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‘Wolfpack’: Juventude enclausurada

Quando Crystal Moselle cruzou com um exótico grupo de jovens, com cabelos bem compridos e roupas que pareciam fazer parte do figurino do filme “Cães de Aluguel”, ela não fazia ideia de que ali nascia seu primeiro documentário, “The Wolfpack”. “Eles passaram por mim e eu tive uma experiência de ‘o que está acontecendo? Quem são essas pessoas?’”, lembra, rindo. Alguma coisa naquela visão em uma rua de Nova York a deixou intrigada e a fez correr atrás dos seis irmãos para se apresentar. A primeira surpresa veio de cara, quando perguntou de onde eles vinham e eles responderam que de uma rua ali do lado, no East Village. De alguma forma, ela nunca tinha visto aquele grupo de irmãos de terno e gravata circular por ali. Mais pra frente, ela descobriria a razão: eles tinham sido criados praticamente presos dentro de casa e não circulavam em lugar algum. Podiam sair só acompanhados do pai, normalmente poucas vezes ao ano; ou até nenhuma vez, dependendo do ano. Mas por enquanto era só uma conversa despretensiosa, resultado de um instinto de saber mais sobre aquelas figuras.

O interesse dos irmãos Bhagavan, Govinda, Jagadisa, Krsna, Mukunda e Narayana Angulo, com idades entre 11 e 18 anos na época, foi capturado quando Crystal contou que era cineasta. “Eles tinham interesse em trabalhar com cinema. Virou uma amizade. Comecei a mostrar filmes, passar tempo com eles. Conversávamos sobre cinema, esse tipo de coisa”, diz. Até então, era só uma amizade, não um projeto. “Um dia perguntei pra eles se eles queriam fazer um documentário. Eu pensava em segui-los e mostrá-los sendo quem eles eram. Mas conforme o tempo foi passando as coisas ficaram mais intensas e eles contaram sua história pra mim.”

E a história realmente era digna de filme. Uma sinopse, segundo o Netflix, que passou a exibir o filme neste ano: “sete irmãos criados quase em isolamento são moldados pelos filmes que assistem obsessivamente, embora anseiem por mais liberdade”. Crystal sabia de cara que estava diante de uma família incomum, mas foi só depois de meses de convivência que ela descobriu que aqueles seis rapazes e sua irmã haviam passado a maior parte de suas vidas enfurnados em casa, por ordens do pai. Oscar guardava a única chave da casa, à qual nem a mãe, Susanne, tinha acesso. O peruano conheceu Susanne em uma viagem para Machu Picchu. Casaram-se e mudaram-se para os Estados Unidos, onde nasceram os filhos. Mas para ele, Nova York e seus habitantes eram perigosos demais e a saída que viu para o problema foi isolar os filhos. Nas raras vezes em que deixavam a casa, para ir ao médico ou algo assim, as crianças não podiam interagir com ninguém. A família era como uma pequena tribo fechada em si.

Cena do documentário 'The Wolfpack'
Cena do documentário ‘The Wolfpack’

Mas os garotos criados entre quatro paredes (a menina, Visnu, tem síndrome de Turner e mal aparece no filme) não cresceram numa experiência estilo “O Quarto de Jack”, sem saber nada do mundo lá fora. Suas estantes eram ocupadas por milhares de filmes de todos os gêneros, fornecidos pelo pai, aos quais eles assistiam sem parar. Os filmes eram sua válvula de escape para o mundo fora do apartamento, e depois de vê-los os meninos os reencenavam em detalhes. As falas das produções favoritas eram transcritas para o papel, todos decoravam seus papéis e copiavam com detalhes aquilo que viam em cena.

Com materiais encontrados em casa, os irmãos montavam seus próprios cenários e figurinos. Uma fantasia de Batman vestida por eles, por exemplo, foi toda feita com pedaços de tapete de yoga e caixas de cereais e, cheia de detalhes, não fica devendo muito à usada por Ben Affleck em “Batman vs. Superman”. Não à toa eles ficaram maravilhados quando Crystal contou que trabalhava com cinema. Graças a essa paixão em comum os irmãos Angulo superaram a barreira de não conversar com estranhos e abriram as portas de sua casa para ela — a primeira visita de alguém de fora da família que eles tiveram.

Crystal encontrou com os garotos em uma de suas primeiras excursões em grupo para fora do apartamento. O primeiro a se aventurar e conhecer o mundo foi Mukunda, cansado das limitações que lhe impunham. Aos 15 anos, aproveitou uma saída do pai para fazer compras, vestiu uma máscara do filme “Halloween” para não ser reconhecido caso se deparasse com ele e escapou. Circulou pelas ruas da cidade até ser pego pela polícia depois de uma denúncia — embora Mukunda não tenha feito nada, algumas pessoas ficaram assustadas. Não é todo dia que se vê um adolescente cabeludo vestido como um personagem de filme de terror vagando por bancos e lojas.

De lá, Mukunda foi levado para um hospital psiquiátrico, onde passou uma semana e pôde pela primeira vez conviver com pessoas que não eram de sua família. Daí pra frente, a vida dos irmãos nunca mais foi a mesma. Aos poucos, os outros garotos Angulo começaram a questionar a autoridade do pai e seguir Mukunda em seus passeios pelas redondezas. Sempre juntos, como uma família de lobos (“wolfpack”, apelido dado a eles por um amigo da diretora). Por um acaso, seus caminhos se cruzaram com os de Crystal, que estava no lugar certo na hora certa.

Contar uma história dessas foi bem mais difícil do que a cineasta imaginava quando sugeriu fazer um documentário com eles. A ideia de segui-los e retratar sua vida ganhou uma dimensão maior do que apenas mostrar um grupo de irmãos que se vestiam como personagens de Tarantino. Crystal conseguiu um acesso impressionante à família para fazer um retrato de como é descobrir o mundo. Se eles diziam que queriam ir à praia pela primeira vez, Crystal ia atrás com a câmera para mostrar a reação deles ao ver o mar e o medo que um teve de molhar os pés. Quando tinham dúvidas sobre como conversar com uma garota, Crystal também estava lá para captar essa experiência vivida pela primeira vez. Por mais que tivessem visto tudo aquilo nos filmes, a vida real é bem diferente, como eles percebem ao pegar um metrô, despreparados com a velocidade do trem. Tudo isso está no filme e no livro “Wolves Like Us”, de Dan Martensen, amigo de Crystal.

“Não é possível fazer um filme desses e não se envolver emocionalmente”, conta a diretora, rindo de leve. “Não foi fácil. Foi por isso, provavelmente, que levei cinco anos para fazer esse filme. Estávamos numa jornada juntos, tinha um monte de questões de confiança, que eles tinham na vida. A questão era encontrarmos essa confiança uns nos outros.” Os pais Angulo também se mostraram abertos a conversar com ela, principalmente a mãe. A certa altura, em um vídeo feito por um dos filhos, vemos Susanne ligar para sua mãe pela primeira vez em anos, contrariando uma proibição do marido, dizendo estar saudosa e tentando marcar uma visita. Durante todo aquele tempo, não eram só os filhos quem viviam num tipo de prisão — Susanne também.

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Os irmãos Angulo, em foto de Dan Martensen, que lançou o livro “Wolves Like Us”. Crédito: Divulgação

Oscar é uma figura mais misteriosa, quase que um líder de culto. Nos poucos momentos em que aparece em cena, diz coisas como “meu poder influencia todo o mundo” e não admite ter errado de nenhuma forma na criação dos filhos, a maior parte dos quais já não conversa mais com ele. Parte de uma comunidade Hare Krishna quando mais jovem, Oscar se inspirou em Krishna, que teve dez filhos, e além de dar nomes em sânscrito para todas as crianças os estimulou a manter os cabelos grandes, como uma demonstração de poder e força, tal qual Sansão.

A documentarista, que conversou com Oscar em várias ocasiões para tentar compreendê-lo, diz que tentou deixar seu julgamento de fora do filme. “Eu só queria capturar o que eu pudesse nele. Não sei se entendo o que ele fez. Posso ver o ponto de vista dele, mas não estou certa de que concordo”, afirma. A maior dificuldade, conta, não foi fazer com que Oscar se dispusesse a conversar com ela, mas com que ele olhasse para si mesmo e para tudo o que tinha feito. “Acho que foi difícil para ele.”

“The Wolfpack”, vencedor no ano passado do grande prêmio do júri em Sundance, maior festival de cinema independente dos Estados Unidos, acompanha os Angulo até o ponto em que Govinda muda de casa. Hoje a vida deles mudou ainda mais: dois mudaram de nome (Jagadisa agora é Eddie e Krsna é Glenn), vários criaram perfis no Facebook, quase todos cortaram os cabelos e um chegou a ficar loiro. Crystal diz que continua muito próxima dos garotos. “Estava com eles hoje. Vamos fazer o MTV Movie Awards na semana que vem. Eles vão fazer um tipo de comentário para o prêmio”, diz ela, que concorre ao troféu de documentário.

Os irmãos não se envolveram de nenhuma forma na produção do documentário e só assistiram a tudo já no final, pronto. “Foram sempre muito positivos em relação ao filme, até o pai. Foi meu pior medo, mostrar o documentário para meus personagens”, diz ela. Mas graças à experiência adquirida fazendo os próprios filmes, vários trabalham na indústria do cinema. “Eles fazem de tudo, tem gente que trabalha com fotografia, em salas de cinema, com produção. Mukunda está fazendo curtas e estamos trabalhando juntos. Eles estão fazendo várias coisas diferentes, mas querem, principalmente, inspirar mudanças”, conta. Para os garotos, contar sua história pode inspirar as pessoas a lutar pelo que querem e não aceitar a opressão. “Eles estão muito inspirados em ajudar o planeta e outras pessoas. Todos eles estão dividindo suas experiências para ajudar outras pessoas.”