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Um livro, mil páginas e 2 milhões de dólares

O ponto de partida da história de Garth Risk Hallberg é razoavelmente comum. Rapaz de 20 e poucos anos pega um ônibus para Nova York, tem uma ideia, resolve transformá-la num livro, que escreve nas horas vagas enquanto ganha a vida com um trabalho mais tradicional. O desfecho, porém, é inusitado. Em vez de parar na gaveta, o livro, um calhamaço de mais de mil páginas (na edição em português — a americana tem ainda impressionantes 900 e muitas páginas), foi disputado por várias editoras num leilão que terminou em 2 milhões de dólares. Para um autor que nunca tinha publicado um romance. E que ainda vendeu os direitos para o cinema. Para Scott Rudin, produtor de filmes como “A Rede Social” e “Onde os Fracos Não Têm Vez”.

Cidade em Chamas”, lançado no Brasil neste mês pela Companhia das Letras, apresenta uma coleção variada de personagens, com diferentes capítulos mostrando os pontos de vista de cada um ao longo de vários anos, com pequenos interlúdios (cartas, trechos de revistas, e-mails e escritos dos personagens). No centro da história estão William e Regan Hamilton-Sweeney, irmãos que fazem parte de uma rica família cuja vida muda após o pai se casar com uma mulher ruim que tem um irmão ainda pior — como indica o apelido “irmão demoníaco”, pelo qual ele é chamado em boa parte da história. Em torno deles gira uma lista extensa de personagens, como um professor negro e gay, uma jovem fotógrafa e o amigo apaixonado por ela, um grupo de punks adeptos do “pós-humanismo”, um jornalista, a funcionária de uma galeria e por aí vai.

Com uma grande relação de personagens vem uma grande relação de temas e tramas, passando pela cena da música punk em Nova York no fim dos anos 1970, o ativismo da esquerda, quase todos os tipos de problemas familiares imagináveis e uma história policial que culmina no blecaute que atingiu a cidade americana entre 13 e 14 de julho de 1977. Hallberg mostra que seus interesses são variados assim que atende ao telefone, no escritório da editora Penguin em Barcelona, onde está há alguns meses. “Estava lendo agora sobre o seu país!”, diz, empolgado, dois dias depois de a Câmara brasileira ter autorizado a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Sobre a situação política? “É claro. Fico feliz que você tenha um minuto para conversar sobre cultura”, diz ele (meia hora adiante na entrevista ele fará uma relação inesperada entre a situação do Brasil e seu livro). “Cidade em Chamas” já nasceu assim, conta ele: não como uma ideia simples, e sim com política, cultura e história entrelaçados.

Capa do livro 'Cidade em Chamas'
Capa do livro ‘Cidade em Chamas’

PRÓLOGO

“Por mais estranho que pareça, todas as coisas que você mencionou [uma lista que incluía diversos personagens, o real blecaute em Nova York e os tiros que um dos personagens recebe na primeira parte do livro] chegaram até mim fundidas no verão de 2003 no espaço de três minutos”, conta ele. Mas essa trama tem um prólogo e, como mostra no livro, Hallberg é um contador de histórias que não poupa detalhes em nome da concisão e volta ainda mais no tempo para tentar explicar as ideias por trás da ideia. Tudo começa em Nova York, que (com o perdão do clichê) é quase um personagem da história. Desde os 17, em meados dos anos 90, Hallberg, nascido na Carolina do Norte, sonhava em morar lá. Mas as circunstâncias nunca permitiam. Antes de ir para lá, foi morar em Washington DC, onde sua então namorada, com quem se casou mais tarde, foi estudar, já que não conseguia bancar a universidade em Nova York.

[olho]”Quem poderia dizer que Nova York esperaria pra sempre? A cidade estava lá agora, precisávamos ir”[/olho]

Era lá que eles estavam no 11 de Setembro. “Foi, para tanta gente, um acontecimento muito traumático. A escala daquilo. A visão do assassinato em massa e da destruição da cidade que sempre prometeu tanto pra mim e pra tantas pessoas, por diferentes motivos. Houve um momento naquele dia, quando Washington estava sob ataque, em que você simplesmente não sabia o que estaria de pé no final”, lembra. Embora traumatizantes, os atentados de 2001 também foram esclarecedores para ele. Nos 18 meses seguintes, notou como uma solidariedade tomou conta de Washington e passou, enquanto o sentimento persistiu em Nova York. Logo ele voltou a fazer viagens para a cidade, a poucas horas de onde morava, assim como fazia no colegial. “Era uma época estranha. Tinha uma grande vulnerabilidade e também uma grande sensação de possibilidade, de claridade machucada. No verão de 2003 minha mulher e eu decidimos que tínhamos que nos mudar. Era a hora. Quem poderia dizer que Nova York esperaria pra sempre? A cidade estava lá agora, precisávamos ir.”

Chegando a Nova York de ônibus para procurar um apartamento, reviveu a sensação que tinha quando adolescente ao ver a cidade no horizonte, em que seu coração “meio que se iluminava” — experiência que deu a Mercer, um dos personagens do livro. “Senti que a cidade estava falando comigo e dizendo ‘você conseguiu, está aqui. É a aqui que você pertence, com todas essas pessoas que não encontram uma sensação de pertencimento em nenhum outro lugar’.” Mas algo tinha mudado: as Torres Gêmeas já não estavam ali e a paisagem era diferente. Naquela hora, o iPod em modo aleatório tocou a música ‘Miami 2017’, de Billy Joel, sobre uma Nova York em chamas durante um blecaute, escrita no meio dos anos 70, “época dos discos da Patti Smith, poesia de vanguarda, filmes de Scorsese e milhões de outras coisas”.

“[A música é] sobre uma sensação de uma sociedade na beira do abismo. Imagino que você entenda isso neste momento”, diz ele, na primeira referência ao Brasil. Billy Joel canta do ponto de vista de alguém do futuro, que se mudou para a Flórida para fugir da destruição de Nova York nos anos 1970. “Mas ele canta com uma estranha tristeza, como se algo tivesse se perdido na vontade das pessoas de fugir do risco, da vulnerabilidade, do perigo e do sofrimento invisível. Elas também fugiram de algo que é necessário para uma vida com significado. Eu estava olhando para a cidade no horizonte, ouvindo essa música, e pensei: ‘Aquela época é, de alguma forma, essa época’. A gente também estava num momento de escolha entre, de um lado, segurança e ordem, que são coisas ótimas, e, do outro, liberdade, possibilidade e consciência.”

Esse era o livro, pensou. “Comecei a visualizar os personagens. Tem esse banqueiro andando, ele está com problemas, alguém faz uma oferta que ele não pode recusar. Em outro lugar alguém levou um tiro e está no hospital. Tem esses garotos vindo de Long Island. Metáforas, imagens, acontecimentos. Provavelmente só uns 3% do que virou o livro, mas muitas das coisas essenciais”, afirma. “Foi uma sensação de calor e fusão, como o universo um segundo depois do Big Bang, quando ainda não tinha esfriado e se organizado. Foi uma sensação poderosa de possessão que eu tive. Pra ser honesto, fiquei com medo.”

[olho]”Foi uma sensação poderosa de possessão que eu tive. Pra ser honesto, fiquei com medo”[/olho]

Mesmo ambientada nos anos 70, a trama é atual e não tem uma cara de época. “Era muito importante para mim, por uma razão que não consigo especificar, que não fosse um romance histórico”, diz ele. “Claro que você pode ler Hilary Mantel [autora de uma série de livros sobre a era do rei Henrique VIII] e aprender muito sobre os dias de hoje, sobre política, entre outras coisas. Mas, para mim, esse livro era um romance contemporâneo. Eu senti que tudo que era urgente pra mim em 2001, e 2003 e 2007 queria se expressar dessa forma. A crise financeira, os ataques terroristas, o retorno da história ao solo americano, de certa forma, e o que parece ser uma era global de ansiedade.”

Hallberg, nascido em 1978, também sentia que conhecia aquela época, mesmo que não a tenha vivido. Em sua cabeça, os anos 70 em Nova York se misturavam com os sinais apagados de delicatessens e o entretenimento na rua que via quando era adolescente, nos anos 90. “Tinha algo na textura daquele tempo, um quê de um grande cataclisma no passado que capturou minha imaginação. O cérebro de um escritor é uma estranha coisa estranha e danificada que… Você se apega a pedaços de coisas e não sabe o porquê, mas eles ficam flutuando no fundo da sua cabeça. Dirigindo ouvindo Patti Smith… Eu tinha uma sensação poderosa de ‘conheço esse mundo’.” Se fizesse pesquisas e descobrisse que algo que imaginou estava errado, o ímpeto de fazer ficção poderia se perder. Ou ele poderia se sentir obrigado a usar os fatos coletados. “Eu queria espaço para coisas imaginárias ou anacrônicas”, diz.

Como pesquisa mais formal, fez duas coisas. A primeira foi conversar com pessoas que tinham vivido os anos 70 e o blecaute em Nova York, bem informalmente, sem contar que ia usar aquilo num livro. “As pessoas tinham memórias incrivelmente novelescas, detalhadas. Assim eu soube que minha intuição sobre aquele momento estava certa. Ficou preso na cabeça das pessoas. Parte das pessoas não se lembrava de nada dos anos 80, mas sabia onde estava quando as luzes se apagaram.” E durante um verão, para mergulhar de vez no universo do livro, ia à biblioteca ler o jornal daquele mesmo dia em 1976 ou 1977 em vez de ler as notícias atuais. “Queria coisas objetivamente verdadeiras, mas queria que elas estivessem lá a serviço da ficção.”

PRIMEIRO CAPÍTULO

No dia em que teve a ideia do livro, Hallberg escreveu só uma página. Por algum motivo, mesmo que sentisse uma espécie de eletricidade, achou que não conseguiria continuar. “Eu tinha 24 anos, era um ninguém. Não me parecia alguma coisa que as pessoas faziam aos 24. Coloquei a página na gaveta e pensei que talvez voltasse a ela em dez anos”, conta. Voltou em quatro, depois do universo do livro não deixar sua cabeça. Foram mais três anos e meio escrevendo. Boa parte desse tempo foi gasto tentando encontrar as conexões entre as cenas que tinha imaginado lá atrás. “Eu não queria planejar tudo antes, porque achei que ia virar uma máquina em vez de uma árvore. Queria algo anárquico, mas orgânico. Fiquei no escuro, trabalhando com tentativa e erro. A história foi pra muitos lugares que eu não esperava.”

[olho]”O único jeito de eu fazer era desencanar da ideia de publicar e só ouvir o que o livro queria”[/olho]

A única certeza era de que o clímax seria o blecaute. De qualquer forma, durante a escrita ele sentia que aquilo tudo era impublicável. “Por causa do tamanho e da loucura toda. Ainda acho que é um livro pouco usual de várias formas. Era um projeto impossível. O único jeito de eu fazer era desencanar da ideia de publicar e só ouvir o que o livro queria — sempre tem um leitor imaginário no quarto com você. Eu achava que era um cara de 20 e poucos anos sem o talento pra fazer isso e todo o mundo dizia que a atenção das pessoas está diminuindo. Como isso iria pras livrarias?” Hallberg procurou não dar ouvidos a quem falava que hoje as pessoas só querem saber do que dá pra ler em 140 caracteres. “Pensei que, bom, se eu vou passar a vida fazendo isso, devo tentar fazer algo que eu sempre amei.” No caso: livros que, independente do tamanho e do tema, façam com que você leia rápido, que te arrastem para seu universo. “Como ‘Água Viva’, da Clarice Lispector, que é um tipo de livro bem diferente”, exemplifica.

Entre as criações mais desenvolvidas por Hallberg está o grupo que se autodenomina Pós-Humanistas. São músicos e frequentadores da cena punk que moram juntos numa grande república no oeste de Manhattan e colocam fogo em prédios da cidade como ato político. “Uma coisa que peguei desse período nos Estados Unidos, de modo geral, e em Nova York especificamente, foi essa erupção de violência, que era uma extensão lógica dos sonhos utópicos dos anos 60, com os quais simpatizo profundamente, mas também uma traição desses sonhos. Embora dê pra entender as frustrações das pessoas, suas ações tornaram a política impossível”, diz, citando grupos com o Weather Underground, um grupo militante de esquerda que colocava bombas em prédios do governo e bancos para protestar, entre outras coisas, contra a guerra do Vietnã.

“As pessoas estavam muito frustradas com o ritmo lento do progresso em direção à utopia e começaram a fazer coisas que eram profundamente anti-utópicas. Injustas, maldosas. E justificavam isso para elas mesmas. Mas não pode haver conversas até que todo o mundo concorde em parar de matar. Esse tipo de ação levou aos anos 80, época em que cresci, que afastou as pessoas das demandas justas dos anos 60. Criou-se um tipo de ideologia reacionária”, afirma. Parte da razão pela qual está interessado na situação do Brasil hoje, diz, é seu interesse pelas lutas ideológicas. A esquerda reagindo à direita, que reage à esquerda, que reage à direita, num ciclo sem fim. “Estou digredindo. Há algo no nome pós-humanismo que é importante pra mim, porque promete ir além do humanismo. Mas também implica em dizer que não somos mais humanistas, que não assinamos embaixo das antigas noções de dignidade humana, de direitos humanos, como se víssemos isso como coisas ideológicas.”

PERSONAGENS E EMPATIA

Em meio aos muitos personagens do livro, não há heróis. Hallberg diz que em seu trabalho a empatia é fundamental. “Empatia não é o ato fácil de identificar alguém igual a mim. É o ato mais desafiador de ver a outra pessoa com todas suas falhas e particularidades e ainda ver que, nas mãos de um autor diferente, ela poderia ser eu e eu poderia ser ela. É uma luta diária na vida pra se sentir assim em relação às pessoas que você encontra e é uma luta com os personagens do romance.”

A figura mais próxima do vilão é o “irmão demoníaco”, que aparece menos na história, mas se relaciona com vários dos personagens de alguma forma. “Eu queria que houvesse um antagonista no livro”, diz o autor. “Pra ser totalmente honesto, me inspirei no vice-presidente americano Dick Cheney”, completa, rindo. O personagem não é nebuloso só para os leitores, mas também para o autor. “Ele é um enigma. Quando eu tentava entrar nele, não conseguia. É como tentar abrir uma ostra com a unha”, diz. “Não sei se fico feliz ou não por algo ter escapado do meu controle no livro. É uma coisa bem estranha. Conversei com outros escritores e tem algo sobre escrever ficção: quando você está realmente fazendo isso, quando está no projeto certo, você quer que pareça um pouco impossível. Você sempre quer que seja algo que você seja incapaz de fazer.”

No processo de escrita, Hallberg diz que se sente como todos os personagens, mas ao mesmo tempo não é nenhum deles. “Todos têm partes de mim dentro deles, então todos são, de algum jeito, autobiográficos. Mas também são todos muito diferentes de mim, desconhecidos correndo no escuro”, reflete. “Há momentos em que estamos muito com nós mesmos, mas muito com outras pessoas. Ler poesia é um desses momentos. Olhar para pinturas. Sexo. Usar alguns tipos de drogas. Um longo casamento. Criar os filhos. Hoje meu filho subiu na minha cama, ainda estava escuro, e por um momento eu senti que poderia ver o mundo pelos olhos dele. Lembrei da experiência que eu sabia que ele estava tendo”, diz. O ponto ideal é atingido quando se misturam numa história as experiências pessoais do autor com a dos outros. Uma fusão de John Lennon e suas canções pessoais com Paul McCartney e suas letras sobre personagens imaginários. “Eles nunca foram tão bons sós quanto foram juntos”, opina. “Às vezes John Lennon escreve tão bem porque fala sobre si como se fosse outra pessoa. Às vezes McCartney escreve lindamente sobre outras pessoas porque escreve quase como se elas fossem ele.”

Essa visão de Hallberg sobre a escrita como forma de empatia está enraizada em “Cidade em Chamas”, em que a frase “eu te vejo, você não está só” se repete e funciona como uma espécie de síntese da história toda. Anos atrás, escreveu um artigo para o New York Times no qual tentava entender porque as pessoas escrevem ficção. Para alguns autores, escreveu ele, a ficção mostra que não estamos sozinhos. “Achei que era uma visão ao mesmo tempo bonita e vaga. Escrever pode ser algo muito altruístico ou muito narcisista. Ficção pode ser boa para mim porque faz com que eu me sinta menos sozinho. Ou pode me lembrar de que há outras pessoas no mundo e que tenho que olhar para além de mim. Boa ficção é isso, mas também é mais. É ganhar a sensação de não estar sozinho ao ser forçado a praticar a empatia em vez de demandar empatia dos outros”, diz.

Ele escreve para explorar o mistério que são os outros, uma das grandes oportunidades que viver em cidades grandes te dá. Na maior parte do tempo, diz, passamos pelos outros como se fossem obstáculos, só queremos que eles saiam da nossa frente na escada do metrô. Mas há momentos, principalmente em épocas de crise, em que você percebe o quanto cada vida vale. Quando você vê, por exemplo, alguém chorando falando ao celular. “É uma experiência muito urbana, de se sentir sobrecarregado pela preocupação com o outro a ponto de esquecer de si por um momento. Eu queria que o livro tivesse isso. E no fim percebi que tudo me levava para essa frase [“eu te vejo, você não está sozinho”]. Eu tentei articular isso no texto para o jornal, mas não consegui expressar isso direito fora da ficção”, afirma.

LUZ E SOMBRA

Além de romancista, Hallberg foi poeta (sem muito talento, afirma) e também é crítico literário. Começou escrevendo para o blog de um amigo e chamou a atenção de revistas, que passaram a encomendar textos seus. Ficção sempre foi o sonho, mas acabou esbarrando na crítica e precisava pagar o aluguel. Ler resenhas de outros escritores sobre seu próprio livro, porém, é o caminho pra ficar louco, diz. No final de um livro é preciso se desapegar. “Acho que para conseguir se desprender do seu livro e abrir espaço emocional para outro projeto, e para manter a habilidade de desaparecer no seu trabalho, ajuda mais não ouvir o que as pessoas estão dizendo. Seja bom ou ruim. Quase não importa se falam bem ou mal, no fim o efeito é o mesmo: ajudar você a fingir que não tem que se desapegar da sua obra.”

Também não ajuda estar sob os holofotes como esteve no fim do ano passado, quando revistas como Vogue e New York escreveram seu perfil perto da publicação do livro, destacando os 2 milhões de dólares que ele tinha recebido e chamando-o de fenômeno literário. “Acho que nenhum escritor busca isso. E por um bom motivo: nosso trabalho é muito privado, é muito mais sobre as sombras do que sobre os holofotes. O trabalho é jogar a sua luz pra fora. Parece pouco natural ter a luz voltada pra você”, reflete. “Eu tinha uma mesa e um pedaço de papel e passei anos assim. Foi muito difícil, mas foi uma experiência que me deu algo. Meu trabalho continua sendo sentar nessa mesa e me doar à página. Pra fazer isso, me esforço ao máximo para não pensar onde os holofotes estão e no que as pessoas estão dizendo. Sentar num quarto sozinho por anos é uma ótima preparação pra isso.”

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Música

Deus e o sexo na terra de Prince

Touré jogou basquete com Prince, o que transforma imediatamente todas aquelas coisas cool que você achou que tinha feito na vida em banalidades. Touré, assim mesmo, sem sobrenome, é pai de Hendrix, que aos oito anos é uma figura excepcional, sempre pronto a abraçar você. É jornalista, trabalhou com cultura um tempo na revista Rolling Stone, MTV, mas hoje é mais conhecido por falar de política.

Touré também é apaixonado por Prince. Escreveu um livro sobre ele, “I Would Die 4 U: Why Prince Became an Icon”, lançado em 2013. Quando recebeu a notícia da morte de Prince ficou um tempo “sem conseguir pensar direito”. E depois, passou mais um longo tempo sem conseguir dar uma entrevista sobre qualquer outro assunto.

Na última segunda, falei com ele por telefone. Expliquei para ele que queria tentar dar uma dimensão da importância de Prince para os americanos.

“Nos anos 80 nos EUA, a conversa era: você gosta de Michael Jackson ou Prince. Você tinha que escolher um, e essa escolha dizia muito sobre quem você era”, ele explica.

“Muitas pessoas estavam do lado do Michael Jackson, e ele representava uma doçura, uma bondade, enquanto Prince era o perigoso, o selvagem, o sexo, a loucura. Prince era religioso e espiritual, mas o que aparece mais em sua música era o sexo. Se você escolhia ele, era isso que estava em sua cabeça.”

Pergunto qual foi a influência de Prince na vida de Touré. “Um exemplo de como ser um homem, de como ser um homem negro, de como falar com as mulheres e se relacionar com elas, de como ser uma pessoa sexual. Para muitas pessoas, Prince é importante porque ele deu a elas a permissão, a liberdade para ser tão sexual quanto elas quisessem. Isso é muito importante pra mim e pra muitas pessoas.”

A dualidade entre sexualidade e espiritualidade é um dos pontos centrais do livro, ao lado da história da infância de Prince, na qual, depois do divórcio de seus pais, o artista fica sem ter onde morar, e acaba indo viver com uma amiga da família. “Veja só: não tinha ninguém em sua família que pudesse recebê-lo, tinha que ser alguém de fora da família? De qualquer forma, é o que sabemos sobre esse período. Essa amiga que o recebe tinha seis outros filhos e fazia faculdade. Quer dizer: quanto tempo ela podia ter disponível para ele? Provavelmente bem pouco, e isso permitia a ele ter todo o tempo para fazer o que quisesse, e o que ele queria era fazer música o tempo todo. Ele tocava em bares de strip, bar mitzvahs, estudando o tempo todo e vivendo a música.”

Com isso, aos 18 anos, Prince já tinha um contrato com a Warner para gravar três discos. “Ele se desenvolveu como músico na adolescência e, mesmo sendo tão jovem, várias gravadoras fizeram propostas. Prince tocava muitos instrumentos, cantava, dançava, era de fato impressionante, ele era visto como ‘o próximo Stevie Wonder’, um artista que escrevia, tocava, cantava, então havia muita excitação na indústria, e ele acabou escolhendo quem ofereceu mais controle sobre a obra,” diz Touré.

Em 1993, Prince brigou com a Warner justamente por causa do controle sobre sua obra. O artista então mudou seu nome para um símbolo impronunciável. Se você curtia Prince à época, talvez se lembre. Se você nasceu entre 1960 e 1975, não pode ter ignorado Purple Rain, e o que veio depois. “O problema é que ele queria lançar tanta música quanto conseguisse. Ele pensava: faço um monte de música, eu sei que ela é ótima, então quero lançar tudo, enquanto a gravadora queria um pouco mais de cuidado, quer dizer, às vezes menos é mais, acho que eles talvez tivessem um ponto aí.”
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“Prince podia lançar um disco de dez faixas em que todas as músicas eram extraordinárias – Purple Rain tinha nove faixas. Mas ele queria lançar um álbum triplo, e algo se perdia aí: havia tanta música que assustava as pessoas e elas não necessariamente queriam passar por tudo aquilo, não havia o mesmo foco, não acontecia aquela conexão que acontecia antes”, analisa Touré. “A fase final de sua carreira foi marcada por uma queda de vendas e atenção por conta de tanta coisa sendo produzida. Muitas pessoas realmente consideravam que ele precisava mesmo era de um editor que pudesse ajudá-lo a decidir que parte daquilo lançar ou não. Mas isso, claro, é uma fantasia, ele não aceitaria isso.”

PERÍODO EXTRAORDINÁRIO

Digo a ele que, embora tenha sido muito fã em algum momento, tinha deixado de prestar tanta atenção em Prince desde a polêmica do “nome/não nome”, e que achava que no Brasil a maioria das pessoas tinha feito o mesmo. Ele não ficou surpreso, mas considera isso pouco importante.

“Para mim o mais importante é esse período inacreditável no começo da carreira em que ele fez tanto sucesso. Ele mudou a música dos EUA, a maneira como as pessoas pensavam sobre música e até sobre como elas pensavam nelas mesmas com essa sequência fantástica de álbuns”, ele conta, antes de começar a listar os melhores momentos. “Dirty Mind, de 1980, estabelece uma base de fãs. Depois vem Controversy, Purple Rain in 1984, no ano seguinte Around The World in A Day, seu tributo aos Beatles, Parade em 1986, um album duplo, Sign O’The Times em 1987 e, em 1988, Lovesexy, uma espécie de distilação, de explicação de sua filosofia musical e religiosa, da relação entre sexualidade e espiritualidade e como ambas estão completamente relacionadas e interligadas para ele.”

“São oito anos, oito álbuns, um deles duplo, e todos são álbuns extraordinários, uma das maiores sequências de lançamentos da história. Ninguém teve isso. Michael Jackson não teve uma sequência como essa.”

No meio desse período porém, Prince grava, mas não lança, o Black Album aquele que, em tese, seria a resposta negra aos Beatles, sua grande obra, seu melhor trabalho.

“O que aconteceu foi o seguinte: na noite anterior ao lançamento do album, na noite anterior ao dia em que ele seria enviado pela gravadora, o último momento em que dá pra parar algo, Prince estava com uma de suas jovens beldades e a história diz que eles tomaram cogumelo, ou algo assim, e Prince teve uma visão de que se esse fosse seu último álbum, o que isso significaria para o mundo, e isso seria algo ruim, a negatividade vencendo a positividade, então ele resolve não lançar o álbum. Ele então recontextualiza o que tinha e faz Lovesexy, que é um álbum positivo, vibrante, do qual ele poderia se orgulhar se fosse a última coisa que ele fizesse antes de nascer.”

E o Lovesexy é um disco incrível, não?, pergunto sobre o que é de longe meu disco preferido de Prince.

“Sim”, ele concorda, “embora não tenha ido muito bem comercialmente”, o que provavelmente se explica pelo menos parcialmente pelo fato de que o disco trazia uma faixa só, contínua, com as nove músicas.

Pergunto se ele acha que nessa dualidade, alguém prestava atenção na parte da espiritualidade, ou se a parte da sexualidade sempre foi muito mais forte. “Acho que as pessoas pegaram mais a parte do sexo, mas é por isso que eu insisti no ponto do amor, da espiritualidade, da divindade, da cristandade, que eram muito importantes para ele”, diz Touré.

ESCOLHIDO

Questiono se Prince e Michael Jackson têm mais uma coisa em comum: o fato de se sentirem “escolhidos por Deus”.

“Definitivamente. Michael e Prince eram tão talentosos mas também extraordinariamente trabalhadores, mas ambos de alguma forma sentiam que tinham recebido algo de Deus, e essa é uma das razões pela qual Prince põe tanto Deus em sua música: ele sente que a música tem que ter um propósito porque a música flui para ele constantemente, ele estava constantemente escrevendo, criando, gravando, e ele sentia que era algo maior do que ele. Ele não tinha controle sobre esse fluxo, então como explicar essa torrente? É um presente divino, então ele tinha que mencionar Deus.”

No final da vida, Prince era Testemunha de Jeová. Há relatos de pessoas que estavam em casa num final de semana quando batia alguém à porta. Era Prince, querendo converter os moradores a sua nova religião.

O lado “hard working” de Prince também é citado por quase todo mundo que fala dele: o cara era capaz de acordar as 3 da manhã e ligar para o engenheiro de som porque queria gravar algo. Quando tinha uma idéia, queria gravar na hora, não podia esperar o dia seguinte. Vê semelhanças com Kobe Bryant, pergunto, influenciado pela aposentadoria recente do craque dos Lakers. Mas Touré dá risada.

“Eu compararia com Michael Jordan, o cara que ensinou o Kobe a fazer isso! E Michael Jordan é muito mais o vencedor contumaz. Entrevistei o Prince mais para o final da carreira do Jordan, e ele, como metade do país naquela época, era torcedor dos Bulls, e tinha uma reverência especial a Jordan.”

Além da fatídica partida de basquete que Touré jogou com Prince, o autor relembra outros momentos marcantes em sua vida. “Depois dos shows sempre tinham umas festas, você precisava conhecer alguém que soubesse onde ia ser, e eu consegui ir a algumas delas. Em uma delas me lembro que estava a Claire Danes, muito antes de ‘Homeland’. Eram Prince, Lovequest e D’Angelo, e era numa época em que Prince simplesmente não tocava as músicas velhas. Então Lovequest resolve testar os limites, e leva D’Angelo a começar uma musica daquela fase, e Prince simplesmente diz ‘não’, e some, de repente.”

Sobre seus últimos dias, o que há são fofocas. A narrativa que parece mais frequente é a de que o cantor não usava drogas nem álcool. Poucos dias antes de morrer, ele tinha sido visto andando de bicicleta por Minneapolis – onde nasceu e de onde nunca saiu.

Touré começa seu livro explicando a importância de Prince para a chamada Geração X. Talvez essa influência seja muito mais sentida nos EUA, de fato, do que no resto do planeta. A história do compositor, do instrumentista que muitos dizem ter sido um dos maiores guitarristas de seu tempo e do cantor cuja voz era várias em uma, porém, é rica, assim como sua obra.

Assim como Bowie, Prince deixa uma obra completa e complexa, daquelas que dá pra descobrir e redescobrir por um outro enfoque algum tempo depois. Completa e complexa como sua personalidade. E como a influência que deixou sobre toda uma geração de americanos – e, por que não, de não-americanos também.

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História

A última família dos índios Juma

De semblante fechado, respostas curtas e simples, pobres de detalhes, mas extremamente ricas em sentimentos, Aruká reflete sobre o que poderia ter feito para não estar na situação em que se encontra hoje. “Meu pensamento é que o Juma aumentasse mais. Como que não tem mais Juma?”, questiona.

Aruká é o último homem do povo Juma. No século 18 eram cerca de 15 mil índios desta etnia, mas hoje só restaram o senhor de 82 anos e suas filhas Maitá, 31 anos, Borehá, 35 anos, e Mandeí, a mais nova, hoje com 28 anos. Como são patrilinear, ou seja, seguem a linhagem paterna, e como não existem mais homens, o futuro dos Juma já está condenado. Esta é a família final.

Os Juma não têm pajé, mas têm cacique – algo raro, um mulher: Mandeí. Assim como as irmãs, é uma pessoa simpática mas de postura firme. Em 2014 ela estava caçando na floresta e foi picada no pé por uma cobra jararaca, cujo veneno pode ser fatal. A cacique aguentou e só foi atendida dois dias depois, sem necroses ou perda de membros. Mandeí é, sem dúvidas, uma mulher forte. Pela organização e rotina da aldeia é claro notar que são as três Juma que tomam a frente e comandam o lugar – afinal, a terra é delas.

A história segue o mesmo triste roteiro de outros povos indígenas do Brasil. Inicialmente dizimados pelos portugueses, os Juma foram arrasados pelas doenças trazidas pelo homem branco e em seguida por seringueiros, garimpeiros e ladrões de terra. Foi um massacre constante, com relatos de chacinas, mas nenhuma condenação. No final da década de 70, um grupo invadiu a aldeia para roubar e matou mais de 60 índios. O caso apareceu no jornal local, mas não apareceram culpados. Ser indígena no Brasil é como ser jovem, negro e favelado, mas com ainda menos programas sociais e menor visibilidade da imprensa ou de organizações de direitos humanos.

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A cacique Mandeí. Crédito: Gabriel Uchida

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Não bastasse todo o sofrimento histórico, em 1998 os poucos Juma restantes foram transferidos pela Funai de sua terra para uma aldeia de outra etnia, a Jamari dos Uru-eu-wau-wau – apesar de a Constituição Brasileira proibir a remoção de indígenas de sua área original. Segundo a Funai, eles estavam à mercê de invasores e correndo perigo de vida e já estavam muito reduzidos.

Após perder seus familiares e também sua terra, o que sobrou aos poucos restantes foi a melancolia. Ivaneide Bandeira, de 57 anos, é indigenista da ONG Kanindé e trabalha há mais de 30 anos na Amazônia. Ela acompanha de perto a história dos Juma. “Quando eles viviam com os Jupaú, conhecidos como Uru-eu-wau-wau, estavam tristes sem poder exercer sua própria identidade porque estavam na terra de outro povo, então acabavam tendo que obedecer outras normas e códigos sociais. O Aruká era muito triste porque sempre foi o líder do povo dele e lá não se sentia respeitado como estava acostumado.”

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Aruká e suas três filhas: a última família. Crédito: Gabriel Uchida

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Somente em 2013, e com um número ainda mais reduzido, os Juma voltaram para a sua terra – de mais de 38 mil hectares e demarcada e homologada desde 2004. Ivaneide acompanhou o processo: “Quando o Aruká retornou para a sua área, ficou orgulhoso de voltar a liderar o seu povo e de ter sua cultura e identidade Juma valorizadas, ele estava super feliz em construir suas próprias moradias com as filhas”.

Os pais de Aruká morreram há tempos. A mãe padeceu por conta da malária, enquanto o pai foi assassinado por um seringueiro. Aruká sonhava em construir uma nova maloca para seu povo, mas o número reduzido de índios impediu que isso se torna-se realidade. Agora próximos de uma unidade da Funai, o último Juma ainda reluta em sair de sua região. “Não gosto muito da cidade porque tenho rancor do branco. Ele matou meus parentes.”

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O acesso até o local é difícil. Do município de Humaitá, que fica a 11 horas de carro de Manaus, segue-se pela Transamazônica em uma interminável reta sem asfalto. Dependendo do tempo, os buracos e a terra viram lama que mais parece sabão sob os pneus. Mesmo com uma caminhonete com tração nas quatro rodas é extremamente difícil completar este trecho que leva em torno de 3 horas, dependendo das condições climáticas. Depois disso ainda falta uma hora de barco até a aldeia, que está às margens do rio Assuã. Um pequeno porto é a entrada das embarcações e também o local para o banho. Dali ainda é puxada a água para algumas torneiras improvisadas.

O sofrimento histórico dos Juma é refletido em sua aldeia: diferentemente do que é encontrado em outras terras, ali não tem posto de saúde, nem igreja, nem pajé e nem campo de futebol. Também não tem eletricidade e o único gerador a gasolina está quebrado. São apenas cinco casas, uma construção para a escola que foi montada mas nunca funcionou e um pequeno tapiri tradicional onde os habitantes se reúnem para as refeições. Além dos quatro sobreviventes, também moram no local alguns indígenas de outras etnias ou já misturados. No entorno da aldeia encontra-se mandioca, castanha e milho. Eles mantêm a tradição de caçar e pescar, principal fonte de alimento e também diversão para as crianças.

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Apesar da idade, o senhor Aruká tem um corpo imponente, anda com firmeza e caça sozinho. Ele fala pouco e quando o faz é breve e apenas na língua indígena – não entende o português. Mas seus olhares são poderosos e ele está sempre atento. Enquanto todos comem, conversam, fazem piadas e fumam tabaco, ele se senta na ponta da mesa e fica calado observando como se estivesse tomando conta de tudo. Aruká não gosta muito de ter sua rotina incomodada.

Aruká sente o peso de ser o último dos seus. “Hoje em dia sinto sozinho e penso muito em antigamente, que tinha muita gente”, desabafa. “A gente era muitos e depois vieram o seringueiro e o garimpeiro para matar o povo Juma todinho.” Enquanto acompanha a vida de suas filhas e toma remédios para dores nas costas, o derradeiro Juma pensa no que já se foi. “Antigamente o Juma era mais feliz… e hoje só tem eu.”


 

Mais fotos da visita de Gabriel Uchida a tribo Jumá:

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História

O jornaleiro mais
resistente da cidade

Aos 78 anos, Ciro de Oliveira Gonçalves continua levantando todos os dias antes das três horas da manhã para labutar até as duas da tarde. Para chegar ao local de trabalho, percorre 27 quilômetros, indo da Parada Inglesa, onde reside atualmente, até o bairro nobre da zona oeste de São Paulo onde atende clientes famosos como Celso Lafer, Eduardo Suplicy, Paulo Maluf e Ricardo Boechat.  Todos os dias ele levanta os portões da Banca Jardins, ou a “Banca do Ciro”, como se referem os frequentadores mais assíduos, onde está desde os anos 1980.

Ciro, o jornaleiro mais antigo em atividade em São Paulo, foi educado lendo jornais e revistas. Tinha 11 anos quando deixou Botucatu, no interior do Estado, após a morte precoce da mãe, para morar na capital com a tia. Chegou em 1947, época em que a cidade somava cerca de 2 milhões de habitantes e a maior parte das bancas se concentrava nos arredores da Estação Júlio Prestes, na região central. De olho no movimento de passageiros da Estrada de Ferro Sorocabana, Ciro arrumou um jeito de vender jornais durante as viagens de trem. Nasceu ali, entre um vagão e outro, a sua vocação.

Hoje, ele é dono de um dos pontos mais tradicionais da capital paulista, a Banca Jardins, na Avenida Cidade Jardim, mas não demonstra o entusiasmo de quando começou no ramo, há mais de 65 anos, nem enxerga à frente um futuro muito promissor. “Nossa profissão está acabando, acredito que não dure mais do que dez anos. Se a gente não vender água, refrigerante em lata, salgadinho e docinho não dá para sobreviver”, diz em tom de lamento. “Aquela fome de ler não existe mais.”

Na sua banca, assim como ocorre nas outras 3.500 espalhadas por São Paulo, chocolates, balas, chicletes, cadeados, baralhos, canetas e até bolas de tênis ocupam prateleiras e dividem espaço com revistas, jornais, gibis e outras publicações. “É preciso ampliar o rol de produtos e entender o local como um ponto comercial, não restrito apenas aos periódicos”. É o que pensa e defende José Antônio Mantovani, presidente do Sindicato dos Vendedores de Jornais e Revistas de São Paulo.

Diante de um cenário pessimista, que sofre com a concorrência dos meios digitais e com a mudança nos hábitos de consumo de informação das novas gerações, José Antônio destaca um dado favorável: desde 2014, o número de bancas na cidade estabilizou, o que interrompeu um intenso fluxo de queda que teve início nos anos 2000. Esse fôlego extra pode ser explicado pela lei aprovada pelo prefeito Fernando Haddad, no final de 2013, que legalizou a venda de bebidas não alcoólicas e alimentos industrializados nesses locais.

“O jornaleiro deve estar atento às demandas dos moradores. Muitas vezes, a banca é o único ponto comercial de um bairro”, diz o presidente do sindicato. Basta passar algumas horas acompanhando o trabalho do Ciro para constatar que boa parte dos clientes que entram no seu negócio está ali atrás de itens como água, recarga de celular, docinhos. Nos anos 1950, no entanto, não era bem assim.

Até 1958, Ciro ia e voltava de São Paulo, a bordo do trem Sorocabana, vendendo revistas como a semanal O Cruzeiro, A Cigarra, mais voltada ao público feminino, e a especializada em fotonovelas Grande Hotel. Circulava pelos vagões na linha cujo destino era a cidade de Presidente Epitácio, no extremo oeste de São Paulo. Chegava a ficar dias confinado no trem, sem retornar para a casa, saindo apenas para tirar um cochilo na estação e tomar banho. “Todo mundo comprava O Cruzeiro para ver as charges do Amigo da Onça”, lembra o jornaleiro. Ele se refere a um personagem criado pelo desenhista pernambucano Péricles que, ao colocar conhecidos em situações embaraçosas, deu nome à expressão popular.

O início de sua vida na cidade grande não foi fácil. Antes de se tornar jornaleiro, vendia amendoins na rua. Por generosidade do dono do hotel Las Vegas, até hoje em funcionamento nas esquinas da Avenida Rio Branco com a Rua Vitória, no centro, Ciro morou, ainda menor de idade, num cantinho improvisado ao lado da caixa d´água do estabelecimento.

Ciro em sua banca, em 1987. Crédito: Arquivo pessoal
Ciro em sua banca, em 1987. Crédito: Arquivo pessoal

Próximo dali, montou a sua primeira banca de madeira, nos anos 1950, sem deixar de trabalhar nos trens em alguns dias da semana. “Ralei muito para fazer meu nome aqui em São Paulo”, diz. O expediente não parava por aí: ele ainda fazia um corre nos bondes, na Avenida São João e na Praça da Sé, onde oferecia de mão em mão, aos gritos, o jornal A Gazeta Esportiva, fundado por Cásper Líbero em 1947, um campeão de audiência, e o lendário Correio Paulistano, de 1847.

[olho]“Hoje ninguém tem mais tempo para bater papo, está todo mundo com pressa, revoltado com a situação do país”[/olho]

Comprar jornais e revistas nessa época significava ter notícias em primeira mão. Leitores se juntavam ao redor das bancas para espiar as primeiras páginas, capas de revistas, e todo assunto virava discussão ali mesmo. “Hoje ninguém tem mais tempo para bater papo, está todo mundo com pressa, revoltado com a situação do país. Antigamente o clima era mais descontraído, a banca era um ponto de encontro aos sábados e domingos”, recorda Ciro.

Entre memórias das décadas passadas, Ciro de Oliveira Gonçalves lembra-se de uma das edições de jornal com maior repercussão no país: a polêmica morte do ex-presidente Getúlio Vargas em agosto de 1954. Sentado em sua banca de jornal, em São Paulo, ele recorda dos detalhes. “Vendeu jornal pra caramba. Getúlio era um ídolo do povo, um cara honesto, que nunca roubou. Falaram que ele havia se suicidado, mas todo mundo sabia que era um assassinato.”

No dia em questão, jornal “O Globo” deu a seguinte manchete na primeira página: “Suicidou-se o Sr. Getúlio Vargas”. Em seguida, a reportagem afirmava que o chefe de Estado havia morrido nos seus aposentos e estava com uma “fisionomia serena, esboçando um leve sorriso”. No mesmo dia, a “Folha da Noite” circulava com o título “Final dramático da crise política”, com a última frase de Vargas em destaque: “À sanha dos meus inimigos deixo o legado de minha morte”.

Fatos marcantes como esse aumentavam em muitos dígitos as vendas. Com a inauguração do Terminal Rodoviário da Luz, em 1961, o negócio de Ciro decolou de vez, sendo que ele se aproveitava do movimento de passageiros pela região. O sucesso do ponto garantiu uma expansão para outras regiões. Ciro apostou em novas bancas em Higienópolis, na Vilaboim, e na Avenida Paulista, entre outras regiões. Tornou-se um especialista do ramo e uma figura folclórica na cidade. Depois de passar o bastão ao filho, que cumpre o turno da noite até as dez horas, Ciro se exercita numa academia para manter a forma e “disfarçar a idade”.

Sobre a evolução tecnológica, Ciro é direto e não dá o braço a torcer. “Minha educação foi ler jornal. Não sei nem quero aprender a mexer no computador. Hoje em dia ninguém lê mais nada, você pergunta uma coisa para o cara, e ele entra no computador para responder. É como comer a comida sem mastigar, não dá para saber se é boa ou ruim. Nossa juventude está perdida.” No final da entrevista, encerra dizendo que está cansado de enfrentar a má vontade da administração pública com os jornaleiros e a falta de interesse da população por uma profissão que lhe garantiu ao longo da vida o conhecimento, a sabedoria e o sustento. Ciro é uma figura em extinção.

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Cinema

A homenagem ao cinema de ‘Ave, César!’

Os vídeos que antecederam a estreia de “Ave, César!”, nesta quinta (14), no Brasil, formam um retrato curioso. Em um deles, Channing Tatum, vestido de marinheiro, canta uma música sobre a ausência de damas no período em que estará no mar. Em outro, Ralph Fiennes tenta repetidas vezes ensinar Alden Ehrenreich a pronunciar uma frase simples, sem muito sucesso. Há ainda cenas com George Clooney, Tilda Swinton, Josh Brolin e Scarlett Johansson. Muitos personagens, pouca revelação sobre a trama da história. É um bom prenúncio do que vem pela frente. O filme dos irmãos Joel e Ethan Coen é quase que uma sucessão de esquetes frouxamente ligados — e muitos deles bem engraçados.

O elo comum entre as histórias é Eddie Mannix (Josh Brolin), responsável por resolver qualquer problema no estúdio de cinema em que trabalha: encobrir escândalos, lidar com os colunistas de fofocas, resolver queixas de diretores, antecipar reclamações do público em relação aos filmes, entre outros pepinos que aparecem pela frente. Seu maior desafio é lidar com o desaparecimento do ator Baird Whitlock (George Clooney), galã meio canastrão protagonista de um filme sobre a relação de um romano com Jesus Cristo, também chamado de “Ave, César!”.

Enquanto tenta descobrir o que aconteceu com Whitlock (a suposição inicial é que ele tenha enchido a cara ou sumido com alguma colega), Mannix interage brevemente com diferentes tipos do cinema. Hobie Doyle (Alden Ehrenreich) é o astro de filmes de faroeste, hábil com um laço e especialista em manobras arriscadas sobre um cavalo, promovido a protagonista de filme de drama artístico para desespero do diretor esnobe (Ralph Fiennes) — e uma das melhores coisas do filme, ainda que seja um dos atores mais desconhecidos do elenco. DeAnna Moran é a desbocada atriz de musicais com números de nado sincronizado com um problema para resolver. Tilda Swinton interpreta Thora e Thessaly Thacker, gêmeas que assinam colunas rivais sobre os bastidores de Hollywood e pressionam Mannix de todos os lados. A maioria entra e sai rapidamente de cena, como se os atores fizessem apenas participações especiais bem ilustres (a lista tem ainda Jonah Hill, Frances McDormand e Alison Pill).

George Clooney em "Ave, César!"
George Clooney em “Ave, César!”

“Ave, César!” é uma grande homenagem ao cinema, principalmente com o de décadas atrás, com números musicais de diferentes tipos, filmes bíblicos grandiosos e produções em branco e preto com diálogos rebuscados. Talvez por isso quem seja muito fã de cinema goste particularmente da história — o filme é muito bem avaliado nos dois maiores sites agregadores de críticas pelo mundo: tem 84% de aprovação no Rotten Tomatoes e 72% no Metacritic.

Mas é curioso observar, nesses dois sites, as avaliações do público: 46% no Rotten Tomatoes e 59% no Metacritic. Muitos dos comentários dizem que nada de fato acontece no filme e que as cenas são avulsas e não resultam em nada somadas (“uma coleção de piadas alinhavadas e vendidas como um longa metragem”, diz um dos usuários). Verdade. Mas se as piadas e cenas avulsas são boas, como é o caso deste filme, isso não é um problema. “Ave, César!” é um daqueles filmes que passam voando.

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Comportamento

A política dos trenzinhos

A poucos dias da votação parlamentar do processo de impeachment da presidente Dilma Roussef, o Movimento Brasil Livre (MBL) anunciou que levaria o trenzinho Carreta Furacão para uma manifestação neste domingo, 17 de abril, na avenida Paulista, em São Paulo. Em uma só cartada a organização pretende mobilizar mais apoiadores para sua causa sem deixar escapar o bom humor inerente aos jovens dançarinos com fantasias mal-ajambradas. Quem prefere o Capitão América rebolando aos discursos do grupo político teve, então, de se indagar: seguir em frente ou olhar para o lado?

Proprietária da Dominium, a empresa por trás do mais famoso dos trenzinhos, Fabiana Cardoni se limitou a dizer que o Carreta Furacão estará na avenida Paulista nesse domingo. “Já fechamos contrato”, disse ela, após cinco tentativas de contato. Ela não deu mais informações sobre o caso ao ser questionada a respeito dos contratantes para essa ocasião ou quanto a presença do Fofão — a participação de um dos personagens mais queridos dos trenzinhos teria sido vetada pelo seu criador.

Uma espécie de casamento entre fenômeno da internet e um estridente grupo político parece bizarro à primeira vista, mas isso é uma impressão superficial. O MBL é uma das organizações mais articuladas em prol do impeachment da presidente Dilma Roussef, realizando manifestações em todo o Brasil há pelo menos um ano. E os trenzinhos, como mostramos aqui no Risca Faca, compõem um fenômeno cultural do interior do Brasil de características e nuances próprias — especialmente em Ribeirão Preto. O mundo da política e o mundo dos trenzinhos estão mais próximos do que podemos imaginar.

[olho]”A gente faz muita festa universitária, comitiva. Impeachment da Dilma a gente também faz muito”[/olho]

“A gente já fez muito protesto, a gente sempre procura ajudar”, diz Danilo Gabriel. Ele e o irmão Daniel Cirilo são donos da Trenzinho dos Gêmeos, apenas uma dentre cerca de vinte empresas que fazem girar o mercado de diversão de Ribeirão Preto. Assim como a concorrência, os irmãos trabalham segundo a demanda. Fazem festas de aniversário, comitivas de rodeio, festas universitárias e, por que não, eventos políticos. “A gente trabalha muito com vereador”, diz ele. “Em época de eleição o pessoal pega bastante. Tem muita doação pra bairros carentes.”

Uma das participações do Trio Sensação em um protesto contra o governo. Crédito: Divulgação
Uma das participações do Trio Sensação em um protesto contra o governo. Crédito: Divulgação

Proprietário dos trenzinhos Sensação e Barulhão, Adriano Mancilha tem trabalhado mais devido aos recentes acontecimentos políticos. “A gente faz qualquer tipo de evento”, diz ele. “A gente faz muita festa universitária, comitiva. Impeachment da Dilma a gente também faz muito.” Por três ocasiões o show de cores e luzes dos seus trenzinhos deu lugar a faixas com dizeres contrários ao governo federal ou placas de grupos de oposição como o “Vem Pra Rua”. Os dançarinos compareceram em toda e qualquer ocasião. “Eles estão em todas, mas nas políticas eles vão sem se vestir”, afirma Adriano.

[olho]”Os dançarinos estão em todas, mas nas políticas eles vão sem se vestir”[/olho]

Assim como seus concorrentes gêmeos, ele não especifica os contratantes dos eventos políticos. Quando questionado, mastiga algumas palavras. “Partido, promotor, tem muita gente envolvida”, afirma ele. Advogados e empresários também entram nessa lista, mas os contratos são firmados por terceiros na véspera das manifestações. Por isso Adriano ainda tem esperança de que vá trabalhar durante o final de semana que marcará mais um episódio da história recente. “O pessoal contrata em cima da hora”, diz ele. “Se for ter [algum evento] a gente vai ficar sabendo entre hoje e amanhã.”

O poder público é uma saída viável para contratar trenzinhos, especialmente para a população carente. “Como não tem dinheiro, eles vão na câmara municipal e pedem ajuda para os vereadores”. Também não é raro que prefeituras contratem as equipes para animar eventos públicos. O Carreta Furacão, por exemplo, participa de eventos em outras cidades com certa frequência. Wellington Cardoni me contou, no ano passado, que certa vez o grupo se apresentou em Betim, Minas Gerais, a mais de 500 quilômetros de Ribeirão Preto. “A gente faz eventos bacanas com prefeituras, com estrutura.”

Naquele ano, a Associação dos Trenzinhos de Ribeirão Preto mostrava que política não é um assunto estranho dentro desse mercado. O grupo liderou os debates para uma lei para a categoria que regesse, entre outros itens, a circulação mediante cadastro oficial e a música dos veículos. Líder do poder público na discussão, a vereadora do Gláucia Berenice (PSDB) lembra que houve até uma carreata de trenzinhos até a sede legislativa da cidade.

[olho]”A internet mais ajudou que prejudicou: com ela veio o auge”[/olho]

A essa época o grupo já dava sinal de fraqueza devido a disputas internas. Sem saber dessa situação nem tampouco da sua oposição, a internet continuou seu serviço de manter a cultura circulando enquanto meme. O site da Associação não está mais no ar, mas não faltam vídeos e imagens de garotos fantasiados correndo pelo YouTube, Facebook e Whatsapp. “Com isso começou a ter mais trenzinhos em Ribeirão Preto e as músicas evoluíram também, porque antes era música de criança, mas agora tem que ter funk”, diz Danilo, do Trenzinho dos Gêmeos. “A internet mais ajudou que prejudicou: com ela veio o auge.”

Enquanto a popularidade não cai como o Popeye trombando em um ciclista, os trenzinhos aproveitam. Danilo quer aumentar a frota com pelo menos mais duas carretas para esse ano. Dono dos trenzinhos Sensação e Barulhão, Adriano Mancilha afirma que o sucesso na internet não trouxe mudança na sua rotina de trabalho. “A molecada comenta mais agora, né”, diz ele. O Carreta Furacão ainda está tateando a segunda onda de sucesso seis anos depois da primeira explosão na internet. Procurada diversas vezes, Fabiana Cardoni conversou com o Risca Faca delegando a maior parte das perguntas à assessoria de imprensa.

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Cinema

O mistério de ‘Rua Cloverfield, 10’

Em tempos de trailers super revelatórios, que contam a história do começo ao fim, e notícias do set publicadas muito antes de os filmes estrearem, o mistério em torno de “Rua Cloverfield, 10” é espantoso. Só se soube que o longa produzido por J.J. Abrams e gravado com diferentes nomes falsos estava sendo feito poucos meses antes de chegar ao cinema. Seu trailer, lançado em janeiro, também é bem vago e mostra o clima do filme — que estreia hoje (7) no Brasil — sem revelar quase nada da história. É ótimo: esse é um dos casos em que quanto menos se sabe da trama, melhor (por isso, o texto não conta nada que vá estragar a experiência de alguém e fala o mínimo possível sobre a história — apesar de falar um pouco sobre a história).

Nas cenas iniciais, Michelle (Mary Elizabeth Winstead) arruma as malas e pega o carro, fugindo do namorado. Após sofrer um acidente na estrada, acorda numa casa desconhecida, acompanhada de Howard (John Goodman), dono do lugar, e Emmett (John Gallagher Jr.), vizinho dele. Howard diz a Michelle que enquanto ela estava desacordada houve um ataque no local — possivelmente de extraterrestres, talvez de inimigos dos Estados Unidos, químico ou nuclear, ele não sabe bem –, que todo o mundo morreu e que o ar fora daquele lugar, um bunker construído por ele, está tóxico. Em um ou dois anos eles podem sair de lá, mas por enquanto ninguém sai, avisa ele. Michelle fica confusa, e Howard não ajuda muito — se você quer que alguém se sinta seguro acorrentar a pessoa na parede e mostrar o revólver no seu bolso não é a melhor das estratégias.

Como Michelle, o espectador não sabe o que de fato aconteceu e nem quem são aquelas pessoas. Howard pode tanto ser um visionário que salvou sua vida quanto um psicopata mentiroso. E John Goodman, com sua cara bonachona, é 100% assustador mesmo quando Howard tenta ser fofo colocando músicas alegres e oferecendo sorvete aos companheiros. Ainda que haja alguns momentos de paz — como mostra o trailer, em cenas com os três habitantes do bunker jogando jogos de tabuleiro ou vendo filmes –, o roteiro de Josh Campbell, Matthew Stuecken e Damien Chazelle (de “Whiplash”) evolui devagar e mantém a tensão no ar no tempo inteiro — com um trecho de mais ou menos meia hora tensíssimo, de fazer gente mais suscetível a isso pular da cadeira algumas vezes.

Como a lista de personagens que aparecem em cena pode ser contada nos dedos de uma mão e o cenário varia pouquíssimo (“O Quarto de Jack” e “The Wolfpack”, pra ficar em filmes sobre pessoas enclausuradas, têm bem mais diversidade de paisagens que “Rua Cloverfield, 10”), se o elenco não fosse bom e as personalidades de cada um não fossem bem construídas, as chances de o filme dar errado seriam grandes. Felizmente, não é o caso. Michelle, aliás, é uma mocinha de filme de suspense das mais inteligentes e Mary Elizabeth Winstead merece receber mais papéis de destaque por aí. Independente do que ele diz ser verdade ou não, Howard é bem doido e Emmett, o personagem menor da história, é o bonitinho simpático — ter um desses no filme costuma cair bem.

Mais que isso, infelizmente, não dá pra contar. Mas é quase refrescante ir ao cinema sem saber quase nada sobre o filme. A equipe de “Rua Cloverfield, 10” mostra que, às vezes, a melhor campanha de marketing possível é fazer a menor campanha que der.

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Comportamento

Praise the Lord!

 

“Praise the Lord!”, pede o pastor.

“Hallelujah!”

“Praise the Lord!”, ele pede mais uma vez.

“Hallellujah!”, cem pessoas respondem com mais força.

“Praise the Lord!”, comanda Fabian Nwezay, mais intenso, em um terceiro pedido que quase estoura as quatro caixas de som do salão.

“Hallellujah!”, dizem todos os presentes, alto, forte e com fé, na manhã de um domingo qualquer de verão – no centro de São Paulo.

São 10h43. A missa é em inglês. Os fiéis são quase todos imigrantes africanos, na maioria nigerianos. Várias cadeiras estão vazias na primeira parte da cerimônia da igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera, na rua Guaianases, ao lado da Praça Princesa Isabel. Há cerca de 50 pessoas em pé dançando no salão.

Todos vêm bem-vestidos, muitos com o que os antigos chamariam de roupa de domingo. Alguns poucos vestem aquelas batas e túnicas bem coloridas, que poderíamos chamar de roupa-de-africano-do-centro.

Uma música alegre, solar e ritmada embala a todos. É um hino de louvor a Deus, cheio de aleluias e Jesus Christs, comandado por um casal de vocalistas, bateria, duas percussões, teclado e baixo. A música sempre foi usada para estabelecer alguma conexão com o divino, mas aqui parece que o ritmo é tão importante quanto a fé. Poderia ser uma festa étnica não fossem termos religiosos presentes na música.

A pessoa que parece ter menos coordenação é o pastor Jair Santos, o único brasileiro visível até o momento. Está no palco à esquerda do púlpito e em seguida vai dar início à cerimônia. É branco para os padrões brasileiros, mas talvez um barbeiro racista no sul dos Estados Unidos se recusaria a fazer sua barba.

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O pastor Fabian Nwezay, da da igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera. Crédito: Gabriela Di Bella
O pastor Fabian Nwezay, da da igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera. Crédito: Gabriela Di Bella

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As bandeiras da Nigéria, de Israel e do Brasil decoram o fundo do palco. O pastor Fabian, de terno e gravata, também dança, embora de modo mais contido. Elegante, veste um terno cinza chumbo, camisa verde e branca com listras verticais. A gravata alterna verde escuro e preto em listras grossas inclinadas em diagonal. No pulso, um relógio grande prata, algo comum em muitos outros pulsos masculinos do salão.

A música dirige a todos, o ritmo cresce, as pessoas dançam ao ritmo da percussão. O som, forte, sai um pouco distorcido pelas caixas de som. O espírito é de alegria, uma maneira de existir religiosamente bem menos sóbria dos que os cultos aos quais os brasileiros estão acostumados. Depois de quase cinquenta minutos de música, o pastor, já no palco, posiciona-se em frente ao púlpito. Começa a missa bilíngue.

O pastor pede que todos se sentem mais a frente. Já são setenta homens – só cinco mulheres. Na busca do El Dorado brasileiro, são os homens que partem primeiro do continente africano.

Todos sentam.

Já são 11h20. Após poucas palavras de Fabian, quem abre a cerimônia é Jair. Do púlpito, fala em português, que em seguida é traduzido para o inglês. Ele conclama os presentes a darem seu testemunho. Cinco pessoas chegam à fila para dar o depoimento. Não sobem ao palco, ficam na mesma altura dos presentes.

Uma delas, ao microfone, diz em primeiro lugar aleluia. Veste calça branca, cinto vermelho, camisa preta estampada com bolinhas brancas e cavalos de corrida, além de um relógio grande no pulso. Óculos de aros grossos, cabelos bem curtos com uma forte entrada na testa, embora não aparente ter mais de 30 anos. Como quase todos tem a barba feita e um pequeno cavanhaque. Um ar de cantor pop.

O pastor Jair fala da própria saúde brevemente. Sobre como está saudável, dá os créditos de seu bem estar a Deus – a cura pela fé é um elemento constante nos cultos pentecostais. O poder de Deus é um conforto ao fiel e ao imigrante africano.

Uma criança – das duas presentes – pede para cantar uma canção. É uma menina cheia de trancinhas, de uns cinco anos. Todos se levantam e batem palmas para acompanhá-la.

Próximo do meio-dia o pastor nigeriano retorna ao púlpito. Agradece aos testemunhos e começa a entoar uma canção em um dialeto de algumas regiões da Nigéria chamado Edo. Diz algo como “Babaiê, casherebere…”. Todos cantam em pé.

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Os fiéis. Crédito: Gabriela Di Bella
Os fiéis. Crédito: Gabriela Di Bella

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Na rua, o termômetro no meu celular marca 23 graus, mas no escritório do pastor Fabian Chukwubuikem Nwezay, 45 anos, em uma sala anexa ao templo, a sensação de calor é bem maior. Sentado numa dessas cadeiras típicas de escritório, Fabian estuda para o sermão do grupo de estudos bíblicos das quartas-feiras com cinco bíblias – duas nas mãos, três dispostas sobre um móvel branco do escritório. Há um computador na sua frente, desligado.

Um ar-condicionado portátil desbotado pela idade não dá conta de refrigerar o local. Do chão, um ventilador aponta na direção do pastor sem que a força do jato de ar mova as páginas leves das bíblias.

As paredes, o teto e a luz são brancos. Às costas de Fabian, ao lado de uma foto antiga da igreja, um mapa mostra a divisão da zona leste profunda de São Paulo. Aparecem bairros como Guaianases, Lajeado e Cidade Tiradentes. É um desses mapas comuns, cheios de quadradinhos de propagandas de pequenos comércios, mas há um sentido estratégico se pensarmos que a sala é também o QG central da expansão da igreja. Já existe um templo em Osasco, um no bairro Cidade Tiradentes e outro será inaugurado em Guaianases, com pregação em francês, para atender a comunidade haitiana. Um quarto local está sendo planejado – na Nigéria. É o resultado de 18 anos como pregador e de uma trajetória irregular na qual nem Deus nem o Brasil estavam em primeiro plano.

“Meus pais eram católicos e eu era apenas uma pessoa que frequentava a igreja. Eu não ia a procura de Deus, ia a procura de status”, diz.

Nascido em Nkerefi, no Estado de Enugu, no sul do país da costa Oeste da África, o pastor conta que, embora seus pais fossem ricos, teve uma infância e adolescência difíceis. “Apanhei. Meus pais me batiam muito. Eu era teimoso demais.”

Como seu pai era uma espécie de líder local, sua pretensão inicial era ser advogado e depois se tornar um político. Mas a vida mundana cheia de bebida, cigarro, pequenos roubos, mentiras e “fornicação” o desviavam de qualquer caminho que fosse. Sua vida religiosa se resumia a ir à igreja para mostrar roupas novas às mulheres.

Como é comum na biografia de muitas pessoas que tiveram experiências religiosas transformadoras, o auge da queda é o que precipita o momento do Grande Encontro com Deus. Foi o caso de Fabian, então com 24 anos, no dia 14 de abril de 1994.

“Eu entrei em uma igreja onde tinham umas 30 pessoas. O sermão do pastor era sobre o que pode impedir você de ir para o céu. ‘O quê, o quê?, eu me perguntava’. Saí de lá e algo havia mudado. Naquela noite, sozinho, pedi a Deus para que entrasse e mudasse a minha vida. Não queria mais viver daquela maneira. Daquele dia em diante, minha vida nunca foi a mesma.”

Ato contínuo, Deus se tornou uma obsessão para Fabian. “Evangelize, me disse Deus no segundo dia.” Suas ambições morreram e a paixão pelo Senhor só crescia. Pouco tempo depois, partiu para estudar em uma escola bíblica na cidade de Benin, mais para o Oeste, sob os auspícios do Arcebispo Benson Idahosa. “Eu amo Deus, não o dinheiro. Se você me disser, ‘aqui pastor, tome as Casas Bahia para você’. Vou responder que não quero. Eu estou feliz com o que faço aqui.”

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A igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera, na rua Guaianazes, em São Paulo. Crédito: Gabriela Di Bella
A igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera, na rua Guaianazes, em São Paulo. Crédito: Gabriela Di Bella

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A experiência de renascimento, de aceitação de Jesus na vida, faz parte do padrão do religioso pentecostal. “O batismo com o Espírito Santo é um revestimento de poder. A conversão seria o momento do novo nascimento”, diz Clayton Guerreiro, pesquisador de religiões pentecostais do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Quando o pentecostalismo chegou ao Brasil, em 1910 e 1911 (os estudiosos, como sempre, divergem na data), tinha como marca a glossolalia, que é a capacidade de falar línguas desconhecidas durante o transe religioso. A partir dos anos 1950, o pentecostalismo começa a ter como foco a cura divina e os milagres, o que tornou o movimento mais competitivo na disputa por fiéis. Deus é Amor, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, entre outras, são exemplos de igrejas do período.

Há mais uma importante mudança que precisa ser mencionada. Nos anos 1980, um novo movimento religioso assentado no tripé cura, prosperidade e exorcismo ganhou força. É o neopentecostalismo, ou terceira onda pentecostal, cujo expoente é a Igreja Universal do Reino de Deus e que guarda pouca semelhança com o movimento dos anos 50. Exceto pelo foco na cura.

“Eu ia morrer, mas fui curado pela igreja”, me diz Iyke Chukwu, que também está na sala conversando com o pastor. Há cinco anos no Brasil, ele frequenta a igreja há quatro. Mora no bairro São Mateus, na zona leste. “Fiz muitas operações no estômago na Nigéria, fui a vários hospitais, mas nada adiantou.” Ele levanta as duas camisetas que veste – uma cinza mais larga por fora das calças e uma branca e justa por dentro – e mostra uma cicatriz em “S”, de quase dois palmos, que serpenteia sua barriga. “Eu amo essa igreja”, diz.

A vinda de Fabian ao Brasil foi errática. “Eu estava servindo uma igreja na Nigéria de um pastor que morava nos Estados Unidos. Preguei lá por dois anos, mas quando ele voltou só achava defeitos no nosso trabalho, embora a comunidade tivesse crescido.”

Fabian conta que partiu para trabalhar em uma igreja que tinha 10 membros. Depois de oito meses, o número de fiéis foi para quase 70 pessoas. O novo templo era filial de uma igreja fundada por um missionário nigeriano no centro de São Paulo em 2001, a Comunidade Cristã Internacional. Daí para o convite de pregar no Brasil foi rápido.

[olho]”Depois de um ano, o inimigo veio. Houve novas disputas dentro da igreja e decidi sair”[/olho]

No país, trabalhou por um ano na igreja na Avenida Rio Branco, a primeira do gênero na cidade. Em seguida, foi servir um novo ministério na rua dos Timbiras, também no centro. “Depois de um ano, o inimigo veio. Houve novas disputas dentro da igreja e decidi sair”, lembra Fabian. Sem poder voltar para a Nigéria, em junho de 2011 ele decidiu fundar o próprio ministério.

O pastor mexe no celular Motorola e ao mesmo tempo conversa com Iyke, segura duas bíblias no colo e faz anotações sobre o sermão com uma caneta azul em umas folhas brancas de rascunho. O som das mensagens chegando é constante.

Dentro da sala, há oito sacos de arroz de cinco quilos e dois refrigerantes da marca Tubaína, que serão usados no almoço coletivo de domingo que sempre ocorre depois da missa.

Há uma porta dentro da sala com dois avisos escritos em papéis brancos separados no terço superior. Um, escrito com canetinha hidrocor azul, manda “Manter a porta fechada”; o outro, em preto impressora, avisa em caixa alta “BANHEIRO QUEBRADO”. Ambos na mesma porta marrom sem maçaneta.

Antes de começar o sermão, o pastor abre a porta, acende uma luz azul neon, fecha a porta, faz xixi. Puxa a descarga e sai para falar com os 16 fiéis presentes no grupo de estudos bíblicos. O sermão da noite será sobre Lúcifer e o pecado do orgulho.

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Uma das cinco mulheres presentes no culto recebe a benção de Fabian. Crédito: Gabriela Di Bella
Uma das cinco mulheres presentes no culto recebe a benção de Fabian. Crédito: Gabriela Di Bella

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“PRAY, PRAY, PRAY”, pede o pastor na missa de domingo.

“Ora, ora, ora”, tenta acompanhar a tradutora, uma mulher muito bem vestida vinda de Camarões.

Fabian conclama todos a encontrar pares e rezar junto. Ecoa pela sala uma espécie de murmúrio geral na qual só possível identificar por vezes uma palavra: Jesus Christ.

Não sou ignorado. Dou as mãos a alguém que ficou sem par e me convida a rezar. Isso acontece três vezes.
“Pray, pray, pray, pray”, repete o pasto com rapidez e intensidade.

Todos rezam, movimentam-se, como se expressassem fisicamente a palavra divina. Há duas brasileiras no templo. Mais contidas, elas pouco se movem. Rezam paradas, quietas.

A capacidade das cordas vocais do pastor parece um milagre. Do púlpito, ele fala com força e intensidade constante. Gesticula, sobe e desce do palco, altera o andamento do sermão, brinca, faz piadas e pede para os fiéis recitarem versículos da Bíblia.

Em um momento de humor, ele abençoa a tradutora que tem um português muito fraco e grande dificuldade em acompanhá-lo.

Dois homens cuidam das duas portas da igreja que dão para os dois corredores paralelos desenhados pelas disposição das cadeiras em três fileiras. Eles ficam nas portas, mas circulam pelo ambiente com uma manta azul celeste no pescoço onde se lê “International Assembly”.

Um deles, alto e gordo, tem uma cicatriz de uns bons dez centímetros na parte direita do rosto. Começa no centro da bochecha e corre pela lateral até o encontro do pescoço com o queixo. Ele circula conferindo se alguém está no celular, mas também leva água a quem pede. É sério, mas de modo algum ameaçador. Conversei com ele uns dias mais tarde, mas não quis me dizer seu nome. Está há dois anos no Brasil, agora sem emprego. Deixou a família na Nigéria e se pudesse voltaria o quanto antes. Tem saudades de casa.

O tema do sermão é a maldição da pobreza. Em parte, o sucesso das igrejas pentecostais ocorreu por oferecer aos fiéis respostas mais diretas aos dilemas imediatos do cotidiano. A salvação e a prosperidade podem e devem ser durante a vida terrena, que pode ser operada pela entrega total a Deus. As questões do espírito depois da morte nem são mencionadas.

“Se você é um jogador, você não pode ser bem sucedido, você não pode prosperar”, diz o sermão.

Fabian passa os olhos em um papel no púlpito ao lado da Bíblia, que o auxilia na condução do sermão. O jogo de apostas é condenado por ser a mentalidade de um homem pobre.

Ele cita a Bíblia. Provérbios capítulo 23, versículo 21: “Porque o beberrão e o comilão acabarão na pobreza; e a sonolência os faz vestir-se de trapos”.

Assim, entre citações e pregações, ele vai construindo sua mensagem sobre os riscos da queda que, em outro contexto, poderia ser uma conversa sem base religiosa. Drogas, bebida, ressentimento com quem possui mais e arrogância de quem tem mais são temas, enfim, que habitam o universo de todos, mas são mais sensíveis a uma população de imigrantes que chega ao Brasil sem estrutura e constrói seus laços a partir da igreja.

O que ele faz é reforçar os valores que ajudam no desenvolvimento de uma pequena comunidade. Em um certo sentido, a função da igreja é ministrar doses de um controle social interno.

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Fiéis na igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera. Crédito: Gabriela Di Bella
Fiéis na igreja pentecostal Assembleia Cristã Dia de Primavera. Crédito: Gabriela Di Bella

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“Um abismo chama o outro”, me diz a pastora da igreja da Cidade Tiradentes, Monica Almeida, depois de uma missa celebrada por ela na igreja da rua Guaianases, no centro. Ela acha que a população da favela sofre preconceito pelo local onde vive e que o imigrante sofre em dobro.

Monica, 33, conheceu o pastor Fabian cinco anos atrás no Monte da Luz, uma espécie de ponto de devoção de evangélicos em Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo. Desde então, abandou a igreja Deus é Amor, onde seus pais são pastores, para se dedicar ao projeto do pástor – ela usa a mesma pronúncia dos imigrantes. Foi sua assistente pessoal para resolver os vários trâmites burocráticos de abrir uma igreja e há um ano comanda as missas na Cidade Tiradentes.

[olho]”Na cultura deles, a mulher não tem tanta voz. Ela não trabalha. Mulher cuida da casa e dos filhos”[/olho]

Ela não se incomoda que algumas pessoas vão aos domingos apenas para comer ou que nem sequer professem a fé cristã – na Nigéria metade da população é cristã, a outra é muçulmana. “Meu papel nessa história é pregar a palavra de Deus, que é forte e é universal. Quando eu estou pregando sinto que está todo mundo ali como um ser humano, sem cor, religião ou raça.”

Não que não existam problemas. Para a pastora, a tradição dos imigrantes é bastante machista. “Na cultura deles, a mulher não tem tanta voz. Ela não trabalha. Mulher cuida da casa e dos filhos.”

Ela diz que nunca teve problemas em relação a sua autoridade e que acha que muitos dos fiéis a enxergam como uma figura masculina por ser uma autoridade espiritual. “Quando eles viajam e voltam, muitos me trazem um presente. O engraçado é que eles me trazem sempre um perfume masculino.”

Uma das raras brasileiras presentes, a cabeleireira de 40 anos Fabíola Roos acha que os homens nigerianos são “um pouco estúpidos”. Ela sabe. Conheceu o ex-marido em outra igreja africana – existem sete no centro –, mas agora está separada. O marido voltou para a Nigéria, onde tinha outra família. Fabíola cuida da filha de dois anos que teve com ele e de outra menina de 10 que o pai deixou com ela quando saiu do Brasil.

A relação entre homens nigerianos e mulheres brasileiras é delicada. A tese do pastor Fabian é que na Nigéria a cultura é de que homem seja o chefe da casa, enquanto no Brasil ocorre o contrário. Quando decidiu casar, ele disse a uma irmã que queria uma esposa nigeriana. Em uma espécie de Tinder do compromisso definitivo, ele e a futura esposa, Jeniffer, se conheceram por fotos. Gostaram do que viram e deu match – por arranjo das famílias, casaram-se. Em dezembro de 2011, Jeniffer desembarcou no Brasil para conhecer o marido.

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Fabian Nwezay em um de seus momentos performáticos no sermão. Crédito: Gabriela Di Bella
Fabian Nwezay em um de seus momentos performáticos no sermão. Crédito: Gabriela Di Bella

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O volume é muito alto. São quatro caixas de som preenchendo o templo com decibéis religiosos. O salão está praticamente cheio, todos os ventiladores estão desligados, mas os quatro splits dão conta do recado. Os homens de lenço azul distribuem aos presentes envelopes para a doação. Fabian reforça a importância da doação repetidas vezes. A justificativa: precisam de recursos para a nova igreja em Guaianases.

Ao mesmo tempo, o sermão passa a falar mais sobre a prosperidade. Pulam frases como “aquele que não gosta de trabalhar vai enfrentar a pobreza” ou “se você bebe, é preguiçoso ou descuidado, você não vai prosperar” e ainda “outra maneira de ser pobre é estar desesperado para ser rico”. O tempo da tradução fica sempre em descompasso com a fala do pastor.

Recebo um envelope e recuso os demais. Coloco R$ 20 dentro. Todos colocam o dinheiro com discrição. É totalmente anônimo.

A oração acaba por volta das 14h. Começa a música e o momento da entrega das doações. As pessoas vão saindo dos lugares até formar uma fila em um corredor no qual na ponta está o pastor. A música segue e as pessoas vão dançando até ele para depositar os envelopes em uma caixa de plástico e receber a benção individualmente.

Fabian coloca as mãos na cabeça dos fiéis e diz algumas palavras. Em seguida, molha uma das mãos em alguma substância líquida, aparentemente água com mel, e passa sobre a testa de cada um. Ao mesmo tempo, a música embala o salão. Todos cantam e dançam.

A esposa do pastor e mais uma mulher comandam a cantoria. Dançam juntas. Depois da benção do dízimo, o pastor dança também. Ergue os braços para cima e leva-os para esquerda e para direita, fazendo uma paradinha de um tempo em cada lado. Os demais o copiam, como naquele hit do padre Marcelo do final dos anos 90 que dizia “erguei as mãos e dai glória a Deus”.

Por detrás do púlpito, o pastor Fabian Nwezay puxa seis hallelujahs fortes. Todos respondem. E assim acaba a missa africana.

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Cinema

‘Wolfpack’: Juventude enclausurada

Quando Crystal Moselle cruzou com um exótico grupo de jovens, com cabelos bem compridos e roupas que pareciam fazer parte do figurino do filme “Cães de Aluguel”, ela não fazia ideia de que ali nascia seu primeiro documentário, “The Wolfpack”. “Eles passaram por mim e eu tive uma experiência de ‘o que está acontecendo? Quem são essas pessoas?’”, lembra, rindo. Alguma coisa naquela visão em uma rua de Nova York a deixou intrigada e a fez correr atrás dos seis irmãos para se apresentar. A primeira surpresa veio de cara, quando perguntou de onde eles vinham e eles responderam que de uma rua ali do lado, no East Village. De alguma forma, ela nunca tinha visto aquele grupo de irmãos de terno e gravata circular por ali. Mais pra frente, ela descobriria a razão: eles tinham sido criados praticamente presos dentro de casa e não circulavam em lugar algum. Podiam sair só acompanhados do pai, normalmente poucas vezes ao ano; ou até nenhuma vez, dependendo do ano. Mas por enquanto era só uma conversa despretensiosa, resultado de um instinto de saber mais sobre aquelas figuras.

O interesse dos irmãos Bhagavan, Govinda, Jagadisa, Krsna, Mukunda e Narayana Angulo, com idades entre 11 e 18 anos na época, foi capturado quando Crystal contou que era cineasta. “Eles tinham interesse em trabalhar com cinema. Virou uma amizade. Comecei a mostrar filmes, passar tempo com eles. Conversávamos sobre cinema, esse tipo de coisa”, diz. Até então, era só uma amizade, não um projeto. “Um dia perguntei pra eles se eles queriam fazer um documentário. Eu pensava em segui-los e mostrá-los sendo quem eles eram. Mas conforme o tempo foi passando as coisas ficaram mais intensas e eles contaram sua história pra mim.”

E a história realmente era digna de filme. Uma sinopse, segundo o Netflix, que passou a exibir o filme neste ano: “sete irmãos criados quase em isolamento são moldados pelos filmes que assistem obsessivamente, embora anseiem por mais liberdade”. Crystal sabia de cara que estava diante de uma família incomum, mas foi só depois de meses de convivência que ela descobriu que aqueles seis rapazes e sua irmã haviam passado a maior parte de suas vidas enfurnados em casa, por ordens do pai. Oscar guardava a única chave da casa, à qual nem a mãe, Susanne, tinha acesso. O peruano conheceu Susanne em uma viagem para Machu Picchu. Casaram-se e mudaram-se para os Estados Unidos, onde nasceram os filhos. Mas para ele, Nova York e seus habitantes eram perigosos demais e a saída que viu para o problema foi isolar os filhos. Nas raras vezes em que deixavam a casa, para ir ao médico ou algo assim, as crianças não podiam interagir com ninguém. A família era como uma pequena tribo fechada em si.

Cena do documentário 'The Wolfpack'
Cena do documentário ‘The Wolfpack’

Mas os garotos criados entre quatro paredes (a menina, Visnu, tem síndrome de Turner e mal aparece no filme) não cresceram numa experiência estilo “O Quarto de Jack”, sem saber nada do mundo lá fora. Suas estantes eram ocupadas por milhares de filmes de todos os gêneros, fornecidos pelo pai, aos quais eles assistiam sem parar. Os filmes eram sua válvula de escape para o mundo fora do apartamento, e depois de vê-los os meninos os reencenavam em detalhes. As falas das produções favoritas eram transcritas para o papel, todos decoravam seus papéis e copiavam com detalhes aquilo que viam em cena.

Com materiais encontrados em casa, os irmãos montavam seus próprios cenários e figurinos. Uma fantasia de Batman vestida por eles, por exemplo, foi toda feita com pedaços de tapete de yoga e caixas de cereais e, cheia de detalhes, não fica devendo muito à usada por Ben Affleck em “Batman vs. Superman”. Não à toa eles ficaram maravilhados quando Crystal contou que trabalhava com cinema. Graças a essa paixão em comum os irmãos Angulo superaram a barreira de não conversar com estranhos e abriram as portas de sua casa para ela — a primeira visita de alguém de fora da família que eles tiveram.

Crystal encontrou com os garotos em uma de suas primeiras excursões em grupo para fora do apartamento. O primeiro a se aventurar e conhecer o mundo foi Mukunda, cansado das limitações que lhe impunham. Aos 15 anos, aproveitou uma saída do pai para fazer compras, vestiu uma máscara do filme “Halloween” para não ser reconhecido caso se deparasse com ele e escapou. Circulou pelas ruas da cidade até ser pego pela polícia depois de uma denúncia — embora Mukunda não tenha feito nada, algumas pessoas ficaram assustadas. Não é todo dia que se vê um adolescente cabeludo vestido como um personagem de filme de terror vagando por bancos e lojas.

De lá, Mukunda foi levado para um hospital psiquiátrico, onde passou uma semana e pôde pela primeira vez conviver com pessoas que não eram de sua família. Daí pra frente, a vida dos irmãos nunca mais foi a mesma. Aos poucos, os outros garotos Angulo começaram a questionar a autoridade do pai e seguir Mukunda em seus passeios pelas redondezas. Sempre juntos, como uma família de lobos (“wolfpack”, apelido dado a eles por um amigo da diretora). Por um acaso, seus caminhos se cruzaram com os de Crystal, que estava no lugar certo na hora certa.

Contar uma história dessas foi bem mais difícil do que a cineasta imaginava quando sugeriu fazer um documentário com eles. A ideia de segui-los e retratar sua vida ganhou uma dimensão maior do que apenas mostrar um grupo de irmãos que se vestiam como personagens de Tarantino. Crystal conseguiu um acesso impressionante à família para fazer um retrato de como é descobrir o mundo. Se eles diziam que queriam ir à praia pela primeira vez, Crystal ia atrás com a câmera para mostrar a reação deles ao ver o mar e o medo que um teve de molhar os pés. Quando tinham dúvidas sobre como conversar com uma garota, Crystal também estava lá para captar essa experiência vivida pela primeira vez. Por mais que tivessem visto tudo aquilo nos filmes, a vida real é bem diferente, como eles percebem ao pegar um metrô, despreparados com a velocidade do trem. Tudo isso está no filme e no livro “Wolves Like Us”, de Dan Martensen, amigo de Crystal.

“Não é possível fazer um filme desses e não se envolver emocionalmente”, conta a diretora, rindo de leve. “Não foi fácil. Foi por isso, provavelmente, que levei cinco anos para fazer esse filme. Estávamos numa jornada juntos, tinha um monte de questões de confiança, que eles tinham na vida. A questão era encontrarmos essa confiança uns nos outros.” Os pais Angulo também se mostraram abertos a conversar com ela, principalmente a mãe. A certa altura, em um vídeo feito por um dos filhos, vemos Susanne ligar para sua mãe pela primeira vez em anos, contrariando uma proibição do marido, dizendo estar saudosa e tentando marcar uma visita. Durante todo aquele tempo, não eram só os filhos quem viviam num tipo de prisão — Susanne também.

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Os irmãos Angulo, em foto de Dan Martensen, que lançou o livro “Wolves Like Us”. Crédito: Divulgação

Oscar é uma figura mais misteriosa, quase que um líder de culto. Nos poucos momentos em que aparece em cena, diz coisas como “meu poder influencia todo o mundo” e não admite ter errado de nenhuma forma na criação dos filhos, a maior parte dos quais já não conversa mais com ele. Parte de uma comunidade Hare Krishna quando mais jovem, Oscar se inspirou em Krishna, que teve dez filhos, e além de dar nomes em sânscrito para todas as crianças os estimulou a manter os cabelos grandes, como uma demonstração de poder e força, tal qual Sansão.

A documentarista, que conversou com Oscar em várias ocasiões para tentar compreendê-lo, diz que tentou deixar seu julgamento de fora do filme. “Eu só queria capturar o que eu pudesse nele. Não sei se entendo o que ele fez. Posso ver o ponto de vista dele, mas não estou certa de que concordo”, afirma. A maior dificuldade, conta, não foi fazer com que Oscar se dispusesse a conversar com ela, mas com que ele olhasse para si mesmo e para tudo o que tinha feito. “Acho que foi difícil para ele.”

“The Wolfpack”, vencedor no ano passado do grande prêmio do júri em Sundance, maior festival de cinema independente dos Estados Unidos, acompanha os Angulo até o ponto em que Govinda muda de casa. Hoje a vida deles mudou ainda mais: dois mudaram de nome (Jagadisa agora é Eddie e Krsna é Glenn), vários criaram perfis no Facebook, quase todos cortaram os cabelos e um chegou a ficar loiro. Crystal diz que continua muito próxima dos garotos. “Estava com eles hoje. Vamos fazer o MTV Movie Awards na semana que vem. Eles vão fazer um tipo de comentário para o prêmio”, diz ela, que concorre ao troféu de documentário.

Os irmãos não se envolveram de nenhuma forma na produção do documentário e só assistiram a tudo já no final, pronto. “Foram sempre muito positivos em relação ao filme, até o pai. Foi meu pior medo, mostrar o documentário para meus personagens”, diz ela. Mas graças à experiência adquirida fazendo os próprios filmes, vários trabalham na indústria do cinema. “Eles fazem de tudo, tem gente que trabalha com fotografia, em salas de cinema, com produção. Mukunda está fazendo curtas e estamos trabalhando juntos. Eles estão fazendo várias coisas diferentes, mas querem, principalmente, inspirar mudanças”, conta. Para os garotos, contar sua história pode inspirar as pessoas a lutar pelo que querem e não aceitar a opressão. “Eles estão muito inspirados em ajudar o planeta e outras pessoas. Todos eles estão dividindo suas experiências para ajudar outras pessoas.”

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Música

Vida longa ao CD

Primeiro, a má notícia para os CDs: segundo o último relatório da Federação Internacional da Indústria Fonográfica, divulgado em abril do ano passado, as vendas de discos físicos caiu 8,1% em 2014. O Brasil não é exceção à regra: se em 2013 a venda de CDs rendeu 185,7 milhões de reais, no no ano seguinte o valor foi 14,4% menor: 159 milhões (no período anterior a queda havia sido semelhante: 15,5%). Mas números não são tudo na vida, e apesar de o CD já ter vivido dias melhores, há uma parcela de fãs que não abre mão do formato, que não tem a aura retrô do vinil, nem a praticidade dos serviços de streaming.

Por influência da família, pelo prazer de ter o encarte na mão, por achar que o som é melhor ou pelo prazer de ver a coleção crescer, os motivos citados para explicar o apego ao formato criado nos 1980 variam. O bancário Emílio Pacheco, 55, é desses que não abandona o barco: desde que começou a comprar CDs, em 1989, nunca mais trocou de formato. “Sou fã de carteirinha do formato compact disc, não vejo nenhuma vantagem nos demais”, conta o dono de uma coleção de cerca de 4.000 CDs. Para ele, o disco é um objeto de coleção, um item de valor, como um selo para um filatelista.

Assim como deixou os vinis de lado, não aderiu às novas formas de escutar música. “Não acredito que o streaming já tenha igualado a qualidade de som de um CD em um bom equipamento. Existe, isso sim, a opção de baixar um arquivo de áudio de alta definição. Mas continuo preferindo o CD original, com um encarte caprichado.” A opinião é compartilhada por Rodrigo Alves, dono de 2.700 CDs e da loja Choke Discos. “A qualidade é bem melhor que qualquer streaming”, diz. Além disso, ter um disco físico em mãos faz com que ele não dependa de celular ou internet pra ouvir música. Mesmo assim, todos os amigos estranham, conta.

Preferência por CD não significa, porém, que serviços de streaming não tenham nenhuma utilidade. Rodrigo até usa e diz que adora, mas não encontra nem em Spotify, Google Play ou Deezer “bandas obscuras e coisas mais independentes”. Pela praticidade, Emílio às vezes recorre ao YouTube. “Se já estou no computador e me dá vontade de ouvir uma música nos fones, é mais rápido procurar no YouTube para rodar na hora”, conta. “Mas jamais deixaria de comprar um CD só porque posso ouvi-lo no YouTube. Acho sensacional poder ouvir álbuns inteiros lá, mas para decidir se compro o CD ou não.”

“Os CDs são caros, sempre foram caros, e não dá pra comprar tudo que desperta seu interesse sem antes ter uma espécie de ‘controle de qualidade’, que só é possível pela audição experimental”, concorda Cesar Sousa, 36. Em reuniões com amigos também é mais prático colocar logo uma playlist no YouTube do que ficar trocando de CD toda hora, concede. “Ideal para momentos em que a gente precisa dar atenção pra muita gente, em casa. Para os momentos mais introspectivos e intimistas, os discos e CDs mandam”, diz. Em sua opinião, CDs são menos supérfluos que downloads. “Você, de fato, tem a obra em mãos, e ela se torna a trilha da sua vida daquele momento. Ela fica na estante, você passa e fica admirando, vez por outra, todos os seus CDs e discos, e eles trazem em si um fragmento da sua vida. É uma relação muito mais profunda, uma relação duradoura com a arte, com o artista.”

NA ESTANTE

A preferência por comprar discos na internet ou em lojas físicas é dividida entre os fãs de CDs. Emílio, por exemplo, prefere comprar seus discos pela internet, mesmo que exista a loja física — nesse caso, vai até o local buscar a encomenda — e recorre também a sites estrangeiros, como a Amazon.

“Achei engraçado quando, há muitos anos, uma pessoa da família me perguntou, bem impressionada: ‘Você compra disco todos os meses?’. Todos os meses? Uma vez por semana, no mínimo! Até hoje é assim”, diz Emílio. “Sempre que vou a lojas como Saraiva e Cultura, dou uma olhada pra ver se não tem nada que me interesse. Raramente saio de mãos vazias.” O cuidado com os CDs é tão grande que para ouvi-los no carro ele faz cópias. “Jamais carrego originais comigo.”

O biólogo Fernando Alvarenga, 43, por outro lado, acha o carro o melhor lugar para ouvir seus CDs — em casa, prefere os vinis. Ouvir discos físicos, diz, é um costume. “Curto pegar o CD, olhar o encarte, ver a arte.” Só no mês passado comprou 30 CDs, e mais 12 vinis. Diz que não tem muitos, “uns mil” CDs. “Por ter sido meio nômade quando mais novo vendi muitos CDs e LPs”, conta. Colecionar CDs é coisa de roqueiro, opina ele. Um público fiel que não para nunca de escutar aquelas músicas. No caso do pop, “em que intérpretes por vezes alcançam sucesso com um hit e depois somem, esse disco fatalmente um pouco e depois some”.

Não é o caso, por exemplo, do DJ Cristiano Pereira, 28, que cita entre seus favoritos CDs de Sandy & Junior, Legião Urbana, Laura Pausini e Silva. Já da geração YouTube e Spotify, Cristiano diz que sempre tem alguém que estranha seu hábito de comprar CDs pelo menos uma vez por mês, de preferência em lojas físicas — sua coleção tem por volta de 400 exemplares. Como os outros fãs de CD, diz que nada substitui o encarte com fotos e letras e o prazer de ter algo físico nas mãos. “Não quero só ouvir a música, quero me relacionar com ela de outra forma.” Mesma resposta que dá Tiago Rolim, 38, dono de aproximadamente 5.000 CDs. Questionado por que ainda compra os discos, diz: “Minha esposa vive me fazendo essa perguntas! Virou um vicio já. Acho chato ouvir musicas em celular, ou no computador. Até escuto, mas não gosto. Gosto de ter o encarte, ler as letras, essas coisas do século passado”. A imensa maioria de amigos, aliás, nem sabe que ainda se vendem CDs. “Sério isso.”

Dimas Marques, 26, vive situação parecida. Seus amigos já abandonaram a mídia, com exceção de uma amiga que já “está mais pra lá do que pra cá”. Ao responder quantos CDs integram sua coleção, dá a resposta precisa: 768, todos catalogados em um arquivo de computador. Ver seus discos elencados na estante lhe dá uma sensação de “real” que o digital não consegue. “Sempre gostei do formato físico, de ir à loja, procurar e achar algo legal, de pegar, olhar o encarte, ter uma estante organizada.” Usa, sim, o YouTube para ouvir música, mas para descobrir coisas novas e acrescentar à sua lista de compras — que inclui fitas cassete, que considera mais difíceis de adquirir. Todo mês ele adquire pelo menos um disco novo. Só lamenta o pouco número de lojas físicas em sua cidade, Maceió, Alagoas.

NA FAMÍLIA

Para a estudante Jéssica Mar, 23, dona da página A Menina que Colecionava Discos, comprar CDs é também algo afetivo: foi uma tradição que começou com seu pai e aumentou depois que ele morreu. “Desde criança eu gostava de ir nas lojas com meu pai e ficava olhando os encartes, mas eu sempre comprava algo mais infantil”, lembra. “Esse foi um dos legados deixados por meu pai: paixão pela música. Cresci vendo ele comprar CDs e discos, aumentando a coleção, cuidando com muito carinho e me ensinando tudo sobre cada artista e música. Quando ele faleceu, não tinha como deixar de lado. Minha paixão aumentou e eu continuo cuidando e aumentando a coleção deixada por ele. Sei que ele está feliz vendo que continuo levando seu legado em frente.”

Jéssica coleciona música em qualquer formato: CD, vinil, fita cassete, DVD. É também eclética na forma de comprá-los: faz pela internet, em sebos, lojas, troca com conhecidos. Toda semana costuma comprar pelo menos um CD de sua lista. “Já me falaram que é estranho eu ficar nas vitrines olhando os CDs, pois geralmente o pessoal já vai na intenção de comprar algo específico. Mas eu adoro ficar olhando, vendo os lançamentos, descobrindo bandas novas, admirando os encartes.”

Ela conta que a maioria de seus amigos adora música, mas nem todos costumam comprar CDs, ressaltando que os preços são elevados. Mas com dois amigos ela costuma levar CDs dos artistas quando vai a shows para que eles autografem. “A maioria leva folha de papel ou alguma foto. Fica nítido que o artista adora ver que compramos algo dele, ou que temos aquele CD em edição especial”, afirma. São os CDs autografados alguns dos xodós de sua coleção. “Mas mais que isso tenho um sentimento muito grande por quase todos que eram do meu pai. Por isso sinto prazer em cuidar e aumentar a coleção.”

NA BALANÇA

O CD tem outro ponto a seu favor: a qualidade do som. Enquanto é consenso que o som de um disco físico é melhor que o de um MP3 baixado na internet (“Eu não tenho um iPod… Eu ainda uso CDs ou discos. Às vezes fitas. Tem um som muito melhor, muito melhor que o digital”, declarou Keith Richards em 2013.), a disputa entre CD e LP é mais acirrada. À reportagem da LA Weekly o ex-engenheiro de som da Philips declarou no ano passado: “Se você medir a diferença, o CD é absolutamente melhor que o vinil. Mas se você disser que a experiência é melhor — como fumar charuto com os amigos –, então faça. Curta fumar charuto com amigos, e beber cerveja e brandy ouvindo a um velho disco. Mas não diga que o som é melhor”.

Segundo o engenheiro de som Bob Clearmountain, quando ele fazia vinis para a Columbia, a gravadora fazia um teste que colocava cada LP em uma vitrola velha e barata, com o objetivo de chegar até o fim sem pular. Caso falhasse, o disco teria que ser mixado de novo. Um som muito baixo ou vocais cheios de som de letra “s”, por exemplo, poderiam fazer com que a agulha pulasse, então seriam menos desejáveis e deveriam ser editados. Uma reportagem de 2014 do site Vox, também investigando qual som é melhor, aponta outras questões e afirma que, se as notas são muito baixas, menos áudio cabe no vinil. Se as notas são muito altas, pode haver distorção. Por isso, na hora da masterização, muitas vezes os extremos eram cortados, deixando a música diferente do que o almejado pelos músicos.

Mas a questão é ainda mais complexa e a LA Weekly acrescenta que todos os engenheiros de som ouvidos pela publicação disseram que não é difícil achar LPs que soem melhor que CDs, já que a qualidade de quem produz cada um pode alterar dramaticamente a posição de cada mídia na balança. Também existe uma questão de preferência pessoal. Muita gente prefere o chiado do vinil e a sensação reconfortante que ele proporciona. Segundo a Vox, isso se deve às mudanças que os engenheiros fazem no som do baixo na hora de produzir o vinil, que acabam agradando esteticamente parte do público, embora o som seja diferente do ao vivo. O fato é que, embora seja comum ouvir por aí que o vinil é superior ao CD, não é bem esse o caso. São experiências diferentes, mas não dá pra dizer que o LP seja melhor em qualidade de som.

NAS LOJAS

Nas paredes da Baratos Afins, a loja de discos mais antiga na Galeria do Rock, no centro de São Paulo, parte de um acervo de 100 mil CDs dividem espaço com parte de 100 mil discos de vinil, enfileirados por todos os cantos da loja em ordem alfabética — o resto da coleção da loja, presente no local há 37 anos, está em um estoque. O público, conta Carolina — filha do fundador da loja, Luiz Calancas — é variado: tem gente que chega com listas de compras nas mãos e gente que quer buscar algo na coleção — tarefa que pode levar horas. “Dá pra ficar o dia inteiro e não ver tudo.” Alguns, inclusive, são velhos conhecidos.

Como que pra provar a afirmação, entra um cliente fiel, que puxa papo com os vendedores e dá um pitaco na conversa. “MP3 é muito abstrato. É diferente ter o objeto”, diz ele. O papo envereda para o retorno das fitas cassete, mas aí todo o mundo concorda que já é demais. “Eu curtia fazer fitinha, seleção pra dar pras pessoas”, lembra Carolina. “Romântico. Muito romântico”, diz o freguês. Mas ele ressalta, dando mais uma vantagem do CD em relação às mídias concorrentes: com ele ainda dá pra fazer suas próprias coletâneas e dar de presente pros outros. Ele faz até hoje. Romântico. Muito romântico.

Entre os gêneros mais populares, o rock é o maior, responde Carolina sem pestanejar. Principalmente o internacional, mas os nacionais também saem bem. “Nacional a gente tem de tudo. MPB, rock, samba. Mas pra comprar e repor, é menos, porque não tem uma demanda igual de rock”, diz ela. “MPB é muito cíclico. Se você for ver os fãs do Chico [Buarque] de dez anos atrás, talvez metade consome disco. Às vezes o cara já tem tudo. Mas o de rock sempre vem atrás de coisa nova, de coisa que já passou, mas lá atrás ele deu menos importância. Acho que o público do rock é mais fiel ao consumo de disco.”

Não há um tipo específico de cliente em busca de discos físicos na loja — tem gente de todas as idades e todos os gostos. “Desde o moleque que tem a cultura familiar, até aqueles que estão descobrindo esse prazer. Muitos músicos”, conta. Não há som tocando na loja e os funcionários não têm o hábito de dar indicações. “Nem todo o mundo gosta do que eu gosto. É que nem vendedor de sapato, que já traz um monte de opção, mas eu não gosto.”

Quilômetros dali, em Pinheiros, a pequena loja Pops Discos, numa galeria na Teodoro Sampaio, também resiste bravamente — só com CDs, sem discos de vinil. Também rola por ali um clima familiar: enquanto toca a rádio Eldorado, um cliente conversa com o dono da loja sobre o jogo da seleção brasileira da noite anterior enquanto passa os olhos pelos álbuns e escolhe um. Organizados em ordem alfabética, os CDs carregam uma etiqueta com um código. Para os não iniciados, como eu, não faz sentido. Pergunto o preço e me mostram como usar uma tabela que mostra o preço de cada coisa com base nos códigos, “para a próxima vez” que eu for lá. Definitivamente um clima família — e, empolgada, levo uma caixa com cinco CDs do Gil que não fazia parte dos meus planos.

Aberta há 36 anos, a Pops começou como uma loja de vinil — hoje não os vende porque são muito caros. Lá, o que mais sai é música nacional e rock, e a maioria dos clientes já vai à loja com o que quer em mente, depois de olhar na internet, conta Ademir Manzato, fundador da Pops. O público, diz ele, tem faixa etária acima dos 40. Depois concede: 30. Mas não mais novos do que isso. Pelo tamanho do espaço, vender CD é mais fácil que vinil. Além do que, diz Ademir, vinil é muito caro. Se a moda pegar de vez e ficar mais acessível, quem sabe.

Na Barato Afins, Carolina conta que nos últimos anos houve uma queda na venda de CDs, acompanhada de um aumento na venda de vinis. “A gente sentiu uma diferença quando surgiu a internet. Muita loja fechou aqui por causa disso, as pessoas começaram a baixar música. Não precisava mais da fitinha pra trocar música. Não são nem os serviços de streaming [que fizeram a diferença no movimento], quando a internet ficou mais fácil pra todo o mundo deu uma caída, sim. Principalmente nas lojas que só vendiam CD”, diz ela. O disco físico, opina, terá vida longa. “Sempre vai ter mercado. Ninguém deixa de fabricar selo, por exemplo, sempre vai ter comércio pra isso. Colecionador… Quando o movimento começou cair e a gente pensou em abrir outra coisa, a gente pensou que já estava no ramo e sempre vai ter gente nostálgico. Eu sou suspeita. Mas nostalgia mexe com o emocional e sempre vão buscar coisas do passado.”

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As Mãos Limpas italianas

“Esse dinheiro é meu”, disse Mario Chiesa quando percebeu que os três homens com pinta de empresários acomodados na poltrona de seu escritório eram, na verdade, policiais. Chiesa tinha 47 anos e era um dos principais homens do Partido Socialista Italiano (PSI). Comandava o Pio Albergo Trivulzio, um complexo de asilos e orfanatos fundado em Milão em 1771 em torno do qual gravitavam imóveis de compra e venda, aluguéis, obras de construção e restauro, peças de arte e dinheiro, muito dinheiro — caixa forte alimentado pela caridade aos desamparados. “O senhor pode conferir se quiser”, respondeu um dos policiais já com o distintivo em mãos. “Cada nota de 10 liras está assinada pelo procurador da República. Fizemos cópias de todas. Temos ordens para levar tudo, inclusive o senhor.”

O dinheiro não era de Mario Chiesa. Os maços cuidadosamente numerados, fotocopiados e assinados pessoalmente pelo procurador tinham chegado até sua sala em uma maleta 007 de couro marrom minutos antes da discreta batida policial, levada por um pequeno fornecedor de serviços. Sentindo-se extorquido, o fornecedor havia procurado a Justiça meses antes, acusando Chiesa de cobrar 10% sobre cada negócio fechado no Trivulzio. Grampeado por quase um ano, o diretor tinha poucas chances de escapar. O processo era robusto, detalhado com horas de gravações telefônicas que culminavam com a maleta marrom da propina, uma armadilha cuidadosamente preparada no dia em que o fornecedor deveria entregar a Chiesa parte de um suborno negociado.

Era 17 de fevereiro de 1992, seis e meia da tarde de uma segunda-feira e aquela maleta marrom provocaria um terremoto.

Os jornais souberam da notícia por volta das nove da noite e mandaram seus repórteres ao prédio da Procuradoria. A prisão de Mario Chiesa estampou as primeiras páginas nas edições da manhã seguinte encoberta por dúvidas. Teria o membro do PSI se voltado à corrupção? Seria aquele um caso isolado? O partido estaria envolvido? Somente nas semanas seguintes os jornalistas conseguiram decifrar aqueles e outros enigmas. Nos meses e anos que se sucederiam àquela segunda-feira, a Itália seria devastada por uma onda judiciária que passaria à história como operação Mãos Limpas – usada como inspiração na operação Lava Jato, que atualmente provoca terremotos políticos e judiciários no Brasil.

Maleta usada para subornar Mario Chiesa. Ela foi leiloada em 2007. O prefeito da cidade de Senigallia arrematou a relíquia e a expôs na prefeitura. O dinheiro foi doado à caridade.
Maleta usada para subornar Mario Chiesa. Ela foi leiloada em 2007. O prefeito da cidade de Senigallia arrematou a relíquia e a expôs na prefeitura. O dinheiro foi doado à caridade.

A prisão de Mario Chiesa deveria ser apenas uma entre tantas histórias de corrupção italiana: em poucos dias ele estaria solto graças ao trabalho dos melhores advogados do país. Sem dizer uma palavra, o processo terminaria em nada, mesmo sob provas evidentes — algumas vírgulas do ordenamento jurídico o salvariam, talvez até mesmo anulando toda a investigação com alegações banais, desde que juridicamente bem postas. O sistema era conhecido. Aquelas assinaturas nas notas de dinheiro eram previstas em lei, por exemplo? Bastava especular sobre a inexatidão dos códigos e a mágica seria feita.

O final feliz de Mario Chiesa não era o mesmo pretendido por Antonio di Pietro, o procurador da República encarregado do caso. Parcialmente careca aos 41 anos, corpulento e acima do peso, Di Pietro estudava o sistema há tempos. Era um homem interiorano de Molise, uma das regiões mais pobres da Itália, cria de um sul embrutecido onde, diziam o ditado e a história, nem mesmo Cristo havia pisado. A leniência que se atribui à parte mais quente da península não era sua característica.

Lotado na sala 254 da Procuradoria de Milão, Di Pietro era visto como um autêntico outsider: procurador substituto em um mundo cheio de vaidades e compadrios, ocupava a última porta do longo corredor de um prédio que tinha, na outra ponta, o procurador-geral. A distância entre um e outro era um emblema de sua personalidade. Sentado em uma poltrona velha e afastado do coração do poder da magistratura, o procurador estava sempre disposto a enfrentar histórias que poucos se atreviam na Milão daqueles tempos. Quatro anos antes, ele havia colocado uma centena de instrutores de auto-escola atrás das grades para interrogatórios sobre a venda de carteiras de motorista — um sistema paralelo que gerava milhões de velhas liras a dezenas de poderosos locais. O caso lhe rendera algum holofote, mas os anos seguintes apresentaram somente causas de menor expressão. Em 1991, depois de aperfeiçoar seu próprio método de trabalho, Di Pietro estava pronto para o grande salto, e percebeu que o caso de sua vida poderia estar no pedido de ajuda do fornecedor do Trivulzio que lhe contou em detalhes como Mario Chiesa cobrava pedágio de cada prego que entrasse no complexo que dirigia.

Di Pietro conhecia a dimensão de Mario Chiesa, um dos nomes fortes do PSI para a disputa da prefeitura de Milão. Jamais havia encarado alguém de sua estatura política e com suas relações com o poder. Por isso formou uma esquadra de policiais e assistentes leais a seu propósito, convencendo-os de que aquela história poderia ser a ponta de um novelo intrincado de concussões e outros crimes. Aos seus subordinados, o procurador conseguiu passar suas ideias, seu modo de ver uma investigação e também seus próprios trejeitos — ao caminhar, muitos arrastavam os tacos dos sapatos como ele, e balbuciavam em dialeto, como ele, mesmo não sendo de Molise. Eram praticamente seus sacerdotes, mordomos mudos e fiéis como seu plano judiciário requeria.

A maleta marrom foi levada à procuradoria junto com Mario Chiesa. Di Pietro queria que ele confessasse e que entregasse outros membros do partido. Sabia, pelas declarações do fornecedor, que Mario não era um chacal isolado e que o sistema poderia permear parte importante do Partido Socialista Italiano.

Chiesa permanecia calado. Em pouco tempo deveria ser liberado daquele constrangimento. Seus advogados impetraram habeas corpus e tentaram livrar o diretor da prisão, ao menos para responder em liberdade. A batalha entre os advogados e o procurador se arrastou por fevereiro e entrou em março, quando os socialistas já imaginavam que seu dirigente estaria solto, e dia após dia os juízes superiores davam razão a Di Pietro, que defendia a prisão até que Chiesa decidisse colaborar.

A demora preocupou os socialistas. Nos primeiros dias, o partido se limitava a notas burocráticas. Com o passar do tempo e diante de eleições legislativas iminentes, nas quais o PSI depositava grandes esperanças, o secretário-geral do partido decidiu enfim se pronunciar. Bettino Craxi havia sido primeiro-ministro da Itália nos anos 80 e acreditava que o PSI poderia voltar ao poder já em abril, quando o país iria ao voto. Em 3 de março, Craxi tomou uma decisão dramática: dirigiu-se aos estúdios da TV pública RAI e declarou ao vivo em um dos principais telejornais da emissora que Mario Chiesa era “uma marionete” que estava “jogando sombras” na imagem de um partido que “em 50 anos não tivera nenhum administrador condenado por crimes contra a administração pública”. O caso estava desorientando os eleitores, até mesmo os mais fiéis socialistas, surpresos com a corrupção no alto escalão de um partido que acreditavam ser incorruptível. Na TV, Craxi se disse surpreso com a atitude de Chiesa, e se colocou, ele próprio, como “uma das vítimas daquela história”. Mesmo contrariado, o PSI abandonava ao mar seu homem de Milão.

Sem saber, Bettino Craxi dava o primeiro exame de ferro à estratégia montada por Di Pietro. Criticado, o procurador manteria Mario Chiesa — e os futuros envolvidos no caso — presos pelo maior tempo possível, sempre convencendo os juízes de que, soltos, voltariam a cometer crimes e destruiriam provas. Na solidão da cadeia, Chiesa se viu renegado pelo PSI, mas não cedeu. Ainda pensava numa saída quando Di Pietro mandou chamar seu advogado. “Diga a seu cliente que a água mineral acabou.” O procurador não falava sobre os suprimentos da carceragem, mas sobre as contas secretas Levíssima e Fiuggi, descobertas em um banco suíço sob os nomes das mais populares marcas de água vendidas nas gôndolas dos supermercados italianos. Era nelas que Chiesa escondia a maior parte de seu dinheiro.
Em 23 de março, sem saída e diante das insistentes tratativas abertas pelo procurador para que ele colaborasse com a Justiça, Chiesa decidiu contar tudo.

A maleta marrom do Pio Albergo Trivulzio não era caso isolado. Todos os anos, há muito tempo, centenas de maletas como aquela viajavam por toda a Itália para irrigar as contas do Partido Socialista. As propinas eram cobradas em todas as autarquias comandadas pelo PSI e serviam para financiar campanhas eleitorais e enriquecer ilicitamente dirigentes e agregados. Mario Chiesa contou detalhes de algumas operações e revelou ares de organização criminosa. O que para Antonio di Pietro era apenas um ponto no céu, se abriu como uma constelação impossível de alcançar a olho nu. Chiesa contou mais: não era só o PSI a se lambuzar no dinheiro público, mas todos os partidos surgidos na Itália pós-guerra. A chamada Primeira República estava podre.

Chiesa falou por sete dias seguidos. A procuradoria pediu sua soltura sob o manto de colaborador de Justiça, prometeu reduzir sua pena e precisou de um tempo para digerir todas as informações. Nas urnas, Craxi se elegeu deputado, mas o PSI foi derrotado enquanto força política, um abalo provocado pelas seguidas notícias que saíam nos jornais, dia após dia, sopradas de dentro da sala 254.

A imprensa era parte fundamental da estratégia de Di Pietro.

Ele recebia repórteres em sua sala marginal com os pés em cima da mesa enquanto estralava a cervical em movimentos contínuos e barulhentos. A maioria dos jornalistas eram jovens plantonistas em busca de um bom furo na incipiente carreira. Di Pietro, mais velho, chamava-os de “doutores”, um tanto com respeito e outro com ironia. Apenas uma provocação na simbiose entre pequenos burgueses de vida mais ou menos fácil e o filho de agricultores imigrado do sul ao rico norte, formado em direito enquanto fazia mil trabalhos paralelos para comer e viver na civilização acima de Roma. Antonino, como se fazia chamar pelos repórteres mais chegados, sabia que deveria se escorar neles caso quisesse levar seu plano adiante. Contra os mais sorrateiros poderes da Itália, somente a capa dos jornais e revistas e as escaladas dos noticiários de rádio e TV manteriam ao lado dos investigadores o único inimigo que nenhum político em nenhuma parte do mundo deseja ter: o povo.

No mês seguinte à confissão de Chiesa, oito empresários foram presos, provaram o cárcere por mais tempo do que imaginaram, confessaram e saíram como colaboradores de Justiça, abrindo galáxias ainda maiores no universo da corrupção estatal vislumbrada pelo procurador. A técnica se repetiria dezenas de vezes, sob críticas ferozes de partidos e movimentos da sociedade civil que apontavam excessos cometidos pela Procuradoria, que seguia avançando em seu carro-armado.

A confissão de Chiesa criou um clima de instabilidade política. Onde todos se viam como inimigos, Di Pietro surgiu como opção. Sem a confiança do sistema de propinas, o procurador empurrou seu próprio sistema: prender, obter confissões que envolvessem mais e mais nomes, negociar uma pena menor, livrar da prisão. Uma reação em cadeia. Quando o último dos oito empresários prestou o depoimento definitivo, seu advogado, um experiente defensor que já havia visto muitos casos de colarinho branco, foi interpelado por jornalistas que há algum tempo faziam plantão em frente ao presídio de San Vittore, para onde eram levados os investigados. “Esses aí irão em frente por anos e anos. Farão centenas de prisões.”

***

Uma semana depois da confissão dos empresários, o procurador-chefe se arrastou pelo imenso corredor que separava a sala de Di Pietro da sua e lhe ofereceu ajuda. Antonio aceitou e a passou a trabalhar com outros dois procuradores, Gherardo Colombo e Piercamilo Davigo. Juntos, os três dividiram o processo em fases e espalharam o método Di Pietro por todas as fases da operação. Em cada uma delas, um alvo principal deveria ser investigado. Até a metade de 1992, caíram nas redes da Mãos Limpas o prefeito de Milão e seu antecessor, também do PSI. No bar da Procuradoria, os repórteres comentavam que estava aberta a temporada de caça ao secretário-geral do partido, Bettino Craxi, que eles chamavam de “javalizão”. Era sem dúvida a maior cabeça a prêmio do matagal político. Naqueles dias, o próprio Di Pietro confessou a Paolo Colonnelllo, colunista do jornal Il Giorno: “Podemos chegar a Craxi. Mas temos que ir com calma”.

Colombo, Di Pietro e Davigo em 1994.
Colombo, Di Pietro e Davigo em 1994.

Intimidado, Bettino Craxi partiu para o ataque. Acusou os procuradores de tortura, disse que as prisões eram ilegais e que os métodos para obter confissão se configuravam abusos das leis. Em entrevistas e editoriais, apontava a magistratura como fator de instabilização social e política e denunciava os conselhos superiores de compactuar com táticas extremas para levar o processo a um fim político: outros partidos que não o PSI estariam tendo vida fácil enquanto os socialistas eram vistos como únicos culpados diante da opinião pública. Em junho, as denúncias de Craxi tiveram um eco terrível na área rural da cidade de Lodi: Renato Amorese, 49 anos, secretário local do PSI, suicidou-se com um tiro na têmpora. “Eu errei, estou mortificado pelos meus erros”, escreveu na carta de suicídio que deixou para a esposa. “Peço perdão.” A Di Pietro, no entanto, Amorese concedeu o perdão: “Agradeço pela compreensão que demonstrou comigo”. Não teve a mesma compaixão com o procurador o deputado socialista Sergio Moroni, 45 anos, que tirou a própria vida em 2 de setembro depois de enviar uma carta a um líder partidário na qual evidenciava um processo “sumário e violento”.

[olho]“Eu errei, estou mortificado pelos meus erros”, escreveu Lodi na carta de suicídio que deixou para a esposa[/olho]

As tragédias pessoais não pareciam comover a população. A operação tinha forte apelo popular, e os suicídios ou as palavras de Craxi eram sopros de vento diante dos furacões da Procuradoria. Nas ruas, a Itália enlouqueceu. Cartazes com mensagens de apoio a Antonio Di Pietro eram vistos todos os dias. “Salvai-nos do mal.” Foram criados comitês de cidadãos em várias cidades do país para apoiar os trabalhos do procurador. Manifestações tomaram conta da entrada do Palácio da Justiça em Roma pedindo para que Di Pietro não desistisse. Surgiram até mesmo hagiografias baseadas em boatos: numa delas, Di Pietro, um verão antes da Mãos Limpas, havia salvado uma moça que se afogava no mar, levando-a em segurança para a areia diante de centenas de olhares curiosos. No comércio popular, cartazes com os procuradores no lugar dos atores do filme Os Intocáveis eram vendidos aos milhares.

Naquele mesmo ano, quando a mãe de Di Pietro faleceu, o jornalista do Corriere della Sera, Goffredo Buccini, foi à cidade natal do procurador e cedeu carona aos dois novos companheiros de Antonio, Davigo e Colombo. No cemitério, foi como se carregasse duas estrela de cinema — a massa tentando entrar no carro pelas janelas, o jornalista manobrando para evitar uma tragédia. Era como se, depois de décadas votando em lobos sem escrúpulos, aquela gente estivesse abraçando os caçadores que tentavam cortar as cabeças dos animais.

Nomes de políticos de todos os partidos já começavam a aparecer nas anotações dos procuradores, mas o mais em evidência ainda era Bettino Craxi. Cercado, o secretário-geral do PSI pesou a mão. Em um artigo publicado no jornal Avanti, Craxi escreveu: “Nem tudo que reluz é ouro”. Atacando Di Pietro pessoalmente, defendeu que o procurador era parcial, e sugeriu que ele protegia amizades enquanto atacava os socialistas. O artigo não surtiu efeito popular. No descampado da arena política, em 15 de dezembro daquele interminável 1992 Bettino recebeu sua primeira intimação para depor na Mãos Limpas.

A sequência de acontecimentos despertou um enorme sentimento anti-Craxi no país, já visto como culpado aos olhos da opinião pública. Em um editorial publicado em outubro de 2005 no jornal La Repubblica, o jornalista e escritor Filippo Ceccarelli relembrou o clima das ruas. “Foi um autêntico contágio em massa, um mecanismo acusatório” no qual “não passava um dia sem que Craxi encontrasse nas ruas jovens que lhe gritavam ‘Ladrão!’ mostrando os punhos cerrados. Nasceu uma espécie de rito cotidiano, tanto que um dia o sósia televisivo de Craxi, Pier Luigi Zerbinati, precisou se esconder em um carro com medo de ser confundido com o Craxi verdadeiro”.

Em fevereiro de 1993, um ano após a prisão de Mario Chiesa que desencadearia um inferno político na Itália, Bettino Craxi se demitiu do cargo de secretário-geral do PSI. Em 30 de abril, após receber quase duas dezenas de intimações da Justiça, Craxi fez seu último discurso no Parlamento, no qual acusou todos os líderes de partidos de hipócritas, defendendo que todos eram beneficiários do mesmo esquema que estava erodindo o PSI. “Não sou culpado nem mais e nem menos que ninguém”, declarou. Mesmo diante da ira de alguns de seus colegas deputados, Craxi foi blindado pelo Parlamento, que não autorizou que a Justiça fizesse investigações relevantes sobre seu nome e seus contatos, dando a ele uma espécie de foro especial.

[olho]“Não sou culpado nem mais e nem menos que ninguém”, declarou Craxi[/olho]

A proteção da Câmara ao ex-secretário do PSI gerou revolta popular. Naquela mesma noite de 30 de abril, praças em toda a Itália foram tomadas por cidadãos exaltados. Líderes populares e até mesmo outros juízes e procuradores — que haviam se manifestado contra o voto do Congresso para salvar Craxi — fizeram discursos e reuniram multidões. A noite terminou com uma massa diante do hotel em que o político estava hospedado. Ao tentar sair, foi recebido por uma chuva de moedas ao som de Guantanamera, com a letra do refrão trocada pelas frases “vuoi pure queste? Bettino vuoi pure queste?” (“quer também essas? Bettino quer também essas?”). Anos mais tarde, em uma entrevista, Craxi definiria aquela noite como o fim de sua carreira política.

***

A operação Mãos Limpas não parou no PSI. Nos meses seguintes, todos os principais partidos italianos seriam investigados. O escândalo envolveria boa parte das maiores empresas italianas, Olivetti e Fiat na primeira fila — todas sempre dispostas a pagar enormes propinas para ver seus negócios decolarem. O desfecho midiático aconteceu em outubro de 1993, pouco mais de um ano e meio após o início das investigações. Antonio di Pietro conduziu na TV, ao vivo para toda a Itália via RAI, o principal julgamento do caso, que tinha ao centro o empresário Sergio Cusani, uma das principais cabeças da Enimont, petrolífera de economia estatal e privada. As transmissões tinham índices de audiência clamorosos. Todos os principais líderes de partidos do país, até então senhores intocáveis, chegavam às casas dos italianos direto do banco dos réus. Aqueles que se negavam a colaborar eram intimados por Di Pietro na condição de testemunhas. Nesses casos, processualmente, o efeito era zero. Midiaticamente, um cataclisma. Os milaneses faziam fila todos os dias nos corredores do Tribunal de Milão para assistir aos interrogatórios. Quase todos os réus e testemunhas saíam de lá com os ossos triturados por um procurador que conhecia cada centavo de lira pública que cada um tinha nos bolsos. Expressões do dialeto interiorano do procurador-estrela entraram no léxico popular de todo o país, como a curiosa “che c’azzecca?”, algo como “que’nteressa?”.

Com Craxi fora do jogo, a política reagiu. Entre o final de 1993 e os primeiros meses de 1994, vários procedimentos foram à votação no Congresso para tentar salvar reputações políticas. Duas delas eram mais evidentes: uma queria despenalizar o financiamento ilícito de campanhas; outra, reduzir o tempo de prisão cautelar para acabar com a influência que os procuradores faziam em busca das delações premiadas. Por pressão popular, nenhum deles foi aprovado.

A investida da Procuradoria resultou na implosão total dos partidos. Todas as siglas foram abandonadas em nome de novos e lustrosos nomes. Os principais partidos, entre eles o Socialista Italiano e a Democracia Cristã, desapareceram. Em seu lugar, agremiações com ares de modernidade arrastaram para a arena nomes ainda limpos diante do mar de lama dos políticos tradicionais. Um deles era um empreiteiro de Milão que há anos tentava implantar uma rede de televisão privada na Itália. Como era proibido por lei de usar satélites para formar a rede — somente a TV pública RAI tinha a permissão — o empreiteiro decidiu usar a imaginação: comprou pequenos canais de TV regionais e despachou a todos eles fitas com os mesmos programas gravados: todos os dias, na mesma hora, rodava as fitas simultaneamente, criando uma rede sem satélites.

O empreiteiro teria a vida facilitada depois que o amigo e testemunha de seu segundo casamento, Bettino Craxi, conseguiu aprovar no Parlamento, antes de sua derrocada, a liberalização das redes de TV privadas na Itália.

Em 27 de março de 1994, com os partidos esfacelados, o empreiteiro que se vendia como um símbolo de renovação no país saiu vitorioso das eleições nacionais e assumiu o cargo de primeiro-ministro: Silvio Berlusconi chegava ao poder pela primeira vez, derrotando forças históricas, sobretudo com o voto de Milão e das regiões do norte, coração da Mãos Limpas.

***

A eleição pareceu acalmar a opinião pública, já cansada do imobilismo político e econômico. Do lado de fora dos tribunais, notícias pesadas enchiam as casas dos italianos todos os dias. Um levantamento feito pelo sociólogo Nando Dalla Chiesa contabilizou mais de 40 suicídios por conta da operação judiciária.

[olho]Um levantamento contabilizou mais de 40 suicídios por conta da operação judiciária[/olho]

O sucesso das transmissões da Mãos Limpas pela RAI também respingou nas outras redes de TV, sobretudo na Fininvest, nome da financeira de Berlusconi que seria o embrião de seu conglomerado televisivo poucos anos depois. Os programas da Fininvest adoravam Di Pietro, o chamavam de “anjo do bem”, elevavam sua imagem ao culto das massas como modelo de homem que os italianos deveriam copiar. O cortejo a Di Pietro tinha um propósito claro: Berlusconi sabia que o procurador não pararia de investigar, e ele próprio, Berlusconi, recém-eleito primeiro-ministro, era o alvo mais provável após a saída de cena de Bettino Craxi. Ainda em 1994, Berlusconi convidou Di Pietro para uma reunião. O procurador estava disposto a aceitar o jantar em um escritório de advocacia ligado a Berlusconi em Roma quando foi demovido da ideia por seus colegas de Procuradoria. Eles sabiam do que a reunião trataria. Besrlusconi queria dar a Di Pietro um dos mais prestigiosos cargos da Itália, o Ministério do Interior.

Berlusconi não engoliu a desfeita. Em maio, tentou passar mais uma vez, agora por decreto, o projeto que limitava o tempo de prisão preventiva, instrumento largamente usado pela Mãos Limpas para obter delações premiadas. A magistratura de Milão se uniu e protestou — inclusive ameaçando demissões em massa em programas de TV —, barrando o projeto que enterraria a operação. Em outubro, com os ânimos quentes, uma entrevista de um dos procuradores do grupo de Di Pietro, Francesco Borrelli, ateou gasolina em um fogo já altíssimo: Borrelli garantiu que em poucos meses a Mãos Limpas “chegaria em um nível político muito alto”. Todos sabiam que ele falava de Silvio Berlusconi.

O recado de Borrelli se fez sentir de modo inesperado: em 21 de novembro, o jornal Corriere della Sera dava a notícia em primeira mão: “Amanhã Berlusconi será convidado a depor”. A notícia dava detalhes da operação, mostrando que as informações teriam sido vazadas pela Procuradoria. “O presidente do Conselho está inscrito no registro de pessoas sob investigação, por corrupção. Pesam sobre ele investigações que envolvem seu irmão, Paolo Berlusconi, e sobre Salvatore Sciascia, responsável pelos serviços fiscais da Fininvest.” Berlusconi estava em Nápoles como anfitrião de uma conferência mundial sobre segurança. Jornalistas do mundo todo se debruçaram sobre ele como moscas.

Usando o Ministério da Justiça como arma, Berlusconi ordenou uma investigação interna sobre os membros e procedimentos da Mãos Limpas. Fascículos foram devassados e pessoas foram interrogadas. As acusações que pesavam sobre o grupo diziam respeito a possíveis atentados à Constituição. Fora do governo, pessoas implicadas no escândalo de corrupção foram incentivadas a processar os procuradores. Vários o fizeram. Enquanto se esquivava das ações do premier, Di Pietro conseguiu documentos de uma off shore que ligavam Berlusconi a Craxi, com somas milionárias provenientes de corrupção escondidas no exterior. Alguns diretores da Fininvest foram presos para interrogatório, inclusive o irmão de Silvio, Paolo Berlusconi.

[olho]As emissoras que antes louvavam Di Pietro passaram a demonizá-lo[/olho]

Berlusconi não deu trégua. Suas emissoras que antes louvavam Di Pietro passaram a demonizá-lo. Em 23 de novembro, apenas dois dias após a notícia do depoimento do primeiro-ministro aos procuradores, Giancarlo Gorrini, um dos investigados da Mãos Limpas, denunciou Di Pietro: dizia ter pago propina ao procurador — empréstimos sem juros e uma Mercedes. No dia seguinte, o ministro da Justiça começou uma investigação paralela e secreta contra Di Pietro. O procurador foi informado por um de seus colegas e começou a sentir o peso das retaliações. Outro procedimento pretendia culpar Di Pietro por dois dos inúmeros suicídios relacionados à Mãos Limpas. No dia 26, o procurador ouviu pelos corredores do Palácio de Justiça que, em Roma, estavam preparando um golpe para tirá-lo do cargo.

Enquanto aguardava para ouvir Berlusconi — que ainda não havia se apresentado à Procuradoria após várias intimações — Antonio di Pietro se via cada vez mais cercado por dossiês, inimigos e ameaças. Sem dar sinais de cansaço, o procurador marcou para o dia 6 de dezembro de 1994 a última sessão do júri do caso Enimont, o maior e mais midiático da Mãos Limpas. Após o último interrogatório do dia, Di Pietro caminhou até um canto da sala, pediu ajuda a uma funcionária do tribunal e começou a tirar a toga. De camisa azul-clara, o magistrado colocou uma gravata com o nó já pronto, dirigiu-se ao juiz do caso e declarou: “Não quero ser usado. Saio com dor no coração”. As poucas palavras eram seu adeus. Ao vivo para todo o país, o herói nacional anunciou que estava deixando os tribunais para sempre.

***

Apesar do choque, a operação Mãos Limpas continuaria sem Di Pietro por ainda muitos anos, interrogando, prendendo e condenando personagens do cenário político e empresarial italiano. Seu principal alvo, Bettino Craxi, fugiu da Itália em 1994, quando percebeu que seria definitivamente preso. Amigo do então ditador Zine El Abidine Ben Ali, Craxi voou para Hammamet, na Tunísia, e de lá nunca mais saiu, até morrer em 19 de janeiro de 2000, de infarto.

Berlusconi seria primeiro-ministro do país, de modo alternado, por duas décadas. Sua primeira condenação definitiva e consequente afastamento da política só viria em 2013. Durante todos esses anos, uma de suas principais algozes foi a procuradora Ilda Boccassini, formada nas fileiras da força-tarefa da Mãos Limpas de Antonio di Pietro.

Em 1996, longe da magistratura, Di Pietro fez sua estreia na política: aceitou ser ministro do Trabalho da coalisão de centro-esquerda liderada por Romano Prodi. Depois da experiência no governo, ele fundou seu próprio partido, a Italia Dei Valori, tornando-se um dos principais líderes da política italiana. Seus reais motivos para ter deixado a operação que havia começado em 1991 nunca foram totalmente esclarecidos.

No dia 31 de março de 2009, um grupo de policiais do núcleo ecológico dos carabinieri meteu o pé na porta de duas casas na província de Treviso. Era o Dia D da operação “Rewind”, que investigava um esquema de tratamento e despejo ilegal de lixo. Um dos principais alvos dos policiais era um homem de 65 anos, cabelos esbranquiçados e barba bem aparada, apontado pelos investigadores como o coletor das propinas do esquema. Era Mario Chiesa, estopim inicial da Mãos Limpas. Sem qualquer reforma de peso para barrar a corrupção no sistema político italiano, a “marionete” acusada por Bettino Craxi de “jogar sombras” sobre o Partido Socialista Italiano nos anos 90 voltara às ruas e ao jogo que tão bem conhecia.

Leandro Demori é jornalista especializado em investigações e diretor da Abraji. Seu primeiro livro, uma história da Cosa Nostra no Brasil, será lançado pela Companhia das Letras nos próximos meses. No Risca Faca, Demori assinou a investigação sobre o Lobo da Bovespa.

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Cinema

O outro lado de ‘Spotlight’

Enquanto “Spotlight”, vencedor do Oscar de melhor filme neste ano, é o sonho dos jornalistas e um retrato de tudo aquilo que a profissão pode fazer quando tudo dá certo, “Conspiração e Poder” (em inglês, “Truth”, “verdade”) é o lado oposto da moeda. O filme, que estreia nesta quinta (24), conta a história real de uma reportagem danosa ao presidente George W. Bush, exibida num dos principais programas jornalísticos do país, o “60 Minutes”, e contestada por ter usado documentos que teriam sido forjados. Basicamente, o pesadelo de um jornalista.

Era 2004, perto das eleições presidenciais americanas em que George W. Bush enfrentava John Kerry para se manter no carro, quando a equipe comandada por Mary Mapes — cujo livro serviu de base para o filme — se deparou com uma história e tanto. O político Ben Barnes, fonte de Mary, disse a ela que havia dado uma força para que Bush entrasse na concorrida Guarda Nacional do Texas, escapando de ir à Guerra do Vietnã. Investigando o histórico militar de Bush, a equipe de Mapes, papel de Cate Blanchett, encontrou um ex-militar que disse ter provas de que Bush não havia cumprido as regras de seu serviço militar e que havia sumido durante um período em que deveria estar na Guarda.

Primeiro problema: o militar não tinha os originais dos tais documentos, assinados por um superior de Bush já morto, só cópias. Segundo problema: a equipe não conseguia encontrar alguém que atestasse que o conteúdo dos documentos correspondesse à realidade. Terceiro problema: o canal CBS queria que a reportagem fosse ao ar em menos de uma semana para preencher um buraco na grade. Quatro especialistas foram contactados para confirmar a autenticidade dos papéis. Um deles afirmou que sem os originais não dava para concluir nada. Outro levantou dúvidas a respeito de um sobrescrito, que não estaria disponível nas máquinas de escrever da época. Mas um deles disse que era possível dizer que eram verdadeiros, sim. Quando eles confirmaram com um militar que conhecia os envolvidos que o teor dos documentos condizia com a opinião do superior de Bush, resolveram colocar a matéria no ar.

A alegria da equipe dura pouco. Depois de a matéria ser exibida, blogs conservadores começam a questionar a autenticidade dos documentos. Pela fonte e pelos espaçamentos utilizados, eles parecem ter sido feitos com as configurações básicas do Word. Alguém levanta a questão do sobrescrito que o especialista tinha apontado. A fonte volta atrás e diz que os documentos eram falsos. O ex-militar que trouxe os papéis para a equipe confessa que mentiu e que recebeu aqueles documentos de dois desconhecidos, e não de alguém confiável.

“Conspiração e Poder” levanta várias questões sobre o jornalismo, ainda mais importantes no contexto de hoje. Questionam Mary: mas como você sabia que o político te disse a verdade? Só porque uma pessoa disse algo, não quer dizer que tenha acontecido — depoimentos precisam ser acompanhados de provas. Ela não considerou o interesse das fontes? Graças a ela o dono dos documentos tinha entrado em contato com a equipe de Kerry. Ela não se questionou a respeito de onde vieram esses documentos vazados, a respeito do caminho que o papel fez até chegar a ela?

Em certo ponto perguntam a Mary a respeito de sua posição política. Ela diz que não é importante, mas a pressionam: ela recebeu os documentos e assumiu que eles eram verdadeiros, ficando satisfeita com qualquer evidência de que eles realmente eram. Se ela fosse realmente imparcial, e não uma esquerdista anti-Bush, ela teria presumido que o presidente fosse inocente e assumido que os documentos eram falsos até que encontrasse provas substanciais do contrário. Num filme chamado “verdade”, fica clara a dificuldade de saber a realidade sobre qualquer coisa. Mary escolheu acreditar nas suas fontes e, depois de falhar no processo de apuração, teve sua carreira completamente destruída — desde então ela nunca mais trabalhou na televisão, apesar de ser uma jornalista premiada.

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Cena de "Conspiração e Poder". Crédito: Divulgação
Cena de “Conspiração e Poder”. Crédito: Divulgação

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Outro ponto interessante apontado pelo filme é o tratamento que Mary recebe na internet depois que o escândalo estoura. O apresentador do programa, Dan Rather (Robert Redford), era um jornalista estimado, que havia ancorado o maior número de telejornais nos Estados Unidos. Era ele a cara da reportagem, e além de Mary havia toda uma equipe por trás da reportagem — dos pesquisadores aos chefes da emissora que apressaram a produção. Mas é ela quem é malhada publicamente. Chamada de feminazi, esquerdista, feia, vadia, e ameaçada de morte.

As questões que o filme suscita a respeito do jornalismo e do tratamento dado às mulheres online são, porém, melhores que o filme em si. “Conspiração e Poder” não chega a conclusão nenhuma no fim das contas, e passa superficialmente sobre todos esses assuntos. Um dos jornalistas do time, interpretado por Topher Grace (o Eric de “That 70’s Show”), faz um discurso inflamado acusando a emissora de queimar Mary porque a Viacom, dona da CBS, precisava da ajuda de Bush para um projeto que a favoreceria. Mas fica só nisso.

O filme passa ao lado de assuntos realmente dignos de serem discutidos e prefere apostar em platitudes como “o mundo precisa do jornalismo” e “não devemos parar de questionar nunca”. Sim, é verdade, mas essa mensagem “Spotlight” transmitiu com mais eficiência. “Conspiração e Poder” perde a oportunidade de discutir de verdade de que tipo de jornalismo o mundo precisa.