram muito engraçadas. Tinha pelo menos umas dez pessoas [no roteiro], mas era trabalho pra caramba. E o dinheiro não era lá essas coisas.

Luiz Ferré: Eu tinha uma teoria em relação ao projeto. Não precisava ser educativo. Tinha que ser divertido. Se você é divertido, você educa. Nosso briefing para todos era esse. Os redatores entraram com muito afinco, tinham uma liberdade grande. O Luiz Gê é um cara muito voltado pra assuntos de militaria. Ele gosta de aviões, máquinas. Não que seja um cara bélico, mas gosta de militaria. Ele teve liberdade pra criar um quadro chamado “na trincheira”: os cachorros na trincheira. Era inédito, era divertido ver isso. Laerte foi uma figura fundamental, era diretor de redação, editor de texto. É o Laerte que a gente conhece, maravilhoso. Uma figura generosa, com uma cabeça muito fora do que a gente costuma ter. Foi um cara muito importante pra gente.

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Luiz Gê: Nenhum de nós estava muito preocupado com didatismo, coisa que no “Rá-tim-bum” tinha, toda uma didática. Eu estava fazendo coisa pra criança, mas quando eu era criança eu lia Tintim, Pato Donald desenhado por caras bons, que eram curtidos por gente de tudo quanto é idade. Essa maneira de estar fazendo a história desde que seja legal pode ser muito mais rica do que uma questão didática toda presinha. Como o Tintin era: muito informativo, formativo, que não precisa ser pedagógico. Eu inventava cenários, truques, e desenhava e mandava pra eles. Muita coisa eles fizeram e ficou muito bom. Outras não tão boas, outras feitas 50%.

OS PERSONAGENS

Luiz Ferré: Desenhei todos os personagens. Tem que ter um sheepdog, os vira-latas, o cara que é operador de mesa. Eu trabalhava em cinema e lembrei de muitos amigos, de figuras que trabalhavam comigo, produtores. A Priscila é super inspirada em três amigas que são produtoras. JF é inspirado em chefes que eu tive. Capachão é um personagem que a gente vê muito em filmagem. Eu trouxe essas figuras.

Luiz Gê: Eu criei o Capachão. Mas a minha ideia era que ele fosse um capacho mesmo, com cara de cachorro [ri]. Mas eles não conseguiram fazer e fizeram um cachorro normal. Não era nada difícil ter conseguido fazer ele dessa forma. [Quando chegamos no projeto] tinha alguns personagens. Já estava adiantado o JF e a Priscila. Essa questão do Capachão mostra uma das coisas que foi um dos maiores problemas do ponto de vista de roteiristas, criadores. Porque a gente também era cartunista, normalmente a gente tinha controle total sobre nossa criação e depois [na “TV Colosso”] não tinha mais. Acho que essa coisa de [a produção] estar no Rio e a gente estar aqui [em São Paulo] atrapalhou muito. Se a gente tivesse mais controle, a gente poderia ter feito um negócio muito mais legal, muito melhor. A gente ficava insatisfeito com muita coisa, porque eles não sabiam interpretar aquilo, não entendiam o humor.

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Monica Rossi: O sucesso da Priscila veio de um conjunto de fatores. É uma figura realmente “colossal”, enorme e espaçosa, dengosa, charmosa, vaidosa… Enfim, uma personagem carismática. Muito menina!

Luiz Ferré: No início do projeto, quem ensaiou o andar da Priscila foi a Deborah Colker. Olha só, olha só. Era difícil, porque a Priscila tem uma frequência como personagem muito curiosa. É um bicho, mas é uma menina, é um boneco grande e peludo. É super charmosa, ela pesa 200 kg, mas entra voando. Precisava desenvolver a caminhada, como ela andava, como ela rebolava, como ela se movimentava dentro da fantasia. E a Deborah Colker fez esse primeiro trabalho com a Priscila.

Luiz Gê: Tinha dois tipos de texto, basicamente. Um pros cachorrões grandes, que tinham muito equipamento: Priscila, JF, Capachão… E tinha os cachorros pequenininhos, manipulados com a mão. Esses dois tipos de textos eram muito diferentes porque a mobilidade que existia pra uns e outros era diferente. Os grandões tinham que ser muito mais estáticos, dentro de um cenário determinado, ao passo que com os pequenos a gente tinha muita mobilidade de mudar a história, de inventar. Então eu — e outros roteiristas — preferia muito mais os pequenos. Os grandes era meio que uma camisa de força, tinha que criar pra eles de uma forma muito presa. Nos pequenos, eu desenhava muito: cenários, como que era.

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BRONCA

Luiz Gê: Um dia eu falei pro Laerte: bolei uma história assim, com vários blocos. Contei pra ele os blocos todos e o Laerte pegou minha ideia de roteiro, escreveu. Eu fiz isso porque a gente tinha muito trabalho, era muito trabalhoso. Tinha texto pra caramba. Você não sabe como é ter que escrever uma manhã inteira de televisão todo dia. Muito trabalhoso. Então fiz isso e passei pro Laerte. Ele passou pros caras, fez o maior sucesso com os caras e no fim nunca reconheceram que eu tinha bolado o negócio. Isso eu sempre fiquei meio puto, foi minha ideia. A partir daí começou a se fazer isso, umas histórias grandes, que ocupavam a manhã inteira ou às vezes mais de um dia. E eles chegaram a comercializar isso, colocaram no supermercado os vídeos dessas histórias completas. Bolei muitas dessas histórias. Em geral era um cara só que fazia essas histórias. Eu já tinha começado antes a fazer umas coisas mais longas. No fim das contas houve essa coisa dessas histórias mais compridas, eles chegaram a comercializar. Mas eu não tenho nada, nunca comprei os vídeos.

QUADROS MARCANTES

Luiz Gê: Tinha um que eu fiz que era uma galera, daquelas que ficam uns caras remando dentro, com um monte de cachorrinho segurando os remos. Eu mostrava como era: amarra os bonequinhos assim, a hora que a pessoa fizer o movimento fora vai todo o mundo fazer assim. Tinha o cara que batia aquele tambor pra dar o ritmo, coisa de galera, que era uma espécie de DJ. Tocava vários tipos de música e eles tinham que remar conforme a música [ri]. Isso era legal você ver sendo feito. Mas dava uma vontade enorme de mexer, porque a gente manja. Dava vontade de cortar, montar. Essa questão básica de a gente estar em contato com a realização.

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Eu fazia um personagem chamado Roberval, o ladrão de chocolates. Eu fiz uma história em que o Roberval ficava passando uma lábia pro cara entregar o chocolate pra ele. Ele passava uma lábia, mas estava tendo um caso de um terrorista que estava pondo bomba. Ele achou que era chocolate, mas era uma bomba. Quando chega no final, o cara que está fazendo a gravação fala “bom, estoura aí”. Nesse caso eu estava no Rio, vendo. E eu falei “o que vocês acham de fazer assim…”, mas estava no roteiro. Eu falei assim pra ser contemporizador. Quando ele conseguia passar a mão no chocolate tocava “chocolate, chocolate” [canta a música “Chocolate”]. Quando ele passa a mão e sai todo vitorioso, ele sai de cena, toca “chocolate, chocolate”, e aí que explode. Ficava muito mais engraçado. Eu tive que chegar e falar “o que vocês acham…”. E dessa vez ficou certo. Numa dessas eles destruíam o seu humor.

Fiz o doutor Aftasardem [ri]. Um dos que eu mais gostava era o “cãobate”. Eu fiz vários de “cãobate”.

Uma das primeiras ideias que tive… Sabe quando você está andando na rua e um cachorro começa a “auauau” e você leva um susto? Era de um cachorro que gostava de fazer isso e o cachorro vizinho era bonzinho e ficava “por favor, não faça isso, a dona Amelinha sofre do coração” [fala com uma voz fina, de boneco, e dá risada]. Tinha que ter pelo menos as pernas das pessoas vindo, mas os caras não quiseram fazer isso porque ia sair da coisa do programa, de ser só cachorro. Mas sei lá, a dona Amelinha podia ser cachorro.

Eu fazia uma também que era uma gozação de novela, essa também era famosinha. Como chamava mesmo? “Os filhos da Cadela.” [ri] Uma coisa assim. Isso também era uma experiência de linguagem legal. Fiz uma espécie de bloco feito de várias historinhas super curtas. Lá também eu inventava bastante, mudava bastante cenário, esse tipo de coisa. Os filhos da cadela acho que eram mais famosos que o “cãobate”, mas eu preferia o “cãobate”.

FAZENDO CACHORROS

Luiz Ferré: A gente tinha liberdade de encenação. Falei que queria explorar todas as possibilidades de boneco: boneco de fantasia, bonecos de luva, bonecos pequenos, animatronics, tinha um robozinho — o buldogue era completamente robótico, andava pelo cenário. Eles falavam “ok”. A Priscila foi feita por quatro caras. Tem o cara que fica dentro da fantasia, dois caras que fazem manipulação via rádios japoneses de aeromodelismo e a voz, a Monica Rossi, que fica fora. Outra coisa muito legal foi o orçamento aberto. A gente podia fazer o que quisesse de produção que a Globo pagava. A gente desenvolveu o pelo da Priscila num lugar chamado National Fur, uma fábrica em Boston que faz pelo pra bichos pra Hollywood. A gente foi até lá e desenvolveu o pelo. A gente trouxe os melhores motores.

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Roberto Dorneles: Ninguém acreditava que a TV Colosso tivesse sido totalmente feita na rua Surupá, n° 225, meu endereço em Porto Alegre, RS, é do Brasil! Era um misto de espanto e desconfiança. Se foi fácil mandar produzir? Sim, muito fácil! Falei para mim mesmo: faça!

CONTROLANDO CACHORROS

Roberto Dorneles: Digo que manipulei todos os bonecos. Calma aí, não estou mentindo! Vou explicar: eu sempre testava e criava os trejeitos de cada personagem para depois passar para algum outro manipulador que fizesse daquela forma. Mesmo assim, eu manipulei alguns personagens nas gravações do começo ao fim, por puro prazer e também, confesso, por ciúmes. Como eram numerosos bonecos, a equipe também era. No auge foram 22 pessoas. Essa equipe era dividida em manipuladores e atores-manipuladores. Manipuladores manipulavam os bonecos pequenos e os rádios que produziam as expressões faciais dos bonecos grandes. Bonecos grandes esses que eram vestidos pelos atores-manipuladores.

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Eram fantoches com mãos controladas por varinhas, marotes [técnica de manipulação onde o manipulador empresta parte de seu corpo para o boneco] e fantasias de vestir. Todos esses bonecos tinham algum tipo de mecanismo, dos mais simples como o Gilmar, com um movimento (pálpebras), passando pelos médios com até dez movimentos como o Borges e finalmente os mais complexos como o chefe JF que tinha quase 20 movimentos.

Acho que os mais difíceis eram os que precisavam de três manipuladores. Um controlando a cabeça, outro vestindo os braços e um terceiro de fora produzindo as expressões faciais com o rádio. Isso sem contar com o dublador guia de estúdio. Total de quatro malucos tentando coordenar um boneco, e conseguindo!

[olho]”No auge, a semana de trabalho era bastante intensa, com apenas um dia de descanso”[/olho]

Eu não era somente responsável pela equipe de manipulação. Também era responsável pela equipe de manutenção dos bonecos porque construí e coordenei a construção dos mesmos. Como eram quase 50 bonecos e gravávamos em média quatro dias na semana, acontecia muito desgaste e quebra. Para manter tudo funcionando perfeitamente era necessário manter uma equipe de em torno de dez pessoas. A equipe era dividida em formas e látex, manutenção plástica e manutenção mecânica e eletrônica. Assim como eu, uma parte dessa equipe também manipulava no estúdio, por isso, no auge, a semana de trabalho era bastante intensa, com apenas um dia de descanso.

Monica Rossi: Foi uma época de muito trabalho, pois durante a elaboração da personalidade dos bonecos, nós gravávamos no estúdio durante a ação – a nossa interpretação ajudava os bailarinos e manipuladores a fazer o corpo dos bonecos. Depois que já estava bem definida a personalidade de cada um, foram contratados dubladores para fazer a “voz guia” e nós colocávamos a voz definitiva na fase de finalização do programa. No início nós já acreditávamos no projeto mas não tínhamos a noção exata do sucesso que seria.

RECEPÇÃO

Luiz Ferré: Foi rolando, não teve o acerto de outro projeto e o nosso projeto foi ficando mais interessante comercialmente também. A Globo nunca teve tanto patrocínio dentro da janela… Quer dizer, a Xuxa tinha um merchand violento, mas a gente não tinha dentro do programa, só em break. A gente virou um negócio muito interessante. A gente começou a ser notado fora do país. O grupo Jim Henson, que trabalha com Vila Sésamo e Muppets, eles vieram pro Brasil e viram a gente em cena. A gente foi convidado pra fazer um estágio em Nova York, fui eu e o Betinho [Dorneles], acompanhou todo o processo deles. Eles ficaram pasmos com o número de cenas que a gente filmava, era muita coisa. Acharam a técnica incrível. Aí a Globo falou “a gente pode dar mais um ano”.

SUCESSO

Roberto Dorneles: Desde o início estávamos bastante confiantes no sucesso do programa, mas eu, que ficava mais tempo dentro do estúdio, não percebia bem a dimensão do que estava acontecendo. Foi então que o Luiz Ferré montou o “Show Colosso”. A estreia foi em São Paulo e por estar sempre em estúdio no Rio, não tinha nem como assistir a algum ensaio. Mas na estreia eu estava, e naquele dia assistindo e sentindo a incrível reação da plateia, me bateu uma forte emoção, um tremendo orgulho pelo trabalho tínhamos produzido, um prazer por estar em sintonia com todas aquelas pessoas. Pensei: poxa, as pessoas gostam exatamente do eu gosto, e fiz. Inesquecível!

[olho]”A gente tinha uma mágica de encenação”[/olho]

Luiz Ferré: A gente não sabe qual é o segredo. Trabalhei um tempo em Los Angeles e fui com projetos super legais, conversei com o produtor dos Simpsons e ele falou: “Cara, a gente fez os ‘Simpsons’, aí a gente falou que tinha a fórmula. Vamos fazer ‘Futurama’, era tudo igual, mesmo humor, mesma pegada, só uma diferente cenografia, e foi um fiasco. A gente nunca sabe o segredo”. Eu tenho algumas teorias sobre o sucesso da “TV Colosso”. Acho que a liberdade criativa, esse não compromisso com regras estabelecidas, o não compromisso de ser educativo e a encenação. Acho que a gente tinha uma mágica de encenação, a gente trazia isso do teatro. A Priscila tem mágica. A sorte de acertar em personagens legais, de encontrar profissionais legais. Foi um momento ali. A gente fez outras coisas legais que não foi no momento. Não tenho o segredo. Essas coisas você não sabe.

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Roberto Dorneles: A risada não tem idade, ela só não está na boca dos muito mal-humorados. A “TV Colosso” não era um programa apenas direcionado às crianças. Os bonecos agradavam muito às crianças, mas não só a elas, e a faixa alargou com o enredo, a temática e as piadas, atingindo assim os adolescentes e até adultos. Sim, já tínhamos feito espetáculos infantis, mas também tínhamos feito espetáculos à noite, abertos a qualquer idade. A linguagem que sempre buscamos é a linguagem que nos faz rir, dessa forma acreditamos que algumas pessoas rirão junto conosco.

Luiz Ferré: Só tem dois projetos na Globo que tiveram essa amplitude de público bem grande: “Trapalhões” e “TV Colosso”. Amplitude de classe A, B e C e idade, do público escolar até os 60 anos. O boneco surgiu na humanidade pra fazer tudo aquilo que nós, atores, pessoas normais, não podem fazer. O boneco vem pra isso. Você não podia sair na rua e falar “o rei tem o nariz grande”, mas o boneco podia e até o rei aplaudia.

O FIM

Luiz Ferré: Tinha uma força grande da Xuxa ainda dentro do projeto comercial. Ela tinha uma força muito forte, muito forte. E também a gente estava muito cansado. A gente achou que era quatro meses, ia pro Rio e tirava férias. Que nada, a gente enlouqueceu. Teve um desgaste criativo muito grande também. Foi bom, porque parou, o projeto continuou lá fora, tava em 36 países. A gente gravava todo dia, isso cansou muito. Era uma rotina muito difícil.

[olho]”Teve um desgaste criativo muito grande também”[/olho]

Monica Rossi: Todo projeto tem um tempo de vida. Por mais sucesso que faça o produto, tem uma hora que chega ao fim. No caso da “TV Colosso”, acabou o programa, mas ficou o legado. Todos que viveram aquela época tem guardado no coração cada personagem. Quem tem a oportunidade de rever os programas fica feliz. Já vi gente chorando ao ver a Priscila ao vivo. Sem dúvida, é sempre uma grande emoção.

FUTURO

Luiz Ferré: A gente vai ser o primeiro grupo a criar conteúdo original pro portal Play Kids. É “TV Colosso”, a Priscila e o Gilmar. O legado nunca sumiu. Saiu da Globo, mas ficou transitando, a gente nunca deixou de trabalhar. Ficou muito presente no imaginário de muita gente, então a gente está sempre fazendo. Esse é um projeto novo, pra criança pequena, pra criança um pouquinho maior e pros antigos fãs. É um projeto super pop, eu faço em português e espanhol, mas vai ser dublado em francês, inglês e mandarim. Vai pro mundo inteiro.

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Sociedade

Introspecção e delírio em Barretos

 

“Frates Sumus Omnes”
(Todos somos irmãos)
— Lema do município de Barretos

Minha incapacidade de dizer não já me levou a muitos lugares: um namoro de dois anos, o batizado de um bebê cujo nome eu sequer sabia e, agora, a 61ª Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos.

O sol duro do meio dia distorce a Rodovia Washington Luiz, transformando o asfalto no horizonte em uma lava escaldante que poderia engolir um automóvel inteiro, uma ilusão de óptica corroborada pelas elevações da estrada que faziam o carro à nossa frente desaparecer a cada nova ladeirinha que descia. Mesmo em agosto, o calor vence o vidro fumê e o ar condicionado da Hyundai Tucson de Henrique, desconhecido abordado via BlaBlaCar para fazer a viagem da capital paulista até Barretos. BlaBlaCar é um site especializado em caronas que dosa a compatibilidade entre caroneiros através de um “blablaômetro”, onde você indica se conversa pouco, normal ou muito. Coloquei muito e eu e Henrique demos match. Ele perguntou o que eu sabia sobre a Festa e, por ansiedade e como técnica de defesa, tirei a trava da besta verborrágica que se esconde em mim e compilei um monólogo com tudo que havia lido nos últimos dias sobre o evento.

No site oficial de Barretos, a história do evento é contada em pequenos capítulos encabeçados pelo presidente em vigor em cada edição da Festa. Ou seja, a história começa com Juscelino Kubitschek, passa por Itamar Franco, FHC, Lula e culmina em Michel Temer. Tirando essa maneira sui generis de separar os eventos, a história do release é um blablabla padrão capaz de explodir qualquer blablaômetro, a história sobre como 20 rapazes autossuficientes e orgulhosos de suas origens fundaram em uma mesa de bar “Os Independentes”, organização responsável até hoje pela festa, para celebrar a cultura e o folclore local. Também era a primeira vez de Henrique na festa e ele me interrompeu com uma dúvida bem mais sincera: será que rola muita putaria?

Henrique é o turista primo da capital recorrente na Festa: indo para Barretos com o solene objetivo de pegar mulherzinha. Musculoso, loiro, com bons traços faciais e uma prosódia tradicionalmente paulista, ele exibe um quê de Nick dos Backstreet Boys — caso fosse um herdeiro da dinastia Matarazzo Suplicy. A dúvida de Henrique é legítima: os boatos que correm à boca miúda no imaginário popular são de que Barretos durante a Festa vira uma Sodoma & Gomorra com motivos country, um município inteiro movido a álcool e libido. A própria dinâmica dos campings dentro do evento, divididos em dois setores: o Casados e o Solteiros, implica uma sexualidade, digamos, expansiva.

Mas nem tudo é impulso sexual: Barretos é um dos maiores festivais sertanejos do Brasil e, também, um dos maiores rodeios do mundo. Jovens peões e duplas de cantores ascendentes tremem de ansiedade e agradecem eloquentemente a oportunidade de fazer parte da história da Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, um monumento inabalável na história barretense: nem o temporal nas vésperas da inauguração destruindo a estrutura principal afetaria o evento que, nos dias seguintes, receberia 900 mil pessoas, ofereceria 120 atrações musicais ao decorrer de 11 dias e, conforme as expectativas, movimentaria mais de 200 milhões de reais.

O fato é que a pequena cidade com uma população de pouco mais de 100 mil habitantes muda completamente seu cotidiano durante os dias de Festa: pipi-móveis são espalhados pela avenida principal da cidade (a Av. 43 – em Barretos todas as ruas e avenidas são batizadas com números), dois postos de gasolina decidem não vender combustível e viram bar (“até o fim da festa o único álcool que vamos vender é cerveja”, explica o frentista) e uma inflação lunática ocorre na comunidade hoteleira da região: no Airbnb, um cativeiro com persiana quebrada, parede descascada exibindo padronagens de infiltração e um colchão sem lençol malemal encaixado em uma cama de solteiro coberta de adesivos de princesas das Disney custava 600 reais a diária.

Henrique e eu vamos construindo as pontes da nossa amizade por conveniência — não necessariamente algo pejorativo, uma amizade construída pela circunstância, pelo contexto de uma situação pontual, sem anticorpos para sobreviver no ambiente não-controlado da vida cotidiana; enfim, uma amizade que, embora envelopada por empatia, tem data de validade — enquanto o carro acelera para o interior paulista. Cada paradouro, posto de gasolina e pedágio nos lembra nosso destino por meio de outdoors e banners com uma foto aérea da arena de Barretos, o logo da Festa e o slogan: “Viva esta experiência”. Hora de viver esta experiência, então.

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DIA I

Quinta-feira, 18 de Agosto de 2016

O calor sufocante de Barretos dá a sensação de estar andando dentro de uma lasanha: as fatias quentes de queijo segurando seus passos como uma areia movediça ou teia de aranha. Uma breve conversa com a recepcionista de óculos grande e porte pequeno me informa que Barretos é um empreendimento caro para quem não dirige: um táxi do centro até o Parque do Peão custa 60 reais, enquanto um mototáxi fica na casa dos 40. Logo vi que me locomoveria com membros do proletário e locais, usando a linha de ônibus municipal Viasa (quatro reais). Durante a semana e fora dos horários de pico, o ônibus é utilizado somente por funcionários do evento — cozinheiros, garçons, seguranças etc. O ônibus abafado usa o plástico que separa o motorista como um pequeno mural de eventos, noticiando festas paralelas durante os dias de Barretos: da Festa do Patrão, uma rave de 24h frequentada pela juventude endinheirada (nos dias que se seguiriam, cinco pessoas diferentes me fofocaram sobre o ano em que o Neymar Jr. foi expulso por tumultuar a festa) ao Segura, Cristão!, uma celebração católica de três dias.

Após duas horas de turbulência, consigo me credenciar e finalmente pisar dentro da labiríntica estrutura da Festa de Barretos. É um parque enorme, por enquanto ainda ocupado apenas por funcionários construindo as estruturas metálicas e arquibancadas, as banquinhas de comidas testando geradores e alimentando os freezers com um estoque infinito de Brahma — algumas geladas já cumprem seu papel na mão de uns peões que andam a cavalo com um latão na mão e o nome de sua comitiva bordado nas costas da camisa. Além dos cavalos, motos cinquentinha aceleram pra lá e pra cá locomovendo funcionários — às vezes três, empoleirados sem camisa — para as extremidades distantes do parque.

No fim da tarde, com uma lua cheia laranja, inchada e suculenta iluminando o céu, um homem passa o som do palco dedilhando o Hino Nacional na viola caipira enquanto uma comitiva desfila a cavalo, estreando a areia da arena. As únicas pessoas nas arquibancadas são funcionários descansando, pés descalços esticados após horas de trabalho enquanto os sapatos e chinelos repousam numa montanha encardida no último degrau. Eles se divertem com o rodeio e gritam girando o chapéu no ar. Anoitece. Casais e famílias começam a chegar.

Começa assim a Sexagésima Primeira Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos.

A Festa é gigantesca: há umas quatro praças de alimentação e bancas espalhadas por todo o parque (do esperado churrasco ao surpreendemente popular yakissoba), todas as banquinhas ignorando qualquer respeito ao conceito de direito autoral: Altas Horas Lanches, Cachorro Quente Sai de Baixo, Fantástico Lanches; Roberto Marinho teria um faniquito dando uma curta caminhada por lá. Um das barracas tinha adesivado apenas as palavras CERVEJA NA BUNDINHA, mas não tive o ímpeto de jornalismo investigativo necessário para desvendar esse mistério. O parque contém três palcos: o principal se encontra na beirada da arena onde acontecem os rodeios. Ou seja, após o fim dos duelos entre homem e touro, as entradas da arquibancada são abertas e o público desce até a arena para assistir aos shows e aproveitar a festa na mesma areia onde os rodeios aconteceram. Compreendi que a unanimidade da bota de cowboy não é um fetichismo estético ao imaginar como seria o momento em que eu pisasse naquela caixa de areia colossal com um tênis de camurça. Aliás, logo no primeiro dia, foi possível notar a diferença entre o cosplay e o respeito ao tema: as pessoas não estão se fantasiando, tampouco é ironia. Aquele é o dress code da Festa e as pessoas obedecem ao dress code. 90% das pessoas respeitam e vão vestidos a rigor: mulheres de short, bota até o joelho e fivelão; homens de camisa xadrez, calça jeans justa e bota de cowboy. O chapéu, mesmo muito recorrente, é opcional. É como usar smoking em uma festa de debutante ou branco no Ano Novo: há uma joie de vivre honesta em se vestir para o evento, uma ambição real de comemorar e fazer parte da celebração.

Com fogos de artifício e um discurso sobre como o “agronegócio paga as contas do Brasil e ser caipira deixou de ser uma vergonha”, começa oficialmente o evento. Mesmo com um público tímido de dia de semana, a festa anima de vez com o show de Simone e Simaria. Na duração de três músicas no olho do furacão da plateia, contabilizei 15 beijos de casais diferentes: uma dinâmica de micareta, olha, beija, segue a vida. Vi um menino implorar por um beijo para uma menina que negava com veemência. Como em um documentário do Discovery Channel, assistir às amigas dela se aproximando por trás do rapaz. “É hoje que vejo uma fanfic de esquerda ao vivo!”, esfreguei as mãos empolgado pensando naqueles textões virais que corriam soltos pelo Facebook. Mas o que aconteceu foi a amiga exclamando “ô, só beija o cara!”. “Beija, vai!”, insiste outra amiga. “Beija logo!”, sentencia uma terceira amiga, mais baixinha e impaciente. Logo, suas oito amigas em uníssono ordenavam um beijo com argumentos que iam do “ele não é tão feio” até “ele faz cursinho com minha irmã”. Ela beijou rápido, se desvencilhou do abraço e fugiu com as amigas aos risos enquanto o sujeito comemorava e era ovacionado entre a multidão.

Contei essa história para Laura, a recepcionista matinal de 56 anos que alimentava uma relação de amor e ódio com Barretos, e fui informado que ultimamente estavam bem mais sob controle as coisas: há uns 10, 15 anos, era comum os rapazes laçarem as mulheres, arrastarem pra lá e pra cá, “casal trepando na rua mesmo”. Ao conversar sobre o potencial ameaçador da festa, mulheres, de adolescentes até donas de casa, abordavam as investidas como um dano colateral, um obstáculo natural que se evita não bebendo demais sozinha, não andando sem amigas pelo meio de multidões, raramente (uma vez, para ser exato) sendo chamado de machismo. Em tempo de eloquência sobre o tema em redes sociais, pareceu extraterrestre tamanha complacência com o comportamento masculino: um misto de tem-quem-goste com eu-não-vou-deixar-estragar-minha-festa pontuou as respostas. Barretos abria uma fenda no espaço-tempo onde as pautas contemporâneas se dissolviam qual açúcar na chuva? O Brasil profundo pouco se afeta com as microrrevoluções protagonizadas pelos membros da quasi-intelligentsia das redes sociais? As mulheres não deixariam essas circunstâncias estragarem sua festa e existe uma lição aí sobre sobrevivência e eficácia pragmática e a diferença entre discurso e prática?

Na noite seguinte, no show Cabaré, Eduardo Costa provocaria um urro de celebração ao afirmar que “quem caça Pokémon não caça buceta” para uma arena lotada, confirmando a onipresença opressora de uma aura sexual autoimposta pelo imaginário popular da Festa. Isso atrai muitos empreendedores sexuais para a cidade: conversei com uma prostituta catarinense que, a convite de um “amigo”, veio para cá trabalhar numa casa no centro, um bordel improvisado em um sobrado para os dias de Barretos. Mesmo com os preços inflacionados, ela afirmou haver movimento constante. Sobre essa abordagem itinerante à prostituição, ela afirmou ser comum e há anos faz turnês pelas festas populares do Brasil.

A mensagem “Meu… tá rolando uma putaria BIZARRA no camping dos solteiros…” fez vibrar meu celular. Era Henrique. Logo abaixo uma foto de uma mulher virando cerveja entre suas nádegas, na caçamba de uma caminhonete. Meninas diferentes rebolando seminuas ou nuas para uma plateia de homens de bermuda e chapéu, quase todos com o celular em punho rindo e hiper-registrando a festinha. Como a entrada no camping era restrita, decidi ir para o hotel.

Voltei em um ônibus lotado de funcionários cansados que, por precisarem esperar um segundo ônibus chegar para esse sair, começaram um pequeno motim com gritos de “VAMO, MOTORA” e “EU TÔ CANSADO, MOTORA” e “RESPEITA OS CABELO BRANCO DESSA SENHORA, MOTORA”; todas as frases respondidas pelo silêncio inabalável do motora. Depois de 45 minutos, o ônibus finalmente acelerou e foi recebido com um brasileiríssimo “AEEEEE” e uma salva de palmas. Chegando no conforto do quarto de hotel, uma rápida pesquisa por “barretos” no XVideos (motivo: jornalismo investigativo) revela que a prática não é nova: é um ritual anual do camping dos solteiros a contratação de prostitutas para animar as cervejadas e churrascos. Pego no sono vendo um homem cambaleante sem camisa sofrendo para subir em uma mesa plástica de bar para dançar ao lado de uma prostituta de biquíni em um vídeo pixelado na tela do meu computador.

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DIA II

Sexta-feira, 19 de Agosto de 2016

A música sertaneja é onipresente em Barretos. Ela te acorda e te nina. No sistema de som da recepção do hotel, explodindo na caixa de som dos carros, no celular do jovem no ônibus: em todos os lugares, fazendo uma trilha sonora constante, às vezes metalinguística (na noite anterior me peguei tentando conectar no wi-fi no Parque do Peão após a morte súbita do meu 3G e, fracassando, ouvi uma música que dizia “eu quero falar com ela mas o wi-fi não deixa”). Isso é crucial. Existe uma coragem e uma urgência na música sertaneja em absorver o agora. Em “O Pintor da Vida Moderna”, Baudelaire fala que a função do, bem, pintor da vida moderna é registrar a cidade. Não como paisagem, mas suas relações, seus cruzamentos, suas exclusões, suas novíssimas funções e seus novos valores. É assim que se compreende o espírito de um tempo: sendo atemporal ao dar um mortal de costas no lamaçal do zeitgeist. É isso que a música sertaneja faz: fala de mensagem visualizada, promoção em passagem aérea, celular sem bateria; inclui todos os signos do que é ser uma pessoa existindo nesse espaço-tempo. Quando Munhoz & Mariano cantam “no shopping, no bar, até no motel você pede wi-fi”, eles fazem exatamente o que Baudelaire quer dizer quando martela no aforismo que todas as modas são encantadoras.

Segui o som sertanejo até a piscina, onde encontrei três irmãos muito parecidos mergulhando seus corpos na água. Além do mesmo biótipo, também compartilhavam o senso fashion: os três usavam óculos e boné; um deles usava um boné com os adjetivos “Bruto, rústico e sistemático” bordados na frente. Moradores de Campinas, o trio veio movido pelo seu poliamor por música sertaneja e por beber; só paravam de cantar para fazer fazer algum comentário sobre a alquimia da embriaguez através de uma bebeção especulatória, marcadas por comentários “o cara fica mais bêbado com uma dose de uísque ou de vodka?”. Eles não estavam satisfeitos em ficar bêbados, mas sim almejavam a maneira mais eficaz de fazê-lo. Tirei a camisa, aceitei a oferta de um copo de uísque e energético e me juntei a eles, nós quatro quebrando todas as regras escritas em letras garrafais ao lado da piscina:

– Proibido entrar com bebida alcoólica
– Proibido entrar de bermuda
– Proibido ouvir som alto

Conversamos sobre nossas expectativas com shows enquanto flutuávamos na água gelada da piscina: os irmãos queriam ver a apresentação conceitual de Paula Fernandes, dividida em noite, madrugada e amanhecer; eu estava ansioso para o show de Marília Mendonça e ainda ruminava o carisma e sucesso de Wesley Safadão, um paradoxo indecifrável: como um ser pode ser tão doce ao mesmo tempo que atende pela alcunha de Safadão? Chegada a hora, fomos juntos ao shows da noite no Parque do Peão, a versão funknejo de “Bumbum Granada” chiando alto para fora das caixas de som do carro.

Já no Parque do Peão, Maiara & Maraísa sobem ao palco munidas de microfones dourados, vestidos justos, um violão branco e todo o empoderamento que a soma desses elementos pode acarretar. Depois do obrigatório “Boa noite, Barretão”, a dupla dispensa a diplomacia e pergunta de cara, em dicção perfeita, para uma arena lotada, a pergunta mais (para seguir “empoderamento” no dialeto contemporâneo) triggering que milhares de casados e solteiros poderiam ouvir:

— QUEM AÍ JÁ FOI CORNO?

O sonoro “corno” ecoa em todo o Parque do Peão, talvez em toda cidade. Até onde eu sei, ecoou no Brasil inteiro, até a casa da ex-namorada que uns meses antes havia se aventurado em relações extraconjugais com um homem mais velho que, por levar sobre os ombros o mesmo nome do genitor, mesmo na meia idade era chamado pelos amigos de “Júnior”. Na base do ventre, senti todo o peso de ser traído por um homem 15 anos mais velho que eu chamado Júnior. Usando uma camisetinha genérica do “Unknown Pleasures” do Joy Division na foto de avatar. Um homem velho chamado Júnior vestindo a camisetinha dos risquinho do Joy Division. Mas antes que eu afundasse em autopiedade, Maraísa (ou Maiara) me tirou da minha digressão com um complementar:

— E QUEM AQUI JÁ CORNEOU ALGUÉM?

Novamente ensurdecido pelo urro que a plateia dava em resposta quase unânime, exceto um e outro casal que se limitava a trocar olhares de eu-não-esqueci e me-desculpa-mesmo, fui transportado ao meu histórico de dissimulações, mentiras, chats de WhatsApp deletados, pacotes de camisinha comprados para repor as do criado-mudo usadas na noite anterior. Traições impulsionadas por insegurança e egoísmo, um misto de adolescência tardia com crise de meia-idade precoce. O mundo de Maiara & Maraísa tem uma qualidade bíblica, um quê fatalista de Velho Testamento, apontando a verdade ululante que existe sob platitudes como “aqui se faz, aqui se paga”.

É impossível não se entregar à indulgência confessional quando o fio condutor do show e a essência das letras de Marília Mendonça e Maiara & Maraísa é a catarse da exposição da intimidade. Uma gigantesca terapia coletiva, bem mais acessível financeiramente e menos eficaz que a convencional, mas, Jesus, muito bonita. Dezenas de milhares de pessoas fazendo qualquer coisa em sincronia já causa um otimismo, mas dezenas de milhares de pessoas em uníssono exorcizando demônios através de fábulas sobre beber para esquecer alguém e ainda ter que pagar os 10% do garçom confirma que o sublime e o crescimento estão na força feroz da vulnerabilidade.

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DIA III

Sábado, 20 de Agosto de 2016

No sábado, além da festa no Parque do Peão, ocorre uma grande celebração de rua na supracitada Avenida 43, a principal da cidade e logradouro do hotel em que eu me hospedava. Fui acordado de maneira eficaz por um remix de funknejo histriônico e esquizofrênico que parecia tocar dentro do meu próprio lóbulo frontal. O calor justificava a fama do clima quente de Barretos: lençóis amanheciam encharcados e camisetas umedeciam em breves caminhadas até o restaurante onde já se encontravam os primeiros bêbados da manhã.

Na Avenida 43, os cowboys já montavam suas bolsas térmicas entupidas de latões trajando apenas cueca samba-canção, chapéu e bota. Se na festa oficial as roupas eram respeitadas, no centro o traje era carnavalesco: grupos de amigos sinalizavam sua unidade como “bloquinho” através de um BREJA NA BOKA bordado na parte traseira da cueca. A avenida lota muito rápido e, sob o sol do meio-dia, casais recém-formados já se beijam, turistas atiçam louquinhos de bairro que espiam empolgados o movimento e garrafas de energético e uísque começam a redecorar os canteiros. Depois de décadas de festa incontrolável que invadia a madrugada e também estacionamentos de estabelecimentos, homicídios e outras ilegalidades menos letais fizeram com que uma lei obrigasse a festa a acabar às 20h. “Mas como confiar na pontualidade e no bom senso de uma turba embriagada?”, pergunto e me apontam para a força policial rigorosa que vigia austera da outra extremidade da avenida. “Manda todo o mundo embora mesmo, spray de pimenta, bomba já tiveram que usar, mas mandam embora tudo”, sorri um garçom de uns 60 anos, uma cicatriz atravessando seus lábios. Mais tarde, eu mesmo assistiria a dois policiais dando uns tapões (o famigerado “telefone”) em um bêbado desagradável que saiu do encontro cambaleante, choroso e, definitivamente, menos desagradável. Os meios podem ser questionáveis, mas a eficácia, não. Pelas 21h a avenida já estaria vazia, só os pipi-móveis, centenas de garrafas jogadas pelo chão e quatro viaturas que circulavam a avenida como se uma guerra civil estivesse prestes a romper.

O laço da amizade de conveniência se mostrou mais forte que o esperado no momento em que recebi uma mensagem de Henrique me convidando para um churrasco no Rancho Pau Impé (confesso não ter notado o trocadilho por escrito e só notar o trocadilho ao pedir para o taxista me levar até o “Rancho Pau em Pé”). O taxista, como muitos outros barretenses, não era taxista, mas fazia o bico na temporada pra tirar um dinheiro além da sua renda normal de agrônomo. Como quem recebe uma visita, parecia bem orgulhoso da cidade, relatando os tempos passados em engarrafamento com a boca cheia, como um capricho da capital a que agora ele tinha direito.

No Rancho Pau Impé, fui recebido por Seu Benê, um empresário de 67 anos. Sem camisa, o torso truncado exibindo uma cicatriz cirúrgica do centro do peito até o umbigo, um bafo de cerveja e um óculos pendendo da ponta do nariz. Seu Benê era o anfitrião ideal: me falou sobre seu amor por Barretos, sobre seu tino comercial e sobre sua paixão pela bebida, tudo através de trocadilhos (“Vinícius, você sabe por que eu bebo?”, ele perguntava me fitando nos olhos; “Por que, seu Benê?”, eu respondia com voz de Dedé Santana, o encarando nos olhos também como se jogássemos um Jogo do Sério; “Porque é líquido”, ele respondia). Não havia ficado realmente bêbado até esse dia, então aceitei o conselho do Seu Benê de que beber era fundamental (jornalismo investigativo) para mergulhar de cabeça no modus operandi da Festa.

Devidamente entorpecidos, partimos para o Parque do Peão (o Seu Benê fez uma gambiarra para Henrique entrar de graça: colocou a pulseira na circunferência da mão e prendeu, criando uma livre locomoção que podia passar de mão em mão — lembro de marejar os olhos de embriaguez e admiração). Entre tropeços e gargalhadas, nos dirigimos à arena lotada em que alguma dupla sertaneja se apresentava com a promessa de ser o show mais “bruto e divino desse país”. O cantor pediu para desligarem todas as luzes e as pessoas ligarem as luzes dos seus celulares, compondo uma constelação, uma extensão do céu estrelado que se misturava com as pessoas. Toda essa beleza embalada por um hit sobre uma multidão não ser uma companhia, um olha-quanta-gente-e você-segue-sozinho. Impossível de descrever com adjetivos melhores que: bruto e divino.

Henrique me cutuca o ombro e me alcança um copo de energético e uísque, brindamos, sorrisos, abraços, tudo parece mágico. Vejo que, embora existam portões para entrar da arquibancada para arenas, os jovens locais, barretenses de 16 ou 17 anos, escalam a cerca de três metros até o outro lado, alguns sentam lá em cima e assistem ao show. Isso é Barretos! Eu preciso fazer isso! Tomando um gole grande para diminuir o peso e segurando o copo plástico com os dentes, escalo e sento no topo da arquibancada, uma perna para cada lado. A vista é realmente bonita e aqueles milhares de pessoas parecem ter um motivo sincero para celebrar. Sou contagiado pelo otimismo. Corro o risco de desabar meu corpo alcoolizado ao embarcar em uma expedição para tirar o celular do bolso e mandar um áudio de WhatsApp do qual iria me arrepender dias depois.

Doses insalubres de bebida alcoólica são empurradas goela abaixo enquanto a cerveja de milho esquenta no latão que passa de mão em mão dos estranhos empoleirados na cerca. Isso é Barretos! Isso é bom! Divino! Bruto! O divino e o bruto coexistindo! É isso que é o ser humano! O meio-termo entre o divino e o bruto! Estou gesticulando sozinho equilibrado na cerca de três metros de altura e decido que é melhor dar uma volta.

Faço amizade com um grupo de meninas e, como o slogan da Festa ordena, vivo aquela experiência. Chutava areia pra lá e pra cá dançando com uma garota, minha mão na cintura dela, a mão dela no meu pescoço, nossos hálitos quentes com alto teor alcóolico embaçando o olhar um do outro. Qual não foi nossa surpresa quando um relâmpago explodiu no céu e uma chuva torrencial nos atacou sem pudor, mulheres escondendo os celulares dentro de suas botas, blusas ficando transparentes e a areia da arena virando um barro. Se até então eu apenas arranhava a superfície de Barretos, esse foi o momento de comunhão: uma das minhas recém-feitas amigas arrancou um pequeno outdoor de patrocínio, uma estrutura de metal e lona de 3mx10m, e improvisou uma cabana pra gente. De braços em riste, segurávamos aquela proteção da chuva enquanto, a cada segundo, mais pessoas se aproximavam, uma chuva torrencial caindo. Mais umas pessoas arrancaram as lonas de patrocínio e quando vi éramos umas 40 pessoas esticando os braços para manter nosso abrigo, rindo e divindo cerveja quente. Todavia, o show seguia e achamos injusto com nosso momento especial assistir a ele de longe, alienados. Decidimos aproveitar o show de perto e caminhamos para perto do palco, todos os 40 juntos, num trenzinho, carregando as lonas com a mão esticada. Seguranças chegaram e nos privaram do nosso casquinho de tartaruga improvisado.

O temporal crescia cada vez mais, o vento cada vez mais forte e as gotas de chuva cada vez maiores. É quando ocorre uma evacuação em massa. Milhares de pessoas indo embora ao mesmo tempo. A fila do ônibus, até então sempre vazia, era quilométrica agora. Entrei — completamente encharcado, a chuva forçando minhas pálpebras a se fecharem — para a fila com famílias, casais e bêbados. Um primeiro ônibus estacionou e as pessoas do começo da fila começaram a entrar. Então um segundo ônibus parou na frente, no meio da estrada, abrindo a porta como quem diz “chegaí, fura fila”. Todo o ser vibe errada presente saiu da fila (inclusive eu): os amorais, antiéticos, sem rigor, fomos todos para o ônibus fácil. Enquanto o para-brisa embaçava e o ônibus chacoalhava pela estrada, fiquei conversando com um barretense como esse era o ônibus do Juízo Final levando quem não presta embora, aquela tropa de pessoas ensopando o chão do ônibus com suas roupas pingando. Ele ria e concordava com um “Nós vai morrer tudo!”. Que divino, que bruto.

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DIA IV

Domingo, 21 de Agosto de 2016

O quarto dia de Barretos começou com a inauguração do cobertor que até então sobrevivia imaculado no armário. O temporal da noite anterior baixou a temperatura e o município, mesmo sem chuva, amanheceu aos 19°. A ressaca, o cheiro de roupa úmida, o único tênis encharcado, o frio inesperado: Barretos está tentando me ensinar uma lição? Mesmo com o clima lúgubre, alguns guerreiros mantinham viva sua epopeia e arrumavam sua bolsa térmica cheia de latões em uma esquina.

Encaminhei-me cedo até o Parque do Peão, pois aquele melancólico domingo seria também a final da competição de montaria de touro da PBR, a Professional Bull Riders, organização responsável pela premiação em dinheiro de 100 mil reais e a ida de um peão para competir em Las Vegas. Além disso, seria revelado o nome do mascote oficial da PBR, um homem vestido de peão, porém com cabeça de touro, um minotauro antropofágico que todo dia se apresentava fazendo danças e palhaçadinhas em geral ao som de riffs de guitarra e à luz de pirotecnias como lança-chamas e fogos de artifício — vamos terminar logo aqui com isso, o nome escolhido foi Pibibull, ok? Seguimos.

Mesmo sendo final, a arquibancada recebia um quórum tímido de casais entusiastas de montada de touro. A maior parte do público se dividia entre duas atividades: ou estavam no palco infantil Barretinho assistindo a uma peça de teatro — que, pelo que entendi, era a Peppa Pig e sua turma recontando a Arca de Noé — ou na fila para montar no touro mecânico. A porquinha Peppa e o touro robótico que levantava o vestido das mulheres praticamente lado a lado, criando uma dicotomia um pouco assustadora.

A areia molhada na arena dificultava a montaria e permitia que os touros jogassem os peões pra lá e pra cá como bonecas de pano. A dinâmica, independente do peão, era a mesma: ao som de “Rockstar” do Nickelback, a porteira era aberta e o peão surgia no lombo de algum touro musculoso e imponente que relinchava em um breakdance infernal. Três ou quatros segundos depois o peão já se encontrava no chão e um corte seco oscilava de “Rockstar” para o dedilhado de alguma canção do The Calling. A trilha, vez em quando, mudava para “American Idiot”, do Green Day, ou “Master of Puppets”, do Metallica. A noite era dos touros, criaturas quase mitológicas de semblante apático como se ruminassem os horrores que viram e corpos inflados, como se usassem anabolizante, cada músculo do corpo pulsando no ápice de sua funcionalidade. E os nomes! Touros batizados de: Bipolar, Assédio Moral, Pikachu, WhatsApp, Playboy, Samurai, Vegetariano, Miss Cancun, Blindex, Hard Rock, Artista, Vingador, Escuridão.

Da arquibancada, eu comia um espetinho de churrasco e praticava a hipocrisia ao julgar a violência animal. Ao indagar qualquer profissional no evento, o que você recebe é um discurso pronto sobre como o boi é bem tratado, todos animais são tratados com respeito e cuidado (“melhor que muito peão”, riu um dos tratadores). No site d’Os Independentes, associação organizadora do evento, há uma página chamada Mentiras & Verdades sobre o Rodeio em que, agora por escrito, dão mais ou menos os mesmos argumentos. Ainda assim, no começo do ano, a Justiça proibiu a prova do laço e a vaquejada, limitando o Rodeio apenas à monta do boi. As visitas guiadas ao breta, oferecidas aos membros da imprensa, insinuam um cuidado e profissionalismo com o animal, mas uma breve pesquisa de Google aponta dezenas de denúncias e vídeos de maus-tratos.

Fiz a única coisa que minha preguiça e indulgência permitiam: torci para o touro em todas provas da final. Existe uma definição clara entre quem torce para o peão (pra minha surpresa, a maioria) e quem torce para o touro. Existe uma beleza em um animal acuado, assustado e atucanado querendo se livrar de um ser humano. Cada tombo era uma pequena comemoração minha, corroborada apenas pela gargalhada senil de um senhor sozinho que sentava a uns metros de mim. É como ver “Godzilla” e não torcer para o monstro. As crianças que torciam para os cientistas e prédios hoje torcem para o peão ou trabalham no RH de empresas. Por fim, o peão Dener Barbosa montou com destreza o touro Tempo Ruim na noite fria e chuvosa de domingo e se consagrou campeão.

Exibindo a fivela de ouro do PBR, conversei com o peão. Humilde e genuinamente empolgado, contou sobre seus ossos quebrados, sobre o medo que nunca se dissolve por completo, sobre a energia da arena. Perguntei se, aos olhos dele, as pessoas torciam mais para o peão ou para o touro. “Olha, eu prefiro achar que para o peão, mas entendo quem gosta do touro.”

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DIA V

Segunda-feira, 22 de Agosto de 2016

Segunda-feira toma Barretos impondo seu pragmatismo de dia útil. Trabalhadores caminham pelas calçadas; os latões somem e as mãos agora desfilam pelo centro segurando contas para pagar. Na rádio, a notícia de que um boi havia sido alvejado até a morte na noite anterior, com um tiro fatal na cabeça,dias antes de ser leiloado em prol do Hospital de Câncer de Barretos — no resto do ano, o que movimenta a cidade são os milhares de pessoas que peregrinam até a cidade em busca do seu tratamento oncológico sofisticado e inovador. É como se a realidade voltasse de férias.

A recepcionista do hotel, Ana Lúcia, conta sobre as amizades que fez ao decorrer de anos e anos de Barretos: políticos, artistas em busca da fama, pequenos comerciantes. Lista interações, parafraseia frases; é como se anualmente colasse novas figurinhas em seu álbum de visitantes. Mesmo voltando ao normal, a cidade segue com o que pode ser chamado de “uma atmosfera”.

No ônibus de volta para São Paulo, sento ao lado de Volnei, 50 anos, recém-divorciado, barretense que ia para a capital visitar o irmão. Batemos nossas impressões sobre a festa, ele como local, eu como intruso. Ele mia uma mágoa teatral sobre como o patrocínio, os camarotes e as novas gerações destruíram a essência de Barretos; esmurra o ar e critica a lei proibindo técnicas de montaria no Rodeio, enchendo a boca para pronunciar “vergonha!” várias vezes, os fios grisalhos espetando para fora do seu bigode preto.

Penso nas dezenas de particularidades que deixei passar, que sensibilidade aguçada alguma seria capaz de absorver a essência de uma festa sexagenária. Penso no peão Dener, no Henrique, no Seu Benê, na recepcionista e até na banca de “cerveja na bundinha”. O quanto conscientemente não ceder ao moralismo e ao julgamento e forçar a alteridade não é uma manifestação ainda mais condescendente de moralismo. O quanto de mim foi projetado em tudo que vi; o quanto foi distorcido, mutilado e cozinhado na panela da minha percepção.

A Festa de Barretos é uma celebração de uma cultura, um evento de autoafirmação do povo caipira, onde trejeitos e roupas frequentemente pejorativos são ressignificados. Ao mesmo tempo, é uma festa violenta em que o consumo abismal de álcool nos deixa cegos pelo cabresto do hedonismo. Mas também é o Brasil em toda sua glória sertaneja, colocando uma lente de aumento em toda ambiguidade moral do amor romântico. A Festa de Barretos é a festa que ocorre na sua cidade desde que você nasceu e é como um primo que te visita todo ano para vocês darem uma volta; é a viagem que você faz com seus amigos para fugir da rotina; é, enfim, uma grande mancha de teste de Rorschach em que cada um enxerga o que quer — ou precisa, ou prefere.

Uns quilômetros depois, o silêncio da estrada vencendo minha conversa com Seu Volnei, me peguei fitando a paisagem do interior paulista pela janela do ônibus e imaginando um homenzinho correndo ao lado do veículo, veloz e ágil saltitando entre os topos das árvores. Desde sempre resvalo para essa fantasia em toda viagem que faço. Comento com Seu Volnei, descrevendo a brincadeira como um ritual alienígena. Ele sorri e diz que também faz, desde sempre. “Acho que todo mundo é meio parecido nesse aspecto.”

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‘Divorce’, ‘Insecure’ e relacionamentos

Com “Game of Thrones” a dois anos de terminar e “Girls” entrando na última temporada, a HBO preparou para este mês algumas apostas de substitutas — já que “True Detective” afundou no segundo ano e a caríssima “Vinyl” nem passou da primeira temporada. No último domingo foi a vez de “Westworld”, o drama complexo de ficção científica candidato a substituir “Game of Thrones” como série de prestígio. Neste fim de semana (9) o canal apresenta suas novas comédias: “Divorce”, com Sarah Jessica Parker, e “Insecure”, de Issa Rae.

Quando Sarah Jessica Parker apareceu pela última vez em uma série, sua Carrie Bradshaw rumava ao felizes para sempre com Mr. Big, em “Sex and the City”. Mais de dez anos depois, a atriz volta à HBO para mostrar o que acontece quando o para sempre acaba e um casamento chega ao fim. Em “Divorce”, a atriz é Frances, que nos é apresentada de toalha, passando lentamente um creme no rosto no espelho do banheiro, em um momento bem íntimo. Robert, o marido (Thomas Haden Church), entra com uma lata na mão e reclama: ela passou tanto tempo no banheiro, sem abrir a porta para ele, que ele teve que fazer as necessidades na lata. Ela reage com desinteresse, sem parar o que está fazendo.

Nas palavras de Frances, a vida do casal consiste apenas em conversar sobre assuntos banais como o alarme da casa — o que seria tolerável se ainda houvesse algum amor entre os dois ou alguma felicidade naquela rotina. Depois de um acontecimento traumático, Frances comunica a Robert que o amor acabou e que quer o divórcio. De início, ele quer conversar a respeito: sugere mais sexo, sessões com um terapeuta. Mas ela diz que não tem solução. Depois, ela muda de ideia e quer voltar atrás, dar uma segunda chance ao relacionamento. Mas ele diz que não tem solução. Com base na sinopse oficial da série (“um casal passa por um longo e arrastado divórcio”), supõe-se que a dissolução do casamento será tão difícil quanto o namoro de Carrie e Mr. Big.

Apesar da premissa dramática, “Divorce” é, oficialmente, como dito no início do texto, uma comédia. Criada por Sharon Horgan, de “Catastrophe”, da Amazon, sobre duas pessoas difíceis unidas por uma gravidez inesperada, a série tem muitas notas de humor negro — do cachorro que se sufoca intencionalmente por não aguentar mais o clima da casa à escalada surreal de uma briga entre um casal na festa de aniversário da mulher (bem, a primeira cena “Divorce” fala de defecar em uma lata). Só não é uma comédia pura, daquelas reconfortantes que você põe para não ter que pensar muito no fim do dia. É mais uma daquelas séries que causam controvérsia quando são classificadas como “drama” ou “comédia” em premiações, porque são um pouco das duas coisas. Definitivamente não conforta ninguém.

Julgar uma série pelo primeiro episódio não só é difícil como é temerário — tem algumas que precisam de uma meia temporada para finalmente pegar no tranco. O que dá para dizer de “Divorce” tendo visto só um capítulo, é que a série tem um bom começo. Sem ter um enredo muito complexo ou precisar explicar muita coisa, como “Westworld”, a série pode se concentrar em apresentar os personagens. Sarah Jessica Parker, bem distante de Carrie, tem a oportunidade de mostrar seu lado mais dramático e carrega bem os monólogos sobre a infelicidade de sua vida nos subúrbios de Nova York. Haden Church tem menos o que fazer nesse início, mas coloca humor num personagem que tem tudo pra ser uma pessoa bem sem graça. Como vemos no início mais os dois separados do que juntos, não dá para saber ainda se os dois têm muita química, o que é essencial numa série sobre (o fim de) uma relação. Pelo menos Sarah Jessica tem uma boa dinâmica com Molly Shannon, a amiga à beira de um ataque de nervos que também está num casamento problemático.

Apesar de Sarah Jessica Parker estar em “Divorce”, quem se aproxima mais de “Sex and the City” e de seu olhar sobre amizade feminina e relacionamentos é “Insecure”, a alternativa mais leve e, pelo primeiro capítulo, melhor entre as duas estreias. Issa Rae, criadora e protagonista da série, não é conhecida na televisão, mas já tinha experiência em séries com “Awkward Black Girl”, criada para a internet num momento de tédio na faculdade. Se “Divorce” pode ser definida como “casal rico de meia idade se separa em Nova York”, “Insecure” é “mulher negra chegando nos 30 vive sua vida em Los Angeles ao lado de sua melhor amiga”. São duas séries sobre relacionamentos, mas em tempos diferentes: “Divorce” é um retrato do fim, “Insecure” é tanto sobre a busca pelo romance quanto sobre as amizades.

Ao som de “Alright”, de Kendrick Lamar, somos apresentados a Issa em seu aniversário de 29 anos, em mais um dia comum em seu trabalho, como a única mulher negra em uma ONG com projetos educacionais para crianças. Na sala de aula, ouve dos alunos “por que você fala como uma mulher branca?” e “meu pai diz que mulheres negras são amargas”. No escritório, é “agressivamente passiva” com os colegas que lhe perguntam o significado das gírias do momento, como se ela estivesse por dentro de tudo que acontece nas ruas. Em casa, sustenta o namorado, que está há anos desempregado. Ela quer terminar, acha que chegando aos 30 não tem mais tempo a perder, mas não tem exatamente certeza.

Enquanto Issa não sabe se é melhor ficar num namoro pouco empolgante ou ficar solteira, sua melhor amiga, Molly (Yvonne Orji) tem certeza: escolha o namoro. Molly, uma advogada, é um sucesso profissional — segundo Issa, ela é o “Will Smith do mundo empresarial”, amada por brancos e negros –, mas não tem um namorado e sofre com isso enquanto usa aplicativos de encontro. Issa e Molly nem sempre concordam, mas estão sempre disponíveis para dar um ombro amigo uma para a outra mesmo quando brigam com a ferocidade de quem se conhece muito bem e sabe exatamente o que dizer para machucar.

Com base no primeiro capítulo, pelo menos, dá pra dizer que “Insecure” tem uma qualidade que falta a muitas das séries voltadas ao público dos vinte e poucos/tantos anos: parece realista sem ter personagens difíceis vivendo vidas horríveis. Issa e Molly são mais legais que qualquer personagem de “Girls” ou “Love” e suas vidas não são nem surrealmente boas (como Carrie, de “Sex and the City”, conseguia comprar tantos sapatos escrevendo uma coluna em um jornal é o mistério do século) nem ruins. São normais.

Se a HBO vai conseguir ou não encontrar novos sucessos para sua grade, não dá pra dizer só com base nessa semana. Mas dá pra ficar otimista.

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Cinema

Restaurando ‘Star Wars’

Seis anos atrás, Petr “Harmy” Harmáček assistiu a uma reconstrução da versão original de “O Império Contra-Ataca”, feita por um fã, sem as alterações que George Lucas fez em seus filmes ao longo dos anos. Harmy pediu ao criador que lançasse uma versão do vídeo numa resolução melhor, em alta definição. “E ele me disse: ‘Se você quer tanto, por que não faz você mesmo?’”, conta ele. Sem experiência alguma com edição de vídeo, Harmy resolveu tentar mesmo assim. A primeira vez que tinha assistido a “Star Wars” foi aos cinco anos, e durante a infância teve batalhas de sabre de luz épicas com os amigos. “Eu tinha a cópia de uma cópia de um VHS velho da versão original de ‘Star Wars’, que vi tanto quando criança que gastou. Nos casos de ‘O Império Contra-Ataca’ e ‘O Retorno de Jedi’, vi as versões especiais antes e tive muita dificuldade para achar as originais em VHS aqui na República Tcheca”, diz.

Para quem não é particularmente fã da obra de George Lucas, o parágrafo acima talvez não faça muito sentido. Uma explicação, nas palavras de Harmy. “Em 1997, a chamada Edição Especial de ‘Star Wars’ foi lançada, com muitas alterações de áudio e vídeo, e todo o mundo achou que seria só uma versão alternativa divertida. Mas George Lucas disse: ‘Essa é minha visão original. Era isso que eu queria e agora será a única versão disponível’. Mas em 2004 saiu um DVD com mais alterações. Então onde estava a ‘visão original’ de 1997? E então, em 2011, o Blu-ray saiu com mais mudanças e até hoje a versão original não foi lançada numa qualidade decente.” Para quem não viu “Star Wars” quando os filmes foram lançados no cinema, ver as versões originais ficou muito difícil. Por vias oficiais, impossível.

O problema, para Harmy e muitos fãs de “Star Wars”, não é a existência de várias versões. Muitos filmes têm versões diferentes, cortes do diretor. “O problema real é a supressão intencional da versão original, historicamente importante e que ganhou sete estatuetas do Oscar — e que teve boa parte de seus aspectos que o fizeram levar tantos prêmios alterados depois”, afirma. Harmy conta que viu palestras em que os técnicos de efeitos especiais falavam sobre as técnicas utilizadas, os modelos de naves espaciais, o trabalho de câmera e os efeitos de óptica, enquanto uma tela atrás mostrava os efeitos computadorizados de 1997. “Isso é simplesmente errado.”

Com apenas uma experiência limitada com Photoshop no currículo, Harmy resolveu tentar fazer sua versão mesmo assim, assistindo a tutoriais na internet para fazer as coisas que precisava. Lançou, ao final, a versão “anti-especial”, chamada de “Partly Despecialized Edition”, da trilogia original de George Lucas. “Chamei assim porque peguei as Edições Especiais e tirei só as piores alterações”, lembra. Quando lançou a primeira versão, tinha aprendido tanto sobre edição de vídeo que quis recomeçar o processo, porque achava que já conseguiria fazer algo melhor. “Consegui remover a maioria das mudanças. Então tirei o ‘Partly’ do título e virou só ‘Despecialized Edition’.”

Antes de pensar em editar “Star Wars”, Harmy era fascinado por efeitos especiais, principalmente sobre como eles eram feitos antes dos computadores. “Eu só tinha as edições especiais de ‘Star Wars’ em VHS e queria muito ver os efeitos originais. Então fui atrás das versões originais ainda quando criança. Quando comecei a faculdade, em 2008, descobri o HD e achei as versões em HDTV da edição em DVD de 2004 na internet. De repente, ver ‘Star Wars’ na qualidade do laserdisc não bastava. Como eu queria ver o original, comecei a procurar uma versão em HD disso”, conta. Fãs antes dele já haviam tentado chegar às versões originais de “Star Wars”. “Mas acho que fui o primeiro a fazer isso em alta definição.”

Foi um processo trabalhoso. Como base, ele utilizou as versões da edição especial em Blu-ray, com imagens em alta definição. Para tirar as partes alteradas por George Lucas, utilizou “as melhores fontes com qualidade” que encontrou. “Quando dava, não trocava a cena inteira, porque os materiais disponíveis sem alterações têm qualidade tão ruim que você não pode colocar num vídeo em HD sem ficar muito esquisito. Então quando as alterações eram pequenas, eu trocava só um pedaço pequeno da imagem por aquilo que tirei de uma fonte de menor qualidade.” Para isso, utilizou imagens da versão original gravadas por fãs de exibições antigas na televisão, que algumas pessoas do site originaltrilogy.com lhe forneceram.

Para versões mais recentes — o trabalho continua –, contou com a ajuda de entusiastas de “Star Wars”, que compraram rolos de filme original no eBay e os escanearam em equipamentos caseiros — as imagens foram depois tratadas por Harmy. “Alguns desses rolos estavam com uma coloração rosada, então tive que restaurar as cores originais.” Há outros projetos de fãs que buscam a versão perfeita de “Star Wars” tal qual a vista nos cinemas, como a Silver Screen Edition, que restaurou uma versão em película de 35mm comprada na Espanha, e Harmy acompanha as novidades. “Essa versão tem alguns problemas, mas é brilhante pelo que é — uma restauração de 35mm”, diz. Ele cita o projeto “Revisited” do fã Adywan, que já lançou uma versão de “Uma Nova Esperança” com novos efeitos, mudanças no som, correções de cor e centenas de pequenas alterações — Adywan se incomodava, por exemplo, com o fato de que os famosos letreiros no início dos filmes passavam pela tela em velocidades diferentes e, em uma cena, tirou um fio do pescoço de C-3PO. “Estou muito ansioso pra versão dele de ‘O Império Contra-Ataca’, que é basicamente uma Edição Especial feita direito.”

Até agora, a Lucasfilm está “graciosamente tolerando a pequena comunidade” de fãs de “Star Wars” e Harmy nunca teve nenhum problema legal por disponibilizar na internet uma versão dos filmes de George Lucas. “É uma área legal cinzenta”, diz ele. De qualquer forma, ele pede no site para que só faça o download quem tiver uma versão oficial do filme — um DVD, um Blu-ray. “Claro que não tem um jeito de impor essa regra, mas tenho a convicção de que 99% das pessoas que fazem o download tenham uma versão oficial, então o estúdio não está perdendo dinheiro”, afirma. Segundo ele, a maior parte das pessoas que baixa “Star Wars” na internet faz o download da versão oficial do Blu-ray, e que as versões de fãs representam perto de 5% de total de downloads. As restaurações de fãs, aliás, ajudam o estúdio, ele opina. “Ajudam a base descontente de fãs a ficar razoavelmente contente e disposta a comprar mais produtos de ‘Star Wars’.”

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Carandiru, 1992

O relógio batia por volta das 16h20 naquele 2 de outubro de 1992. Para 111 homens presos no Pavilhão Nove do Carandiru, os ponteiros deslizavam feito foices. A cada milímetro, um segundo mais próximos da hora de sua morte. Quem sobrevivesse, ainda encararia a violência, o medo e a humilhação para se tornar memória do horror.

No perfil @carandiru1992, o Risca Faca voltou o tempo em 24 anos. Em feeds frenéticos de informações tão abundantes quanto diversas, resgatamos lembranças terríveis, desconfortáveis, necessárias. Minuto a minuto, cobrimos os acontecimentos como se aquele dia se descortinasse hoje, diante de nossos olhos.

Os tuítes foram publicados nos horários aproximados em que cada evento do massacre ocorreu: do confronto inicial entre detentos até a contagem dos sobreviventes, ainda olhando duas décadas e meia à frente para um futuro de pouco esclarecimento. Abaixo, reunimos todos eles.

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A última viagem de Rolf

Tinha tudo para ser mais uma sexta-feira na vida de Rolf Ferdinando Gutjahr. Pela manhã, ele organizava as tarefas para encerrar a semana de trabalho à frente da GK & B, uma fabricante de componentes eletroeletrônicos sediada em Manaus, da qual era dono. À tarde, retornava para casa, em Curitiba, para aproveitar o fim de semana com a esposa e a filha.

Tinha tudo para ser mais uma sexta-feira na vida de Rolf. Mas foi a última. Há exatos dez anos, no dia 29 de setembro de 2006, uma sucessão de erros técnicos e humanos fez com que o empresário e outras 153 pessoas jamais retornassem às suas casas. Aos 50 anos de idade, no auge da carreira, Rolf entrou na estatística como uma das vítimas da tragédia do voo Gol 1907 – que se despedaçou em pleno céu da floresta amazônica.

Cedo da manhã, Rolf saiu de casa com apenas uma mala de mão. No escritório, localizado no distrito industrial da capital amazonense, falou pela primeira vez no dia com a mulher. A 2730 quilômetros de distância, Rosane Prates de Amorim Gutjahr, então com 47 anos, tomava café no confortável imóvel do casal, localizado em um bairro nobre de Curitiba. Começaram a conversa falando justamente sobre trabalho, já que Rosane cuidava da área de planejamento e fornecedores da mesma empresa.

Rolf quis saber da filha, Luiza, então com quatro anos de idade. Estava tudo bem. Ambas o esperavam. Ao se despedir, um aviso: “Vou sair no horário de sempre. Estou levando a nossa graninha”. No dia seguinte, a família iria a Foz do Iguaçu passear. A graninha, alguns dólares, seria usada para se divertir em cassinos argentinos e paraguaios na tríplice fronteira.

“Antes de desligar, perguntei se ele queria um pouco da sopa que eu faria para a Luiza, para comer quando chegasse à noite”, lembra Rosane. Quase dez anos depois, ela está sentada na mesa do bar do hotel Plaza São Rafael, no Centro de Porto Alegre. É um fim de tarde ensolarado. Nem percebemos, mas a noite cai. “Ele disse que sim.” Desligaram.

No fim da manhã, Rolf partiu rumo ao Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, em um trajeto de pouco mais de meia hora. Do saguão, ligou mais uma vez para a esposa. Rosane aprontava Luiza para a escola. Do outro lado da linha, o marido avisava que o voo atrasaria, mas que embarcaria em poucos minutos. Aproveitou a conversa para dar um oi para a filha. Assim que desligou, a mulher levou Luiza para a creche e se dedicou a tarefas administrativas do negócio. Rolf colocou o celular no bolso da camisa e aguardou pela chamada dos passageiros. Quando solicitado, levantou, teve a passagem conferida e percorreu o caminho até a aeronave. Acomodou-se na poltrona 14-C, à direita de quem entra na aeronave, próximo à asa. O embarque foi finalizado com 148 passageiros e seis tripulantes. A decolagem ocorreu às 14h35, horário local (15h35 no Paraná). A chegada em Brasília aconteceria às 18h12.

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Os destroços do voo Gol 1907.
Os destroços do voo Gol 1907. Foto: FAB

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Assim como os carros em terra, os aviões viajam por estradas no céu. Só que invisíveis. São as chamadas aerovias, detectadas por radares. Entre Manaus e Brasília, os voos ocorrem em aerovias distintas, de acordo com o sentido: norte-sul em níveis ímpares, como 350, 370 e 390; já no sentido sul-norte são operados os níveis pares, como 360, 380 e 400. O nível representa a altitude de cruzeiro do aparelho.

No caso do Boeing da Gol, o nível pré-determinado era o 410, o que significa que ele faria a viagem a 41 mil pés – algo equivalente a 12,5 mil metros de distância da superfície. Antes de decolar, o comandante Décio Chaves Júnior e o copiloto Thiago Jordão analisaram as condições meteorológicas previstas para a rota. Em razão dos ventos, solicitaram ao centro de controle para mudar de nível: de 41 mil pés para 37 mil. A autorização foi concedida sem objeção, já que pedidos semelhantes são absolutamente corriqueiros na aviação. O Boeing partiu coordenado para voar no nível 370, a 11,1 mil metros.

Para ir a Curitiba naquele horário, Rolf tinha duas opções de conexão: um voo da Tam com destino a São Paulo, ou o da Gol, que ia para o Rio de Janeiro. Ambos tinham escala em Brasília, onde Rolf tomaria outro avião, para Curitiba. Com a segunda opção, chegaria um pouco mais cedo no Aeroporto Internacional Afonso Pena – por volta das 22h. Além disso, desde a queda do Fokker-100 da Tam, em 1996 em São Paulo, Rolf ficava ressabiado em viajar pela companhia, mas não chegava a eliminar a opção. Naquele dia – e horário –, optou pela Gol.

No mesmo momento, voava no sentido sul-norte um jato executivo, de prefixo N600XL, pilotado por dois norte-americanos: Joseph Lepore e Jan Paul Paladino. Estavam no Brasil para transportar a aeronave, fabricada pela Embraer, até seus novos compradores: a empresa de táxi-aéreo ExcelAire, cujo hub ficava em Fort Lauderdale, na Flórida, Estados Unidos. O pequeno avião partira às 14h51 de São José dos Campos, interior de São Paulo, com cinco passageiros: dois executivos da ExcelAire, dois representantes da Embraer e um jornalista. O trajeto previa uma parada em Manaus.

De acordo com a carta de voo, elaborada pela própria Embraer, o jato voaria de São Paulo a Brasília a 37 mil pés (nível 370). Assim que chegasse ao espaço aéreo do Distrito Federal, tomando a aerovia em direção a Manaus, o Legacy desceria a 36 mil pés. Mais adiante, em um ponto virtual denominado Teres, cuja localização ficava 480 quilômetros ao norte de Brasília, subiria novamente, agora a 38 mil pés (nível 380). Assim voaria até o procedimento de aterrissagem em Manaus.

Em tese, era para ter sido assim. Na prática, o N600XL não baixou do nível 370 ao passar por Brasília. O jato permaneceu em 37 mil pés, voando na contramão da aerovia. Mas por quê? Meses mais tarde, a Aeronáutica divulgaria suas conclusões. O erro começou ainda em São José dos Campos, quando o controlador da torre local informou os pilotos que o nível 370 deveria ser mantido até o Amazonas. Em seguida, o mesmo controlador se comunicou com o Cindacta-1, o Centro de Controle do Tráfego Aéreo de Brasília, por onde a aeronave passaria. E repetiu ao oficial do Cindacta que o N600XL seguiria a 37 mil pés até Manaus. A recomendação contrariava o plano original de voo. Mesmo assim, os pilotos receberam autorização dos controladores para a partida.

Ao estabilizar o Legacy em voo de cruzeiro, a 37 mil pés, os norte-americanos selecionaram o dispositivo que conserva a altitude no piloto-automático e começaram a estudar a computação do avião, uma novidade para eles. Aí houve outro erro: mesmo experientes na aviação executiva, os pilotos não se sentiam capacitados o suficiente para lidar com aquele modelo de aeronave. No Brasil, eles haviam recebido um treinamento curto, de quatro dias – o que se revelaria insuficiente para entender o complexo software do jato.

A preocupação de Lepore e de Paladino possivelmente culminou em mais um erro. Em vez de conferir o plano de voo antes da decolagem, os pilotos simplesmente confiaram na palavra do controlador, que informara o nível 370 até Manaus. Os pilotos tinham uma cópia do plano no escaninho da cabine, assim como as cartas aeronáuticas nas quais estavam especificados os níveis corretos de voo nos dois sentidos da aerovia Brasília-Manaus. Documento algum, exceto o manual da aeronave, foi checado.

Ao adentrar na região de Brasília, os dados do N600XL acusaram a necessidade de mudança no Cindacta. O painel exibiu a seguinte mensagem: 370 (nível efetivo) = 360 (nível programado). A altitude estava errada e indicada claramente na tela do controlador. O desnível não chegava a ser um problema, uma vez que o transponder – sistema que envia dados sobre a localização da aeronave para as torres de controle – do N600XL seguiria alertando o Cindacta-1 sobre o curso incorreto. Logo o controlador perceberia o erro e informaria o nível correto aos pilotos do Legacy. Se outra aeronave voasse próxima e em sua direção, criando um risco de choque, ainda havia o dinâmico Traffic Collision Avoidance System. Conhecido como TCAS, o dispositivo detecta aeronaves em sentido contrário e indica as manobras necessárias para evitar um impacto de frente.

Acontece que transponder e TCAS estavam desligados. Outro erro dos pilotos. O dispositivo anticolisão do Legacy já partira em off. Puro descuido. Assim, impediu o sistema de indicar se algum avião voava em sua direção. Já o transponder foi desligado por engano por um dos pilotos, o que fez o círculo ao redor do bloco de dados do Legacy desaparecer dos consoles do Cindacta-1. Com o transponder desligado, o centro não tinha como alertar a aeronave, pois ela repassava dados estimados (e não precisos) aos controladores. O painel sugeriu que o Legacy estava no nível correto, o 360, quando na verdade estava no nível 370 – ou seja, na contramão – exatamente na mesma aerovia utilizada pelo Boeing da Gol que partira de Manaus.

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Curitiba, Parana, Brasil, 23-09-2016, 14h30 - Entrevista com Rosane Gutjahr, viuva do empresario Rolf Gutjahr, uma das vitimas do acidente que derrubou o voo 1907 da gol em 29 de setembro de 2006. (Foto: Theo Marques/Risca Faca)
Rosana Gutjahr em sua casa. Foto: Theo Marques/Risca Faca

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Porto Alegre, dez anos depois. Rosane pediu um café antes de começar a descrever o marido. Falou da ascendência alemã, o que influenciava seu porte. Rolf era parrudo, tinha 1,80m e pesava mais de 100 quilos. A viúva compartilhou as manias, os gostos, e refez a trajetória pessoal e profissional do companheiro. Embargou a voz diversas vezes.

Rolf nasceu em novembro de 1955 em Canoas, na região metropolitana da capital gaúcha. Com 12 anos, já colaborava no sustento da família. Para sustentar os oito filhos, o pai trabalhava como garçom, enquanto a mãe cuidava do lar. Rolf ajudava como podia: foi desde vendedor de água mineral na porta do cemitério a catador de estrume de vaca, para ser transformado em adubo. Apesar de trabalhar desde cedo, jamais perdeu o foco dos estudos. Terminou o ensino fundamental, o ensino médio e ingressou na faculdade de Engenharia Mecânica na Unisinos, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul.

Em 1982, aos 27 anos, Rolf conquistou um posto de trabalho importante: gerente mecânico da Icotron, uma antiga indústria de componentes eletrônicos localizada em Gravataí. Foi ali que conheceu Rosane, então uma jovem administradora de 24 anos. Papo vai, papo vem, engataram um romance.

O jovem engenheiro se destacou no emprego e foi convidado para atuar na sede da empresa, em Manaus. Sem pensar duas vezes, aceitou na hora. Chegou à namorada e disse: “Nega, eu vou [para Manaus] e depois volto para a gente casar.” Ela foi reticente. Discordou. Impôs que fossem juntos, já casados. Apaixonado, ele topou. A cerimônia aconteceu no dia 21 de outubro de 1983, cerca de um ano e meio depois de se conhecerem. Em dezembro, o casal se mudou para o Amazonas – de mala e cuia, como bons gaúchos. Aquela era a primeira vez que Rosane viajava de avião.

Na Zona Franca de Manaus, Rolf ocupou cargos de diretoria na Icotron e em outras empresas, como Thomson e Molex. No início dos anos 1990, a carreira em ascensão foi baqueada por uma demissão inesperada. “Ficamos sem eira nem beira”, rememora Rosane. Foi aí que um amigo, Matias Machline, presidente do grupo Sharp entrou na jogada. Gaúcho de Bagé, o executivo sondou Rolf sobre o seu desejo de abrir um negócio próprio. “Querer eu quero, mas não tenho dinheiro, nem nome no mercado. Não tenho nada”, respondeu Rolf, descrente.

Machline estava disposto a ajudá-lo. Concedeu cinco funcionários, matéria-prima e crédito para iniciar a empreitada. Rolf então convidou o japonês Hidetaka Kamezaki para ser seu sócio. Juntos, eles abririam, em março de 1991, a GK & B. Inicialmente, a empresa atuava como fornecedora da Sharp. Mas Rolf queria mais. Habilidoso para os negócios, possuía uma retórica sedutora. Conquistou clientes Brasil afora. Na verdade, mundo afora, viajando regularmente para países como China, Japão e Estados Unidos.

Em menos de dez anos, a GK & B cresceu de forma robusta. Passou de cinco para 3,5 mil funcionários. Com o avanço da tecnologia, o negócio precisou se reinventar, entrando na produção de placas para celulares. Em 2005, um ano antes da tragédia, Rolf havia sido eleito Empresário do Ano pela Fieam, a Federação das Indústrias do Estado do Amazonas.

Machline, o amigo e incentivador, não presenciou o auge do amigo. Por uma infeliz coincidência, o executivo da Sharp e a esposa morreram em 1994 em um acidente de helicóptero nos Estados Unidos.

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A caixa-preta.
Militares exibem a caixa-preta do voo Gol 1907. Foto: Alessandro Silva/FAB

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A lógica diz que dois aviões voando em sentido contrário, pela mesma aerovia e na mesma altitude têm tudo para se chocar de frente. Acontece que a aerovia UZ6 do nível 370, percorrida pelo Gol 1907 e pelo N600XL na tarde daquela sexta-feira, tem nada menos do que 80 quilômetros de largura. A probabilidade de acidente era mínima. Exceto pela configuração dos instrumentos de navegação aérea, incrivelmente precisa. Aí sim, dois aviões voando em sentido contrário, pela mesma aerovia e na mesma altitude têm mesmo tudo para se chocar de frente.

Passava das 16h quando um controlador do Cindacta fez contato com o Legacy. Lapore e Paladino, porém, não entenderam o inglês macarrônico do operador. Os pilotos passaram os minutos seguintes tentando estabelecer diálogo em terra, mas sem sucesso. Quando sobrevoavam Nabol, ponto na floresta amazônica que demarca o fim da vigilância área do Cindacta-1 (Brasília) e dá inicio ao controle do Cindacta-4 (Manaus), a situação piorou. A zona de transição era famosa pela crítica transmissão de rádio – muitas vezes os pilotos não conseguiam sequer comunicação com os controladores, e vice-e-versa. A região tinha até um apelido macabro entre aeronautas: “buraco negro”. Foi neste local que os pilotos norte-americanos insistiram com os controladores. Mas nada se ouvia.

Às 16h55, o Gol 1907 já estava sob a vigilância do Cindacta-1. Os pilotos haviam se despedido minutos antes do centro de controle de Manaus. Tudo estava ok, e a viagem seguiria conforme o plano de voo. Chaves e Jordão operavam a aeronave com o auxílio do piloto automático. Conversavam tranquilamente sobre assuntos comezinhos e de uma viagem de férias feita há pouco pelo comandante. No N600XL, os pilotos insistiam contato com os controladores. Para eles, o único problema estava na falta de resposta. Não sabiam que operavam o jato executivo no nível errado, menos ainda que o transponder e o TCAS estavam desligados. No minuto seguinte, ambos os aviões sobrevoavam o território de Peixoto de Azevedo, no Mato Grosso, a 88 quilômetros da divisa com o Pará.

Às 16h56min54, algo estranho aconteceu.

A caixa-preta do Boeing registrou um forte estrondo na cabine. “Ai!”, limitou-se a dizer o copiloto, quando sentiu o solavanco. Imediatamente, a ponta do avião guinou para a esquerda e uma sequência frenética de alarmes começou a disparar. O avião perdia altitude velozmente. “Não acredito que isso está acontecendo”, dizia o piloto, incrédulo. Os dois não sabiam, mas um terço da asa esquerda estava serrada. Por isso, a aerodinâmica da ave metálica estava desestabilizada. “Ai, meu Deus do céu!”, desesperou-se Jordão. “Calma, calma”, repetia Décio Chaves, enquanto acionava os flaps – recursos que aumentam o coeficiente de sustentação das asas – e o trem de pouso. Valia tudo na tentativa de aterrissar. O Boeing, insustentável, estava caindo em espiral, desintegrando-se e tossindo fumaça. Passaram 63 segundos, desde o choque, até tocar o solo da inóspita floresta amazônica.

A caixa-preta do Legacy, por sua vez, registrou um som seco de impacto. O avião deu uma abrupta guinada para a esquerda, mas se manteve voando. O comandante gemeu. O piloto automático estava desconectado. Os alarmes soaram. “What the hell was that?” (Que diabos foi isso?), questionou Lepore a Paladino. Eles sabiam que haviam sido atingidos por algo, mas não o quê. “Where the fuck did he come from?” (De que porra de lugar ele veio?), disse Lepore. “Go down” (Vamos descer), emendou, declarando emergência no rádio. Um executivo da ExcelAire, que percebeu a ausência da ponta da asa esquerda, foi até o cockpit informar os pilotos. “Where the fuck did he come from?” (De onde diabos ele veio?), repetiu Paladino. A aeronave, ainda que avariada, continuava no ar. Pousaria dali 25 minutos depois, em uma base área militar próxima.

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Versão digitalizada criada pela Embraer mostra o momento em que as naves se chocaram.
Simulação do acidente criada a partir do relatório final da CENIPA.

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A exaustiva ponte-aérea entre Manaus e Curitiba era frequentada por Rolf havia sete anos. Começara em 1999, quando a mulher dera início a um tratamento de inseminação artificial no sul. O empresário ficava duas, às vezes três semanas em Manaus, e depois voltava. Rosane cuidava do planejamento da empresa de casa, em Curitiba.

O tratamento não vingou. As diversas gestações iam no máximo até o terceiro mês. “As pessoas diziam: ‘adota que vocês engravidam’”, ela conta. O casal não levava fé na superstição, mas as tentativas frustradas de engravidar, porém, falaram mais alto. Rolf segurou as mãos de Rosane e pediu: “Nega, nós já tentamos engravidar, mas Deus não quer. Vamos adotar”. Ela topou. Após um processo rigoroso de quase dois anos, a família Gutjahr foi oficialmente autorizada a adotar uma criança. Em agosto de 2002, uma menininha recém-nascida chegava à vida do casal. Foi amor à primeira vista.

Luiza tornou-se a “filha do coração” deles. O pai, babão, não media esforços para agradá-la. Quando viajava para o exterior, por exemplo, trazia uma mala cheia de brinquedos e roupas para a bebê. E ela retribuía o carinho. A primeira palavra que aprendeu a dizer, então com 1 ano e um mês, foi “papai”.

A paixão pela filha transformou a ponte-aérea em algo saboroso, tanto é que Rolf passou a fazer o trajeto semanalmente. Às segundas-feiras, ainda de madrugada, tomava o caminho para Manaus. Regressava para Curitiba nas sextas. Como faria pela última vez naquele 29 de setembro de 2006.

Por volta das 18h, uma hora depois do choque do Legacy com o Boeing, Rosane atendeu um telefonema. Era sua mãe. “Acabei não falando muito com ela porque o Rolf me ligaria em seguida e a linha estaria ocupada”, recorda. Rolf costumava entrar em contato quando chegava em Brasília. Avisava sobre o primeiro trajeto, e que logo tomaria o voo para casa. Ela prometeu ligar para a mãe depois.

Meia hora se passara. Rosane percebeu que, nesse interim, Rolf ainda não havia ligado. Ele deveria aterrissar na capital federal entre 18h10 e 18h20. Mas o pensamento negativo logo lhe fugiu da cabeça. A filha chegara da escola e estava faminta. Rosane foi providenciar a sopa – a mesma que prometera guardar ao marido – e depois foi brincar com Luiza.

O telefone tocou novamente às 19h. “Devia ser Rolf”, pensou Rosane. A babá, Aparecida, atendeu e em seguida desandou a chorar. “Na hora, sabe? Na hora eu sabia que alguma coisa tinha acontecido”, afirma Rosane, antes de narrar a sucessão de fatos posteriores. “Eu perguntei: ‘O que foi, Aparecida?’ E ela chorava. Eu dizia: ‘Fala, Aparecida!’” Depois de muita insistência, a babá respondia, tomada de perplexidade, com uma frase fragmentada: “Caiu; um avião… da Gol”.

***

O Fokker-100 da Tam que deixava Rolf receoso caiu no dia 31 de outubro de 1996, logo após decolar do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Morreram 96 pessoas a bordo e outras três em solo. Entre os passageiros estava o gerente da Siemens, Ivo Roberto Gutjahr – um parente distante e desconhecido de Rolf. O sobrenome acabou em evidência na imprensa, a ponto da GK & B receber ligações para confirmar se o Gutjahr do avião era Rolf. Felizmente, daquela vez, não.

Rosane, que já não gostava de voar, decidiu reduzir as viagens. E foi além: não queria mais pegar a mesma aeronave que o marido, levando em consideração o fato de a família depender do casal. Caso um morresse, o outro seguiria vivo para tocar os negócios. O marido consentiu com a proposta, sem passar pela cabeça que aquilo seria, de fato, útil algum dia.

[olho]“Até ali, eu imaginava que meu marido pudesse estar vivo”[/olho]

Rosane ligou a televisão e viu que o burburinho era real. Angustiada, pegou o telefone e ligou para o celular do marido. O telefone chamou até cair na caixa de mensagens. Ela repetiu a ligação. Tentou duas, três, quatro vezes. Nada de atender. Decidiu, então, ligar para a agência de turismo em que Rolf comprava passagens. A funcionária atendeu soluçando, desolada pelo desaparecimento do Boeing. Rosane desligou e continuou tentando falar com Rolf. Tentou cinco, dez, 20, 30 vezes. Nada. “Até ali, eu imaginava que meu marido pudesse estar vivo”, reconhece.

Todas as 154 pessoas a bordo do Boeing morreram. O detalhe é que não foi pelo impacto, conforme apuração de Ivan Sant’Anna, autor de um detalhado retrospecto do desastre publicado no livro “Perda Total”. Tudo indica que alguns podem ter perdido a consciência pela descompressão do avião, que se desintegrou antes de tocar o solo. Ainda assim, a asfixia foi curta demais para levar alguém à morte. Além disso, a força do impacto se concentrou na parte inferior da asa atingida – a investigação revelou que o winglet (dobra para cima, em forma de lâmina) da ponta da asa esquerda do Legacy decepou a asa esquerda do Boeing. Com ambas as aeronaves a 800 km/h por hora, a colisão foi mais rápida que um disparo de revólver calibre .38.

Tanto no Cindacta-1 quanto no Cindacta-4, o pânico foi geral quando os painéis mostraram o Gol 1907 perdendo velocidade. Eram 17h57. Em seguida, o avião simplesmente sumiu das telas. Os centros de controle se comunicavam entre si, compartilhando a mesma angústia de ver um avião perder velocidade em plena floresta até desaparecer do radar. “Não há nenhum Gol! O Gol desapareceu!”, gritava desesperado o controlador de Brasília.

Embora com a dobra da ponta da asa arrancada e sem parte da cauda, o Legacy conseguiu pousar com as sete pessoas a bordo ilesas, mas em estado de choque. Todos se perguntavam o que havia os atingido quando um oficial informou sobre o desaparecimento de um avião comercial. A notícia foi estarrecedora.

A apuração seguiu nas horas seguintes. Por volta das 21h, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) informou à imprensa que duas aeronaves colidiram no ar, e que uma delas conseguiu pousar em uma base aérea militar. Aos familiares dos que estavam no Gol, a informação dava uma esperança, ainda que remota, de que houvesse sobreviventes. Talvez o avião conseguisse pousar na floresta – remetendo ao caso de um Boeing 737 da Varig que conseguira tal façanha em 1989; das 54 pessoas a bordo, 41 foram resgatadas com vida do local.

Completamente atordoada, Rosane decidiu ir ao aeroporto de Curitiba. Lá, ela diz ter sido confinada por agentes da Gol em uma pequena sala “sem televisão, sem janela, só com uma jarra de água”. Outras duas famílias estavam junto. Havia uma pessoa na porta que os impedia de sair. Ela seguiu ligando para o celular do marido, que chamava até cair na caixa postal. Tentou convencer o funcionário da Gol a liberá-la, sem sucesso. Rolf tinha problemas de coração e pressão arterial. Na cabeça dela, o marido não estava morto. Machucado, talvez. “Quando acontece esse tipo de coisa, você não raciocina direito”, desabafa.

A Gol procrastinava. Seus representantes diziam que em seguida dariam informações, mas os minutos e horas passaram sem qualquer notícia. Rosane seguia ligando ao marido e, às vezes, falava rapidamente com Aparecida para saber da filha. A noite virou. No sábado, as equipes de busca e salvamento da Força Aérea Brasileira haviam encontrado o Boeing, espatifado no coração da floresta. Mas foi apenas no domingo que Rosane soube disso, quando a Gol repassou a ela a nota da Aeronáutica que admitia não haver sobreviventes entre as pessoas a bordo do voo 1907. “Imagina o desespero da gente”, relembra ela, olhar embargado, voz trêmula. A conversa silencia.

***

O sol já havia minguado do lado de fora do hotel, enquanto Rosane seguia o depoimento. A entrevista precisou ser interrompida duas vezes, de forma breve, para que ela se recompusesse. Quando falou dos dias seguintes, a viúva recordou que no domingo, 1° de outubro, recebeu os familiares e amigos em casa. Sem condições, pediu a Arno Gutjahr, irmão de Rolf, que reconhecesse e trouxesse o corpo.

No local do desastre, foram dois meses até que os restos mortais dos passageiros e tripulantes do Boeing fossem encontrados. À medida que iam sendo descobertos, os corpos eram transportados por helicópteros até uma fazenda e, de lá, para a Base Aérea de Cachimbo – a mesma onde pousara o Legacy depois da colisão. Aviões da FAB levavam os corpos das vítimas para Brasília, e então eram encaminhados ao Instituto Médico Legal (IML) para reconhecimento.

Os dias passaram e não havia sinal algum do empresário. Rosane estava aflita e cobrava pelo corpo do marido. Foi aí que um oficial do Cenipa, o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, comentou com Arno sobre uma pessoa ainda não identificada e que estava entre os primeiros restos mortais encontrados. Dilacerado, o corpo sequer podia ser identificado como de um homem ou de uma mulher. Seria preciso aguardar um exame de DNA.

A certeza de que era Rolf veio por um detalhe que nada tem a ver com a ciência. Encontraram o celular no bolso da camisa, intacto. Ao consultar o registro do chip, descobriu-se que estava em nome de Rosane Prates de Amorim Gutjahr. Era o telefone que ela dera para Rolf. O mesmo para o qual ela tanto ligava nas horas posteriores à tragédia.

Rosane relembra os detalhes esfregando as mãos sobre as pernas. Olha para o lado, como que buscando algum ponto específico no saguão do hotel. Há um nó em sua garganta. “O caixão teve de ser lacrado. Não pudemos nem nos despedir do corpo”, ela segue, pedindo outra pausa na conversa. Rosane serve um copo d’água, evoca o nome de Deus, olha para mim e sorri, nervosa. Após uma breve reflexão e um respiro profundo, repetiu: “A gente não pôde dizer adeus. Nem o direito de se despedir, nós tivemos.” Rolf foi cremado e suas cinzas guardadas em um cântaro na casa da família.

“Não só o meu marido”, ela seguiu, “mas todas as pessoas que estavam lá morreram por inconsequência de dois pilotos [do Legacy]. O funcionário de uma fazenda [Jarinã, para onde os corpos foram levados] disse que, quando houve um estrondo no céu, era uma chuva de corpos. Depois a investigação confirmou: as pessoas caíram ainda vivas, sabendo que estavam caindo para a morte. Imagina o sofrimento, a angústia, o que passou na cabeça dessas pessoas sabendo que estavam caindo para a morte. Uma mãe foi encontrada segurando um bebê… Com tudo aquilo acontecendo, ela não largou o filho…”

Rosane chora copiosamente.

“Desculpa”, murmura.

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Curitiba, Parana, Brasil, 23-09-2016, 14h30 - Urna onde sao mantidas as cinzas do empresario Rolf Gutjahr, uma das vitimas do acidente que derrubou o voo 1907 da gol em 29 de setembro de 2006. (Foto: Theo Marques/Risca Faca)
O altar que Rosane criou para Rolf. Foto: Theo Marques/Risca Faca

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A culpa pela tragédia que resultou na morte de 154 pessoas é atribuída a Joseph Lepore e Jan Paul Paladino. A conclusão é do processo criminal movido pela Justiça brasileira, encerrado em 2015. Os pilotos foram condenados pelo crime de atentado contra o transporte aéreo, por desconhecerem a aeronave que operavam, além de negligências como a falta de verificação do plano de voo, que indicava o nível correto do trajeto, e a pilotagem com o TCAS desligado.

A pena: três anos, um mês e dez dias, a ser cumprida em regime aberto. Não cabe mais recurso. O documento, redigido em português, está em tradução para o inglês para que os pilotos sejam notificados. Eles podem cumprir a pena no Brasil ou nos Estados Unidos. O acordo fora firmado entre os dois países.

Diretora da associação de amigos e parentes das vitimas do voo 1907, Rosane moveu esse e outros processos. Um deles contra Joe Sharkey, jornalista a bordo do Legacy. A Justiça estipulou que ele pagasse R$ 50 mil por ofensas que teria proferido contra o Brasil em um blog. O valor até hoje não foi pago. “Ele não vai pagar, mas só pela condenação já me dei por satisfeita quanto àquele repórter, se é que se pode chamar de repórter”, ironiza.

Rosane também ganhou um processo movido contra o Estado, pela pilhagem dos corpos das vítimas. O caso veio à tona quando a revista “Vanity Fair” informou que soldados roubaram joias, relógios e outros pertences. A Aeronáutica não negou os furtos, mas alegou que se tratava de pessoas “estranhas às equipes de resgate”. O fato é que poucas semanas depois do desastre, documentos dos passageiros do voo 1907 foram usados na obtenção de empréstimos fraudulentos. O dinheiro da indenização, cerca de R$ 31 mil, será pago provavelmente até o fim deste ano. A quantia será depositada diretamente a uma instituição filantrópica, conforme acordado por Rosane previamente.

Pela morte de seus parentes, as famílias das vítimas receberam indenizações da Gol. Rosane é uma das poucas pessoas que se recusaram a firmar qualquer tipo de acordo. Ela garante ter recebido duas propostas para desistir dos processos que movia. A primeira, de US$ 2,5 milhões; e uma segunda, de US$ 5 milhões. Não aceitou nenhuma delas.

Pergunto se a sua boa condição financeira influenciou a decisão de negar o dinheiro oferecido. Afinal, algumas famílias chegaram a fechar acordos com valores muito abaixo das propostas que ela recebeu. Algumas indenizações foram estipuladas em R$ 160 mil. “Não condeno quem aceitou fazer acordo, pode ser que as pessoas dependessem de quem morreu. Mas eu não preciso do dinheiro e jamais venderia a dignidade do meu marido.”

Além dos pilotos do Legacy, o sargento Jomarcelo Fernandes dos Santos, controlador do Cindacta-1, também foi condenado. A Justiça Militar determinou que o operador cumprisse 1 ano e dois meses de prisão por não seguir as normas de segurança. Segundo a decisão, ele não atentou para o desaparecimento do sinal do transponder do Legacy, não orientou o piloto sobre uma mudança de frequência (durante os problemas de transmissão), não atentou para a altimetria da aerovia (aeronaves no sentido sul-norte não podiam voar no nível 370) e passou o serviço a outro militar sem alertá-lo sobre as irregularidades.

Jomarcelo ainda não cumpriu a pena. Ele e o controlador que o sucedeu, Lucivando de Alencar, também aguardam a análise de outro processo, que corre no Superior Tribunal de Justiça.

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Curitiba, Parana, Brasil, 23-09-2016, 14h30 - Fotos e objetos do empresario Rolf Gutjahr, uma das vitimas do acidente que derrubou o voo 1907 da gol em 29 de setembro de 2006. (Foto: Theo Marques/Risca Faca)
Rolf, a filha Luiza, e Rosane. Foto: Theo Marques/Risca Faca

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Uma semana antes de a tragédia completar dez anos, agora no fim de setembro, peço a Rosane, por telefone, sua opinião quanto à pena estipulada aos pilotos do Legacy. “Para cá eles não vão voltar, a gente sabe disso”, prevê. Segundo ela, a condenação é irrisória, mas ao menos fará com que os pilotos não saiam impunes. “Agora, só a palavra ‘condenação’ não me serve. Quero que eles cumpram a pena.” A defesa de Joseph Lepore e Jan Paul Paladino não comenta o assunto.

Tampouco a Gol. Procurada, a empresa se limitou a encaminhar uma nota por e-mail: “Nesses dez anos, carregamos o nosso pesar e solidariedade aos familiares e amigos das vítimas do acidente com o voo 1907 em 29 de setembro de 2006. Essa data será para sempre lembrada por nós com profunda tristeza.” Rosane não culpa a companhia aérea pelo desastre, mas critica a maneira como a empresa agiu depois. “Poderia ter auxiliado melhor e ajudado a cassar o brevê dos pilotos [do Legacy].” Ela nunca mais pisou em uma aeronave da Gol.

Pergunto sobre a tentativa de encabeçar um Projeto de Lei para aumentar a pena para crimes aéreos – ela se reuniu com deputados e senadores ao longo dos últimos anos, em busca de apoio. A ideia não vingou. “Você acha que eu conseguiria fazer alguma coisa com esse nosso Congresso?” Mesmo assim, incansável, seguirá lutando.

Aliança no dedo, Rosane pensa em Rolf diariamente. Lamenta a saudade. Sua e da filha. A menina ainda guarda sapatos, perfumes e camisas do pai. Os carros que o empresário tinha na época, uma Toyota Hilux e um Jeep Cherokee, seguem com a família a pedido da filha. Enquanto Luiza hoje leva uma vida normal para uma adolescente, Rosane carrega no olhar, um tanto triste, as marcas da tragédia. Segundo ela, não é possível tirar lição alguma do que viveu, reconhecendo que a morte do marido não está superada. A demora no processo criminal tornou o caso uma ferida aberta ao longo de dez anos.

Hoje, ela se agarra à simbologia da presença física do marido para que, à sua maneira, ainda conviva com ele. Um jarro com as cinzas, as roupas, os carros, o apartamento… elementos que ajudam a manter Rolf em sua memória. Embora tenha ido às lágrimas por incontáveis vezes durante nessas conversas, Rosane diz que ainda não colocou para a fora a dor de ter perdido o marido. Espera chorar e gritar quando finalmente os culpados forem punidos. E só então irá se libertar.

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Televisão

O que podemos esperar de ‘Westworld’?

Rodrigo Santoro tira um papel dobrado do bolso e diz: “Eu realmente não posso falar sobre a série. Tenho uma lista de ‘talking points’ e tudo é muito sobre o conceito”. Estamos — um grupo de jornalistas e o ator — num evento da HBO para apresentar a série “Westworld”, que estreia em 2 de outubro às 23h no canal, mas ele escapa de quase todas as respostas. Pode falar sobre ideias, temas, coisas gerais. Detalhes, não. “Se eu fizer, eles, sei lá, me processam. Coisa assim. Eu assinei um papel, um termo de compromisso. A gente não revela. A série vive disso. Do mistério.”

Embora “Westworld” seja inspirada num filme de 1973 de mesmo nome, não se trata de um remake: os dois só usam a mesma premissa. Tal qual o filme, a série tem como cenário uma espécie de parque de diversões que imita o Velho Oeste americano, com caubóis, bordéis, xerifes e duelos armados. Ali, vivem criaturas chamadas de “anfitriões”, robôs tão perfeitos que quase parecem humanos — e que desconhecem o fato de que não o são. Os visitantes do parque, que os robôs recebem como hóspedes recém-chegados na cidade, podem satisfazer ali suas fantasias mais primitivas: passar horas com prostitutas, estuprar, matar. Respeitando as leis de Asimov, faz parte da programação dos anfitriões que eles sejam incapazes de machucar os visitantes. É um espaço seguro, então, para as pessoas mostrarem suas piores facetas sem medo das consequências.

Não haveria série sem um conflito e, se há robôs no meio, é seguro apostar que em algum momento eles se voltarão contra os humanos que o criaram. É o que a série indica que irá acontecer: no primeiro episódio, depois que seu criador (Anthony Hopkins) faz uma atualização para deixá-los com gestos ainda mais humanos, alguns anfitriões começam a apresentar defeitos e a agir fora do roteiro que são programados a seguir.

É o caso, por exemplo, do pai da protagonista Dolores (Evan Rachel Wood), a anfitriã mais antiga do parque. Dolores, uma mocinha sonhadora que só vê a beleza no mundo, é apaixonada pelo forasteiro Teddy (James Marsden), sobre o qual pouco se sabe de início. Os outros personagens principais incluem Hector (Santoro), um bandido procurado pelo xerife, Maeve (Thandie Newton), uma prostituta local, Bernard (Jeffrey Wright), programador dos robôs, e um personagem cujo nome desconhecemos, mas com muito sangue nos olhos, interpretado por Ed Harris. Ao fim da primeiro episódio, tudo ainda é meio vago.

Tudo é mistério também para os atores, diz Santoro. “Foi muito desafiador o laboratório, porque não deu pra fazer laboratório. Porque eu não tenho informação, a gente não tem informação”, conta. “O que a gente sabe é o que nos é passado, e a gente recebe o roteiro um pouco antes do dia de filmagem.” Sem poder se aquecer, preparou-se para estar preparado. “Trabalhei o corpo, porque a gente trabalha com esses anfitriões que não são humanos, mas são muito próximos dos humanos. Não são robôs. A gente tem, claro, um corpo diferente, uma forma diferente, mas ao mesmo tempo não é robotizada. Mas tudo isso ainda está sendo desenvolvido enquanto a gente está trabalhando.”

James Marsden e Evan Rachel Wood em 'Westworld'
James Marsden e Evan Rachel Wood em ‘Westworld’

Santoro diz que escolher um papel é um pouco como fazer um amigo: quando sente uma química ao ler o roteiro, sabe que é o personagem certo. “Não existe uma fórmula e nem sempre é da mesma forma. Mas é como quando você encontra a Maria, vai pra casa e fala ‘po, a Maria é legal, né’. Por que ela é legal? Você nem conhece ela direito. Não sabe por que, mas tem alguma coisa que aconteceu ali e essa relação eu vejo quando leio as coisas de um personagem”, afirma. “Eu recebi o [roteiro do] piloto, o primeiro, quando tive o convite pra fazer a série. Eu adorei o que eu li. Claro que tem todo o pacote, os atores envolvidos, um monte de coisa que era muito sedutor.”

Hector e os outros robôs têm a possibilidade de se transformar de cena a cena. Suas ações dependem da interação com os visitantes e é interessante ver como uma mesma situação — como o encontro de Dolores e Teddy, que segue o mesmo roteiro todos os dias — pode se desenrolar de formas levemente diferentes dependendo de quem está no parque. Na mesma cena, portanto, os atores podem colocar nuances diferentes. Também pode acontecer de os manipuladores dos robôs trocarem o papel de uma das máquinas, mudando completamente o personagem. Um dia você pode ser bandido e no outro, o xerife. Dessa forma, no primeiro episódio, entendemos como o mundo de “Westworld” funciona, mas não há muitos acontecimentos: vemos as mesmas pequenas cenas cotidianas (Dolores acorda, conversa com o pai, vai até a cidade, encontra Teddy) repetindo-se várias vezes, com resultados diferentes. É uma boa introdução, mas deixa muito no ar.

O papel de Santoro, por exemplo, termina o capítulo como uma grande incógnita. Apesar de no papel Hector ser o bandido daquele cenário de faroeste, não dá pra saber de cara se ele bom ou mau — ou, de modo geral, quem são os vilões e os mocinhos (a figura do mal mais clara é Ed Harris). “Essa questão de quem é vilão e quem é mocinho é a grande pergunta da série. É isso que a gente vai mostrar. O Hector teria a embalagem, mas a gente vai muito mais fundo, as coisas vão começar a ser reveladas e aí a gente vai deixar pro espectador fazer sua própria escolha”, diz Santoro. Dá para entender os criadores, que controlam os robôs? Os visitantes que satisfazem seu apetite pela violência “matando” os robôs? Os robôs que se rebelam?

Para Santoro, a série — produzida por J.J. Abrams e Jonathan Nolan, corroteirista de “O Cavaleiro das Trevas” — é um estudo profundo sobre a natureza humana. “É uma série que trabalha muitas metáforas, muitas entrelinhas. Claro que o entretenimento está ali. Até porque no mundo de hoje, de tanto entretenimento e tão digital, a gente precisa disso pro espectador também se conectar. Mas ali vem muito alimento pro cérebro, eu acho.”

Um dos grandes atrativos para o projeto, o elenco de “Westworld” também foi motivo de nervosismo para Santoro, especialmente ao gravar uma cena sozinho com Ed Harris. “Na van começou a me dar um nervosismo, desconfortável, comecei a ficar ansioso, não tava gostando daquilo. Falei pra ele: ‘Olha, é uma honra e tal’. E ele: ‘Tá tranquilo’. E eu: ‘Tranquilo pra você, que é comigo. Pra mim não tá tranquilo, você é o freaking Ed Harris, tenho o maior respeito pelo seu trabalho, é uma cena grande só eu e você’”, conta. “É uma sensação de estar jogando com a seleção, mesmo. É outro lugar. É um lugar onde a bola vem e tem que voltar legal.”

No set, para relaxar, deitou-se numa cama que havia por ali, para tentar relaxar. Harris sentou-se ao seu lado. “Daqui a pouco ele bota a mão na minha bota. Aí ele falou uma frase, que não me lembro exatamente, mas era: ‘A gente vai fazer isso junto. Quando estiver bom a gente vai embora. Enquanto não estiver bom a gente fica aqui. Estou aqui contigo’. Aí ele levantou, a gente fez a cena e foram dois takes”, lembra Santoro. “O psicológico é uma coisa tão difícil de controlar, ainda mais quando a gente está ansioso. É tão sutil, mas aquelas palavras foram muito importantes, de companheirismo. Mostra que mesmo sendo um cara super reconhecido, é um artista, trabalhador. Sem muita firula também, não segurou na minha mão.” Foi a terceira vez que se sentiu assim intimidado na vida, conta Santoro. As outras vezes haviam sido com Benicio Del Toro, em “Che”, e Paulo Autran.

Anthony Hopkins foi outra história: logo de cara, chegou e quebrou o gelo. “Anthony vem e faz isso com todas as pessoas, vem e quebra. ‘Call me Tony.’ Olha bem no seu olho, te abraça, faz uma piada”, diz. “Almoça com todo o mundo, conta história, imita que é uma coisa. Fez uma imitação do Brando que a galera… Nossa, incrível. É um compositor, pinta, dirige. É uma lenda.” Preso à lista de tópicos autorizados, porém, Santoro não conta se chegou a contracenar com Hopkins ou se só cruzou com ele no set. “Aí você vai ter que assistir à série, não posso contar. Ele é o criador. Quando a criatura encontra o criador, coisas acontecem.”

Com tanto mistério por parte de Santoro e tendo visto apenas um episódio, bastante introdutório, dá só para prever quais serão as questões levantadas pela série para “alimentar o cérebro”, clássicas quando se fala de inteligência artificial e da relação de criador/criatura, desde os tempos de Frankenstein. Na estreia, Anthony Hopkins é uma presença bem coadjuvante, que deve ganhar importância. Sabe-se que ele é o grande cérebro por trás do parque e quer humanizar cada vez mais suas criaturas, acrescentando nelas uma espécie de memória, de subconsciente, que se reflete em gestos mais naturais baseados nas lembranças. Não sabemos, porém, quais são seus objetivos, sua verdadeira natureza ou o que sente pelas criaturas. “Westworld” também parece questionar o apetite pela violência: é moral matar uma figura que parece humana, ainda que seja uma máquina? Veremos o que a série tem a dizer.

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Cinema

A grande expectativa e ‘O Pequeno Segredo’

“O Pequeno Segredo”, filme escolhido pelo Brasil para disputar uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro em 2017, é inspirado no livro homônimo escrito por Heloisa Schurmann. A obra é dirigida pelo seu filho, David Schurmann. O roteiro retrata, mais uma vez, os Schurmann e sua principal temática é, adivinhe, as relações familiares. Não surpreende que o resultado seja uma pieguice sem fim, tão estimulante quanto uma piada do pavê no almoço de domingo.

O problema nem é tanto o fato de as personagens enfrentarem conflitos já manjados no cinema, mas sim a forma como são apresentados. A garotinha púbere que não se encaixa entre os amigos, a mãe que se preocupa com o bem-estar ameaçado de sua filha, o casal vindo de mundos diferentes que luta pelo amor… É possível retratar angústias comuns de maneiras interessantes. O cinema também serve para isso. Não é um feito que Schurmann consiga.

O roteiro não ajuda por carecer de profundidade ou qualquer graça que fizesse a produção parecer menos monótona. É comum adivinhar o fim da piada antes mesmo de os atores terminarem a fala, ou já saber exatamente as próximas palavras de um diálogo. A obviedade e os clichês tornam difícil não levar a mão à testa em constrangimento. Falta realidade ao filme. Deficiência no mínimo paradoxal, já que estamos falando de uma trama baseada em fatos reais.

Material não faltaria. Enquanto vivência, a história é inegavelmente bonita e emocionante. Aliás, se o filme tem alguma chance de levar a estatueta, é por essa razão. Em meio a um mar de sentimentalismo barato, as cenas que realmente emocionam falam da AIDS e da aceitação do fim que o soropositivo tem de enfrentar. Há tato na maneira com que a doença é retratada. Isso é facilitado pelo elenco talentoso, bem escolhido e fiel aos papéis, encabeçado por Julia Lemmertz. Uma pena artistas de tanta destreza terem de trabalhar com personagens tão mal construídos.

O tempo em que os acontecimentos sucedem não segue linearidade, mas o vaivém é tanto que fica desnecessário e pouco demarcado. O recurso dá vez a furos no roteiro. Em uma cena, por exemplo, a brasileira Jeanne (Maria Flor) e o neozelandês Robert (Erroll Shand) nem se conhecem. Na cena seguinte, o rapaz a persegue por uma rua, ela o confronta, ele pede desculpas e… Pronto, já estão perdidamente apaixonados depois de trocarem literalmente duas frases. É um erro narrativo que pode facilmente ser confundido com o estereótipo da “morena que fisga o gringo”. Perigoso, ainda mais em um filme que faz questão de evidenciar este preconceito entre “civilizados” e “selvagens”. A própria Fionnula Flanagan é colocada para interpretar uma caricatura forçada da estrangeira preconceituosa, que fala em “tribos brasileiras” e “morar na floresta”.

A fotografia lembra papéis de fundo em vídeo de karaokês e aquelas fotos que vêm dentro de porta-retratos novos. Não é esteticamente feio, mas é cafona. Para se ter noção, a primeira cena abre com uma borboleta amarela sobrevoando o oceano. O figurino de Julia Lemmertz frequentemente apresenta estampas ou acessórios com desenhos de aves voando — a vida ao mar, sem amarras, livre como um pássaro.

Dentro da polêmica sobre a indicação à Academia, tudo o que falta de realidade em “O Pequeno Segredo” está presente em “Aquarius”. São filmes com fins diferentes e compará-los soa desastrado. No entanto, analisados em sua singularidade, “Aquarius” tem um enredo instigante, de takes mais originais. Um filme sobretudo inteligente porque esse é seu propósito em uma época marcada por turbulências políticas, embates sociais e crise econômica. A Clara de Sônia Braga tem mais força e vigor que vários personagens de David Schurmann reunidos. Até quando aborda a família, Kleber Mendonça Filho consegue uma perspectiva mais genuína, como na cena da briga entre mãe e filha, na figura da matriarca, nos trabalhadores que são estranhamente agregados como quase-parentes em nossa cultura.

“O Pequeno Segredo”, por sua vez, pode até atrair grandes públicos e fugir da temida categoria de “filme de arte”, mas não tem a autenticidade de tantas outras produções nacionais. Nem em sua missão de querer insistentemente fazer chorar ele é bem sucedido. Quem sabe daqui 20 anos a obra não vira um clássico das tardes televisivas no Brasil.

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Cinema

Um faroeste arroz com feijão

Como premissa, “Sete Homens e um Destino” não é dos filmes mais originais. Não só pelo fato de ser um remake de um faroeste de 1960 (o pôster acima é dele), que por sua vez é uma releitura de um filme de 1954 de Akira Kurosawa — seria difícil esperar algo de incrivelmente novo num caso desses, embora a esperança seja a última que morre. É um filme todo convencional, da premissa à estrutura, não há nada que surpreenda realmente. Mas nem todo filme precisa inventar a roda e o faroeste de Antoine Fuqua, que estreia na quinta (22), faz aquilo que se propõe a fazer. Nem mais, nem menos do que o estritamente necessário.

Logo na primeira cena somos apresentados ao vilão e à mocinha, que depois terão pouco impacto na história, mas que colocam a trama toda para funcionar. Ele é Bartholomew Bogue (Peter Sarsgaard), um homem rico e poderoso que só falta torcer a ponta do bigode para ser um estereótipo. Ela é Emma Cullen (Haley Bennett), moradora de uma cidadezinha americana que é alvo de Bogue — ele quer que todo o mundo saia dali e dá aos moradores as alternativas de Pablo Escobar: prata (20 dólares para quem quiser vender suas terras para ele) ou chumbo (quem se recusar a sair por esse dinheiro sairá morto).

Emma é uma personagem corajosa, mas “Sete Homens e um Destino”, como o título avisa, não é uma história revolucionária em que uma mulher do velho oeste americano resolve seus problemas com as próprias mãos. Com todo o dinheiro que consegue juntar, ela contrata o caçador de recompensas Sam Chisolm (Denzel Washington) para proteger a cidade e não deixar os vilões, que voltarão em algumas semanas, cumprirem a promessa. Chisolm é bom com armas, mas incapaz de cumprir a missão sozinho, e para isso recruta outros seis golpistas/criminosos/mercenários para se juntar a ele na missão suicida.

É um grupo heterogêneo: Faraday (Chris Pratt) é o malandro que faz piadas, Goodnight Robicheaux (Ethan Hawke) é uma lenda da Guerra Civil traumatizada pelo passado, Billy Rocks (Byung-hun Lee) é seu escudeiro asiático, hábil com facas, Vasquez (Manuel Garcia-Rulfo) é um mexicano procurado pela polícia, Jack Horne (Vincent D’Onofrio) é um religioso bom em perseguições, e Red Harvest (Martin Sensmeier) é um índio solitário — os protagonistas de verdade são Washington, Pratt e, em menor grau, Hawke. Apesar da intenção de Fuqua de ter um elenco diverso, sabemos pouco sobre os personagens que não são homens brancos — quando você precisa apelar ao IMDb para lembrar do nome de um personagem, é um mau sinal.

Em resumo, é o “Esquadrão Suicida” do Velho Oeste. Mas um Esquadrão Suicida mais consistente, sem buracos na história: dá para entender por que boa parte daqueles mercenários resolveu aceitar uma missão tão perigosa, seu objetivo faz sentido e há uma sensação bem mais forte de perigo em “Sete Homens e um Destino”, com os capangas de Bogue armados até os dentes, do que no filme de super-heróis, em que os vilões são quase onipotentes. A história é bem simples e se desenrola da maneira que se espera — os tais sete magníficos transformam a cidadezinha numa espécie de casa do Kevin em “Esqueceram de Mim”, cheia de armadilhas, e recebem os vilões numa grande batalha que entretém quem gosta de cenas de ação.

“Sete Homens e um Destino” pode não ter os defeitos de um “Esquadrão Suicida”, mas é um filme arroz com feijão, do qual é pouco provável que alguém se lembre no mês seguinte. Falta a ele algo a mais. O vilão é simples, pouco memorável; tem personagens com histórias interessantes, mas não exploradas, como Red Harvest e Billy (por que o primeiro anda sozinho, estilo lobo solitário? Como o segundo foi parar no velho oeste americano?) e apesar de as cenas de ação serem bem feitas, falta um pouco de diversão. Chris Pratt até tenta, colocando em seu personagem aquele seu jeito clássico de adolescente engraçadão, mas parece deslocado ali no meio. Em tempos de blockbusters mais ou menos, cheios de histórias que não fazem sentido, “Sete Homens e um Destino” não decepciona. Mas só isso não deveria ser motivo para comemorar. Nem todo filme precisa ser revolucionário, mas ser só corretinho é se contentar com pouco.

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Sociedade

A garota de lugar nenhum

Sentada à minha frente, comendo um petit gateau, Maha Jean Mamo falava, na tarde de uma sexta-feira de setembro, sobre o pesadelo burocrático de sua vida. Sobre como não teve nenhum tipo de documento até os 26 anos, sobre o que teve de fazer para existir e encontrar soluções que seus pais, advogados, diplomatas e ministros achavam impossíveis. Sobre como tinha abandonado toda sua vida no Líbano e vindo para o Brasil sem falar uma palavra em português. Sobre como esse país tinha dado a ela tanta felicidade e tristeza em uma proporção para a qual não há cálculo possível. Sobre como, em resumo, foi sua vida de apátrida.

“Eu tinha oito anos quando comecei a perceber. Participava de corridas na escola, ganhava, mas não podia participar das competições de fora. Era escoteira desde pequena e, quando eu tinha 15 anos, nosso grupo todo foi pra Jordânia. Eu não pude ir. Era um choque atrás do outro”, me disse Maha em uma sorveteria no centro de Ibitinga, município de 50 mil habitantes no noroeste paulista.

Um apátrida é alguém que não tem nenhum tipo de vinculação a uma nacionalidade, nenhuma prova de reconhecimento oficial pelo Estado. O que aconteceu com Maha tem origem na interferência da religião com a lei. O pai é cristão e a mãe, muçulmana. Ambos nasceram e se conheceram na Síria, onde o casamento inter-religioso é proibido. Para ficarem juntos, a única solução deles foi abandonar a cidade em que moravam, a hoje devastada Aleppo, e casar em uma igreja em Beirute em 1984.

Assim, Maha e os irmãos não podiam ser libaneses, pois o pai era sírio, e também não podiam ser sírios, pois o casamento não era reconhecido pelo Estado, muito menos os filhos daquela união proibida. Foram frutos da paixão romântica com o amor impossível — tinha tudo para dar errado.

Por não existir legalmente, a vida dela e dos irmãos foi complicada em cada episódio que envolvia um documento. Estudou de favor em uma escola armênia, precisou de uma autorização especial do governo para prestar o equivalente libanês do Enem e só conseguiu entrar em uma faculdade por insistência e sorte. “Depois da escola, minha irmã mais velha quis ir pra faculdade, mas não foi aceita. Quando isso aconteceu, meu irmão abandonou os estudos.”

Ela decidiu tentar. Fez uma lista com mais de 40 possíveis universidades, entre públicas e privadas, e conta que tinha nota para entrar em todas. “Eu queria fazer medicina. Chegava nos locais e dizia: ‘Quero estudar, mas não tenho documentos. Você me aceita?’. Na primeira a que eu fui, o cara jogou papéis na minha cara.” Todos respondiam a mesma coisa: não. Até que encontrou a AUL Arts & Science University, na qual o diretor era o próprio dono e por isso as irmãs puderam estudar. Cursou o equivalente a Sistemas de Informação e a irmã, Engenharia da Computação. Mais tarde, fez um MBA.

Trabalhou dentro da faculdade para poder abater os custos do curso e fazia uns bicos onde conseguia que aceitassem um trabalhador ilegal — se não tinha identidade, menos ainda carteira de trabalho. “Meu pai era tão ‘machisto’! Não queria que a gente trabalhasse, mas a gente precisava.” O pai, um motorista de caminhão, não tinha condições de bancar uma universidade privada. Era a única opção.

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Nacionalidade: Apátrida. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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É difícil saber como é não ter documentos. A maior parte das pessoas experimenta essa sensação por uma fração de tempo quando tem a carteira roubada. E mesmo assim a gente sabe que a prova oficial de quem somos está em algum lugar. No caso de Maha, essa sensação era permanente em um país onde conflitos externos e guerras civis foram constantes depois dos anos 1980. Se ela fosse parada em um checkpoint na cidade, não teria o que mostrar. Poderiam achar que fosse, talvez, uma terrorista e mandá-la para prisão. Uma emergência hospitalar também poderia ser um grande risco.

“Eu tenho uma alergia chamada urticária em um nível muito alto. Tinha uns 20 anos e nem sabia que tinha isso. Durante o casamento de um amigo, comecei a me coçar muito. Fui ao banheiro e não me reconheci no espelho. Me levaram desmaiada ao hospital, mas não queriam me atender. Meus amigos foram em peso, pois sabiam que podiam não me aceitar. Tiveram uma grande briga lá até que uma amiga pegou a identidade e disse: ‘O nome dela é esse. Vocês vão aceitá-la e nos dizer quanto custa que nós vamos pagar’.” Maha foi atendida.

Não sei qual a cara que fiz ao ouvir esse episódio, mas ela me disse: “Agora eu tenho seguro e remédios comigo. Não se preocupe”. E riu.

Naquele momento, ela tinha deixado a sobremesa de lado e eu tinha acabado um capuccino doce demais. O ambiente da sorveteria Slechi parecia colorido e descontraído demais em contraste com a história. Apesar de tudo, Maha é vivaz, enérgica, e narra a própria história sem autocomiseração e sem aquele artificialismo narrativo de uma palestra do TED. Ela se conecta rápido com as pessoas porque transmite sinceridade. Ri, gesticula, bate no gravador e mistura algumas palavras em português no meio do papo. Tem cabelos curtos, escuros, onde se percebe alguns fios brancos, e olhos bem grandes, cujas pálpebras se abrem com força e deixam à mostra a íris escura banhada por todos lados pelo branco do globo ocular. São olhos bem abertos, de quem viu pouco do mundo, mas tem gana de ver tudo o que for possível.

Ela esgotou as possibilidades para ganhar cidadania no Líbano: tentou fazer valer a lei que dá cidadania a quem mora há mais de 10 anos no país, mas a regra nunca funcionou. Tentou alegar que era órfã, ser adotada, adotar, casar. Nada funcionou.

Se no Líbano não era possível, o próximo passo era tentar pela Síria. Foi até a embaixada, contou o que estava acontecendo e conseguiu uma advogada. “Passava sempre pela conversão do meu pai.” Mas a guerra civil síria começou e a solução desapareceu. A própria advogada se tornou uma refugiada. Maha não desistiu. Estava decidida a entrar nesse mundo em que nós vivemos, de cartas de propaganda que chegam pelo correio com nosso nome impresso a carimbos de países exóticos no nosso passaporte.

“Busquei no Google todas as embaixadas que existiam em Beirute e fui disparando e-mails contando minha história”, disse fazendo uma vozinha irônica, como que lembrando da reprodução infinita do porquê ela não tinha nenhum documento. A lista de rejeições imediatas foi longa, com exceções. O Canadá a chamou, adorou seu perfil. Maha tinha um MBA e falava quatro idiomas: árabe, francês, inglês e armênio. “Disseram que meu perfil era ótimo, que me queriam no Canadá, mas me perguntaram como iriam colocar um visto no meu passaporte se eu não tinha um. Disse que meu maior problema era não ter um passaporte e que estava lá por isso.” Não adiantou.

A embaixada americana não a chamou, mas respondeu ao e-mail e definiu pela primeira vez para Maha qual era o seu problema: um caso de apatridia. Indicaram contatos na ONU, que também não puderam ajudar – “mas a menina que me entrevistou lá é minha amiga até hoje”. Ela também passou por uma entrevista de oito horas na embaixada da Suíça. Saiu chorando.

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Maha em sua casa, em Ibitinga, com recordações e foto de seu irmão. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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Depois veio o México. E quase deu certo. Conseguiu um arranjo em que bastava a ela encontrar um trabalho e um lugar para morar para poder ir. “Encontrei um empresário libanês dono de uma cadeia de restaurantes cuja mulher também tinha sido escoteira. Ele conhecia pessoalmente o pessoal do consulado. ‘No Natal, você vai estar aqui’, ele me falou.” Era novembro de 2013 e Maha tinha alcançado a solução suprema: ela havia decifrado um problema impossível.

“Meus pais sempre foram contra minhas tentativas. Eu sempre dizia que iria viajar um dia e eles me mandavam parar de sonhar. Não queriam que eu me frustrasse. Mas quando chegou a hora de contar para minha família, meu pai se ofereceu para pagar minha passagem.” Ela contou a todos, mas… sempre tem um maldito mas. No final de 2013, algo mudou no México e Maha precisou esperar. Levaria mais tempo que o esperado, mas era certo que ela conseguiria. Então, ela relaxou.

Nesse meio tempo, Souad, a irmã mais velha, pediu o e-mail que Maha estava mandando para as embaixadas, mudou o nome e os dados e começou a disparar também. Era fevereiro de 2014, quando recebeu a ligação de um diplomata brasileiro pedindo documentos. Maha a ajudou e o inacreditável aconteceu. O Itamaraty foi eficiente: em duas semanas ligaram e pediram para Souad buscar o passaporte e o visto. Foi tão rápido que as irmãs achavam que se tratava de um esquema de prostituição internacional. “Quando ela pegou os documentos, liguei para ela e perguntei se era o nome dela com foto no passaporte. Ela disse que sim.”

Souad pegou o documento em uma quinta-feira, e seu voo foi marcado para segunda-feira. Maha correu para o Facebook e encontrou uma família brasileira que se dispôs a aceitar a irmã. A solidariedade falou mais alto, mas houve uma espécie de troca amena de medo e preconceitos: as libanesas achavam que entrariam para uma rede de prostituição no Brasil e os brasileiros temiam estar abrigando terroristas em casa.

No dia do embarque, mais um problema. “A polícia me parou. Faça alguma coisa”, dizia uma mensagem de Souad para Maha.

Era uma situação não prevista, mas que fazia sentido burocrático: como uma pessoa iria embarcar com um passaporte especial apenas com visto brasileiro, sem o registro de entrada no Líbano? A polícia federal libanesa acabou por liberar Souad, mas estabeleceu que, para sair, ela teria que pagar cinco mil dólares por cada um dos 28 anos que viveu ilegalmente no país. Agora, havia solução, mas não havia dinheiro.

Maha ativou sua rede de contatos e encontrou uma alternativa. Era ruim, mas era o que tinha. Conseguiram diminuir a multa, mas ficariam “black listed”. Ou seja: proibidas de voltar — para sempre. Depois de um mês, a irmã conseguiu embarcar. “Quando ela chegou no Brasil, meu pai me disse: ‘Esqueça o México, seus irmãos vão precisar de você lá’.” Ela aceitou.

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Foto: Gui Christ/Risca Faca

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Foi no dia 19 de setembro de 2014 que Maha, com o irmão, recebeu pela primeira vez na vida um documento que dizia quem ela era. “Senti que existia, que tinha encontrado a ‘solution’, que iria viajar antes de morrer. Era fantástico! Uma nova vida, novos horizontes, novas oportunidades.” Ela não sabia nada sobre o país que a aceitara, exceto o clichê futebol, samba e a qualidade de nossos cirurgiões plásticos. Nunca tinha ouvido falar de Belo Horizonte nem de Minas Gerais. Mas o Brasil é o Brasil. Eu sei, você sabe. Maha descobriria da pior maneira.

Sem falar uma palavra em português, quase sem dinheiro para se sustentar, os três irmãos passaram a viver juntos na casa da família Fagundes, uma família católica de classe média baixa. Márcio, o pai, deixou o segundo andar da casa para o trio estrangeiro. “Eles abriram a casa para nós, nos ajudaram muito”, me disse Maha. Ainda hoje Souad mora com eles.

Distribuíram folhetos, trabalharam em uma padaria, mas a barreira da língua se revelou grande demais para conseguirem um trabalho estável. “Eu tentei de tudo. Foi muito ruim. Sofremos muito e começamos a nos perguntar o que estávamos fazendo aqui.” Ela também se deparou pela primeira vez com moradores de rua, assaltos e assassinatos. Sua programação mental estava preparada para outro tipo de insegurança, o terrorismo, que era uma ameaça, mas não diária.

[olho]”Começamos a nos perguntar o que estávamos fazendo aqui”[/olho]

Nos primeiros sete meses, longe do Líbano, dos amigos, da família e do próprio idioma, ela penou. Maha começou a sair do casulo da proteção familiar quando recebeu a visita de sua melhor amiga, Nicole Khawand, uma das poucas pessoas que a apoiou nas tentativas de encontrar uma solução para sua não existência burocrática. “Viajamos juntas e tinha momentos em que precisava falar português, que era obrigada a me comunicar com as pessoas. Precisava parecer forte na frente dela.” O processo fez com que Maha retomasse a antiga confiança, perdida no choque inicial com o Brasil.

Mais confiante, Maha entrou em contato com a Acnur, agência de refugiados da ONU, para resolver o problema com o visto. Maha havia entrado no Brasil como apátrida, algo que a lei brasileira não está preparada para lidar. Na prática, significa renovar o visto de seis em seis meses. O objetivo era conseguir o estatus de refugiada, o que lhe permitia receber um visto de cinco anos e, mais tarde, obter um Registro Nacional de Estrangeiros (RNE) — um número no sistema que permitiu a ela ter um passaporte brasileiro especial para estrangeiros, um documento que quase ninguém conhece.

Agora, ela era um combo quase único: apátrida e refugiada. Pela força de sua história e pela coragem de se expor, Maha foi convidada pela ONU para ser a embaixadora jovem do programa de apátridas chamado I Belong. Apesar dos novos documentos, ela seguiu vivendo em uma espécie de apartheid individual. Podia viajar pelo Brasil, mas precisava de uma autorização do ministério da Justiça para ir para o exterior e de uma carta do país que a receberia. Mesmo assim nenhum país da Europa aceita o passaporte que ela usa para viajar. Em uma viagem para a Turquia, o agente da imigração do aeroporto olhou o documento e disse: “É falso”. Só era diferente.

A maior parte dos seus documentos é diferente. Na rodoviária de Ibitinga, quando nos encontramos pela primeira vez, ela aproveitou para comprar uma passagem no ônibus da meia-noite para São Paulo. O funcionário no guichê de atendimento, Claudino, segundo o crachá, pediu o documento. Ela entregou um cartão de plástico, cor salmão, um pouco maior do que uma carteira de identidade. Claudino também parecia estar vendo pela primeira vez. Olhou de um lado, virou, olhou do outro, talvez tenha lido a palavra “apátrida”, mas não falou nada. Anotou os dados, devolveu o documento e imprimiu a passagem. Na entrada do ônibus, o processo foi parecido. Voltaríamos juntos na madrugada, acompanhados por Guilherme Roger Venâncio, um estudante de artes de 22 anos que se tornou amigo de Maha. No sábado pela manhã, os dois participariam de uma oficina na sede do Google. O ônibus estava quase cheio, mas ela pediu para sentar ao lado da janela. “Gosto de sentir que estou viajando.”

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O incomum passaporte brasileiro para estrangeiros e outros documentos de Maha. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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A vida de Maha é tão singular que ela conseguiu um emprego pelo site Catho. Desde fevereiro, ela se mudou para a fazenda onde funciona a Agro Betel, em Ibitinga. Com a vida nos eixos, ela estava em uma curva ascendente. Até que o Brasil mostrou os dentes. Na madrugada do dia 30 de junho deste ano, ela foi acordada por uma ligação: o irmão estava morto. “Eddie estava com a namorada no carro, quando pararam em um cruzamento perto de casa. Eles entregaram o carro e saíram, mas quando meu irmão falou, eles atiraram. Foi uma bala só. Pegou no coração. Ele foi morto por três adolescentes drogados. E por que são adolescentes não há justiça. Eu amo o Brasil, mas o Brasil pegou a melhor coisa da minha vida.” Seus olhos estavam marejados e foram tomados por uma rede crescente de capilares vermelhos. Paramos a entrevista.

O assassinato do irmão operou uma mudança em Maha. Antes, ela estava mais preocupada em conscientizar as pessoas para o problema dos apátridas. Agora, quer se tornar cidadã brasileira o mais rápido possível. Pelo ritmo normal, demoraria entre oito e 15 anos, o que ela não considera mais um opção. “Não quero mais estar numa prisão. Eddie morreu sem realizar os sonhos dele, sem ver meus pais novamente, sem ter uma família, sem poder viajar, sem ser livre. Eu preciso achar outra solução e pressionar para a criação de uma lei que permita aos apátridas receberem a nacionalidade.”

Maha pagou a conta na sorveteria. Mais tarde, acompanhados por Guilherme, fomos jantar na La Bella Pizzaria, um rodízio de pizza. Ela chamava os garçons de “habibi” – querido, em árabe – e ela não conseguia entender porque colocavam queijo na pizza de abacaxi. Acabou a refeição com uma fatia de chocolate branco.

Ficamos caminhando pela cidade, enquanto esperávamos pelo ônibus da meia-noite. Embarcamos, e cada um se sentou em uma fileira diferente. Maha foi direto para a janela sem ninguém ao lado dela. Cerca de 40 minutos depois, paramos em Araraquara onde mais pessoas subiram. Um rapaz de óculos parou ao lado dela. Não a cumprimentou e disse: “A janela é minha!”, com um tom de garoto mimado. Eu queria me levantar e dizer pra ele tudo o que ela já tinha passado para conseguir sentar naquela janela e poder gozar do prazer de viajar. Dos documentos, do irmão, da Síria, do Líbano. Mas não falei nada. Maha foi para o assento do corredor, mexeu um pouco no celular e depois dormiu até chegar em São Paulo. Ela só queria sentir que estava viajando.