Categorias
Cinema

Cinema sem fim

Dias antes do início da 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2012, Renata de Almeida, organizadora do evento, deu uma entrevista à Folha de S.Paulo em que dizia que a Mostra é como uma “miragem”, que “nasce e morre todo ano”. Aquela era a primeira edição que Renata produzia do início ao fim sem a companhia do marido Leon Cakoff, idealizador e sinônimo da Mostra, morto um ano antes em decorrência de um câncer – uma semana antes da abertura da edição de 2011.

“Foi um ano de teste de sobrevivência para a Mostra. Por mais que eu trabalhasse com o Leon há mais de vinte anos, a Mostra era muito ligada à figura dele. Era uma situação um pouco crítica, em que eu não podia mostrar fraqueza e havia pressão de vários lados. Mas foi uma Mostra linda”, lembra Renata. Agora, quatro anos depois, ela está orgulhosa da edição que comemora os 40 anos da Mostra, um festival-maratona de cinema idealizado e nascido em São Paulo, que reúne milhares de cinéfilos de várias gerações em torno de novidades, raridades e retrospectivas de diretores de qualquer país possível de ser apontado num mapa; um ponto de encontro de cineastas que vão do iraniano Abbas Kiarostami (que morreu em julho e considerava Renata uma irmã) ao então desconhecido Quentin Tarantino.

Nas duas semanas de Mostra, que neste ano acontece de 20 de outubro a 2 de novembro, cerca de mil pessoas estarão envolvidas na projeção dos 322 filmes em 42 locais de exibição – inclusive no circuito SP Cine na periferia –, na organização dos encontros com diretores, na exposição sobre “Persona”, de Ingmar Bergman, no Itaú Cultural, nos diversos encontros e mesas, além dos profissionais de transporte, comunicação, tradução, legendagem e uma série de outras atividades. A sede da Mostra funciona em um pequeno prédio de dois andares em uma travessa da rua Augusta, a menos de cem metros do Espaço Itaú de Cinema, cujas salas recebem tradicionalmente os filmes selecionados para o festival. Nas semanas que antecedem a abertura, um “núcleo duro” de cerca de 30 pessoas trabalha de manhã até tarde da noite em um vaivém de caixas e materiais para colocar o festival em pé.

Tudo isso, naturalmente, tem um custo. “O mais difícil nesses dois últimos anos tem sido financiar a Mostra”, afirma Renata. A crise econômica dos últimos dois anos diminuiu o investimento dos patrocinadores, grande parte órgãos públicos e estatais, como a Prefeitura de São Paulo e a Sabesp. A redução do aporte da Petrobras foi especialmente sentida. “Já houve ano em que a Petrobras anunciava no encerramento da Mostra o patrocínio da próxima, mas isso não tem acontecido mais. O ideal seriam ter contratos por dois anos ou já ter o da próxima”, diz.

O orçamento ideal da Mostra, segundo Renata, é de R$ 8 milhões, mas o valor não tem sido alcançado nos últimos anos – apesar disso, a única ocasião em que o evento fechou no vermelho foi justamente na 36ª edição, a primeira sem Cakoff. A Mostra atual está trabalhando com um orçamento de cerca de R$ 6 milhões. A estratégia de Renata é cortar despesas naquilo que não vai prejudicar o público: festas, convidados, passagens e o que for possível na equipe. Se o corte precisar ser mais drástico, só aí se pensa em diminuir a quantidade de filmes. “Trazer um filme, no final, tem um custo muito caro: a tradução é cara, a legendagem é cara, tem o transporte, aluguel. Cada filme tem um custo grande.”

[imagem_full]

Evento de lançamento da Mostra deste ano. Crédito: Divulgação
Evento de lançamento da Mostra deste ano. Crédito: Divulgação

[/imagem_full]
Mesmo assim, o modelo do festival permite adaptar a programação ao dinheiro disponível. “A Mostra é elástica, você pode fazer do tamanho do orçamento”, explica Renata. “A gente tenta cortar tudo que não atinge o público. A sessão ao ar livre no parque Ibirapuera com orquestra é uma sessão gratuita e que vai muita gente, é prioridade. A sessão no vão livre do MASP, que também virou uma sessão simbólica e é gratuita, a gente mantém.”

Aos 50 anos e envolvida com a produção da Mostra desde os 23, Renata ainda não se acostumou com a ideia de precisar pedir dinheiro todo início de ano, assim que as contas da Mostra anterior são fechadas, para fazer o próximo evento acontecer. “Sou super grata aos patrocinadores, graças a eles que a Mostra está acontecendo. São 40 anos, é uma Mostra comemorativa e conseguimos segurar quase tudo. Mas a realidade é que há uma data. Isso é desgastante”, diz.

Nos dias que antecedem a sessão de abertura da Mostra, no entanto, a angústia e o pessimismo – “o Brasil estava pessimista” – começam a dar lugar a uma sensação de dever cumprido ao ver, finalmente, as peças se encaixando: as confirmações de filmes na última hora, o catálogo ficando pronto, a curadoria finalmente tomando a forma de um festival de cinema. “A coisa mais emocionante para mim é quando você está aqui cansada, pensando ‘não vou fazer mais isso’, e quando a Mostra começa você sai pelos bares aqui perto e as pessoas estão com a programação na mão.”

Nesses cinco anos à frente da Mostra, Renata defende que a curadoria está muito forte, até com um caráter jornalístico em relação ao que vem acontecendo no cinema e no mundo. É a “parte boa” e a que ela mais gosta de fazer, um trabalho por tanto tempo dividido com Cakoff. Os focos e encontros ganharam importância – assim como a quantidade de filmes para ver e selecionar antes do festival. “Antes, uma pessoa, ou Leon ou eu, conseguia ver todos os filmes que vinham para a Mostra, em DVD. Hoje são 1,4 mil que vêm por link. Veja o quanto mudou em cinco anos”, ressalta. Uma equipe de dez pessoas faz esse trabalho, com o cuidado de manter um equilíbrio entre os países. Renata está cansada, mas a perspectiva das próximas semanas a deixa feliz.

***

A história da Mostra de Cinema de São Paulo é indissociável de Leon Cakoff, seu idealizador e figura fundamental para a continuidade do evento – graças a ele, a Mostra resistiu à cretinice da censura durante a ditadura militar e atravessou os áridos anos de planos econômicos mirabolantes. Cakoff nasceu Leon Chadarevian, em 1948, na cidade de Aleppo, na Síria. Sua família, de origem armênia, imigrou para o Brasil quando ele ainda era criança. Antes de completar 20 anos, começou a carreira como jornalista nos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Durante o dia, era crítico de cinema no Diário de São Paulo; à noite, era repórter plantonista no Diário da Noite, jornal de estilo sensacionalista.

[imagem_full]

Renata e Leon. Crédito: Imprensa Oficial
Renata e Leon. Crédito: Imprensa Oficial

[/imagem_full]
Embora o jornalismo das empresas de Chatô estivesse alinhado ao regime militar e não poupasse elogios ao governo, Cakoff já buscava em seus textos apontar para além do que a censura permitia: cineastas das revoluções e dos cinemas novos ao redor do mundo. No livro “Cinema sem fim”, publicado pela Imprensa Oficial na ocasião dos 30 anos da Mostra, Cakoff escreve:

“Como crítico de cinema já saía em defesa dos excluídos do sistema de distribuição. Meus preferidos estavam aqui mesmo no Brasil; no Japão de Kurosawa, Sugawa, Oshima, Shindo; na Itália de Fellini, Visconti, Pasolini; na França de Truffaut Brasson, Godard; na América de Cassavetes e Peckinpah. Estavam também no fervor dos maios de 1968, nas ideias em transe de cineastas que empunhavam câmeras como se fossem armas”

As tentativas de falar de um cinema fora do circuito nas páginas do jornal – e de denunciar que a censura existia, sim, e mutilava filmes a ponto de tornar-lhes incompreensíveis, renderam a ele o conselho de adotar o pseudônimo. O desencanto com as restrições da carreira de crítico de jornal incentivou Cakoff a se aproximar do Masp (o museu era uma iniciativa de Chatô, afinal) e de seu diretor, Pietro Maria Bardi.

A partir de 1975, Cakoff começou a organizar no auditório do museu pequenas revisões de cinematografias e diretores antes inacessíveis ao público brasileiro. Seu grande trunfo são os contatos com representações diplomáticas. “Descubro nos primeiros quatro anos de voluntariado no Masp que é possível romper o cerco das censuras com a ajuda prestimosa de consulados, embaixadas e representações culturais”, escreve. E continua: “Que posso trazer os filmes das minhas semanas temáticas por malas diplomáticas, que elas não podem ser violadas e remexidas por verdugos da ditadura militar”.

Cakoff relata que se sentia como um diplomata visitando embaixadas e consulados em busca de filmes para a programação do Masp. Apesar do sucesso de público – chegam a faltar datas no calendário do auditório – a censura continua a ser um problema. “Alguns (países), como a China, ou com o nome hipócrita de República Popular da China, provocam incidentes diplomáticos. O ciclo ‘Aproximação ao cinema chinês’ é proibido pela censura brasileira. A embaixada chinesa em Brasília protesta, a Polícia Federal me intima a depor, o Masp teme por retaliações e a imprensa especula”, rememora.

Cartaz da Mostra de 1997. Crédito: Imprensa Oficial
Cartaz da Mostra de 1977. Crédito: Imprensa Oficial

O grande salto das sessões concorridas no auditório do Masp para uma Mostra de Cinema no atual formato acontece em 1977, por ocasião do aniversário de 30 anos do museu. O monitor emprestado do Instituto Goethe ilumina a tela do auditório em sessões concorridas. Foram 16 longas e sete curtas selecionados, e o vencedor do festival foi “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, de Hector Babenco. “O público é o júri” se torna o lema da Mostra, que a cada ano ganha importância nos circuitos de festivais internacionais, na imprensa e, mais importante, com o público.

***

Renata e Leon se conheceram em Nova York por meio de amigos em comum. Formada em rádio e TV pela FAAP e então estudante de cinema nos EUA, ela encontrou em Cakoff um parceiro para uma vida dedicada ao cinema. Sua primeira participação efetiva foi como produtora na 13ª edição, em 1989. O envolvimento pessoal e profissional com a Mostra a levou a rodar os festivais pelo mundo e a conhecer os mais importantes cineastas em atividade: Manoel de Oliveira, Wim Wenders, Akira Kurosawa – além de testemunhar o nascimento artístico de outros. Foi assim com Tarantino, que trouxe à edição de 1992 seu “Cães de Aluguel” e, como cinéfilo, enlouqueceu com a programação do evento e os arquivos do festival. Em São Paulo, Tarantino conheceua atriz portuguesa Maria de Medeiros, com quem trabalharia em “Pulp Fiction” pouco tempo depois. Maria se tornaria uma grande amiga de Renata de Almeida – no início da entrevista que fiz com ela, seu celular toca: é Maria, que está no Brasil, combinando de sair para jantar.

[olho]”Quando o Leon morreu, o pessoal falava: ‘mas quem você vai chamar?’”[/olho]

Selecionar os filmes para a Mostra, encontrar-se com cineastas – alguns avessos a exposição –, convencê-los a ir ao Brasil. Tudo isso era parte do trabalho da dupla. “Quando eu comecei, não mandavam nem VHS, então a gente viajava muito. Ia para Roterdã, emendava com Berlim, às vezes ia pra Hungria, tinha muito festival de cinema nacional. Em maio ia pra Cannes, às vezes pra Veneza. Naquela época, no começo dos anos 1990, as coisas eram mais lentas, era muito difícil conseguir um filme do Festival de Veneza”, lembra. Hoje em dia, o status mudou. Um filme concorrido, como o vencedor do prêmio do júri de Veneza, “Animais Noturnos”, de Tom Ford, pode ser exibido na coletiva de imprensa de lançamento da Mostra e está na programação do festival.

O casal teve dois filhos: Jonas, hoje com 18 anos, e Tiago, 14. O mais velho está no primeiro ano de cinema na FAAP e, segundo a mãe, vibra a cada filme confirmado para a Mostra. Por enquanto ela não acha uma boa ideia que ele trabalhe no festival. Prefere que trilhe o próprio caminho dentro do cinema. “E eu sou muito exigente, coitado de quem trabalha comigo”, diz. Cakoff tem outros dois filhos mais velhos, Laura e Pedro. O câncer de Cakoff, que havia aparecido pela primeira vez oito anos antes, exigiu muito do último ano de vida dele. Sua ausência, porém, teve o efeito de fortalecer em Renata os cuidados à frente da Mostra. “Quando o Leon morreu, o pessoal falava: ‘mas quem você vai chamar?’, me davam conselhos e eu: ‘não, sou eu mesmo, vou continuar fazendo o que eu sempre fiz. Vai ser mais duro porque era dividido, agora vai ser dividido com outras pessoas’”, lembra.

Para ela, era muito estranho ter de lidar com esse tipo de comentário. “Nunca me passou pela cabeça que eu seria incapaz de fazer, que eu precisava chamar outro homem. Isso nunca me passou pela cabeça, mas passou pela cabeça das pessoas. Curioso isso”, observa. Muito dessa postura se deve, segundo Renata, aos exemplos que ela teve em casa. A mãe é psicanalista e o pai é oftalmologista, que se conheceram na faculdade de medicina. Ambos trabalham até hoje. Renata é a filha do meio de três irmãs: a mais velha também é médica e a caçula é empresária. “Nunca na minha vida eu achei que não pudesse fazer algo por ser mulher. Porque eu tive uma mãe que saiu de Santos pra fazer medicina, se formou e teve uma relação de igualdade na minha casa”, lembra.

A identificação natural com o feminismo nunca a motivou, entretanto, a criar uma programação especial de mulheres na Mostra – do mesmo modo que o evento nunca dedicou sessões específicas a minorias. “Na Mostra não tem uma sessão gay ou de filme de mulheres, é uma opção nossa. Se tem um filme com personagens gays e uma visão sobre essa questão, eu quero que um homofóbico veja esse filme. Se tem um filme dirigido por mulher, com questões sobre mulher, é melhor um machista ver, ou uma mulher que não está ligada em questões de feminismo, que acha esse assunto chato, ver”, diz. “Quando você tenta etiquetar uma obra, por num escaninho, você corre o risco de pregar para convertidos. Eu defendo a reflexão.”

***

O cartaz da Mostra deste ano, criado pelo cineasta italiano Marco Bellocchio (e que ilustra esta reportagem), dá indícios das escolhas da atual edição. O diretor se inspira em seu filme “Bom dia, Noite”, que conta a história do sequestro do ex-primeiro ministro italiano Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas. No centro do desenho, está um observador em meio a mãos em protesto, freiras em oração e uma reunião papal. Bellocchio será homenageado na Mostra, assim como o diretor polonês Andrzej Wajda, morto há poucos dias. Os dois são autores de filmografias fortemente políticas, que serão exibidas no evento.

[olho]”Se tem um filme com personagens gays e uma visão sobre essa questão, eu quero que um homofóbico veja esse filme”[/olho]

Mesmo em meio a uma programação tão extensa, a opção pela reflexão política se destaca. “A gente passou os dois últimos anos gritando muito e refletindo pouco, mesmo por conta dessa cultura da internet de dar uma resposta muito rápida, ter opinião para tudo”, diz Renata. “Foram dois anos de muitas certezas sobre tudo, parece um pouco religioso, dogmático. Ótimo as pessoas se manifestarem, mas é preciso escutar, é preciso refletir. A gente só pode se desobrigar de pensar quando existe o dogma, coisas que você acredita sem pensar, e isso só cabe dentro da religião. No resto da vida a gente tem de refletir sobre as coisas.”

Para Renata, o cinema tem esse poder raro de fazer o espectador sentar-se calado por duas horas, apenas vendo, ouvindo e refletindo. “Para mim, que falo muito, o cinema é um bom treino para ficar quieta e ouvindo”, ri. Pergunto o que ela acha da polêmica envolvendo o filme “Aquarius”: o protesto do elenco brasileiro no Festival de Cannes, a repercussão sobre o fato de não ter sido escolhido como representante do Brasil para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, supostamente por motivos políticos. Seria uma indicação de que o cinema poderia novamente pautar a discussão política no País? A resposta dela tem um tom cauteloso.

“Houve uma opção de pegar uma obra de arte por uma causa que se queria defender. Quando você decide fazer isso, você está defendendo sua causa, atingiu os objetivos que o Kleber (Mendonça Filho, diretor do filme) queria, mas você empobrece a obra”, diz. “Numa obra você tem o que o diretor quis dizer e tem o inconsciente do diretor, às vezes coisas que ele nem sabia, porque ele está ali como uma pessoa integral. Se você dá uma cartilha de como seu filme deve ser lido… ‘Aquarius’ é tão rico, tem tantas questões… fizeram essa opção, e foi o que aconteceu, mas ao mesmo tempo eu acho uma pena.”

[olho]”Ótimo as pessoas se manifestarem, mas é preciso escutar, é preciso refletir”[/olho]

À frente da Mostra, Renata precisa ser diplomática, trabalhar com as três esferas de governo e com a alternância de comando das gestões. Ela gosta de política, gosta de ler política nos jornais e lembra que a Mostra é “superpolítica”, mas só sobreviveu até hoje porque é apartidária. “Eu voto, tenho minhas crenças, mas não declaro meu voto. Se eu declarar meu voto, estarei fazendo isso em nome da Mostra. O dia em que a Mostra assumir um partido ela acaba. Acaba.”

Pesquisas internas da Mostra entre os espectadores revelam que de 10% a 20% do público do evento se renova a cada edição. E a quantidade de espectadores aumenta, mesmo com todas as opções fora da tela do cinema: TV a cabo, Netflix, torrents etc. Para Renata, a Mostra é um momento de encontro. São comuns as histórias de “amigos de Mostra”, que combinam de se encontrar durante o evento e que tiram férias para aproveitar a maratona cinematográfica, emendando um filme no outro. Certa ocasião, um casal chegou a apresentar a ela e a Cakoff duas filhas que nasceram de um casamento originado em uma fila da Mostra. Nas filas e nos bares da região da avenida Paulista, a Mostra é um assunto agregador. “São Paulo é uma cidade onde o medo é valorizado. E o paulistano é um pouco tímido no trato social, é difícil falar com quem não conhece. E a Mostra é uma oportunidade de se sentir parte de um grupo, as pessoas fazem amizade na fila, se conversam”, arrisca Renata.

Se por um lado a era da informação torna disponível qualquer filme em qualquer aparelho, legal ou ilegalmente, por outro é muito fácil perder-se em meio a tantas opções. Basta lembrar que um festival de cinema que começou há 40 anos exibindo 16 longas hoje precisa selecionar 300 entre 1,4 mil filmes que chegam via internet. “Quando a Mostra começou, durante a ditadura, você vivia num deserto de informação”, observa Renata. “A Mostra era uma gota no deserto, começou numa sala só no Masp e era um sucesso. Hoje a gente vive num oceano de informação, a gente é bombardeado com informação, e é uma era de informação fragmentada: a informação que a gente vê, a gente vê um pouco; estudos que a gente lê, a gente lê um pouco, a pessoa faz a seleção do parágrafo que lhe convém e que comprova a sua teoria. É tanta informação que as pessoas ficam perdidas nesse oceano. Acho que a Mostra, sem arrogância nenhuma, é como um amigo que chega e fala: ‘Olha, vi esse filme e é bem bacana. Você não quer assistir?’”

Categorias
Flip 2016 Literatura

O homem que sabia norueguês

Essa família comum em todos os aspectos, com pais jovens, como eram quase todos os pais naquela época, e dois filhos, como quase todos os pais tinham naquela época, havia se mudado de Oslo, onde tinha morado na Thereses Gate, perto do Bislett Stadion, durante cinco anos, para Tromøya, onde uma casa fora construída para eles num loteamento. Enquanto aguardavam que a casa ficasse pronta, alugariam uma outra, mais velha, no acampamento Hove. Em Oslo o pai tinha estudado durante o dia, inglês e norueguês, e trabalhado como guarda-noturno durante a noite, enquanto a mãe havia frequentado a escola de enfermagem em Ullevål. Mesmo que ainda não houvesse terminado a formação, o pai tinha procurado e conseguido um emprego como professor no ginásio de Roligheden, enquanto ela trabalharia no hospital psiquiátrico de Kokkeplassen. Os dois haviam se conhecido em Kristiansand quando ela tinha dezessete anos, ela engravidara aos dezenove, e os dois se casaram aos vinte, na pequena fazenda em Vestlandet onde ela havia crescido. Ninguém da família do noivo compareceu ao casamento, e mesmo que aparecesse sorrindo em todas as fotografias, nota-se uma zona de solidão ao redor dele, percebe-se que não está no próprio ambiente em meio aos irmãos e irmãs, aos tios e às tias, aos primos e às primas da noiva.

Hoje os dois têm vinte e cinco anos, e têm a vida inteira pela frente. Trabalho próprio, casa própria, filhos próprios. Os dois estão juntos, e o futuro que almejam pertence a eles.

Será mesmo?

(Trecho de a “Ilha da Infância, Minha Luta 3”, de Karl Ove Knausgard)

***

São 3.500 páginas distribuídas em seis volumes carregados de memórias e reflexões sobre a infância em um lugar remoto da Noruega, sobre trocar a fralda dos filhos e sobre faxinar meticulosamente a casa onde o pai alcoólatra acabara de morrer; relatos minuciosos sobre a água esquentando para preparar um chá, que evoluem para ensaios sobre Dostoiévski e Deus, e então a prosa volta a falar sobre papinha de bebê, Talking Heads, a vida de escritor e a história trágica – aos olhos do menino – de uma meia perdida na aula de natação. A série “Minha Luta“, do norueguês Karl Ove Knausgard, leva ao extremo o esforço de lembrança e apaga as linhas entre autobiografia e ficção. Publicada entre 2009 e 2011 na Noruega, onde se tornou um fenômeno de público e despertou intensos debates pela exposição crua de pessoas próximas ao autor, a obra chega aos leitores brasileiros traduzida diretamente do idioma original pelo gaúcho Guilherme da Silva Braga, 34 anos, responsável pela tradução a partir do volume dois – o quarto tomo, “Uma Temporada no Escuro”, foi lançado em junho no Brasil pela Companhia das Letras.

Apenas nas últimas duas décadas, e graças a escolhas bancadas por editoras como a 34 e a própria Companhia das Letras, traduções diretas de línguas “distantes”, como o russo, se tornaram possíveis no Brasil. Antes disso, Dostoiévski e outros russos, por exemplo, só chegavam ao Brasil intermediados pela tradução francesa – o que, de certa maneira, “contaminava” o texto final. Mesmo Franz Kafka só teve suas obras completas traduzidas diretamente do alemão a partir do trabalho de Modesto Carone, que iniciou na década de 1980 a monumental tarefa de traduzir toda a obra do escritor tcheco (que escrevia em alemão).

No caso de Guilherme Braga, doutor em Literaturas Inglesas e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o seu encontro com a língua norueguesa não partiu de um interesse acadêmico, mas pessoal. “Essa é uma história tortuosa que levou quase dez anos para se completar. Meu interesse pelo norueguês surgiu no meio dos anos 1990, junto com o meu interesse por bandas norueguesas de black metal – um dos principais itens de exportação cultural da Noruega”, conta. No início dos anos 2000, resolveu procurar algum professor de norueguês em Porto Alegre. Não encontrou nenhum, mas descobriu a professora Margareta Berg e o Instituto Brasileiro-Escandinavo de Intercâmbio Cultural, onde era possível estudar sueco. “Resolvi entrar no curso, pois eu sabia que o sueco e o norueguês são línguas extremamente parecidas e que, sabendo uma delas, entender a outra seria relativamente fácil”, lembra.

Depois de um ano de estudos, fez uma viagem à Suécia e, de volta ao Brasil, continuou os estudos do idioma enquanto traduzia peças do dramaturgo sueco August Strindberg “como exercício”. Em 2005, passou a trabalhar profissionalmente com tradução literária a partir do inglês, e dois anos mais tarde pediu demissão do emprego de professor de inglês para se dedicar à tradução em tempo integral. As versões engavetadas de Strindberg acabaram saindo em 2010 pela editora Hedra, no volume “Senhorita Júlia e Outras Peças“. Outras traduções literárias do sueco se seguiram, como o romance “A Traidora Honrada“, lançado pela Bolha/Autêntica, e “Doutor Glas“, um dos romances favoritos de Braga, que saiu pela Arte & Letra.

“O pessoal da L&PM – para quem a essa altura eu já havia traduzido dezenas de obras literárias em inglês – me escreveu perguntando se com o meu sueco eu não poderia ler um livro norueguês que a editora estava pensando em lançar e escrever um parecer a respeito. Aceitei o convite e não apenas escrevi o parecer como também me ofereci para fazer a tradução desse excelente romance, chamado ‘Antes que Eu Queime‘, baseado nos meus conhecimentos de sueco e usando vários materiais de apoio que comprei especialmente para a ocasião”, conta Braga.

Enquanto ele traduzia o livro, a NORLA, um importante órgão de divulgação de literatura norueguesa no exterior, concedeu ao tradutor uma bolsa de viagem à Noruega. Ainda sem encontrar professores de norueguês em Porto Alegre, estudou o idioma sozinho em casa por cerca de quarenta dias antes de embarcar para encontrar Gaute Heivoll, o autor do romance. “Logo depois de voltar fui convidado a participar de um evento para tradutores no festival literário de Lillehammer, também na Noruega, e na esteira disso tudo a Companhia das Letras me convidou a traduzir a série de romances ‘Minha Luta’, do Karl Ove Knausgard”, recorda-se.

Vendo que a tradução do norueguês estava começando a se tornar uma coisa séria em sua carreira, Braga voltou à Noruega outras vezes para estudar o idioma e participar de cursos e seminários para tradutores. “No meio disso tudo, li uns quantos romances noruegueses para me familiarizar melhor com a cena literária do país, ao mesmo tempo em que eu traduzia o Knausgard. Foi um ciclo muito estranho, muito inesperado e ao mesmo tempo muito interessante para mim”, diz Braga.

As visitas à Noruega ajudaram Braga a entender melhor o fenômeno Knausgard – foram 500 mil exemplares do primeiro volume vendidos em um país de cinco milhões de habitantes e exaustivas discussões na imprensa sobre os limites de sua obra, que, afinal, se baseia também na vida íntima de outras pessoas. “Na Noruega não existem grandes desigualdades sociais, não existem grandes desigualdades de gênero e assim por diante – e essa igualdade generalizada chega a tal ponto que você nem ao menos vê pessoas com roupas muito diferentes umas das outras quando anda pela rua. Talvez por isso os noruegueses também vivam vidas mais parecidas entre si, o que a meu ver possibilita a praticamente qualquer norueguês se identificar com os aspectos da vida cotidiana e trivial que é narrada nos romances do Knausgard”, analisa. Junto ao inegável talento literário do escritor e às questões morais e éticas que a série pode suscitar, o tradutor também atribui o sucesso de público de “Minha Luta” na Noruega, ao menos em parte, à “histeria dos jornalistas para transformar tudo em polêmica o tempo inteiro”.

***

O processo de tradução de Braga geralmente passa por uma primeira versão mais apressada, ao mesmo tempo em que toma um contato inicial com a obra. Depois, ele relê o material com calma para fazer os acertos necessários e deixar o texto redondo. Durante o trabalho com “Minha Luta”, tradutor e autor nunca se comunicaram para conversar sobre as versões. “Eu vi o Knausgard em dois eventos literários na Noruega. Em um deles, não cheguei nem perto. Costumo ficar meio sem jeito nessas situações, e pelos romances eu sabia que o encontro com o tradutor de um país distante teria o potencial de se transformar em uma situação infinitamente constrangedora e sofrida para o Knausgard, a dizer por outras experiências similares que ele narra nos romances”, observa.

O segundo encontro foi em uma sessão de autógrafos. Braga comentou com ele que estava traduzindo a série e gostaria de fazer uma entrevista a ser publicada no Brasil. Na ocasião, Knausgard pareceu receptivo à ideia e disse que topava, mas o tradutor nunca mais teve resposta da agente dele sobre o pedido. “Não sei se ela não repassou o pedido ou se ele não respondeu, mas o fato é que a entrevista não foi feita porque nunca recebi uma resposta. Em todo caso, eu estaria mentindo se dissesse que estou surpreso, a dizer pela opinião que tenho sobre a personalidade do Knausgard pela maneira como ele se apresenta em suas obras”, diz.

O estilo narrativo de Knausgard, alternando descrições simples e coloquiais com trechos ensaísticos complexos, pode parecer um desafio a mais para o tradutor; é como se no mesmo universo habitassem dois ou mais níveis de prosa diferentes. “Embora essa mudança seja de fato marcante no Knausgard – o contraste entre a simplicidade e a concisão dos diálogos e a complexidade quase barroca das frases intermináveis nos trechos ensaísticos é brutal –, não tive muitas dificuldades com as transições porque eu já tinha experiência com os diálogos simples das histórias em quadrinhos e com a prosa rebuscada do século XIX”, conta Braga.

As dificuldades maiores estão nas sutilezas entre o norueguês e o sueco, que o autor faz questão de enfatizar – às vezes de maneira jocosa. O segundo volume, “Um Outro Amor”, é ambientado em grande parte na Suécia. “Uma parte significativa desse livro é um esforço da parte do Knausgard para convencer o leitor de que, apesar de serem países supostamente parecidos, a Noruega e a Suécia têm na verdade uma cultura muito diferente”, observa. Para Braga, traduzir tudo iria contra a intenção do texto original. Um norueguês consegue ler em sueco do mesmo modo que um falante de português consegue ler trechos em espanhol, mas o resultado final seria incompreensível para o leitor brasileiro. “O jeito foi, na maioria dos casos, manter as partes em sueco no idioma original, para deixar claro que os personagens estavam falando idiomas diferentes e, por meio de acréscimos extremamente breves e discretos, sugerir ou dar a entender ao leitor brasileiro o que estava acontecendo. O mesmo se aplica em menor grau para os trechos em dialeto”, diz.

Uma conversa entre o tradutor e Knausgard, que está em visita a América do Sul pela primeira vez na Flip 2016, não deve acontecer agora. Escaldado pelo fracasso da tentativa anterior, Braga não se animou a procurá-lo novamente. Por enquanto, continua a trabalhar no quinto volume de “Minha Luta”. “Pessoalmente, gosto da série especialmente pelo talento que o Knausgard tem para escrever sobre coisas banais e insignificantes. Também me agrada muito a forma como, mesmo no meio de um grande arroubo filosófico, Knausgard muitas vezes acaba constatando que é apenas mais um cara como qualquer outro e que todas as teorias mirabolantes dele podem ser completamente furadas. Tenho me divertido bastante com esses livros.”

Categorias
Cinema Entrevista

Fitas de alta periculosidade

Enquanto Chuck Norris soltava o braço nos vietcongues em “Braddock: O Super Comando” pouco mais de 30 anos atrás, a Romênia era um dos lugares mais fechados dentro da Cortina de Ferro, o grupo de países do Leste Europeu sob influência da União Soviética. Seus cidadãos viviam enclausurados dentro de um sistema totalitário em que qualquer referência ao Ocidente era proibida e delações de “traição” mesmo entre familiares eram estimuladas. A programação de TV se resumia a duas horas de transmissão de reuniões do Partido Comunista capitaneadas pelo ditador comunista Nicolae Ceausescu e muita propaganda patriótica. O único culto permitido era o da personalidade do ditador. Mas um outro mundo era possível em meados da década de 1980, no período mais sombrio do país. E esse mundo chegava aos lares romenos por meio de milhares de fitas VHS pirateadas, cheias de som e fúria de filmes como “Rambo”, “Rocky” e “Top Gun”.

Dentro dos conjuntos habitacionais em tons de cinza, a tela da televisão iluminava pequenos grupos que se reuniam para assistir a filmes americanos. “Flashdance”, “Uma Linda Mulher”, “9 ½ Semanas de Amor”, “Era Uma Vez na América”; todos eles dublados em “voice over” por uma mesma voz feminina muito aguda e levemente rouca. “Era a voz mais conhecida da Romênia depois da de Ceausescu”, lembra um dos personagens do documentário “Chuck Norris vs Communism”, filme que, em linhas gerais, conta a história de como as fitas de vídeo ajudaram a forjar o ambiente para a derrubada do ditador – e de como aquela voz misteriosa, de uma mulher chamada Irina Nistor, se tornou o símbolo da liberdade, do cinema e do Ocidente para toda uma geração de romenos. Dirigido por Ilinca Calugareanu, romena de 34 anos radicada na Inglaterra há dez, o filme foi exibido no Festival de Sundance em 2015 e está disponível no Netflix Brasil.

É um filme muito pessoal sobre o poder do cinema e da memória. As primeiras experiências de Ilinca em relação ao cinema são semelhantes às das crianças retratadas no filme. “Eu vi meus primeiros filmes através da voz de Irina Nistor, então algumas memórias minhas de fato inspiraram algumas das dramatizações que fizemos, particularmente as do menino indo para a sua primeira exibição e as das crianças brincando de luta”, conta a diretora em conversa por e-mail.

Na década de 1980, a jovem Irina trabalhava como tradutora em um birô de censura do governo romeno. Cabia a ela traduzir os diálogos dos filmes enquanto um comitê avaliava as cenas que deveriam ser extirpadas da versão final: de imagens de mesas fartas e lojas com prateleiras cheias de doces a detalhes cada vez mais ridículos, como balões coloridos que por acaso poderiam lembrar a bandeira da Romênia em um desenho animado russo. Foi nessa época que ela recebeu um convite extraoficial para dublar filmes estrangeiros em VHS. O trabalho seria feito na residência de um certo senhor Zamfir, homem de relações que trazia os filmes da Hungria. Até 1989, ela calcula ter dublado mais de 3 mil filmes, às vezes três ou quatro por dia. “As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”, diz Irina no filme. Atualmente, ela continua muito conhecida no país, onde trabalha como crítica de cinema e eventualmente participa de programas de rádio e TV.

[olho]“As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”[/olho]

De acordo com Ilinca Calugareanu, nascida em Cluj-Napoca, a segunda maior cidade da Romênia, a ideia de contar a história de Irina Nistor e dos filmes VHS surgiu por acaso. “Eu estava em um festival de cinema em Londres, sentada na plateia durante uma sessão de perguntas e respostas e eu ouvi a voz de Irina Nistor fazendo uma pergunta. Eu a reconheci imediatamente e fiquei paralisada como uma fã. Eu tentei explicar aos meus amigos quem ela era e as coisas fantásticas que ela conseguiu fazer durante o comunismo na Romênia. Foi naquele momento que eu percebi que eu deveria fazer um filme sobre ela e sobre as fitas de VHS”, conta.

No filme, Irina Nistor só surge “em pessoa” na tela no terço final da história. Antes disso, ela é interpretada pela atriz Ana Maria Moldovan, do mesmo modo que outros personagens são vividos por atores. O que há de material “real” no documentário são os trechos de diversos filmes americanos e algum pouco material da TV oficial romena, além das entrevistas com pessoas daquela geração e uma breve cena do início da Revolução Romena de 1989, que pôs fim ao comunismo. A dramatização da história, em chave realista, procura recriar o ambiente frio dos espaços públicos da Romênia em contraposição ao calor e à tensão das reuniões secretas de cinema.

[imagem_full]

Ana Maria Moldovan interpretando Irina Nistor. Crédito: Divulgação
Ana Maria Moldovan interpretando Irina Nistor. Crédito: Divulgação

[/imagem_full]

Isso abre caminho, no filme, para duas instâncias que se entrelaçam nos relatos pessoais: a memória (romena) e a imagem (ocidental). Duas passagens são ilustrativas, como a do jovem adulto que se recorda de, na infância, colocar o relógio para despertar às 5h para correr pelas ruas como Rocky Balboa e a mulher de meia-idade que conta sobre o primeiro filme a que assistiu naquelas sessões secretas, “O Último Tango em Paris”. “Não imaginava que um filme daquele pudesse existir. Foi como um raio”, ela se recorda. Os depoimentos são entremeados com cenas dos filmes – e é curioso perceber que Sylvester Stallone e Maria Schneider falavam em romeno com a mesma voz.

Em um de seus trabalhos mais conhecidos, “Introdução ao Documentário”, o crítico e teórico de cinema americano Bill Nichols escreve sobre a tendência dos filmes de não-ficção, a partir da década de 1970, de mudarem o foco de sua estratégia retórica, que “passam do apoio a representações do mundo histórico, feitas por especialistas e autoridades, para o apoio a representações que transmitam perspectivas mais pessoais, mais individuais”. Para ele, as melhores obras são aquelas que conseguem “unir relatos pessoais com ramificações sociais e históricas”. O relato pessoal proporciona ao documentário uma credibilidade que, de algum modo, se estende aos temas abordados. Nas palavras dele, é a “aceitação sincera de uma visão parcial; situada, mas apaixonada”.

A capacidade que “Chuck Norris vs Communism” tem de unir relatos pessoais a essas ramificações sociais e históricas se deve, em muito, à solução encontrada de encenar com atores as memórias e situações daquele período. Ilinca conta que, nos dois primeiros anos do projeto, a equipe se concentrou em filmar as entrevistas. “Eu queria encontrar a história. Meu empenho na época era encontrar o melhor jeito de contá-la, trazer aquela década de volta à vida e levar a audiência por uma jornada emocional. No início eu pensei em fazer uma animação, mas ‘Chuck Norris vs Communism’ é um filme sobre filmes e o poder que eles têm de nos comover e mesmo nos transformar, então qual jeito melhor de contar essa história do que por cenas ficcionais? Ficou bastante claro para mim que dramatizações com atores eram a melhor escolha, e foi muito emocionante para toda a equipe de criação trabalhar com esse conceito e com as referências aos filmes em VHS que a gente assistia nos anos 1980”, lembra.

Menciono a ela que, nessa mesma época, quando chegaram os primeiros videocassetes ao Brasil, até o início dos anos 1990, a maioria dos filmes VHS que circulavam por aqui também eram piratas. E os títulos que faziam sucesso eram exatamente os mesmos que na Romênia. A diferença, claro, é que o Brasil passava por um momento de abertura, enquanto a Romênia se fechava cada dia mais. “Acho que nós estávamos esperando que o documentário fosse encontrar esse tipo de universalidade e falar com todas as pessoas que amam cinema”, diz a diretora. “É fantástico que nós estivéssemos vendo os mesmos filmes nos anos 1980, mas em contextos tão diferentes e extraindo tantas coisas diferentes deles. Quer a gente os tenha visto como uma janela para o Ocidente, como exemplos de democracia, como escape para um mundo colorido e cheio de ação ou como puro entretenimento, esses filmes nos deixaram uma marca, e agora eles conseguem nos unir em um diálogo como esse, por exemplo”.

Em um dos depoimentos do filme, um personagem diz, sobre o regime de Ceausescu, que aquele era um país mantido na ignorância. Mais do que as “histórias” daqueles filmes em VHS, o impacto, para essas pessoas, era ver um DeLorean na tela da TV ou descobrir como vida se desenrolava nas ruas americanas. Era um evidente contraponto às filas pela comida, à falta de energia elétrica e ao estado de constante vigilância do regime comunista.

É curioso que, nos dias que antecederam a Revolução Romena, no final de 1989, Ceausescu tenha perdido também a força de sua imagem. No YouTube é possível encontrar as cenas do último discurso público do ditador, em 21 de dezembro: diante de uma multidão que, num crescendo, começa a vaiá-lo, seu rosto muda de expressão. Aparvalhado, estende a mão e pede calma. A câmera da TV oficial – que transmitia ao vivo para milhões de pessoas naquele momento – desvia do palanque e sobe para mostrar o céu. Embaixo, grupos avançam em direção ao prédio do Comitê Central. Aquela foi a senha para o fim do regime. No dia de Natal, Ceausescu e sua mulher, Elena, seriam fuzilados sob acusação de genocídio e abuso de poder. As imagens da sentença e da execução foram largamente divulgadas pelo mundo na ocasião e continuam disponíveis na internet.

Pergunto a Ilinca se há alguma intenção política no filme, principalmente ao mostrar o quanto o regime havia se tornado ridículo em alguns momentos. “Eu não acho que o filme tenha uma agenda. Acima de tudo, é um filme sobre o poder e a magia do cinema. Mas, claro, ele se passa na Romênia comunista, em uma das décadas mais ásperas do regime e ilustra como o sistema funcionava – ou, melhor dizendo, como não funcionava, como a polícia secreta estava tecendo uma teia de medo e paranoia e como a censura estava se tornando totalmente absurda, e em geral como o regime estava se despedaçando e sendo devorado por dentro” diz a diretora. “Não era nossa intenção fazer um documentário histórico, mas queríamos dar vida a um contexto à história de Irina e das fitas de VHS e esperamos deixar a audiência com algumas questões interessantes no final”, conclui.

Categorias
Perfil

O crítico

Um painel ocupa a parede mais ampla da sala da casa de Rubens Ewald Filho, quase 71 anos, o crítico de cinema mais conhecido do país, rosto do Oscar na TV brasileira por mais de três décadas. A imagem na parede mostra um set de filmagem, a atriz principal à frente, imponente. Mas não é nenhuma diva de Hollywood. O nome dela é Vanja Orico (1931-2015) e a cena é de “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, vencedor do festival de Cannes de 1953, o maior expoente dos filmes de cangaço, gênero conhecido como o faroeste brasileiro. “Vanja era uma pessoa completamente doida”, diverte-se Rubens. Rubricas como essa se repetem na longa conversa com o crítico em sua casa, numa tarde de sábado chuvosa e abafada em dezembro passado.

Na noite anterior, Rubens havia perdido a amiga Nydia Licia, atriz e diretora teatral falecida aos 89 anos, a quem considerava uma espécie de “madrinha” no mundo artístico. “É, tenho um velório para ir hoje.” Ele mal havia se recuperado do choque pela morte de Marília Pêra, ocorrida exatamente uma semana antes. Rubens considerava a atriz mais que uma amiga, uma “cúmplice”. “Ela era uma estrela, uma figura única, cantava, dirigia. Marília foi um mito do teatro brasileiro, a gente nunca achava que Marília fosse morrer. Ela ia estar com 90 anos representando, dirigindo”, diz. Na opinião dele, Pêra foi uma artista até maior que Fernanda Montenegro. “Fernanda é uma senhora atriz, mas nunca dirigiu, não cantava, era outro lance”.

Rubens conta que se aproximou de Marília Pêra quando escreveu um roteiro baseado em um livro de Mario Prata e a convidou para o papel principal. Por algum motivo, os direitos do filme foram parar nas mãos de outro produtor, e a produção acabou nunca saindo. “Marília achou que eu havia dado para outra pessoa, imagina! Mas isso nos uniu”, conta. Ele lembrou a história no Festival de Gramado de 2015, ocasião em que a atriz foi premiada. Marília já estava doente, mas não falou sobre isso para ninguém. “Foi a despedida dela. Ela estava linda”.

Rubens mora sozinho em uma casa confortável, algo rústica, em um condomínio fechado em Cotia, a cerca de 30 quilômetros do Centro de São Paulo. De lá ele só costuma sair para ir ao cinema. Filmes nacionais de grande apelo, como as comédias da Globo Filmes, ele prefere ver junto com o público nas salas de cinema dos shoppings mais próximos (Raposo e Granja Vianna). Ele tenta ir ao máximo possível de cabines (sessões fechadas para a imprensa), que costumam acontecer pela manhã em cinemas mais centrais em São Paulo, mas o trânsito da rodovia Raposo Tavares, ligação entre Cotia e a Capital, está cada vez pior. Quando consegue chegar, aproveita para emendar dois ou três filmes na sequência, geralmente no shopping Frei Caneca.

Além da grande imagem de “O Cangaceiro”, inúmeros quadros de filmes ocupam as paredes da casa, inclusive as do banheiro – em um deles há um pôster com dedicatória do ator John Forsythe. Pilhas de DVDs e revistas se concentram numa espécie de mezanino que faz as vezes de pequeno escritório e sala de projeção (ele vê os filmes em uma TV comum de tela plana, diante de um sofá bastante próximo ao aparelho). Ultimamente tem visto muitos filmes enviados pelas distribuidoras em plataformas digitais. “Adoro Vimeo. Esse filme filipino de quatro horas e quinze eu vi no Vimeo”, diz, em referência a “Norte, O Fim da História”, de Lav Diaz.

Rubens prefere ficar em casa – “eu e meus filminhos”. A ele não interessa aparecer em colunas sociais ou virar nome de prato no restaurante Paris 6. “Você não me vê em boate, em estreia de filme… eu só saio de casa pra ir ao cinema ou ao teatro. Não vou a coquetel, não vou a nada. Não é minha proposta sair na Caras, não tenho o menor problema com eles, me tratam muito bem, mas esse tipo de coisa eu fujo como o diabo da cruz, eu vou cada vez menos”, diz. Na casa, comprada na época em que foi executivo da HBO, Rubens recebe a visita da empregada três vezes por semana (frequência que ele pretende diminuir por conta da crise econômica, que já lhe tirou alguns trabalhos) e eventualmente de um jardineiro. A piscina não parece ter sido utilizada nos últimos meses. Um vendaval havia derrubado duas árvores do terreno recentemente. Pergunto das visitas, que são poucas.

“Mas você tem bastante amigos”, digo.

“Estão morrendo. Um por semana.”

[imagem_full]

Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato.

[/imagem_full]

O cinema é a única janela para as memórias da infância de Rubens, nascido e criado em Santos. Ele costuma dizer que nunca jogou bola na rua e nunca teve amigos quando era criança. A diversão eram as sessões de cinema e as horas e horas recortando os anúncios dos filmes no jornal e montando sua própria programação de cinema. “Até os nove anos eu não lembro nada a não ser os filmes que eu vi. É uma infância bloqueada, é como seu eu tivesse nascido com nove anos. Eu só tinha os filmes para me segurar, e eu começo a anotar num caderninho, de nove para dez anos. É por isso que eu tenho todos os filmes que vi”, recorda-se.

No final de 2015, essa conta chegava a mais de 35.300 filmes assistidos, uma média que nem vale a pena tentar estabelecer, de tão fora da realidade de uma pessoa comum. Rezava a lenda que Rubens assistia a dois ou mais filmes ao mesmo tempo – o que ele confirma. “O segredo é simples: se você está vendo um filme em português e outro com legenda, é fácil seguir. O jovem hoje faz cinco coisas ao mesmo tempo e isso é absolutamente normal para eles. Eu só estava diante do meu tempo, nada mais”, brinca. Hoje, sem precisar editar guias de filmes, ele parou com esse hábito.

[olho]”Até os nove anos eu não lembro nada a não ser os filmes que vi”[/olho]

Além dos caderninhos, quando criança Rubens fazia um livreto só com filmes do Oscar, outro só com diretores. Como em um romance em que as premissas da trama são lançadas no primeiro capítulo para serem retomadas ao longo da história, décadas depois Rubens lançou um dos mais importantes livros de consulta sobre cinema no Brasil, o “Dicionário de Cineastas”, editado pela primeira vez em 1977. “Na verdade tudo já tinha a semente”, observa.

Duas revistas foram fundamentais em sua formação: a “Filmelândia”, adaptação da americana “Screen Stories”, que trazia roteiros de filmes adaptados como uma pequena novela; e a “Cinelândia”, versão brasileira de “Modern Screen”. Ambas eram editadas no Brasil pela Globo, e os editores locais recheavam esta última com informações sobre a vida dos diretores e incluíam filmes de outros países, como França e Argentina. “O que importava não era se o artista ia se separar ou não. Tinha isso, mas tinha também Hitchcock, John Ford, Cecil B. DeMille… quer dizer, ainda garoto eu consegui pegar esses diretores graças a isso. Você tinha uma informação de cinema que te permitia ser autodidata, que foi o que aconteceu, eu fui atrás de livros. Aprendia línguas muito fácil: francês, italiano, inglês. Isso tudo foi o alimento para eu querer correr atrás, porque era impossível sonhar em fazer cinema. Não existia, né? A chanchada terminou e aí veio um nada e só depois o Cinema Novo, que vem com perseguição de governo e tudo mais”, conta.

Rubens não faz questão de esconder como a relação com a família – “extremamente repressiva” – era difícil. Quando criança, os pais o levavam ao cinema – ele lembra que iam todos juntos, mas o hábito de recortar e colar jornais e revistas era motivo de luta constante com a mãe. Ela achava tudo aquilo “uma porcaria”. “Era aquela família, que era muito comum na época, que quem mandava era a avó, sabe? A avó era uma bruxa. Quando eu escrevi a novela ‘Drácula’, eu pus a Cleide Yaconnis fazendo a minha avó. Quando eu fiz ‘Éramos Seis’ também tinha uma avó que era… eu tentei pôr pra fora diversos fantasmas”, diz.

Rubens diz que não tem mais família. Cortou relações com o irmão, a quem acusa de ter se aproveitado financeiramente dele. Consequentemente, não fala mais com os sobrinhos. Cuidou dos pais na velhice e levou a mãe, Elza, para viajar. A infância em Santos foi abastada, a família era dona de fazendas de banana no litoral. O pai, que gostava muito de praticar esportes, foi presidente do tradicional Clube de Regatas Saldanha da Gama. Aos 60 anos, porém, Rubens pai quebrou. “Ele era um homem acostumado a mandar, acostumado a ter tudo, também acostumado a trair a minha mãe com vedetes do teatro de revista – não tô julgando nada, se ele era feliz assim não tenho nada com isso… enfim, ele era um conquistador. Mas quando perde tudo ele se senta numa cadeira e nunca faz mais nada. Passa vinte anos assim até morrer com 80”, lembra.

Muitas vezes, Rubens narra suas recordações usando verbos no presente, como se alguns fragmentos do passado voltassem a acontecer no momento em que sua fala é projetada. Uma pergunta objetiva pode dar margem a uma longa digressão em cima de uma lembrança periférica; mesmo em seus e-mails ele emenda uma frase na outra obedecendo somente ao fluxo de seu pensamento. Ele é mais alto e mais corpulento do que aparenta na televisão – muito de sua saúde se deve, segundo ele, à natação que praticava na juventude. Voltou a fazer exercícios regulares nos últimos 15 anos e procura levar uma vida saudável. Parece estranho dizer isso, mas a indefectível barba lhe dá uma aparência de menino.

“Como é curiosa a trajetória de vida”, ele diz. Para um pouco, suspira e retoma o fôlego. “Eu não planejei ficar sozinho, mas fiquei. As pessoas nem sabem porque eu nunca conto isso, mas eu fui casado… e ela faleceu de erro médico. Quer dizer, mais uma coisa desagradável da vida, uma coisa que te marca… aí você não quer nada mais.” Ao final da entrevista, retomo o assunto do casamento, mas Rubens fica muito desconfortável. “É uma coisa triste, não vejo porque falar. Dá raiva, dá tudo, desperta as emoções que você por tanto tempo controlou.” Eu não peço mais detalhes.

[imagem_full]

Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens em Hollywood. Crédito: Rafael Roncato

[/imagem_full]

No domingo, dia 28, quando entrar no ar direto de Los Angeles pelo canal pago TNT para apresentar e comentar a entrega do Oscar, Rubens Ewald Filho terá participado das transmissões de 33 edições do prêmio pela TV brasileira. Embora as sementes estivessem lá na infância nos caderninhos, ele também não planejou ser o “crítico do Oscar”. “Pois é! Por que não me chamam para apresentar o prêmio Davi de Donatello?”, brinca. Depois volta a falar sério: “É o ônus que eu tenho que carregar”, admite. No passado, Rubens não gostava quando ficava sabendo de colegas de crítica e jornalismo que o consideravam “vendido” a Hollywood. “Mas todos eles voltaram atrás. A melhor maneira de conviver com isso é estar com a cabeça sossegada. Nesses dois últimos anos, se você for ver o que eu tenho falado mal do cinema americano, é muito forte. Nunca deixavam antes. Hoje eu critico abertamente… não que eles se incomodem com isso.” E solta uma gargalhada.

O crítico de cinema Inácio Araujo, da Folha de S.Paulo, foi contemporâneo de Rubens no início de ambos no Jornal da Tarde. Para ele, a associação da imagem do colega, hoje amigo, ao Oscar é muito justa e quase obrigatória, por todo o trabalho que ele fez nessas últimas décadas. “Para mim, uma transmissão do Oscar, que é coisa muito chata, diga-se de passagem, ficaria insuportável sem o Rubens”, diz. E conclui: “Tínhamos maneiras bem diferentes de ver o cinema, mas acho que o tempo apagou essa distância. Distância que era muito boa”.

Rubens começou sua carreira de jornalista escrevendo para o jornal A Tribuna de Santos. Cursou a graduação em jornalismo ao mesmo tempo em que fazia faculdade de direito pela manhã – “tenho carteira e tudo” – e história e geografia à tarde. No final dos anos 1960 chegou a São Paulo para trabalhar no Jornal da Tarde. Era copidesque no caderno de Variedades, mas também produzia reportagens e críticas. Foi contemporâneo do crítico e diretor Rubem Biáfora – um de seus grandes inspiradores. Nessa época, começou a conhecer as pessoas que orbitavam a produção de cinema e teatro no Brasil. Uma dessas pessoas foi o diretor Walter Hugo Khoury, que o levou para a frente da tela.

“Eu estava no Jornal da Tarde e passa o Walter Hugo Khoury, olha pra mim e diz: ‘você tem a cara muito boa’. No dia seguinte eu estava filmando”, diz. Rubens chegou a participar de “Amor, Estranho Amor”, o clássico maldito de Khoury em que a jovem Xuxa Meneghel contracena lascivamente com um menino de 12 anos. A experiência de ser requisitado por sua aparência física abriu uma nova perspectiva para Rubens. “Eu era meio gordinho e toda aquela repressão familiar, a avó, não tinham me dado autoestima nenhuma. Eu me achava um horror. Minha autoestima até hoje não é muito alta. Eu não conseguia me gostar”, conta.

Para ajudar a resolver essas questões, até tentou a psicanálise nos primeiros anos em São Paulo – passou por dois analistas, mas a experiência não foi adiante. “A análise me ajudou a raciocinar, a pensar. Isso eu peguei meio rápido, foi útil, mas eu não consigo ficar muito preso. Tem um momento em que o analista passa a te irritar. Eu podia entrar mudo e sair calado e acabou”, lembra. E dá uma banana: “Aham, meu rico dinheirinho!”

Para um jovem no Brasil da década de 1970, o cinema representava uma abertura e trazia algo de resistência ao momento político da ditadura militar. O fato de dominar outras línguas o ajudou muito a entrar a fundo nos filmes da Nouvelle Vague, da Comédia Italiana, na obra de Federico Fellini, até hoje seu diretor preferido, e nos novos cinemas de diversos países. Era um período de efervescência, para usar sua expressão. Inclusive no Brasil. “Para uma pessoa jovem, não há como não gostar do Cinema Novo”, diz.

foto
Rubens, à direita, ao lado de Rubem Biáfora, nos anos 70. Crédito: Arquivo pessoal

“Rubens tem fome de cinema”, diz o professor Máximo Barro, da faculdade de cinema da FAAP. “Aceitando ou não o que ele estava escrevendo no jornal, a gente pelo menos sabia que ele tinha visto o filme.” Na época, não era raro aparecer nos jornais críticas baseadas em publicações estrangeiras ou “de ouvir falar”. Rubens chegou a ser professor de cinema na FAAP na época da criação do curso, mas ficou por pouco tempo. Anos depois, voltaram a trabalhar juntos na Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que Rubens coordenou. “Ele é uma pessoa que leva muito a sério aquilo a que ele se dedica”, afirma Máximo.

A chegada à Globo, no início dos anos 1980, catapultou a imagem de Rubens como crítico de cinema. Na interpretação dele, a TV o queria para “falar as verdades” nos anos de abertura política. “Eles me usavam – num bom sentido, e eu concordei com isso – em falar coisas que a única pessoa que falava em televisão era eu. Criticar alguém, por exemplo”, diz.

[olho]”Estavam querendo proibir um filme e eu falei: ‘Não tem nada que proibir, o filme é tão ruim que as pessoas já vão fugir da sala, não vão nem aguentar ficar até o final’”[/olho]

Um dos alvos da crítica foi o diretor Neville D’Almeida, diretor de “Os Sete Gatinhos”, adaptação da obra de Nelson Rodrigues. “Fiz uma crítica no Jornal da Globo. Estavam querendo proibir o filme e eu falei: ‘Não tem nada que proibir, o filme é tão ruim que as pessoas já vão fugir da sala, não vão nem aguentar ficar até o final’. Você sabe que tempos depois eu fiquei sabendo que o Nelson Rodrigues estava assistindo ao jornal, passou mal e quase morreu vendo o meu comentário?”, lembra. Segundo Rubens, Neville ficou com ódio dele por muitos anos até que o diretor reconheceu que o filme era ruim mesmo e não fazia sentido ficar brigado.

A transição dos comentários sobre cinema na Globo para a cobertura do Oscar veio com um episódio curioso. Quando a atriz Ingrid Bergman morreu, em 1982, Rubens foi chamado às pressas para fazer uma passagem ao vivo, algo que ele não estava acostumado. Tudo armado, a transmissão começa. “A Leda Nagle fala ‘o cinema perdeu blá blá… Rubens, o que você acha?’ aí eu começo a falar e a câmera tinha se afastado, eu não usava óculos na época e não enxergava nada, então eu fiz assim [olha para baixo em silêncio, lê um papel] e retomei. Na saída estava o chefe do jornalismo dizendo o seguinte: ‘Puxa vida, até que enfim você se emocionou com alguma coisa. Você gostava muito dela, né’. Eu falei: ‘Muito, muito’. Mal sabia o pânico, que eu tinha pensado ‘me fodi’, vou errar aqui. E eles encararam como emoção, olha que bonito! Como as pessoas se enganam!”, ri.

Das transmissões do Oscar, a fase preferida de Rubens é com Marilia Gabriela no SBT, onde fez a cobertura por oito anos. Atualmente, na TNT, ele gosta da parceria com a âncora Domingas Person e com o fato de não precisar nem traduzir nem fazer nenhuma passagem. “Ir a festival é outra coisa que me encheu o saco. Para Cannes eu fui 23 anos seguidos, e para mim era a coisa mais importante que tinha. Para conseguir ir pela primeira vez, eu fui sorteado pela Air France, ganhei a passagem, o resto o jornal pagou com toda dificuldade.” Lá ele entrevistou “quase todo mundo”: Godard, Truffaut, Kurosawa.

Hoje, no entanto, já não sabe mais que caminho Cannes quer seguir. “O que tem de porcaria em circuito de arte é um absurdo, eu não sei como as distribuidoras sobrevivem, porque aquilo não se paga.” O último vencedor do festival francês, “Dheepan”, ele considera “um filmeco”. Para ele, a entrada das celebridades nos festivais, que ocupam as atenções da imprensa e das redes sociais, tornou-se até mais importante do que os filmes exibidos. “Imagina fazer aqueles tapetes vermelhos, que só falam idiotice. O que eu mais odiaria na vida seria fazer tapete vermelho. Eu sempre me recusei a fazer. Não quero, é uma fria, um horror”, diz.

[imagem_full]

Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Parte do acervo de DVDs e Blu-rays na casa de Rubens. Crédito: Rafael Roncato

[/imagem_full]

Duas impressões são mais evidentes quando Rubens fala de Hollywood. A primeira é que nada mais – o cinema, as premiações – tem muita importância, tudo está meio diluído. A outra é que o jeito de fazer cinema é muito diferente. “Existia uma Hollywood de estúdios, que acaba na década de 1960, que eu ainda consegui ver quando era criança e, por causa das revistas, acompanhar. Que é um outro mundo, não tem nada mais a ver com Hollywood atual ou com a maneira de fazer cinema hoje. Com o digital, as pessoas estão reaprendendo cinema, e eu também estou reaprendendo a lidar”, diz. Ele chega a dizer que em alguns momentos se sente uma espécie de Indiana Jones que vai atrás de um mundo perdido. “São outros valores, outra estética, outra civilização. Não que seja melhor ou pior, mas é outra coisa.”

[olho]“O que tem de porcaria em circuito de arte é um absurdo, eu não sei como as distribuidoras sobrevivem, porque aquilo não se paga”[/olho]

O cinema digital, diz Rubens, trouxe outros cacoetes. Um deles é o “pseudo” plano-sequência. Sem precisar trocar o rolo de filme a cada intervalo de tempo, o diretor hoje pode criar cenas longas aparentemente sem cortes e “ir na nuca” dos personagens. “Quantos filmes você vê hoje que acompanham a pessoa andando, ou entrando em casa ou saindo de casa? Antes, em Hollywood, a pessoa estava em casa e a situação estava resolvida”, compara.

Naquela semana, Rubens havia assistido à versão mais recente de “Macbeth”, com o ator Michael Fassbender. “Macbeth é filmado com digital. Você não vê porrrra nenhuma, porque não tem iluminação, tem velas! Você vê sombras na cara deles. Como você quer que tenha interpretação – de Shakespeare! – sem a cara da pessoa? É uma escuridão, é o Macbeth das trevas… ou seja, estamos vivendo um momento de mudança e de ajuste. As pessoas acham lindo a escuridão. É insuportável! Kubrick em Barry Lyndon usava velas, mas você conseguia ver a luminosidade, e não as trevas”, observa.

Muito por conta da cobertura do Globo de Ouro, ele se obriga a ver “todas” as séries de TV e do Netflix, plataforma da qual ele gosta muito. “Eu adorei ter acesso hoje a um filme que eles colocaram ontem. A crítica do Hollywood Reporter está no ar hoje e eu já vi o filme”, diz. Das séries, sua preferida é Fargo. “É uma obra-prima, tem humor negro e fiel ao filme dos irmãos Coen. A violência muito bem resolvida, atores ótimos. A minha paixão agora é o Fargo, eu fico esperando os capítulos”, conta.

Falar das séries do Netflix leva o assunto a “Narcos” e a Wagner Moura, a quem considera um amigo. Ele se exalta ao falar das críticas ao sotaque do ator brasileiro na série, em que interpreta o colombiano Pablo Escobar. “Brasileiro não gosta de brasileiro, tem raiva, tem inveja, tem ciúme. Acha que entende de tudo. Ninguém pode fazer sucesso no Brasil que as pessoas querem destruir”. Para ele, Moura é o grande ator brasileiro hoje, alguém que nem precisa ser dirigido porque já “vem pronto”. Ele só acha uma “ideia de jerico” o projeto de Moura dirigir o filme sobre a vida de Marighella no cinema. “O que o Marighella fez? É uma tragédia.”

Além de Wagner Moura, Rubens enxerga um momento único para os atores masculinos no Brasil. “Lázaro Ramos, Caio Blat, Daniel de Oliveira, Mateus Nachtergaele, que é maravilhoso. Temos uns sete ou oito atores (de alto nível), nós nunca tivemos isso. A gente sempre teve mulheres”, diz. Entre as atrizes atuais, ele cita Deborah Secco – “muito interessante, até como pessoa” – e Glória Pires – “uma estrela”. “Se há uma coisa que eu tenho prazer é que os atores gostam de mim. Primeiro que eu os trato com muito respeito – se é muito ruim (a atuação) eu dou um conselho produtivo, eu evito detonar ator. Porque eu sei que no cinema brasileiro a culpa não é do ator. Os diretores não sabem dirigir ator, têm medo de falar com eles”, comenta.

Mesmo com as críticas, ele vê uma safra interessante de novos diretores brasileiros surgindo nos festivais, gente produzindo filmes bons, mas que não conseguem chegar ao público. “Esse filme ‘Ausência’, que ganhou Gramado, é muuuito bom. Agora, você, leigo, iria ao cinema ver um filme chamado ‘Ausência’? Não é verdade? Gente, as pessoas não têm noção, não sabem vender nada. Tem cada título brasileiro que dá terror”.

O cinema brasileiro é um terreno delicado para Rubens. Tanto que ele costuma dizer que seu filme preferido é “Limite”, do Mario Peixoto, filme experimental dos anos 1930 pouco conhecido fora dos círculos cinéfilos. “Eu acho um filme excepcional, e também é uma forma de não brigar com ninguém.” Sua abordagem em relação a filmes brasileiros que ele considera muito ruins também mudou: hoje ele simplesmente não faz mais a crítica. “Eu ligo para a assessoria e falo: ‘Olha, querida, obrigado, mas eu já tenho inimigo o suficiente…’”, explica.

Rubens não se considera um crítico maldoso ou que tem prazer em destruir um filme – o que poderia ser um bom atalho para ganhar audiência nos dias atuais, caso ele se interessasse pelo que rola no Facebook, por exemplo. De fato, a crítica dele não costuma ter esse tom. O problema, segundo o próprio, é ele ser sincero demais. “Por que cazzo eu tenho que falar a verdade? Ninguém fala a verdade nesse país!”

Se a experiência em frente às câmeras foi breve, se resumindo à meia dúzia de pequenas aparições, a carreira de Rubens como roteirista é considerável. Em parceria com o diretor Silvio de Abreu, que conheceu em meados da década de 1970, escreveu pornochanchadas como “A Árvore dos Sexos” e “Elas São do Baralho”, esta última considerada um dos grandes expoentes do gênero. Mas o seu trabalho clássico é a novela “Éramos Seis”, que teve duas versões: a primeira na TV Tupi, em 1977, e a segunda em 1994, no SBT, até hoje lembrada como uma das melhores produções de dramaturgia da TV brasileira.

Coube a Rubens vender para Silvio Santos o projeto da novela no SBT. “Eu, do jeito tímido que eu era, vender para o Silvio, o maior vendedor! E ele comprou e pagou bem pela novela, deu todas as condições para trabalhar. O Silvio (de Abreu) não podia trabalhar porque estava na Globo. Eu pus o elenco que eu queria, acompanhei a novela o tempo inteiro”, conta. Não só pôs o elenco como aproveitou para exorcizar algumas questões. “Eu tinha colocado minha avó, uma série de coisas que eu queria falar para o meu pai, coisas que eu queria falar para a minha mãe. Um diretor geralmente começa com um filme autobiográfico. Então ‘Éramos Seis’ é meu filme autobiográfico”, diz.

Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato.

Mesmo em ritmo mais lento, Rubens ainda tem muito o que fazer. Ele está preparando uma nova versão do “Dicionário de Cineastas”. “Era um absurdo não ter um livro sobre cineastas no Brasil, então durante dois anos eu fui nos arquivos do Estado de S.Paulo, eu trabalhava lá, mexendo, sozinho”, recorda-se. À época, o “Dicionário” era uma obra revolucionária e trazia, dentro de um oceano de informações, o título dos filmes originais em português – algo que o iMDB, a maior base de dados de cinema da internet, só foi fazer recentemente. A ideia agora é que o livro também tenha uma extensão online. Rubens também está preparando uma nova versão de “O Cinema vai à mesa” livro que mistura filmes e culinária.

O interesse em voltar a ser roteirista é quase nenhum, e não parece haver arrependimentos em não ter seguido uma carreira diferente – como ator, talvez. “Eu nunca quis ser ator, minha timidez é muito grande. E as propostas também não eram nenhuma maravilha”, diz. “Eu construí um personagem, que é esse aqui, com essa barbicha, com essa cara aqui, que é muito forte. E é marcado por 40 anos de carreira. Porra, eu não posso fazer outra coisa”.

No ambiente das redes sociais, pautado pelas opiniões definitivas, Rubens Ewald Filho tem pouco a falar. Sua página no Facebook – alimentada por um amigo – reproduz as críticas que ele posta em um blog escondido, e chega a uma audiência mínima. Ele não joga esse jogo, essa não é a praia dele. Mesmo assim, diz que se relaciona bem com as novas gerações que encontra nas cabines de imprensa. “As pessoas têm um pouco de medo de mim. Mas eu vejo toda essa geração nova nas cabines. Respeito a opinião deles, acho interessante. Essa turma de quadrinhos, que gosta de livros ‘young adults’, eu procuro ouvi-los falar”, conta.

A tentação de se sentir um “pastor de almas” em relação às novas gerações pode até ser grande, mas não parece ser o que lhe move. O que o anima é perceber que despertou o interesse sobre cinema em alguém. “Minha maior alegria é ir num festival e o cara que ganhou o prêmio depois chegar para mim e falar: ‘Olha, queria te agradecer, foi você que me fez gostar de cinema, vendo a Globo em tal ano’. Eu penso que não foi tudo em vão”, diz. A impressão é que, enquanto for possível, Rubens Ewald Filho continuará fazendo o papel de Rubens Ewald Filho, o crítico de cinema mais conhecido do país. “Katherine Hepburn dizia: se você sobreviver, você vira um monumento da história. E eu acabei virando um pouquinho isso. Eu não posso me elogiar, mas virei o crítico do Oscar, que tá até hoje aí trabalhando… Enfim…”