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Introspecção e delírio em Barretos

 

“Frates Sumus Omnes”
(Todos somos irmãos)
— Lema do município de Barretos

Minha incapacidade de dizer não já me levou a muitos lugares: um namoro de dois anos, o batizado de um bebê cujo nome eu sequer sabia e, agora, a 61ª Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos.

O sol duro do meio dia distorce a Rodovia Washington Luiz, transformando o asfalto no horizonte em uma lava escaldante que poderia engolir um automóvel inteiro, uma ilusão de óptica corroborada pelas elevações da estrada que faziam o carro à nossa frente desaparecer a cada nova ladeirinha que descia. Mesmo em agosto, o calor vence o vidro fumê e o ar condicionado da Hyundai Tucson de Henrique, desconhecido abordado via BlaBlaCar para fazer a viagem da capital paulista até Barretos. BlaBlaCar é um site especializado em caronas que dosa a compatibilidade entre caroneiros através de um “blablaômetro”, onde você indica se conversa pouco, normal ou muito. Coloquei muito e eu e Henrique demos match. Ele perguntou o que eu sabia sobre a Festa e, por ansiedade e como técnica de defesa, tirei a trava da besta verborrágica que se esconde em mim e compilei um monólogo com tudo que havia lido nos últimos dias sobre o evento.

No site oficial de Barretos, a história do evento é contada em pequenos capítulos encabeçados pelo presidente em vigor em cada edição da Festa. Ou seja, a história começa com Juscelino Kubitschek, passa por Itamar Franco, FHC, Lula e culmina em Michel Temer. Tirando essa maneira sui generis de separar os eventos, a história do release é um blablabla padrão capaz de explodir qualquer blablaômetro, a história sobre como 20 rapazes autossuficientes e orgulhosos de suas origens fundaram em uma mesa de bar “Os Independentes”, organização responsável até hoje pela festa, para celebrar a cultura e o folclore local. Também era a primeira vez de Henrique na festa e ele me interrompeu com uma dúvida bem mais sincera: será que rola muita putaria?

Henrique é o turista primo da capital recorrente na Festa: indo para Barretos com o solene objetivo de pegar mulherzinha. Musculoso, loiro, com bons traços faciais e uma prosódia tradicionalmente paulista, ele exibe um quê de Nick dos Backstreet Boys — caso fosse um herdeiro da dinastia Matarazzo Suplicy. A dúvida de Henrique é legítima: os boatos que correm à boca miúda no imaginário popular são de que Barretos durante a Festa vira uma Sodoma & Gomorra com motivos country, um município inteiro movido a álcool e libido. A própria dinâmica dos campings dentro do evento, divididos em dois setores: o Casados e o Solteiros, implica uma sexualidade, digamos, expansiva.

Mas nem tudo é impulso sexual: Barretos é um dos maiores festivais sertanejos do Brasil e, também, um dos maiores rodeios do mundo. Jovens peões e duplas de cantores ascendentes tremem de ansiedade e agradecem eloquentemente a oportunidade de fazer parte da história da Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, um monumento inabalável na história barretense: nem o temporal nas vésperas da inauguração destruindo a estrutura principal afetaria o evento que, nos dias seguintes, receberia 900 mil pessoas, ofereceria 120 atrações musicais ao decorrer de 11 dias e, conforme as expectativas, movimentaria mais de 200 milhões de reais.

O fato é que a pequena cidade com uma população de pouco mais de 100 mil habitantes muda completamente seu cotidiano durante os dias de Festa: pipi-móveis são espalhados pela avenida principal da cidade (a Av. 43 – em Barretos todas as ruas e avenidas são batizadas com números), dois postos de gasolina decidem não vender combustível e viram bar (“até o fim da festa o único álcool que vamos vender é cerveja”, explica o frentista) e uma inflação lunática ocorre na comunidade hoteleira da região: no Airbnb, um cativeiro com persiana quebrada, parede descascada exibindo padronagens de infiltração e um colchão sem lençol malemal encaixado em uma cama de solteiro coberta de adesivos de princesas das Disney custava 600 reais a diária.

Henrique e eu vamos construindo as pontes da nossa amizade por conveniência — não necessariamente algo pejorativo, uma amizade construída pela circunstância, pelo contexto de uma situação pontual, sem anticorpos para sobreviver no ambiente não-controlado da vida cotidiana; enfim, uma amizade que, embora envelopada por empatia, tem data de validade — enquanto o carro acelera para o interior paulista. Cada paradouro, posto de gasolina e pedágio nos lembra nosso destino por meio de outdoors e banners com uma foto aérea da arena de Barretos, o logo da Festa e o slogan: “Viva esta experiência”. Hora de viver esta experiência, então.

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DIA I

Quinta-feira, 18 de Agosto de 2016

O calor sufocante de Barretos dá a sensação de estar andando dentro de uma lasanha: as fatias quentes de queijo segurando seus passos como uma areia movediça ou teia de aranha. Uma breve conversa com a recepcionista de óculos grande e porte pequeno me informa que Barretos é um empreendimento caro para quem não dirige: um táxi do centro até o Parque do Peão custa 60 reais, enquanto um mototáxi fica na casa dos 40. Logo vi que me locomoveria com membros do proletário e locais, usando a linha de ônibus municipal Viasa (quatro reais). Durante a semana e fora dos horários de pico, o ônibus é utilizado somente por funcionários do evento — cozinheiros, garçons, seguranças etc. O ônibus abafado usa o plástico que separa o motorista como um pequeno mural de eventos, noticiando festas paralelas durante os dias de Barretos: da Festa do Patrão, uma rave de 24h frequentada pela juventude endinheirada (nos dias que se seguiriam, cinco pessoas diferentes me fofocaram sobre o ano em que o Neymar Jr. foi expulso por tumultuar a festa) ao Segura, Cristão!, uma celebração católica de três dias.

Após duas horas de turbulência, consigo me credenciar e finalmente pisar dentro da labiríntica estrutura da Festa de Barretos. É um parque enorme, por enquanto ainda ocupado apenas por funcionários construindo as estruturas metálicas e arquibancadas, as banquinhas de comidas testando geradores e alimentando os freezers com um estoque infinito de Brahma — algumas geladas já cumprem seu papel na mão de uns peões que andam a cavalo com um latão na mão e o nome de sua comitiva bordado nas costas da camisa. Além dos cavalos, motos cinquentinha aceleram pra lá e pra cá locomovendo funcionários — às vezes três, empoleirados sem camisa — para as extremidades distantes do parque.

No fim da tarde, com uma lua cheia laranja, inchada e suculenta iluminando o céu, um homem passa o som do palco dedilhando o Hino Nacional na viola caipira enquanto uma comitiva desfila a cavalo, estreando a areia da arena. As únicas pessoas nas arquibancadas são funcionários descansando, pés descalços esticados após horas de trabalho enquanto os sapatos e chinelos repousam numa montanha encardida no último degrau. Eles se divertem com o rodeio e gritam girando o chapéu no ar. Anoitece. Casais e famílias começam a chegar.

Começa assim a Sexagésima Primeira Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos.

A Festa é gigantesca: há umas quatro praças de alimentação e bancas espalhadas por todo o parque (do esperado churrasco ao surpreendemente popular yakissoba), todas as banquinhas ignorando qualquer respeito ao conceito de direito autoral: Altas Horas Lanches, Cachorro Quente Sai de Baixo, Fantástico Lanches; Roberto Marinho teria um faniquito dando uma curta caminhada por lá. Um das barracas tinha adesivado apenas as palavras CERVEJA NA BUNDINHA, mas não tive o ímpeto de jornalismo investigativo necessário para desvendar esse mistério. O parque contém três palcos: o principal se encontra na beirada da arena onde acontecem os rodeios. Ou seja, após o fim dos duelos entre homem e touro, as entradas da arquibancada são abertas e o público desce até a arena para assistir aos shows e aproveitar a festa na mesma areia onde os rodeios aconteceram. Compreendi que a unanimidade da bota de cowboy não é um fetichismo estético ao imaginar como seria o momento em que eu pisasse naquela caixa de areia colossal com um tênis de camurça. Aliás, logo no primeiro dia, foi possível notar a diferença entre o cosplay e o respeito ao tema: as pessoas não estão se fantasiando, tampouco é ironia. Aquele é o dress code da Festa e as pessoas obedecem ao dress code. 90% das pessoas respeitam e vão vestidos a rigor: mulheres de short, bota até o joelho e fivelão; homens de camisa xadrez, calça jeans justa e bota de cowboy. O chapéu, mesmo muito recorrente, é opcional. É como usar smoking em uma festa de debutante ou branco no Ano Novo: há uma joie de vivre honesta em se vestir para o evento, uma ambição real de comemorar e fazer parte da celebração.

Com fogos de artifício e um discurso sobre como o “agronegócio paga as contas do Brasil e ser caipira deixou de ser uma vergonha”, começa oficialmente o evento. Mesmo com um público tímido de dia de semana, a festa anima de vez com o show de Simone e Simaria. Na duração de três músicas no olho do furacão da plateia, contabilizei 15 beijos de casais diferentes: uma dinâmica de micareta, olha, beija, segue a vida. Vi um menino implorar por um beijo para uma menina que negava com veemência. Como em um documentário do Discovery Channel, assistir às amigas dela se aproximando por trás do rapaz. “É hoje que vejo uma fanfic de esquerda ao vivo!”, esfreguei as mãos empolgado pensando naqueles textões virais que corriam soltos pelo Facebook. Mas o que aconteceu foi a amiga exclamando “ô, só beija o cara!”. “Beija, vai!”, insiste outra amiga. “Beija logo!”, sentencia uma terceira amiga, mais baixinha e impaciente. Logo, suas oito amigas em uníssono ordenavam um beijo com argumentos que iam do “ele não é tão feio” até “ele faz cursinho com minha irmã”. Ela beijou rápido, se desvencilhou do abraço e fugiu com as amigas aos risos enquanto o sujeito comemorava e era ovacionado entre a multidão.

Contei essa história para Laura, a recepcionista matinal de 56 anos que alimentava uma relação de amor e ódio com Barretos, e fui informado que ultimamente estavam bem mais sob controle as coisas: há uns 10, 15 anos, era comum os rapazes laçarem as mulheres, arrastarem pra lá e pra cá, “casal trepando na rua mesmo”. Ao conversar sobre o potencial ameaçador da festa, mulheres, de adolescentes até donas de casa, abordavam as investidas como um dano colateral, um obstáculo natural que se evita não bebendo demais sozinha, não andando sem amigas pelo meio de multidões, raramente (uma vez, para ser exato) sendo chamado de machismo. Em tempo de eloquência sobre o tema em redes sociais, pareceu extraterrestre tamanha complacência com o comportamento masculino: um misto de tem-quem-goste com eu-não-vou-deixar-estragar-minha-festa pontuou as respostas. Barretos abria uma fenda no espaço-tempo onde as pautas contemporâneas se dissolviam qual açúcar na chuva? O Brasil profundo pouco se afeta com as microrrevoluções protagonizadas pelos membros da quasi-intelligentsia das redes sociais? As mulheres não deixariam essas circunstâncias estragarem sua festa e existe uma lição aí sobre sobrevivência e eficácia pragmática e a diferença entre discurso e prática?

Na noite seguinte, no show Cabaré, Eduardo Costa provocaria um urro de celebração ao afirmar que “quem caça Pokémon não caça buceta” para uma arena lotada, confirmando a onipresença opressora de uma aura sexual autoimposta pelo imaginário popular da Festa. Isso atrai muitos empreendedores sexuais para a cidade: conversei com uma prostituta catarinense que, a convite de um “amigo”, veio para cá trabalhar numa casa no centro, um bordel improvisado em um sobrado para os dias de Barretos. Mesmo com os preços inflacionados, ela afirmou haver movimento constante. Sobre essa abordagem itinerante à prostituição, ela afirmou ser comum e há anos faz turnês pelas festas populares do Brasil.

A mensagem “Meu… tá rolando uma putaria BIZARRA no camping dos solteiros…” fez vibrar meu celular. Era Henrique. Logo abaixo uma foto de uma mulher virando cerveja entre suas nádegas, na caçamba de uma caminhonete. Meninas diferentes rebolando seminuas ou nuas para uma plateia de homens de bermuda e chapéu, quase todos com o celular em punho rindo e hiper-registrando a festinha. Como a entrada no camping era restrita, decidi ir para o hotel.

Voltei em um ônibus lotado de funcionários cansados que, por precisarem esperar um segundo ônibus chegar para esse sair, começaram um pequeno motim com gritos de “VAMO, MOTORA” e “EU TÔ CANSADO, MOTORA” e “RESPEITA OS CABELO BRANCO DESSA SENHORA, MOTORA”; todas as frases respondidas pelo silêncio inabalável do motora. Depois de 45 minutos, o ônibus finalmente acelerou e foi recebido com um brasileiríssimo “AEEEEE” e uma salva de palmas. Chegando no conforto do quarto de hotel, uma rápida pesquisa por “barretos” no XVideos (motivo: jornalismo investigativo) revela que a prática não é nova: é um ritual anual do camping dos solteiros a contratação de prostitutas para animar as cervejadas e churrascos. Pego no sono vendo um homem cambaleante sem camisa sofrendo para subir em uma mesa plástica de bar para dançar ao lado de uma prostituta de biquíni em um vídeo pixelado na tela do meu computador.

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DIA II

Sexta-feira, 19 de Agosto de 2016

A música sertaneja é onipresente em Barretos. Ela te acorda e te nina. No sistema de som da recepção do hotel, explodindo na caixa de som dos carros, no celular do jovem no ônibus: em todos os lugares, fazendo uma trilha sonora constante, às vezes metalinguística (na noite anterior me peguei tentando conectar no wi-fi no Parque do Peão após a morte súbita do meu 3G e, fracassando, ouvi uma música que dizia “eu quero falar com ela mas o wi-fi não deixa”). Isso é crucial. Existe uma coragem e uma urgência na música sertaneja em absorver o agora. Em “O Pintor da Vida Moderna”, Baudelaire fala que a função do, bem, pintor da vida moderna é registrar a cidade. Não como paisagem, mas suas relações, seus cruzamentos, suas exclusões, suas novíssimas funções e seus novos valores. É assim que se compreende o espírito de um tempo: sendo atemporal ao dar um mortal de costas no lamaçal do zeitgeist. É isso que a música sertaneja faz: fala de mensagem visualizada, promoção em passagem aérea, celular sem bateria; inclui todos os signos do que é ser uma pessoa existindo nesse espaço-tempo. Quando Munhoz & Mariano cantam “no shopping, no bar, até no motel você pede wi-fi”, eles fazem exatamente o que Baudelaire quer dizer quando martela no aforismo que todas as modas são encantadoras.

Segui o som sertanejo até a piscina, onde encontrei três irmãos muito parecidos mergulhando seus corpos na água. Além do mesmo biótipo, também compartilhavam o senso fashion: os três usavam óculos e boné; um deles usava um boné com os adjetivos “Bruto, rústico e sistemático” bordados na frente. Moradores de Campinas, o trio veio movido pelo seu poliamor por música sertaneja e por beber; só paravam de cantar para fazer fazer algum comentário sobre a alquimia da embriaguez através de uma bebeção especulatória, marcadas por comentários “o cara fica mais bêbado com uma dose de uísque ou de vodka?”. Eles não estavam satisfeitos em ficar bêbados, mas sim almejavam a maneira mais eficaz de fazê-lo. Tirei a camisa, aceitei a oferta de um copo de uísque e energético e me juntei a eles, nós quatro quebrando todas as regras escritas em letras garrafais ao lado da piscina:

– Proibido entrar com bebida alcoólica
– Proibido entrar de bermuda
– Proibido ouvir som alto

Conversamos sobre nossas expectativas com shows enquanto flutuávamos na água gelada da piscina: os irmãos queriam ver a apresentação conceitual de Paula Fernandes, dividida em noite, madrugada e amanhecer; eu estava ansioso para o show de Marília Mendonça e ainda ruminava o carisma e sucesso de Wesley Safadão, um paradoxo indecifrável: como um ser pode ser tão doce ao mesmo tempo que atende pela alcunha de Safadão? Chegada a hora, fomos juntos ao shows da noite no Parque do Peão, a versão funknejo de “Bumbum Granada” chiando alto para fora das caixas de som do carro.

Já no Parque do Peão, Maiara & Maraísa sobem ao palco munidas de microfones dourados, vestidos justos, um violão branco e todo o empoderamento que a soma desses elementos pode acarretar. Depois do obrigatório “Boa noite, Barretão”, a dupla dispensa a diplomacia e pergunta de cara, em dicção perfeita, para uma arena lotada, a pergunta mais (para seguir “empoderamento” no dialeto contemporâneo) triggering que milhares de casados e solteiros poderiam ouvir:

— QUEM AÍ JÁ FOI CORNO?

O sonoro “corno” ecoa em todo o Parque do Peão, talvez em toda cidade. Até onde eu sei, ecoou no Brasil inteiro, até a casa da ex-namorada que uns meses antes havia se aventurado em relações extraconjugais com um homem mais velho que, por levar sobre os ombros o mesmo nome do genitor, mesmo na meia idade era chamado pelos amigos de “Júnior”. Na base do ventre, senti todo o peso de ser traído por um homem 15 anos mais velho que eu chamado Júnior. Usando uma camisetinha genérica do “Unknown Pleasures” do Joy Division na foto de avatar. Um homem velho chamado Júnior vestindo a camisetinha dos risquinho do Joy Division. Mas antes que eu afundasse em autopiedade, Maraísa (ou Maiara) me tirou da minha digressão com um complementar:

— E QUEM AQUI JÁ CORNEOU ALGUÉM?

Novamente ensurdecido pelo urro que a plateia dava em resposta quase unânime, exceto um e outro casal que se limitava a trocar olhares de eu-não-esqueci e me-desculpa-mesmo, fui transportado ao meu histórico de dissimulações, mentiras, chats de WhatsApp deletados, pacotes de camisinha comprados para repor as do criado-mudo usadas na noite anterior. Traições impulsionadas por insegurança e egoísmo, um misto de adolescência tardia com crise de meia-idade precoce. O mundo de Maiara & Maraísa tem uma qualidade bíblica, um quê fatalista de Velho Testamento, apontando a verdade ululante que existe sob platitudes como “aqui se faz, aqui se paga”.

É impossível não se entregar à indulgência confessional quando o fio condutor do show e a essência das letras de Marília Mendonça e Maiara & Maraísa é a catarse da exposição da intimidade. Uma gigantesca terapia coletiva, bem mais acessível financeiramente e menos eficaz que a convencional, mas, Jesus, muito bonita. Dezenas de milhares de pessoas fazendo qualquer coisa em sincronia já causa um otimismo, mas dezenas de milhares de pessoas em uníssono exorcizando demônios através de fábulas sobre beber para esquecer alguém e ainda ter que pagar os 10% do garçom confirma que o sublime e o crescimento estão na força feroz da vulnerabilidade.

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DIA III

Sábado, 20 de Agosto de 2016

No sábado, além da festa no Parque do Peão, ocorre uma grande celebração de rua na supracitada Avenida 43, a principal da cidade e logradouro do hotel em que eu me hospedava. Fui acordado de maneira eficaz por um remix de funknejo histriônico e esquizofrênico que parecia tocar dentro do meu próprio lóbulo frontal. O calor justificava a fama do clima quente de Barretos: lençóis amanheciam encharcados e camisetas umedeciam em breves caminhadas até o restaurante onde já se encontravam os primeiros bêbados da manhã.

Na Avenida 43, os cowboys já montavam suas bolsas térmicas entupidas de latões trajando apenas cueca samba-canção, chapéu e bota. Se na festa oficial as roupas eram respeitadas, no centro o traje era carnavalesco: grupos de amigos sinalizavam sua unidade como “bloquinho” através de um BREJA NA BOKA bordado na parte traseira da cueca. A avenida lota muito rápido e, sob o sol do meio-dia, casais recém-formados já se beijam, turistas atiçam louquinhos de bairro que espiam empolgados o movimento e garrafas de energético e uísque começam a redecorar os canteiros. Depois de décadas de festa incontrolável que invadia a madrugada e também estacionamentos de estabelecimentos, homicídios e outras ilegalidades menos letais fizeram com que uma lei obrigasse a festa a acabar às 20h. “Mas como confiar na pontualidade e no bom senso de uma turba embriagada?”, pergunto e me apontam para a força policial rigorosa que vigia austera da outra extremidade da avenida. “Manda todo o mundo embora mesmo, spray de pimenta, bomba já tiveram que usar, mas mandam embora tudo”, sorri um garçom de uns 60 anos, uma cicatriz atravessando seus lábios. Mais tarde, eu mesmo assistiria a dois policiais dando uns tapões (o famigerado “telefone”) em um bêbado desagradável que saiu do encontro cambaleante, choroso e, definitivamente, menos desagradável. Os meios podem ser questionáveis, mas a eficácia, não. Pelas 21h a avenida já estaria vazia, só os pipi-móveis, centenas de garrafas jogadas pelo chão e quatro viaturas que circulavam a avenida como se uma guerra civil estivesse prestes a romper.

O laço da amizade de conveniência se mostrou mais forte que o esperado no momento em que recebi uma mensagem de Henrique me convidando para um churrasco no Rancho Pau Impé (confesso não ter notado o trocadilho por escrito e só notar o trocadilho ao pedir para o taxista me levar até o “Rancho Pau em Pé”). O taxista, como muitos outros barretenses, não era taxista, mas fazia o bico na temporada pra tirar um dinheiro além da sua renda normal de agrônomo. Como quem recebe uma visita, parecia bem orgulhoso da cidade, relatando os tempos passados em engarrafamento com a boca cheia, como um capricho da capital a que agora ele tinha direito.

No Rancho Pau Impé, fui recebido por Seu Benê, um empresário de 67 anos. Sem camisa, o torso truncado exibindo uma cicatriz cirúrgica do centro do peito até o umbigo, um bafo de cerveja e um óculos pendendo da ponta do nariz. Seu Benê era o anfitrião ideal: me falou sobre seu amor por Barretos, sobre seu tino comercial e sobre sua paixão pela bebida, tudo através de trocadilhos (“Vinícius, você sabe por que eu bebo?”, ele perguntava me fitando nos olhos; “Por que, seu Benê?”, eu respondia com voz de Dedé Santana, o encarando nos olhos também como se jogássemos um Jogo do Sério; “Porque é líquido”, ele respondia). Não havia ficado realmente bêbado até esse dia, então aceitei o conselho do Seu Benê de que beber era fundamental (jornalismo investigativo) para mergulhar de cabeça no modus operandi da Festa.

Devidamente entorpecidos, partimos para o Parque do Peão (o Seu Benê fez uma gambiarra para Henrique entrar de graça: colocou a pulseira na circunferência da mão e prendeu, criando uma livre locomoção que podia passar de mão em mão — lembro de marejar os olhos de embriaguez e admiração). Entre tropeços e gargalhadas, nos dirigimos à arena lotada em que alguma dupla sertaneja se apresentava com a promessa de ser o show mais “bruto e divino desse país”. O cantor pediu para desligarem todas as luzes e as pessoas ligarem as luzes dos seus celulares, compondo uma constelação, uma extensão do céu estrelado que se misturava com as pessoas. Toda essa beleza embalada por um hit sobre uma multidão não ser uma companhia, um olha-quanta-gente-e você-segue-sozinho. Impossível de descrever com adjetivos melhores que: bruto e divino.

Henrique me cutuca o ombro e me alcança um copo de energético e uísque, brindamos, sorrisos, abraços, tudo parece mágico. Vejo que, embora existam portões para entrar da arquibancada para arenas, os jovens locais, barretenses de 16 ou 17 anos, escalam a cerca de três metros até o outro lado, alguns sentam lá em cima e assistem ao show. Isso é Barretos! Eu preciso fazer isso! Tomando um gole grande para diminuir o peso e segurando o copo plástico com os dentes, escalo e sento no topo da arquibancada, uma perna para cada lado. A vista é realmente bonita e aqueles milhares de pessoas parecem ter um motivo sincero para celebrar. Sou contagiado pelo otimismo. Corro o risco de desabar meu corpo alcoolizado ao embarcar em uma expedição para tirar o celular do bolso e mandar um áudio de WhatsApp do qual iria me arrepender dias depois.

Doses insalubres de bebida alcoólica são empurradas goela abaixo enquanto a cerveja de milho esquenta no latão que passa de mão em mão dos estranhos empoleirados na cerca. Isso é Barretos! Isso é bom! Divino! Bruto! O divino e o bruto coexistindo! É isso que é o ser humano! O meio-termo entre o divino e o bruto! Estou gesticulando sozinho equilibrado na cerca de três metros de altura e decido que é melhor dar uma volta.

Faço amizade com um grupo de meninas e, como o slogan da Festa ordena, vivo aquela experiência. Chutava areia pra lá e pra cá dançando com uma garota, minha mão na cintura dela, a mão dela no meu pescoço, nossos hálitos quentes com alto teor alcóolico embaçando o olhar um do outro. Qual não foi nossa surpresa quando um relâmpago explodiu no céu e uma chuva torrencial nos atacou sem pudor, mulheres escondendo os celulares dentro de suas botas, blusas ficando transparentes e a areia da arena virando um barro. Se até então eu apenas arranhava a superfície de Barretos, esse foi o momento de comunhão: uma das minhas recém-feitas amigas arrancou um pequeno outdoor de patrocínio, uma estrutura de metal e lona de 3mx10m, e improvisou uma cabana pra gente. De braços em riste, segurávamos aquela proteção da chuva enquanto, a cada segundo, mais pessoas se aproximavam, uma chuva torrencial caindo. Mais umas pessoas arrancaram as lonas de patrocínio e quando vi éramos umas 40 pessoas esticando os braços para manter nosso abrigo, rindo e divindo cerveja quente. Todavia, o show seguia e achamos injusto com nosso momento especial assistir a ele de longe, alienados. Decidimos aproveitar o show de perto e caminhamos para perto do palco, todos os 40 juntos, num trenzinho, carregando as lonas com a mão esticada. Seguranças chegaram e nos privaram do nosso casquinho de tartaruga improvisado.

O temporal crescia cada vez mais, o vento cada vez mais forte e as gotas de chuva cada vez maiores. É quando ocorre uma evacuação em massa. Milhares de pessoas indo embora ao mesmo tempo. A fila do ônibus, até então sempre vazia, era quilométrica agora. Entrei — completamente encharcado, a chuva forçando minhas pálpebras a se fecharem — para a fila com famílias, casais e bêbados. Um primeiro ônibus estacionou e as pessoas do começo da fila começaram a entrar. Então um segundo ônibus parou na frente, no meio da estrada, abrindo a porta como quem diz “chegaí, fura fila”. Todo o ser vibe errada presente saiu da fila (inclusive eu): os amorais, antiéticos, sem rigor, fomos todos para o ônibus fácil. Enquanto o para-brisa embaçava e o ônibus chacoalhava pela estrada, fiquei conversando com um barretense como esse era o ônibus do Juízo Final levando quem não presta embora, aquela tropa de pessoas ensopando o chão do ônibus com suas roupas pingando. Ele ria e concordava com um “Nós vai morrer tudo!”. Que divino, que bruto.

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DIA IV

Domingo, 21 de Agosto de 2016

O quarto dia de Barretos começou com a inauguração do cobertor que até então sobrevivia imaculado no armário. O temporal da noite anterior baixou a temperatura e o município, mesmo sem chuva, amanheceu aos 19°. A ressaca, o cheiro de roupa úmida, o único tênis encharcado, o frio inesperado: Barretos está tentando me ensinar uma lição? Mesmo com o clima lúgubre, alguns guerreiros mantinham viva sua epopeia e arrumavam sua bolsa térmica cheia de latões em uma esquina.

Encaminhei-me cedo até o Parque do Peão, pois aquele melancólico domingo seria também a final da competição de montaria de touro da PBR, a Professional Bull Riders, organização responsável pela premiação em dinheiro de 100 mil reais e a ida de um peão para competir em Las Vegas. Além disso, seria revelado o nome do mascote oficial da PBR, um homem vestido de peão, porém com cabeça de touro, um minotauro antropofágico que todo dia se apresentava fazendo danças e palhaçadinhas em geral ao som de riffs de guitarra e à luz de pirotecnias como lança-chamas e fogos de artifício — vamos terminar logo aqui com isso, o nome escolhido foi Pibibull, ok? Seguimos.

Mesmo sendo final, a arquibancada recebia um quórum tímido de casais entusiastas de montada de touro. A maior parte do público se dividia entre duas atividades: ou estavam no palco infantil Barretinho assistindo a uma peça de teatro — que, pelo que entendi, era a Peppa Pig e sua turma recontando a Arca de Noé — ou na fila para montar no touro mecânico. A porquinha Peppa e o touro robótico que levantava o vestido das mulheres praticamente lado a lado, criando uma dicotomia um pouco assustadora.

A areia molhada na arena dificultava a montaria e permitia que os touros jogassem os peões pra lá e pra cá como bonecas de pano. A dinâmica, independente do peão, era a mesma: ao som de “Rockstar” do Nickelback, a porteira era aberta e o peão surgia no lombo de algum touro musculoso e imponente que relinchava em um breakdance infernal. Três ou quatros segundos depois o peão já se encontrava no chão e um corte seco oscilava de “Rockstar” para o dedilhado de alguma canção do The Calling. A trilha, vez em quando, mudava para “American Idiot”, do Green Day, ou “Master of Puppets”, do Metallica. A noite era dos touros, criaturas quase mitológicas de semblante apático como se ruminassem os horrores que viram e corpos inflados, como se usassem anabolizante, cada músculo do corpo pulsando no ápice de sua funcionalidade. E os nomes! Touros batizados de: Bipolar, Assédio Moral, Pikachu, WhatsApp, Playboy, Samurai, Vegetariano, Miss Cancun, Blindex, Hard Rock, Artista, Vingador, Escuridão.

Da arquibancada, eu comia um espetinho de churrasco e praticava a hipocrisia ao julgar a violência animal. Ao indagar qualquer profissional no evento, o que você recebe é um discurso pronto sobre como o boi é bem tratado, todos animais são tratados com respeito e cuidado (“melhor que muito peão”, riu um dos tratadores). No site d’Os Independentes, associação organizadora do evento, há uma página chamada Mentiras & Verdades sobre o Rodeio em que, agora por escrito, dão mais ou menos os mesmos argumentos. Ainda assim, no começo do ano, a Justiça proibiu a prova do laço e a vaquejada, limitando o Rodeio apenas à monta do boi. As visitas guiadas ao breta, oferecidas aos membros da imprensa, insinuam um cuidado e profissionalismo com o animal, mas uma breve pesquisa de Google aponta dezenas de denúncias e vídeos de maus-tratos.

Fiz a única coisa que minha preguiça e indulgência permitiam: torci para o touro em todas provas da final. Existe uma definição clara entre quem torce para o peão (pra minha surpresa, a maioria) e quem torce para o touro. Existe uma beleza em um animal acuado, assustado e atucanado querendo se livrar de um ser humano. Cada tombo era uma pequena comemoração minha, corroborada apenas pela gargalhada senil de um senhor sozinho que sentava a uns metros de mim. É como ver “Godzilla” e não torcer para o monstro. As crianças que torciam para os cientistas e prédios hoje torcem para o peão ou trabalham no RH de empresas. Por fim, o peão Dener Barbosa montou com destreza o touro Tempo Ruim na noite fria e chuvosa de domingo e se consagrou campeão.

Exibindo a fivela de ouro do PBR, conversei com o peão. Humilde e genuinamente empolgado, contou sobre seus ossos quebrados, sobre o medo que nunca se dissolve por completo, sobre a energia da arena. Perguntei se, aos olhos dele, as pessoas torciam mais para o peão ou para o touro. “Olha, eu prefiro achar que para o peão, mas entendo quem gosta do touro.”

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DIA V

Segunda-feira, 22 de Agosto de 2016

Segunda-feira toma Barretos impondo seu pragmatismo de dia útil. Trabalhadores caminham pelas calçadas; os latões somem e as mãos agora desfilam pelo centro segurando contas para pagar. Na rádio, a notícia de que um boi havia sido alvejado até a morte na noite anterior, com um tiro fatal na cabeça,dias antes de ser leiloado em prol do Hospital de Câncer de Barretos — no resto do ano, o que movimenta a cidade são os milhares de pessoas que peregrinam até a cidade em busca do seu tratamento oncológico sofisticado e inovador. É como se a realidade voltasse de férias.

A recepcionista do hotel, Ana Lúcia, conta sobre as amizades que fez ao decorrer de anos e anos de Barretos: políticos, artistas em busca da fama, pequenos comerciantes. Lista interações, parafraseia frases; é como se anualmente colasse novas figurinhas em seu álbum de visitantes. Mesmo voltando ao normal, a cidade segue com o que pode ser chamado de “uma atmosfera”.

No ônibus de volta para São Paulo, sento ao lado de Volnei, 50 anos, recém-divorciado, barretense que ia para a capital visitar o irmão. Batemos nossas impressões sobre a festa, ele como local, eu como intruso. Ele mia uma mágoa teatral sobre como o patrocínio, os camarotes e as novas gerações destruíram a essência de Barretos; esmurra o ar e critica a lei proibindo técnicas de montaria no Rodeio, enchendo a boca para pronunciar “vergonha!” várias vezes, os fios grisalhos espetando para fora do seu bigode preto.

Penso nas dezenas de particularidades que deixei passar, que sensibilidade aguçada alguma seria capaz de absorver a essência de uma festa sexagenária. Penso no peão Dener, no Henrique, no Seu Benê, na recepcionista e até na banca de “cerveja na bundinha”. O quanto conscientemente não ceder ao moralismo e ao julgamento e forçar a alteridade não é uma manifestação ainda mais condescendente de moralismo. O quanto de mim foi projetado em tudo que vi; o quanto foi distorcido, mutilado e cozinhado na panela da minha percepção.

A Festa de Barretos é uma celebração de uma cultura, um evento de autoafirmação do povo caipira, onde trejeitos e roupas frequentemente pejorativos são ressignificados. Ao mesmo tempo, é uma festa violenta em que o consumo abismal de álcool nos deixa cegos pelo cabresto do hedonismo. Mas também é o Brasil em toda sua glória sertaneja, colocando uma lente de aumento em toda ambiguidade moral do amor romântico. A Festa de Barretos é a festa que ocorre na sua cidade desde que você nasceu e é como um primo que te visita todo ano para vocês darem uma volta; é a viagem que você faz com seus amigos para fugir da rotina; é, enfim, uma grande mancha de teste de Rorschach em que cada um enxerga o que quer — ou precisa, ou prefere.

Uns quilômetros depois, o silêncio da estrada vencendo minha conversa com Seu Volnei, me peguei fitando a paisagem do interior paulista pela janela do ônibus e imaginando um homenzinho correndo ao lado do veículo, veloz e ágil saltitando entre os topos das árvores. Desde sempre resvalo para essa fantasia em toda viagem que faço. Comento com Seu Volnei, descrevendo a brincadeira como um ritual alienígena. Ele sorri e diz que também faz, desde sempre. “Acho que todo mundo é meio parecido nesse aspecto.”

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A garota de lugar nenhum

Sentada à minha frente, comendo um petit gateau, Maha Jean Mamo falava, na tarde de uma sexta-feira de setembro, sobre o pesadelo burocrático de sua vida. Sobre como não teve nenhum tipo de documento até os 26 anos, sobre o que teve de fazer para existir e encontrar soluções que seus pais, advogados, diplomatas e ministros achavam impossíveis. Sobre como tinha abandonado toda sua vida no Líbano e vindo para o Brasil sem falar uma palavra em português. Sobre como esse país tinha dado a ela tanta felicidade e tristeza em uma proporção para a qual não há cálculo possível. Sobre como, em resumo, foi sua vida de apátrida.

“Eu tinha oito anos quando comecei a perceber. Participava de corridas na escola, ganhava, mas não podia participar das competições de fora. Era escoteira desde pequena e, quando eu tinha 15 anos, nosso grupo todo foi pra Jordânia. Eu não pude ir. Era um choque atrás do outro”, me disse Maha em uma sorveteria no centro de Ibitinga, município de 50 mil habitantes no noroeste paulista.

Um apátrida é alguém que não tem nenhum tipo de vinculação a uma nacionalidade, nenhuma prova de reconhecimento oficial pelo Estado. O que aconteceu com Maha tem origem na interferência da religião com a lei. O pai é cristão e a mãe, muçulmana. Ambos nasceram e se conheceram na Síria, onde o casamento inter-religioso é proibido. Para ficarem juntos, a única solução deles foi abandonar a cidade em que moravam, a hoje devastada Aleppo, e casar em uma igreja em Beirute em 1984.

Assim, Maha e os irmãos não podiam ser libaneses, pois o pai era sírio, e também não podiam ser sírios, pois o casamento não era reconhecido pelo Estado, muito menos os filhos daquela união proibida. Foram frutos da paixão romântica com o amor impossível — tinha tudo para dar errado.

Por não existir legalmente, a vida dela e dos irmãos foi complicada em cada episódio que envolvia um documento. Estudou de favor em uma escola armênia, precisou de uma autorização especial do governo para prestar o equivalente libanês do Enem e só conseguiu entrar em uma faculdade por insistência e sorte. “Depois da escola, minha irmã mais velha quis ir pra faculdade, mas não foi aceita. Quando isso aconteceu, meu irmão abandonou os estudos.”

Ela decidiu tentar. Fez uma lista com mais de 40 possíveis universidades, entre públicas e privadas, e conta que tinha nota para entrar em todas. “Eu queria fazer medicina. Chegava nos locais e dizia: ‘Quero estudar, mas não tenho documentos. Você me aceita?’. Na primeira a que eu fui, o cara jogou papéis na minha cara.” Todos respondiam a mesma coisa: não. Até que encontrou a AUL Arts & Science University, na qual o diretor era o próprio dono e por isso as irmãs puderam estudar. Cursou o equivalente a Sistemas de Informação e a irmã, Engenharia da Computação. Mais tarde, fez um MBA.

Trabalhou dentro da faculdade para poder abater os custos do curso e fazia uns bicos onde conseguia que aceitassem um trabalhador ilegal — se não tinha identidade, menos ainda carteira de trabalho. “Meu pai era tão ‘machisto’! Não queria que a gente trabalhasse, mas a gente precisava.” O pai, um motorista de caminhão, não tinha condições de bancar uma universidade privada. Era a única opção.

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Nacionalidade: Apátrida. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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É difícil saber como é não ter documentos. A maior parte das pessoas experimenta essa sensação por uma fração de tempo quando tem a carteira roubada. E mesmo assim a gente sabe que a prova oficial de quem somos está em algum lugar. No caso de Maha, essa sensação era permanente em um país onde conflitos externos e guerras civis foram constantes depois dos anos 1980. Se ela fosse parada em um checkpoint na cidade, não teria o que mostrar. Poderiam achar que fosse, talvez, uma terrorista e mandá-la para prisão. Uma emergência hospitalar também poderia ser um grande risco.

“Eu tenho uma alergia chamada urticária em um nível muito alto. Tinha uns 20 anos e nem sabia que tinha isso. Durante o casamento de um amigo, comecei a me coçar muito. Fui ao banheiro e não me reconheci no espelho. Me levaram desmaiada ao hospital, mas não queriam me atender. Meus amigos foram em peso, pois sabiam que podiam não me aceitar. Tiveram uma grande briga lá até que uma amiga pegou a identidade e disse: ‘O nome dela é esse. Vocês vão aceitá-la e nos dizer quanto custa que nós vamos pagar’.” Maha foi atendida.

Não sei qual a cara que fiz ao ouvir esse episódio, mas ela me disse: “Agora eu tenho seguro e remédios comigo. Não se preocupe”. E riu.

Naquele momento, ela tinha deixado a sobremesa de lado e eu tinha acabado um capuccino doce demais. O ambiente da sorveteria Slechi parecia colorido e descontraído demais em contraste com a história. Apesar de tudo, Maha é vivaz, enérgica, e narra a própria história sem autocomiseração e sem aquele artificialismo narrativo de uma palestra do TED. Ela se conecta rápido com as pessoas porque transmite sinceridade. Ri, gesticula, bate no gravador e mistura algumas palavras em português no meio do papo. Tem cabelos curtos, escuros, onde se percebe alguns fios brancos, e olhos bem grandes, cujas pálpebras se abrem com força e deixam à mostra a íris escura banhada por todos lados pelo branco do globo ocular. São olhos bem abertos, de quem viu pouco do mundo, mas tem gana de ver tudo o que for possível.

Ela esgotou as possibilidades para ganhar cidadania no Líbano: tentou fazer valer a lei que dá cidadania a quem mora há mais de 10 anos no país, mas a regra nunca funcionou. Tentou alegar que era órfã, ser adotada, adotar, casar. Nada funcionou.

Se no Líbano não era possível, o próximo passo era tentar pela Síria. Foi até a embaixada, contou o que estava acontecendo e conseguiu uma advogada. “Passava sempre pela conversão do meu pai.” Mas a guerra civil síria começou e a solução desapareceu. A própria advogada se tornou uma refugiada. Maha não desistiu. Estava decidida a entrar nesse mundo em que nós vivemos, de cartas de propaganda que chegam pelo correio com nosso nome impresso a carimbos de países exóticos no nosso passaporte.

“Busquei no Google todas as embaixadas que existiam em Beirute e fui disparando e-mails contando minha história”, disse fazendo uma vozinha irônica, como que lembrando da reprodução infinita do porquê ela não tinha nenhum documento. A lista de rejeições imediatas foi longa, com exceções. O Canadá a chamou, adorou seu perfil. Maha tinha um MBA e falava quatro idiomas: árabe, francês, inglês e armênio. “Disseram que meu perfil era ótimo, que me queriam no Canadá, mas me perguntaram como iriam colocar um visto no meu passaporte se eu não tinha um. Disse que meu maior problema era não ter um passaporte e que estava lá por isso.” Não adiantou.

A embaixada americana não a chamou, mas respondeu ao e-mail e definiu pela primeira vez para Maha qual era o seu problema: um caso de apatridia. Indicaram contatos na ONU, que também não puderam ajudar – “mas a menina que me entrevistou lá é minha amiga até hoje”. Ela também passou por uma entrevista de oito horas na embaixada da Suíça. Saiu chorando.

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Maha em sua casa, em Ibitinga, com recordações e foto de seu irmão. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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Depois veio o México. E quase deu certo. Conseguiu um arranjo em que bastava a ela encontrar um trabalho e um lugar para morar para poder ir. “Encontrei um empresário libanês dono de uma cadeia de restaurantes cuja mulher também tinha sido escoteira. Ele conhecia pessoalmente o pessoal do consulado. ‘No Natal, você vai estar aqui’, ele me falou.” Era novembro de 2013 e Maha tinha alcançado a solução suprema: ela havia decifrado um problema impossível.

“Meus pais sempre foram contra minhas tentativas. Eu sempre dizia que iria viajar um dia e eles me mandavam parar de sonhar. Não queriam que eu me frustrasse. Mas quando chegou a hora de contar para minha família, meu pai se ofereceu para pagar minha passagem.” Ela contou a todos, mas… sempre tem um maldito mas. No final de 2013, algo mudou no México e Maha precisou esperar. Levaria mais tempo que o esperado, mas era certo que ela conseguiria. Então, ela relaxou.

Nesse meio tempo, Souad, a irmã mais velha, pediu o e-mail que Maha estava mandando para as embaixadas, mudou o nome e os dados e começou a disparar também. Era fevereiro de 2014, quando recebeu a ligação de um diplomata brasileiro pedindo documentos. Maha a ajudou e o inacreditável aconteceu. O Itamaraty foi eficiente: em duas semanas ligaram e pediram para Souad buscar o passaporte e o visto. Foi tão rápido que as irmãs achavam que se tratava de um esquema de prostituição internacional. “Quando ela pegou os documentos, liguei para ela e perguntei se era o nome dela com foto no passaporte. Ela disse que sim.”

Souad pegou o documento em uma quinta-feira, e seu voo foi marcado para segunda-feira. Maha correu para o Facebook e encontrou uma família brasileira que se dispôs a aceitar a irmã. A solidariedade falou mais alto, mas houve uma espécie de troca amena de medo e preconceitos: as libanesas achavam que entrariam para uma rede de prostituição no Brasil e os brasileiros temiam estar abrigando terroristas em casa.

No dia do embarque, mais um problema. “A polícia me parou. Faça alguma coisa”, dizia uma mensagem de Souad para Maha.

Era uma situação não prevista, mas que fazia sentido burocrático: como uma pessoa iria embarcar com um passaporte especial apenas com visto brasileiro, sem o registro de entrada no Líbano? A polícia federal libanesa acabou por liberar Souad, mas estabeleceu que, para sair, ela teria que pagar cinco mil dólares por cada um dos 28 anos que viveu ilegalmente no país. Agora, havia solução, mas não havia dinheiro.

Maha ativou sua rede de contatos e encontrou uma alternativa. Era ruim, mas era o que tinha. Conseguiram diminuir a multa, mas ficariam “black listed”. Ou seja: proibidas de voltar — para sempre. Depois de um mês, a irmã conseguiu embarcar. “Quando ela chegou no Brasil, meu pai me disse: ‘Esqueça o México, seus irmãos vão precisar de você lá’.” Ela aceitou.

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Foto: Gui Christ/Risca Faca

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Foi no dia 19 de setembro de 2014 que Maha, com o irmão, recebeu pela primeira vez na vida um documento que dizia quem ela era. “Senti que existia, que tinha encontrado a ‘solution’, que iria viajar antes de morrer. Era fantástico! Uma nova vida, novos horizontes, novas oportunidades.” Ela não sabia nada sobre o país que a aceitara, exceto o clichê futebol, samba e a qualidade de nossos cirurgiões plásticos. Nunca tinha ouvido falar de Belo Horizonte nem de Minas Gerais. Mas o Brasil é o Brasil. Eu sei, você sabe. Maha descobriria da pior maneira.

Sem falar uma palavra em português, quase sem dinheiro para se sustentar, os três irmãos passaram a viver juntos na casa da família Fagundes, uma família católica de classe média baixa. Márcio, o pai, deixou o segundo andar da casa para o trio estrangeiro. “Eles abriram a casa para nós, nos ajudaram muito”, me disse Maha. Ainda hoje Souad mora com eles.

Distribuíram folhetos, trabalharam em uma padaria, mas a barreira da língua se revelou grande demais para conseguirem um trabalho estável. “Eu tentei de tudo. Foi muito ruim. Sofremos muito e começamos a nos perguntar o que estávamos fazendo aqui.” Ela também se deparou pela primeira vez com moradores de rua, assaltos e assassinatos. Sua programação mental estava preparada para outro tipo de insegurança, o terrorismo, que era uma ameaça, mas não diária.

[olho]”Começamos a nos perguntar o que estávamos fazendo aqui”[/olho]

Nos primeiros sete meses, longe do Líbano, dos amigos, da família e do próprio idioma, ela penou. Maha começou a sair do casulo da proteção familiar quando recebeu a visita de sua melhor amiga, Nicole Khawand, uma das poucas pessoas que a apoiou nas tentativas de encontrar uma solução para sua não existência burocrática. “Viajamos juntas e tinha momentos em que precisava falar português, que era obrigada a me comunicar com as pessoas. Precisava parecer forte na frente dela.” O processo fez com que Maha retomasse a antiga confiança, perdida no choque inicial com o Brasil.

Mais confiante, Maha entrou em contato com a Acnur, agência de refugiados da ONU, para resolver o problema com o visto. Maha havia entrado no Brasil como apátrida, algo que a lei brasileira não está preparada para lidar. Na prática, significa renovar o visto de seis em seis meses. O objetivo era conseguir o estatus de refugiada, o que lhe permitia receber um visto de cinco anos e, mais tarde, obter um Registro Nacional de Estrangeiros (RNE) — um número no sistema que permitiu a ela ter um passaporte brasileiro especial para estrangeiros, um documento que quase ninguém conhece.

Agora, ela era um combo quase único: apátrida e refugiada. Pela força de sua história e pela coragem de se expor, Maha foi convidada pela ONU para ser a embaixadora jovem do programa de apátridas chamado I Belong. Apesar dos novos documentos, ela seguiu vivendo em uma espécie de apartheid individual. Podia viajar pelo Brasil, mas precisava de uma autorização do ministério da Justiça para ir para o exterior e de uma carta do país que a receberia. Mesmo assim nenhum país da Europa aceita o passaporte que ela usa para viajar. Em uma viagem para a Turquia, o agente da imigração do aeroporto olhou o documento e disse: “É falso”. Só era diferente.

A maior parte dos seus documentos é diferente. Na rodoviária de Ibitinga, quando nos encontramos pela primeira vez, ela aproveitou para comprar uma passagem no ônibus da meia-noite para São Paulo. O funcionário no guichê de atendimento, Claudino, segundo o crachá, pediu o documento. Ela entregou um cartão de plástico, cor salmão, um pouco maior do que uma carteira de identidade. Claudino também parecia estar vendo pela primeira vez. Olhou de um lado, virou, olhou do outro, talvez tenha lido a palavra “apátrida”, mas não falou nada. Anotou os dados, devolveu o documento e imprimiu a passagem. Na entrada do ônibus, o processo foi parecido. Voltaríamos juntos na madrugada, acompanhados por Guilherme Roger Venâncio, um estudante de artes de 22 anos que se tornou amigo de Maha. No sábado pela manhã, os dois participariam de uma oficina na sede do Google. O ônibus estava quase cheio, mas ela pediu para sentar ao lado da janela. “Gosto de sentir que estou viajando.”

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O incomum passaporte brasileiro para estrangeiros e outros documentos de Maha. Foto: Gui Christ/Risca Faca

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A vida de Maha é tão singular que ela conseguiu um emprego pelo site Catho. Desde fevereiro, ela se mudou para a fazenda onde funciona a Agro Betel, em Ibitinga. Com a vida nos eixos, ela estava em uma curva ascendente. Até que o Brasil mostrou os dentes. Na madrugada do dia 30 de junho deste ano, ela foi acordada por uma ligação: o irmão estava morto. “Eddie estava com a namorada no carro, quando pararam em um cruzamento perto de casa. Eles entregaram o carro e saíram, mas quando meu irmão falou, eles atiraram. Foi uma bala só. Pegou no coração. Ele foi morto por três adolescentes drogados. E por que são adolescentes não há justiça. Eu amo o Brasil, mas o Brasil pegou a melhor coisa da minha vida.” Seus olhos estavam marejados e foram tomados por uma rede crescente de capilares vermelhos. Paramos a entrevista.

O assassinato do irmão operou uma mudança em Maha. Antes, ela estava mais preocupada em conscientizar as pessoas para o problema dos apátridas. Agora, quer se tornar cidadã brasileira o mais rápido possível. Pelo ritmo normal, demoraria entre oito e 15 anos, o que ela não considera mais um opção. “Não quero mais estar numa prisão. Eddie morreu sem realizar os sonhos dele, sem ver meus pais novamente, sem ter uma família, sem poder viajar, sem ser livre. Eu preciso achar outra solução e pressionar para a criação de uma lei que permita aos apátridas receberem a nacionalidade.”

Maha pagou a conta na sorveteria. Mais tarde, acompanhados por Guilherme, fomos jantar na La Bella Pizzaria, um rodízio de pizza. Ela chamava os garçons de “habibi” – querido, em árabe – e ela não conseguia entender porque colocavam queijo na pizza de abacaxi. Acabou a refeição com uma fatia de chocolate branco.

Ficamos caminhando pela cidade, enquanto esperávamos pelo ônibus da meia-noite. Embarcamos, e cada um se sentou em uma fileira diferente. Maha foi direto para a janela sem ninguém ao lado dela. Cerca de 40 minutos depois, paramos em Araraquara onde mais pessoas subiram. Um rapaz de óculos parou ao lado dela. Não a cumprimentou e disse: “A janela é minha!”, com um tom de garoto mimado. Eu queria me levantar e dizer pra ele tudo o que ela já tinha passado para conseguir sentar naquela janela e poder gozar do prazer de viajar. Dos documentos, do irmão, da Síria, do Líbano. Mas não falei nada. Maha foi para o assento do corredor, mexeu um pouco no celular e depois dormiu até chegar em São Paulo. Ela só queria sentir que estava viajando.

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Escravidão moderna

No início era somente uma mensagem curta, um tanto enigmática, que parecia ter saído de um arquivo do século 19 e parado ali por engano. Em 15 de fevereiro de 2014, a Folha de São Paulo publicou uma matéria sobre dois bolivianos que, recém-chegados à maioridade, seriam vendidos como escravos numa feira livre de São Paulo na tarde de segunda. De acordo com testemunhas, os dois rapazes foram oferecidos pelo dono de uma oficina de costura aos transeuntes. Durante o processo as negociações esquentaram por divergências sobre o preço, já que o proprietário da oficina, também boliviano, insistia no valor de US$ 500 por cabeça. A situação ficou ainda mais tensa, pois moradores da região indignados tentaram libertar os dois jovens.

Ao lado da matéria havia ainda uma série de informações, da qual se extraíam alguns números. As autoridades estimam que somente na região de São Paulo vivem em torno de 300 mil bolivianos, sendo provável que a maioria, assim como os dois jovens, trabalha ilegalmente em pequenas oficinas de costura. As informações são de que nos últimos anos investigadores de uma unidade especial resgataram da condição análoga à escravidão várias centenas destes trabalhadores, empregados de fornecedores de grandes marcas da moda como Zara e Gap.

Era como se, naquela tarde, uma cortina tivesse se aberto por um breve período de tempo. Algo que acontece apenas às escondidas, em garagens cheias de mofo ou em oficinas de fundo de quintal, inesperadamente ocorreu diante de todos, no meio da rua.

Em seguida, a cortina se fechou novamente.

Uma semana após o incidente, os dois bolivianos mergulharam no anonimato do qual tinham saído. O que permaneceu foram perguntas. Como é possível que, hoje, 127 anos depois da escravidão ser proibida no Brasil, no meio de um centro econômico-financeiro como São Paulo, dois jovens rapazes serem negociados como se fossem cabeças de gado? O que se passa com este mundo bruto, medieval, que aparentemente reside no ponto cego da modernidade? Funciona de acordo com que regras?

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 20 milhões de pessoas em todo o mundo estão submetidas a condições análogas à escravidão. Elas trabalham em fábricas de tijolos indianas, em minas chinesas e em bordéis tailandeses. Costuram, cuidam dos campos ou constroem estádios para a Copa do Mundo de futebol no Catar. A fundação australiana Walk Free, que anualmente publica um índice de escravidão global, propôs em seu relatório de 2013 a cifra de 36 milhões de escravos modernos – além do trabalho forçado eles também contabilizaram casos de casamentos forçados e de escravidão por dívida. “Os grilhões da escravidão moderna”, escrevem os autores, “raramente são de natureza física”. Hoje existem maneiras mais sutis de submeter as pessoas – dívidas, isolamento e ameaças. Da mesma forma, dificilmente se herda essa condição pelo nascimento, como era no passado. Hoje é principalmente por meio de falsas promessas que elas são atraídas a lugares indignos e é por isso também que a escravidão moderna é um crime difícil de compreender – com frequência parece que as pessoas agiram por vontade própria.

Além disso, embora em quase todos os países as leis proíbam a escravidão contemporânea, somente os casos menores chegam ao judiciário. A comprovação é difícil não só em razão da frequente escassez de evidências. Muitas vezes são as próprias vítimas que permanecem em silêncio, seja por um sentimento de culpa ou por receio de vingança do contratante. Em outros casos, os governos travam as investigações, pois atrair muita atenção poderia ter um efeito dissuasivo para a economia do país.

É bem possível que essa tenha sido uma das razões pelas quais o consulado boliviano em São Paulo, que na semana seguinte à da venda mal-sucedida providenciou uma silenciosa viagem de volta à terra natal para os jovens, deixou de responder vários questionamentos. Uma equipe de fiscalização do Ministério do Trabalho, que na sequência procurou elucidar os acontecimentos, solicitou, em vão, a cooperação do consulado. Como alguns meses depois a fiscalização obteve uma compensação financeira para os rapazes no valor de US$ 6 mil a ser paga pelo ex-empregador, foi necessária a ajuda de um padre para enviar-lhes o dinheiro. O padre, que recebeu ambos em seu abrigo para refugiados até que viajassem, era o único que ainda mantinha contato com eles.

Esta é a primeira coisa que se nota nesta história estranha e cheia de reviravoltas inesperadas: qualquer pessoa que estiver à procura de Ismael e Juan Carlos precisa ter paciência.

Ismael

Era uma tarde do mês de julho. Ismael havia proposto a Praça 25 de Maio no centro de Sucre como ponto de encontro, em um banco próximo à fonte. “Dane-se o recrutador”, disse ele no primeiro telefonema, “eu não tenho medo”. Mas de repente ele cancelou, alegando que seu novo chefe o havia mandado para um ônibus noturno rumo ao sul. Ismael subitamente sugeriu pegar uma carona com ele, porém acabou voltando ao plano original. Praça 25 de Maio então, no banco perto da fonte.

Prédios coloniais brancos contornavam a praça. Meninas gordinhas com tranças grossas no cabelo, talvez com 8 ou 9 anos de idade, corriam de banco em banco. Jornaleiros, de uns 12 anos no máximo, bradavam as manchetes de seus jornais através do rarefeito ar andino, enquanto outros simplesmente mantinham as mãos estiradas, a fim de angariar algumas moedas.

Ismael aparentava estar um pouco sem fôlego quando finalmente apareceu na praça; um adolescente pequeno, magro, com o rosto marcado pelas cicatrizes de alguém que viveu muito tempo na rua desde muito cedo. Ele se senta no banco e me encara com olhos cerrados e desconfiados.

Está vestindo uma camiseta nova com o escudo da Ferrari; seus tênis são da Nike. Tem o mesmo corte de cabelo do Neymar e os braços cobertos por longas e apertadas luvas que se parecem com tatuagens – ele diz que são para proteger a pele contra o sol. Em sua mão esquerda ele tatuou um coração contendo as palavras “eu e você”, sendo o “você”, conforme explicou, sua namorada Belinda, de 17 anos, mãe de seu filho Adán, que completara 4 anos na última semana.

Ismael, nota-se logo, não é uma pessoa muito falante. Ele tem esse jeito monossilábico, meio apreensivo, peculiar a muitos jovens, quando sentem que podem estar sendo imprudentes ou fazendo alguma coisa errada.

“Desculpa”, diz Ismael, “mas eu realmente não tenho muito tempo. Faz pouco tempo que sou ajudante no ônibus noturno e meu novo chefe pressiona bastante. Se você quiser, venha comigo e conversamos pelo caminho. Caso contrário, volto em dois dias”.

E o Juan Carlos? Ele está pela cidade?

“Ele já foi embora. Está na Argentina com o pai dele. Trabalham em construções em Buenos Aires.”

Ismael. Crédito: Eudes de Santana
Juan Carlos. Crédito: Eudes de Santana

Ismael contou que Juan Carlos ficou sumido durante semanas e que depois de tudo por que tinham passado no Brasil, ele fica muito preocupado com seu “irmãozinho gordo”, como ele o chama. Os dois cresceram no mesmo bairro, nas ásperas encostas acima de Sucre. Eles jogaram futebol nos mesmos descampados e frequentaram a mesma escola, a qual abandonaram mais ou menos na mesma época, Ismael com 13 anos e Juan Carlos com 11.

Seus pais, disse ele, queriam que eles ganhassem dinheiro para aliviar as finanças familiares. Não tinha como ser diferente. Seu pai frequentou a escola por tão pouco tempo que mal aprendeu a ler corretamente. Ainda quando criança fora trabalhar carregando pedras nos canteiros de obras de Sucre. Quando suas costas não aguentavam mais o peso, ele pegou um empréstimo e comprou uma pilha de tapetes e cobertores. Há sete anos, seu pai senta-se todos os dias numa pequena cabana no Mercado Campesino. Nos dias bons, diz Ismael, ele vende dois cobertores.

Ismael trilhou os passos de seu pai. Ao amanhecer ele e Juan Carlos saíam e visitavam os canteiros de obras de Sucre. Quando precisavam, ele carregava pedras pelos andaimes ou misturava cimento. Quando Juan Carlos, um ano mais tarde, foi enviado por sua mãe ao Chile por alguns meses para ajudar na oficina de costura de uns conhecidos, Ismael partiu para Santa Cruz. Fatiou frangos na cozinha de um restaurante chinês e, em seguida, mudou-se para La Paz, onde costurou roupas tradicionais numa alfaiataria. Então, novamente Sucre, canteiros de obras, dias sem dinheiro, uma infância sem propósito. Uma vida cujo horizonte era o dia seguinte.

A Bolívia é o país mais pobre da América do Sul. Mais da metade da população vive com menos de um dólar por dia. O próprio presidente Evo Morales trabalhou nas plantações de coca quando jovem. Mais tarde, foi cortador de cana na Argentina. Ismael conhece a história. Ele aprendeu com ela que, ao fim de um longo caminho, com alguma sorte as portas de um palácio podem se abrir.

Como seria ir para o Brasil?, perguntavam-se às vezes Ismael e Juan Carlos, enquanto estavam sentados no meio-fio por aí. Um lugar onde se ganhava em um mês o que na Bolívia levaria um ano inteiro. Imagina só: trabalhar um pouco e guardar dinheiro para ter um táxi. Construir uma casa para Belinda e Adán. “Sonhávamos acordados”, conta Ismael. “Nós não tínhamos dinheiro nem mesmo para sair daqui.” Então chega a hora dele ir. “Às seis”, ele diz. “No terminal. A linha em que eu trabalho se chama 6 de Octubre.”

Como a maioria dos ônibus que ali aguardam seus passageiros na madrugada, o de Ismael também é uma geringonça velha e enferrujada. Colado no para-brisa, um adesivo da Virgem Maria ao lado de uma foto de uma mulher nua. Enquanto Ismael desinfeta os assentos com um spray, os passageiros se reúnem no portão. Crianças perambulam no entorno vendendo cobertores. Quando todos já embarcaram, Ismael coloca um filme de Kung Fu no aparelho de DVD e se coloca ao lado do banco do motorista.

“Você viu a garota na fileira 26?”, diz o motorista, que ainda estala a língua. O rosto de Ismael esboça um breve sorriso.

O ônibus passa por uma estrada local em direção à paisagem lunar sem vegetação dos Andes. Ele roda por vilas escuras, iluminadas somente pelos monitores dos cibercafés. Novamente escuridão e muitas curvas. Os faróis dianteiros iluminam as barreiras de segurança da estrada, atrás dos quais se abrem profundos vales nos quais durante o dia se pode ver os destroços queimados de ônibus que caíram. Ismael gosta de trabalhar no ônibus. É mais seguro do que qualquer coisa já fez até então, diz ele. O itinerário lhe dá paz. A sensação de não estar parado.

Ele já não precisa implorar para que alguém lhe dê um trabalho, como no dia em que o recrutador falou com ele, em janeiro de 2014. Ismael conta que ele estava frustrado, pois ninguém mais precisava dele nas obras. Ele foi até seu pai no mercado e emprestou algumas moedas para comer alguma coisa em um restaurante popular quando de repente uma mulher se aproximou. Ela perguntou se poderia se sentar ao lado dele.

Ismael assentiu com a cabeça. Era meio-dia, as outras mesas estavam cheias. “Ela era alta e tinha por volta de 40 anos”, falou. “Ela mexeu em seu caldo de galinha e me mediu de canto de olho por algum tempo. Então perguntou: você já se imaginou trabalhando no Brasil?”

Ismael olhou diretamente para ela.

“O que eu ganho com isso?”, respondeu.

“Quinhentos por mês”, replicou a mulher. “Em dólares.”

“Quinhentos! No duro?”

Era mais do que ele jamais havia imaginado.

A oficina, disse ela, pertencia a um tio em São Paulo. O negócio estava indo tão bem que estavam em busca de mão-de-obra. O turno iniciaria às 8 horas da manhã e terminaria às 5 horas da tarde. “Pense nisso”, disse ela. “Um ônibus com um futuro colega seu sai hoje à noite.”

Estrelas cadentes caíam no céu. Ismael alcança as folhas de coca do motorista, que previnem a fadiga. Vez ou outra ele salta do ônibus para pagar o pedágio.

O ônibus em que Ismael agora trabalha. Crédito: Eudes de Santana
O ônibus em que Ismael agora trabalha. Crédito: Eudes de Santana

[olho]“A ida de ônibus, a volta no próprio Toyota”, sorriu Ismael[/olho]

“Eu sei que isso soa ingênuo”, diz. “Mas eu não duvidei nem por um segundo.” Ainda do mercado ele telefonou para Juan Carlos, que assim como ele só pensava no dinheiro. A seguir, foi para casa pegar algumas coisas. Ismael entrou em seu quarto, que não tinha portas ou janelas, e enfiou algumas roupas na mochila. Aproximou-se da cama e levantou o travesseiro, sob o qual mantinha tudo que tinha algum valor num saco plástico. Sua identidade, um pente, uma foto dele com Belinda em frente a um canteiro de flores no parque.

“Não precisa chorar”, disse Ismael enquanto abraçava em despedida sua irmã Sandra, a única que estava em casa. “Esta é a minha grande chance”.

Então ele partiu para a rodoviária, onde Juan Carlos já o esperava. A mulher do mercado apareceu e comprou-lhes passagens para o Paraguai. O terceiro trabalhador, um homem chamado René, deveria subir em Santa Cruz.

Assim, eles se foram. Um país que eles nem sequer imaginavam que se falava outra língua. Nenhum de seus professores havia mencionado que no Brasil se usava outra moeda, ou talvez até tenham dito, mas eles não prestaram atenção. “A ida de ônibus, a volta no próprio Toyota”, sorriu Ismael empolgadamente. Ambos riram. O sentimento era de aventura.

As colinas de Sucre, terra de Ismael e Juan Carlos. Crédito: Eudes de Santana
As colinas de Sucre, terra de Ismael e Juan Carlos. Crédito: Eudes de Santana

Bignami

Agora eles faziam parte de um grande movimento migratório, um sobre o qual não se sabe muito. Pessoas da Bolívia, do Peru e do Paraguai espalham-se por toda a América do Sul. Circulam num zigue-zague pelos Andes, sempre atraídas por empresas no Brasil, onde se tornou mais complicado devido ao milagre econômico do início do milênio encontrar mão-de-obra local disposta a fazer o “trabalho sujo” por uma ninharia, especialmente no setor têxtil. Desde que o Brasil, em meados da década de 90, sob pressão do Fundo Monetário Internacional, abriu seus mercados para mercadorias estrangeiras, os produtores nacionais concorrem com produtores de baixo custo como os de Bangladesh e da China. A fim de reduzir custos, muitas empresas terceirizaram sua produção para pequenos fornecedores. A grave recessão que o Brasil enfrenta no momento fez com que a pressão se tornasse ainda maior.

Somente em São Paulo existem hoje cerca de 8 mil oficinas, mas “se apertarmos o cerco”, diz Renato Bignami, “aparecerá o dobro em outro lugar”.

Bignami, um inteligente advogado de 43 anos, lidera a pequena unidade especial que investiga os casos de escravidão contemporânea para o Ministério do Trabalho em São Paulo. Seu escritório localiza-se no oitavo andar de um edifício comercial. Pisos de linóleo, luzes de neon. Bignami diz escolher casos que terão grande impacto, como no caso da grife de roupas Zara: em 2011 foram resgatados 56 bolivianos de dois fornecedores que produziam blusas para a coleção de primavera da marca.

A Zara foi o maior êxito de Bignami. Os trabalhadores eram forçados a cumprir turnos de até 14 horas. Vários quartos sem ventilação. O local trancado o tempo todo. Dos US$ 65 que a Zara cobrava em suas boutiques por uma blusa, US$ 4 iam para o fornecedor e US$ 1 para cada trabalhador. “Espetacular, mas nada incomum”, diz Bignami, que manteve algumas peças no armário.

Em 2011 o controlador da Zara, o grupo Inditex, foi condenado a pagar uma multa no valor de US$ 1,4 milhão. Ao mesmo tempo, o grupo assinou um termo de ajustamento de conduta se obrigando a garantir melhores condições de trabalho entre seus fornecedores. Pelo descumprimento do acordo, o Ministério do Trabalho brasileiro aplicou uma nova multa em 2015 no montante aproximado de US$ 300 mil. A Inditex entrou com recurso.

Dezenas de milhares de pessoas por todo o país têm se unido e cooperado com a polícia nos últimos anos, que resgatou de condições desumanas, de oficinas e frigoríficos, de canteiros de obras e plantações de cana – africanos, haitianos, paraguaios, e especialmente bolivianos, frisa Bignami.

“O caso do Ismael e do Juan Carlos”, continua, “apenas nos abriu os olhos para a ponta de um enorme iceberg. Um exemplo fantástico que reúne muitas coisas: tráfico de pessoas, trabalho forçado e escravidão por dívida. E por trás de tudo isso uma potência do mercado da moda!”.

Bignami abre uma pasta e retira um relatório que ele teve acesso após a conclusão das investigações do Ministério Público. Ele acredita que o fato do ônibus em Sucre ter partido na mesma noite não é coincidência. Ismael e Juan Carlos não deveriam ter tempo hábil para desconfiar. Além disso, diz ele, faz parte da estratégia do recrutador abordar propositalmente pessoas que não têm como bancar a viagem até o local de trabalho.

Numa caderneta que chegou às mão de Bignami durante uma operação policial, o dono da pequena oficina, um homem chamado Serapio Maigua, detalha com uma caligrafia simples todos os custos de viagem em que incorreu. A soma total chega aos mil dólares. Isso incluía as passagens de ônibus, dois refrigerantes, duas refeições e uma “ajuda de custo” de US$ 800 a uma mulher que deveria assegurar que a polícia na fronteira não fizesse muitas perguntas. Segundo Bignami, em seu interrogatório Maigua esclareceu como tudo era feito.

Ele se inclina para trás.

“Mil dólares”, diz ele. “Não é muita coisa.”

Crédito: Eudes de Santana
Crédito: Eudes de Santana

Foi o dinheiro que Maigua adiantou. Ismael e Juan Carlos aceitaram, pois acreditavam que não levaria muito tempo até que pudessem quitar a dívida. Mal sabiam que tinham caído numa armadilha. “Com estas dívidas, correntes invisíveis os prenderam a Maigua”, explica Bignami.

A ideia é simples: quem deve para o empregador não pode simplesmente ir embora quando se cumpre turnos de 14 horas diárias. Quem tem dívidas dificilmente reage mal quando lhe dizem que o pagamento será menor do que o combinado. De acordo com Bignami, a dívida é o padrão que se repete em praticamente todos os casos. Sem isso, tudo o que se segue seria inconcebível.

A escravidão por dívida é um dos critérios para classificar um caso específico como escravidão contemporânea. O trabalho forçado é outro, sendo que o constrangimento pode ser praticado de diversas formas. Diferentemente do caso de Ismael e Juan Carlos, que prescindia de portões trancados. A oficina em que se encontravam ficava em Cabreúva, um buraco no interior de São Paulo.

Um lugar do qual é difícil fugir com uma mão na frente e outra atrás.

De acordo com Bignami, fala-se em condições análogas à de escravo quando as condições materiais no local de trabalho atentam contra a dignidade humana; quando, por exemplo, falta água potável, não há banheiro e cabos elétricos ficam expostos podendo causar um curto-circuito. Vale ressaltar ainda que a legislação brasileira prevê uma jornada de trabalho máxima de 44 horas semanais e um salário mínimo mensal de R$ 880. Teoricamente, ele acrescenta, o empregador já se torna passível de punição se violar qualquer um dos critérios. O caso de Maigua era tão grave que violava todos.

Ismael

“Desde o início ele foi um cara estranhamente desagradável”, afirma Ismael. “Ele nos buscou com seu carro em São Paulo, mas durante todo o caminho para Cabreúva não nos dirigiu uma só palavra.”

Ismael está sentado num banco não muito longe da rodoviária, na cidade de Tarija, no sul da Bolívia. Depois da chegada, ele lavou as cortinas do ônibus em um rio e agora aguardava pela volta à cidade de Sucre. “Eu acho que ele poderia pelo menos ter perguntado como foi a viagem”, diz Ismael.

Eles viajaram por quase uma semana. Maigua escolheu fazer um desvio pelo Paraguai, porque, atualmente, a fronteira entre o Brasil e a Bolívia está sendo monitorada com mais rigor.

“Quanto nós vamos ganhar?”, perguntou Ismael no carro.

“Sobre isso nós falamos depois”, disse Maigua.

A viagem durou cerca de uma hora e meia, até que, em Cabreúva, eles entraram em uma rua secundária. Maigua estacionou o carro em frente a um sobrado de esquina, cujos muros estavam cobertos por graffitis. Atrás das persianas azuis abaixadas, encontrava-se, no andar térreo, a oficina. De suas máquinas de costura, uma dúzia de jovens rostos bolivianos olharam para eles.

[olho]“Eu sei, tudo cheirava a armação. Mas o que a gente poderia ter feito? Fugir? Pra onde?”[/olho]

Maigua conduziu ambos, assim conta Ismael, para o seu quarto no primeiro andar, onde eles colocaram suas mochilas. Depois ele ordenou que eles fossem para uma mesa na oficina, onde começaram logo a cortar com uma tesoura as linhas em excesso dos uniformes prontos, que Maigua produzia para uma empresa chamada Atmosfera. Em seu site, a própria Atmosfera se identifica como líder em locação, higienização e conserto de uniformes. A empresa atua nos segmentos hospitalar, industrial e de hotelaria. Desde 2011 faz parte do grupo multinacional Elis, cujos 180 mil funcionários no mundo todo, incluindo Alemanha e na Suíça, produziram US$ 1,3 bilhão.

Nada disso tinha importância para Ismael. Tudo o que lhe interessava era o salário. “E os US$ 500 prometidos?”, perguntou ele novamente em uma noite. Maigua, porém, esquivou-se. “Vocês precisam entender”, disse ele. “Eu tive despesas por causa de vocês, a viagem, a passagem da fronteira. Primeiro vocês me pagam com trabalho e depois a gente vê o resto.” Para que pudessem comprar algo para comer, Maigua lhes arranjava R$ 50. Isso ele também anotava meticulosamente em sua caderneta.

“Eu sei, tudo cheirava a armação”, diz Ismael. “Mas o que a gente poderia ter feito? Fugir? Pra onde?”

De certa maneira, eles estavam presos. Ismael pedia emprestado um telefone para ligar para sua irmã Sandra. Não precisa se preocupar, dizia ele, está tudo bem. Todas as manhãs, às 7 horas, eles iam para a oficina, depois cortavam linhas, dobravam uniformes, e os empilhavam no porta-malas do carro de Maigua. Fixada no teto da oficina, diz Ismael, havia uma câmera de vigilância. Quando Maigua achava que eles estavam muito lentos, gritava com eles. Suspendia o horário de almoço. Parecia que, nesses dias, ele estava sob forte pressão. A caderneta de Maigua estava repleta de anotações. “Só Deus está conosco”, rabiscou ele certa vez na margem de uma folha.

À noite, depois de um turno de 12 ou 14 horas de trabalho, Ismael e Juan Carlos se sentavam na cozinha com seus colegas. Eles bebiam cachaça barata e descobriram que ninguém ganhava mais do que US$ 200. Só uma pessoa, um gordão, chegou a US$ 500, diz Ismael, mas ele era sobrinho de Maigua.

Numa dessas noites o celular do sobrinho de Maigua desapareceu e reapareceu apenas na manhã seguinte quando o encontraram na mochila de Ismael. Ele diz não fazer a menor ideia de como o celular foi parar lá e que o devolveu imediatamente, mas o sobrinho de Maigua o ameaçou. A partir desse dia todos passaram a evitá-lo. Durante o dia, na oficina, ninguém mais trocou uma palavra com ele. Maigua, que logo ficou sabendo do acontecido, fazia ainda mais pressão. Alguns dias depois, quando o adiantamento que tinham recebido acabou, eles pediram um adicional. Maigua simplesmente disse que eles deveriam ter planejado melhor as despesas. Eles também passavam fome, pois os outros se negavam a dividir a comida com eles.

“Certo dia”, diz Ismael, “nós simplesmente decidimos ir embora”.

Numa segunda-feira pela manhã, depois de quase três semanas em Cabreúva, eles não apareceram na oficina. Arrumaram suas mochilas e foram em direção à rua principal, onde, num ponto, esperavam que algum ônibus passasse. Pouco tempo depois, subitamente, Maigua apareceu diante deles.

“Aonde vocês vão?”, perguntou ele.

Ismael e Juan Carlos disseram que queriam voltar para São Paulo, e lá iriam procurar por algo diferente. De repente, descreve Ismael, Maigua se tornou gentil. Tudo bem, falou. Ele disse conhecer um bairro lá, onde existiam muitos bolivianos, que ficava a poucas horas dali. Ele disse que poderia levá-los até lá.

A rua Coimbra, no Brás, onde Ismael e Juan Carlos foram colocados à venda. Crédito: Eudes de Santana
A rua Coimbra, no Brás, onde Ismael e Juan Carlos foram colocados à venda. Crédito: Eudes de Santana

O Brás, uma região ao norte do centro de São Paulo, sempre foi um local de imigrantes. Em meados do século passado as famílias vindas da Itália negociavam seu café. Mais tarde chegaram comerciantes de tecidos vindos do Líbano – em suas oficinas de costura, os coreanos se encarregavam dos trabalhos mais fáceis. Quando os libaneses se mudaram para bairros melhores, os coreanos assumiram essas lojas. Eles contrataram, então, bolivianos, que hoje, após duas gerações, ascenderam a proprietários.

No centro do Brás existe a rua Coimbra, uma estreita rua, na qual os comerciantes ambulantes oferecem suas mercadorias em espanhol. Nos postes de luz é possível ver um emaranhado de fios, parecendo ninhos, que levam energia às oficinas instaladas nos pisos superiores. No comércio local, no piso térreo, pode-se comprar máquinas de costura. Existem filiais da Western Union e restaurantes bolivianos, que trazem até mesmo viagens de ônibus em seus cardápios. A rua Coimbra se assemelha um pouco ao Mercado Campesino, onde tudo começou.

Maigua estacionou seu carro próximo à calçada. Segundo Ismael, suas mochilas com seus passaportes foram colocadas no porta-malas do carro. Alguns minutos depois eles estavam em frente a um salão de beleza. Viram como Maigua se afastou alguns metros deles para conversar com outros homens. Às vezes eles olhavam para os dois, como se os examinassem. Palavras soltas no ar, que nesse momento eles ainda não sabiam o que significavam.

“Quinhentos”, gritou um dos homens.

“Muito pouco”, gritou Maigua.

“Setecentos!”

O que está havendo aqui? perguntava-se Ismael. Eles ficaram lá parados cerca de meia hora, sem que nada se passasse. Então, veio até eles uma mulher que estava passando pela rua. “Tenham cuidado”, murmurou ela, “eles estão negociando o preço de vocês!” A todo momento, ela disse, a gente fica sabendo sobre trabalhadores que ficaram doentes e que foram levados para a floresta, em vez de um médico. Sempre saem notícias nos jornais sobre homens cujos cadáveres são encontrados em valetas, sem os rins, que são vendidos no mercado ilegal de órgãos. Ismael e Juan Carlos se olharam. Seu irmão menor estremeceu.

“Tenha calma”, sussurrou Ismael, que nunca em sua vida tinha sentido tanto medo. Até aquele momento ele pensava que eles podiam vender cobertores de algodão. Mas uma pessoa? Alguém como ele?

Antonio Andrade

Eram quase cinco e meia quando o celular de Antonio Andrade tocou. Na linha, estava Jorge Merúvia, amigo de Andrade, que há muito tempo comandava um restaurante na rua Coimbra. “Você não vai acreditar, Andrade”, falou Merúvia. “Tem um cara rondando por aqui e perguntando para as pessoas se elas não precisam de dois trabalhadores. Eu chamei a polícia. Vem pra cá!”

Não existem muitas pessoas em São Paulo que conhecem o dia a dia da comunidade boliviana melhor do que Antonio Andrade, que há mais de 20 anos veio de Sucre para o Brasil por meio de uma bolsa de estudos. Andrade, um tipo de muitos amigos, cabelos escuros compridos, estudou design de comunicação. Hoje administra um site que informa sobre a comunidade dos bolivianos em São Paulo. Andrade mesmo se define como um híbrido, meio jornalista, meio ativista. Ele quer informar, mas ao mesmo tempo trata-se de ultrapassar as barreiras que separam os bolivianos da sociedade brasileira.

Foi Andrade quem providenciou uma cama para Ismael e Juan Carlos em um abrigo para imigrantes de uma igreja. “Eles estavam totalmente acabados”, conta, numa manhã de agosto do ano passado em seu pequeno escritório. Na delegacia, trancaram os dois numa cela, enquanto Maigua tentava negociar algo com os policiais. “Como se fossem eles os criminosos!”, conta Andrade.

Ele diz que pensou por um momento em trazê-los consigo para casa, mas depois pensou que não seria conveniente. Andrade tem três filhas, a mais nova acabara de fazer 9 anos e a mais velha tem 15. Segundo ele, “eles não são meninos fáceis”. Nos dias que se seguiram, ele fez uma espécie de pequena entrevista com eles. Foi aí que ele notou as cicatrizes no antebraço de Ismael.

“Eu perguntei: ‘o que você tem aí?’ Ele respondeu: ‘nada, por quê?’ Então, eu insisti: ‘não tente me esconder nada, eu mesmo usei droga. E as suas tatuagens? Malfeitas assim, as pessoas só fazem na prisão.’”

Andrade sorriu ironicamente quando ele soube que Ismael usava luvas de couro em Sucre.

“Ah, claro”, disse ele. “Por causa do sol.”

Como Andrade preferia se informar por si mesmo sobre Ismael e Juan Carlos, por volta do meio-dia ele resolveu ir à Cabreúva. Ele queria ver se Maigua falaria com ele.

O problema, afirma ele, é a falta de conhecimento das pessoas. Elas não fazem ideia que os trabalhadores escravos que se dirigem às autoridades recebem do Estado uma autorização de residência. Que lhes cabe como forma de compensação pela injustiça sofrida, direito a cuidados médicos, subsídio para aluguel e um salário mínimo. Ninguém diz isso a eles. Quando um patrão ouve que alguém quer fugir da ilegalidade, eles começam a ameaçar a pessoa. Pense nas suas dívidas! Na sua família. Andrade relata que quase todos se conformam. Talvez por medo ou por ignorância ou até mesmo porque o seu salário miserável ainda é melhor do que o que eles ganhariam em seu país.

Antonio Andrade. Crédito: Eudes de Santana
Antonio Andrade. Crédito: Eudes de Santana

Maigua

Depois de duas horas, Andrade estacionou seu carro em frente à oficina de costura. Ele desceu do carro e olhou pela porta entreaberta. Um homem veio até ele, talvez 30 anos, pequeno e robusto, de bermuda e chinelos.

“Señor Maigua”, perguntou Andrade.

“O que você quer?”

“Queria saber se podemos conversar um pouco? Sobre a questão dos dois trabalhadores.”

Maigua veio para fora hesitante.

“Mas eu já disse tudo”, respondeu ele. Andrade, porém, insistiu. Por fim, Maigua consentiu.

Lá dentro da oficina, ouve-se o zumbido das máquinas. Uma dúzia de trabalhadores com máscaras do tipo cirúrgicas fogem ao olhar do estranho. Maigua sobe a escada estreita. No primeiro andar ele fecha a porta da cozinha. Em um canto, sobre o fogão, estão panelas que parecem que não são lavadas há semanas. “Às vezes eu tenho a impressão que eu tenho 15 crianças pequenas, que só me dão preocupação”, disse ele.

[olho]“É como no futebol: um time tem um jogador que não precisa mais. Outro está à procura. Então a gente precisa negociar a transferência. Todo mundo faz assim”[/olho]

“Como Ismael e Juan Carlos”, comenta Andrade.

Maigua balançou a cabeça.

“O dinheiro que eu dei pra eles”, contou, “eles gastaram tudo com bebida. Eles afanaram o celular de um dos empregados. Quando eu os apanhei naquela manhã no ponto de ônibus, eu perguntei: ‘onde vocês querem ir?’ Eles falaram: ‘a um lugar onde a gente seja respeitado’. O que eu poderia ter feito? Simplesmente abandoná-los ali?” Maigua olhou pela janela. “É um pouco como no futebol”, continuou. “Um time tem um jogador que não precisa mais. Outro está à procura. Então a gente precisa negociar a transferência. Todo mundo faz assim. Meu erro foi fazer isso no meio da rua”.

“Isso é que foi o erro?”, perguntou Andrade.

“O transporte deles me custou um mês de aluguel!”

É uma lógica estranha, mas Maigua afirma que queria ajudar Ismael e Juan Carlos. Ao mesmo tempo, ele queria transferir as dívidas que eles tinham com ele a outra pessoa, a fim de não ter perdas. Seus olhos se enchem de lágrimas.

“Há 30 anos”, disse ele, “eu lutei, e agora sou alvo das pessoas”.

Trinta anos. A voz embargada de Maigua ao recordar-se. O vilarejo não muito distante da cidade boliviana de Potosí, onde ele ajudava seus pais nos campos secos durante a colheita de trigo. Aos 11 anos, o primeiro trabalho em Santa Cruz, como ajudante na produção de tijolos. O segundo trabalho, em uma loja de material de construção. A pergunta era: sua vida seria assim para sempre?

Maigua tinha 18 anos quando comprou uma passagem de ônibus para o Brasil, após juntar as economias de um ano inteiro. Ainda durante a viagem, disse ele, um boliviano ofereceu a ele uma vaga em uma oficina de costura. Maigua aguentava turnos de 14 ou 16 horas de trabalho, sete dias por semana. Às vezes, conta, ele levantava às 3 horas da manhã, porque assim as melhores máquinas estavam livres. Por ser econômico e não beber ele conseguiu comprar sua própria máquina de costura. Assim ele costurava por conta própria bermudas de surf, “para Adidas e Nike”, ressalta.

Depois, em 2006, sua primeira oficina com seis empregados. Em 2009, sua primeira máquina eletrônica. Em 2012, a primeira casa, pequena, para ele e sua esposa.

A história de Maigua, da maneira como ele contou, é a história de uma autoexploração de anos, que ao final, quase desemboca em um pouco de liberdade. Não é nenhum acaso que tenha muitos pontos de convergência com a história de Ismael e Juan Carlos. São histórias de vida que se repetem, biografias em que conceitos como direito, lei ou moral não têm nenhum significado. Tudo o que importa é a perseverança da vontade, força pura do próprio corpo. Se a pessoa não suporta isso, assim pensa Maigua, ele volta como um homem derrotado ao seu lar.

[olho]Maigua, no fundo, também é uma vítima[/olho]

Maigua não esperava de Ismael e Juan Carlos nada além do que esperava de si mesmo. No momento em que eles não serviram mais para ele, foram trocados como uma máquina defeituosa.

Ele não entende por que está sendo investigado por tráfico de pessoas pelo Ministério Público. Conforme ele afirmou, tudo custou dinheiro, seu advogado e a multa, que agora ele precisa pagar. Há semanas os pagamentos estão atrasados, também porque a Atmosfera, depois do incidente, cancelou todos os pedidos. A empresa era o único cliente que Maigua tinha na época.

Para o advogado Renato Bignami este é um ponto crucial. Maigua, segundo ele, no fundo também é uma vítima.

Em seu relatório, ele explica em várias páginas porque Maigua não tinha um negócio independente. A empresa Atmosfera comandava tudo: a produção, os prazos de entrega, o preço por mercadoria e o molde das peças. Nos uniformes eram costuradas etiquetas que identificavam a Atmosfera como proprietária. Se as peças fossem reprovadas no controle de qualidade, bem como se Maigua não respeitasse os prazos de entrega, multas eram aplicadas.

O problema, segundo Bignami, é a terceirização, através da qual a empresa reduz os custos de produção. As demandas exigidas de Maigua eram tão drásticas, que ele só poderia cumprir explorando, de forma ilegal, seus trabalhadores. “A responsabilidade por isso”, afirma Bignami, “recai somente sobre a empresa Atmosfera”.

Quando, depois do término de suas pesquisas, ele confrontou o diretor da empresa com os resultados encontrados, este procurou minimizá-los. Ele explicou que fornecedores como Maigua trabalham por conta própria, por isso não existe nenhum controle interno. A empresa não sabia de nada, não podiam ser responsabilizados. É isso o que todos dizem. Entretanto, a empresa concordou em pagar a compensação exigida por Bignami, talvez porque a quantia de US$ 6 mil seja um valor irrisório comparada às perdas que um escândalo na imprensa poderia gerar.

Atualmente, a Atmosfera não quer mais se pronunciar publicamente sobre o caso. Bignami espera que o diretor seja responsabilizado judicialmente. Além disso, ele quer que a empresa seja incluída numa lista que apresenta nomes de empresas que têm, em sua cadeia de produção, ligação com casos de trabalho escravo. Para Bignami, esta lista é um instrumento muito útil. “Se quisermos mudar algo”, ele afirma, “precisamos ir atrás dos peixes grandes. Eles só são vulneráveis quando sua reputação está em risco”.

Juan Carlos

Para Serapio Maigua parece uma piada de mau gosto, que justo os dois jovens que mais lhe causaram problemas, saiam no fim das contas com US$ 6 mil, enquanto ele, após tantos anos, provavelmente tenha de encerrar suas operações. Antonio Andrade parecia pensativo ao entrar em seu carro depois de mais uma visita. É engraçado, disse ele, como às vezes os limites se tornam confusos. Como às vezes é difícil distinguir quem são os autores e quem são as vítimas. A partir de que ponto termina a exploração? Onde, exatamente, começa a escravidão?

Durante sua volta de Tarija, quando pegou sua mochila na rodoviária de Sucre, Ismael disse nunca mais querer sair do país. Ele tem planos de tirar a carteira de habilitação para depois trabalhar como motorista de ônibus. “Continuamos a conversa amanhã”, disse ele ao se despedir. “Mantenha contato.”

Um telefonema ao meio-dia. Novamente, surge uma melodia e o verso “eu desejaria nunca ter te conhecido” [uma música alemã]. Então, de repente, uma voz estranha diz: “Aqui é o Juan Carlos!” Ele queria saber se era o jornalista e se a gente não poderia se encontrar. Ele disse que era urgente.

Você não está na Argentina com seu pai?

“Na Argentina? Eu nunca estive na Argentina, muito menos com meu pai. Meu pai era um bêbado, que apanhou tanto, que de algum modo desenvolveu um tumor no peito. Ele morreu quando eu tinha dois anos.”

Pouco depois Juan Carlos apareceu em uma cafeteria na Praça 25 de Maio, um jovem de 18 anos com cabelo partido de lado e um casaco azul da Adidas. Ele tinha ideogramas chineses tatuados no pescoço. Segundo Juan Carlos, os caracteres significam Mariella, o nome da sua nova namorada, que assim como ele é pouco gorda, mas muito simpática. Juan Carlos não contou a ela sobre o pesadelo que vivera há alguns meses. Ele chora toda vez que toca no assunto: como a aventura no Brasil se transformou em puro terror.

A história, da maneira como ele contou, assemelha-se em muitos pontos com aquela contada por Ismael. Apenas algumas coisas foram omitidas por seu amigo.

“Ismael”, disse Juan Carlos, “é um trapaceiro. Pouco me admira que tenha dito que eu estava na Argentina”.

Conforme ele relatou, quando o padre enviou a indenização para Sucre por meio da Western Union, a quantia foi transferida em nome de Ismael. Na época, ele era o único dentre os dois que tinha um número. Ele disse que Ismael prometera-lhe pagar a sua parte cabia e ele confiou no amigo.

Ismael trouxe-lhe US$ 1.500. Isso era a metade do que ele esperava, mas Ismael explicou que mandaram menos do que tinham informado.

Juan Carlos não acreditou nele.

“Ele deve”, supõe, “ter embolsado US$ 4.500. De onde teriam condições de construir um novo andar para sua casa?”

Ele mesmo ficou apenas com uma pequena parte, com o que comprou algumas calças e casacos. Todo o restante ele entregou para sua mãe, que compra roupas para revender em sua barraca no Mercado Campesino.

Os dois não conversam há meses. Segundo Juan Carlos, corre pelo bairro o boato de que Ismael recebeu a visita de um jornalista. Teria se aproximado sob o pretexto de entregar um celular, para que ele pudesse interceptar a próxima ligação. Ele acha que o visitante deve ser Antonio Andrade, já que ele não conhece outro jornalista. Juan Carlos contou que Andrade disse a eles uma vez que Dilma Rousseff, a presidente afastada do Brasil, se encarregaria pessoalmente de enviar a eles alguma ajuda todo mês. Gostaria apenas de lembrá-lo disso.

“No Brasil a experiência foi ruim, porém as coisas com o Ismael foram bem piores.” Juan Carlos perdeu seu melhor amigo.


Publicado originalmente em Abril de 2016 pela Zeit Magazin. Republicado com permissão. Tradução por Danilo Freire e Yasmim Nimbu.