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O encontro de Jango com um mafioso italiano

 

O Risca Faca publica orgulhosamente um trecho do livro “Cosa Nostra no Brasil: a história do mafioso que derrubou um império”, escrito por Leandro Demori e publicado pela Companhia das Letras. O livro conta a história de Tommaso “Masino” Buscetta, mafioso italiano que se envolveu com a história brasileira. Demori é jornalista, editor do Medium Brasil e assinou, no Risca Faca, a investigação sobre “o Lobo da Bovespa” e a história da operação que influenciou a Lava Jato. Você pode comprar o livro, que chega às livrarias nesta semana, clicando aqui.

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Homero não tinha dinheiro suficiente para topar a proposta que Tommaso acabara de fazer, mas seria difícil recusá‐la. Após sanar as dívidas da Satec e da Staf, Masino tinha derramado mais 35 mil cruzeiros para tapar outros rombos na empresa. Como negócios legalizados, as consultorias eram uma furada. A parceria se mostrava lucrativa para Buscetta, Homero e seus sócios por outras vias. “Quem sabe botamos no nome do Homerinho?”, sugeriu Masino. Homero de Almeida Guimarães Júnior tinha 26 anos e trabalhava com o pai. Tommaso o adorava, e aos poucos os dois se tornaram verdadeiros amigos. Casado há pouco tempo, não tinha dinheiro, mas sua esposa recebeu, como herança, uma casa e um prédio de apartamentos em São Paulo. “Eles podem vender os imóveis…” Homero aceitou. Comprou a metade de uma fazenda de criação de gado em sociedade com o genro Roberto, que entrou com o restante do dinheiro. As terras foram colocadas em nome de Homero Júnior e Benedetto Buscetta, o Bene.

Enquanto Sarti e David viajavam para o Uruguai para continuar as operações do tráfico, Masino recebia por telefone propostas de vendedores de áreas agrícolas. Homero tinha ativado todos os seus contatos, inclusive o general Ernesto Bandeira Coelho, chefão da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, a Sudam. Além de procurar por terras disponíveis, esperava conseguir do militar o rápido andamento do processo para descontos no Imposto de Renda, concedidos pelo governo a projetos agropecuários.

Homerinho e Bene também tinham se tornado amigos. Com a ideia de adquirir as terras, Masino ordenou que os rapazes rodassem o Brasil em busca de uma oportunidade. Amazonas, Goiás e Mato Grosso foram os estados escolhidos. Antonio, o Toni, terceiro filho de Tommaso com Melchiorra, os acompanhou — havia chegado ao Brasil havia pouco, vindo de Nova York.

Homero ficou encarregado de analisar as propostas que chegavam por telefone entre dezembro de 1971 e fevereiro de 1972, período em que Tommaso e Maria Cristina viajaram, em alegadas férias, pela América Latina. Estiveram na Venezuela, onde Salvatore “Passarinho” Greco morava desde que a bomba de Ciaculli matara sete policiais, em 1963. Embora corresse o risco de ser preso, Masino ainda iria para os Estados Unidos e para a Itália em viagens cujos objetivos até hoje são desconhecidos. De volta ao Brasil pouco antes do Carnaval de 1972, o italiano recebe uma boa notícia: Homero havia localizado uma grande área para negócio no Mato Grosso — com pista de pouso em boas condições. O italiano ficou empolgado quando soube que o dono era um velho amigo do sogro, um personagem público que traria excelentes garantias ao negócio, mesmo que exilado do país pelos milicos: João Belchior Marques Goulart, o Jango, presidente deposto do Brasil.

Jango vivia no Uruguai desde o golpe. Seu rancho em Maldonado, a duas horas da fronteira, era destino de peregrinação de amigos, políticos e militantes de esquerda. A pouco mais de cem quilômetros de Montevidéu, a cidade litorânea era escorada de um lado por dunas muito brancas e águas muito frias e, do outro, por imensidões campeiras de ar gelado onde as estradas pareciam pistas de pouso, e as pistas de pouso, estradas de barro. Por aquelas bandas, a presença de animais de corte era mais apreciada do que a de seres humanos. Os brasileiros que desandavam ao sul buscavam em Jango amparo e conselhos — e tentavam convencer o político a voltar ao Brasil e enfrentar o Exército.

Tommaso, Homero, Maria Cristina, Bene e Homerinho marcaram de se encontrar com o gaúcho no dia 1o de março. São recepcionados com um churrasco, oferecido aos cinco e a outros convidados, em comemoração aos 53 anos de Jango. Cardíaco, Jango bebe uísque e fuma um de seus quarenta cigarros diários — misturados com remédios vasodilatadores que ajudam suas veias a sustentar o coração, maltratado por um infarto que o acometeu três anos antes. Sentia faltas de ar constantes. Abria um vidro e sacava do algodão um Isordil. O comprimido derretia sob a língua, invadia a corrente sanguínea e obrigava a pressão sobre as veias a arrefecer; os pulmões voltavam a se encher de ar.

Jango, Maria Cristina e Tommaso, na fazenda uruguaia
Jango, Maria Cristina e Tommaso, na fazenda uruguaia

Amigo de Homero havia mais de uma década, João Goulart explica a localização exata da fazenda Três Marias — 10 mil hectares situados à margem norte do Pantanal mato‐grossense. As terras abrigavam um naco de rio, cabeças de gado, uma floresta particular e um pedaço de história. Na sede — uma simples mas acolhedora casa de estância —, Jango, ainda presidente do Brasil, havia se reunido secretamente com o então ditador do Paraguai, Alfredo Stroessner, para assinar o tratado que daria origem à construção da hidrelétrica de Itaipu. Ele conta aos convidados que costumava visitar a área partindo de avião de São Borja, no Rio Grande do Sul, e esclarece que as terras estavam sendo administradas por seu piloto particular e homem de confiança. A localização da fazenda era perfeita: poucas horas de voo da Bolívia e do Paraguai — ponto de reabastecimento adequado para o tipo de empreitada que Tommaso buscava secretamente levantar. Jango acerta os olhos em Homero e estabelece suas condições. O homem era tido como grande negociador. Sua dedicação às atividades agropecuárias vinha desde a adolescência, nas terras da família em São Borja. Deposto, passou a negociar fazendas e tudo o que elas poderiam produzir: bois, arroz, ovelhas, lã. Comprou áreas no Uruguai, no Paraguai e na Argentina. Organizou empresas de exportação de carnes e grãos — e se tornaria tão reconhecido que teria ajudado o presidente da Argentina, Juan Domingo Perón, a desatar nós de exportação bovina entre aquele país e a Líbia. Como os tempos eram incertos, o ex‐presidente, precavido, ofereceu a Homero, em vez da venda, o arrendamento da propriedade. Masino aceitou, sob a condição de que o piloto fosse dispensado. Não queria gente de fora troteando por lá. Negócio fechado.

De volta ao Brasil, Homero procurou o general Bandeira Coelho para apressar a documentação junto à Sudam. Tinha ânsia em tomar posse da fazenda do ex‐presidente, sobretudo pela pressão de Masino. O militar o atendeu amistosamente na própria residência. Homero acreditava que tudo andaria bem antes de ouvir do general que o negócio não poderia ser concretizado. Ao notar que a fazenda era de João Goulart — que se beneficiaria financeiramente com o arrendamento —, Bandeira Coelho se negou a assinar a papelada e mandou Homero procurar outras terras. Ao saber da notícia, Masino ficou desapontado.

O esfriamento do negócio trouxe um problema maior. Os aniversários de João Goulart no Uruguai eram vigiados pelos órgãos repressores do Brasil. Nos anos 1970, fotos das confraternizações em Maldonado seriam anexadas aos arquivos contra Jango, montados pelos serviços de inteligência. Os militares tinham medo de que o ex‐presidente retornasse ao país. Sua liderança ainda era respeitada por boa parte da população.

Com o fim do regime, os arquivos secretos da ditadura correspondentes ao ano de 1972 desapareceram da pasta de João Goulart organizada pelos órgãos de repressão. Seu paradeiro é um mistério. É impossível afirmar se os militares tiveram acesso a uma imagem clandestina daquela criatura cabeluda, estranha ao convívio de Jango. Sem documentos contundentes que esclareçam a história, há apenas um depoimento‐chave de um personagem diretamente envolvido na questão.

Mesmo que os arquivos da ditadura tenham sido destruídos, uma foto familiar sobreviveu ao tempo e foi capaz de desencadear uma tormenta na vida de Tommaso. Orpheu dos Santos Salles, sócio de Homero, teria entregado ao Dops a foto na qual Masino, Homero, Cristina, Bene e Homerinho aparecem abraçados ao ex‐presidente. A imagem enfeitava um móvel na sala do apartamento de Buscetta em São Paulo. Orpheu e os generais ligados a Homero tentariam, assim, se livrar do italiano — e mostrar aos militares que não tinham nada a ver com ele. Àquela altura, eles já desconfiavam de Tommaso, que passava os dias recebendo gente estranha e despachando pelo telefone dos escritórios da firma sem jamais dizer o que realmente fazia.

A foto foi parar direto nas mãos do delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, um dos mais implacáveis agentes do Dops, reportado como persistente torturador por dezenas de prisioneiros que passaram por sua delegacia. Fleury e a cúpula da repressão não tinham nada contra Tommaso Buscetta. Nem mesmo sabiam quem ele era. Ligados em tudo o que era relacionado a Jango, acreditaram que o italiano pudesse fazer parte de algum grupo comunista disposto a financiar a volta do ex‐presidente ao Brasil — movimento que a ditadura não poderia permitir. Fleury começou a buscar informações sobre “Roberto” sem saber seu verdadeiro nome, muito menos sobre seu passado mafioso e o presente no mercado internacional de heroína. Acreditou estar levantando a ficha de um subversivo europeu. Mirou no que viu, acertou o que não viu.

A frustração provocada pelo distrato do negócio da fazenda pressionou Masino a encontrar uma solução. Ele intuía que Homero entraria em qualquer negócio que propusesse, e tudo indica que tenha forçado o sogro a enfrentar uma nova tentativa. Sabendo que Homero havia recebido a visita de um corretor que lhe oferecera uma fazenda em Echaporã, no interior de São Paulo, Tommaso apelou para o instinto paterno: disse que estava desgostoso com o Brasil e que levaria Cristina para morar com ele no exterior. O velho foi tomado pelo pavor. Em um final de semana, levou Masino, Bene e Homerinho para conhecer o rancho em Echaporã. Masino e o filho ficaram encantados com a fazenda Santo Antônio e seus 4,4 mil hectares, 360 cabeças de gado e diversos animais de montaria. Sem pensar muito, Homero desembolsou 300 mil cruzeiros para dar entrada na papelada das terras — que custariam mais de 1 milhão de cruzeiros —, penhorando a própria casa. Com a promessa de Masino de que cobriria parte da dívida, outros 300 mil, esperava conquistar Bene, que convenceria o pai a ficar no país.

Parecia ter dado certo. Bene e Homerinho tomaram posse da fazenda Santo Antônio e Tommaso visitaria a fazenda diversas vezes ao longo dos meses seguintes. Para ficar mais próximo, saiu da mansão em que morava na avenida Indianápolis, 595, em São Paulo, e alugou dois apartamentos — um para ele e Cristina, outro para Bene e sua esposa, que acabara de chegar de Nova York — em Marília, a quarenta quilômetros de Echaporã. Estava decidido a investir tempo na nova empreitada.

O transporte aéreo de heroína era uma novidade no Brasil, mas já funcionava havia alguns anos em outros países. Um ano antes, em outubro de 1971, Lucien Sarti convidou Helena para mais uma de suas viagens. Juntos, viajaram para São Paulo, Montevidéu, Lima e Cidade do México. Na capital do Peru, o francês se encontrou com Housep Caramian, um correio responsável por fazer a droga voar da América Latina para os Estados Unidos. Lá, combinaram que Caramian colocaria 120 quilos de heroína recém‐chegada da Europa em um avião particular de Sarti. Caramian e um piloto rumaram de Lima com destino a uma pista militar abandonada no deserto mexicano, onde Lucien Sarti, Michel Nicoli e outro homem recepcionaram a carga e a levaram de carro para a Cidade do México. O negócio teria sido feito ali mesmo, com Carlo Zippo, que teria pagado pela droga 840 mil dólares — 7 mil dólares o quilo, valor mais baixo do que se fosse entregue diretamente nos Estados Unidos. Sarti voltou ao Brasil em um voo via Panamá, onde provavelmente depositou o dinheiro.

A ideia de usar o interior do Brasil como entreposto de carga e abastecimento parecia firme. Depois de tomar posse da fazenda em Echaporã, Masino se encontrou com Michel Nicoli no terraço do Edifício Itália, em São Paulo. Tommaso e Nicoli já se conheciam. O francês, nascido em Marselha em dezembro de 1930, era um dos homens de maior confiança de Auguste Ricord. Carteiro desde a adolescência, enveredou para o crime nos anos 1960, dirigindo carros de fuga para uma quadrilha de assaltantes na França. Em 1963, já clandestino em Buenos Aires, importava roupas falsificadas da Europa para revender na Argentina. Sua entrada no tráfico ocorreu aproximadamente em 1966, quando conheceu Lucien Sarti no restaurante El Sol, ponto de encontro de desterrados franceses na capital. Nicoli vivia no Brasil desde 1969 sob o nome de Carlos Collucci da Silveira, um cidadão brasileiro fictício nascido no Rio Grande do Sul. Com o dinheiro que tinha levantado fazendo viagens de leva e traz de heroína, Michel fundou no número 255 da rua Acre, na Mooca, em São Paulo, a empresa Delga Alumínio e Plástico Ltda. As investigações policiais da época não foram a fundo na contabilidade da companhia, mas é provável que a Delga fizesse lavagem de dinheiro. Ao menos dois malotes com dólares sujos viajaram do Rio de Janeiro para Nova York, onde foram depositados na conta da empresa nos Estados Unidos e depois retransferidos para o Brasil como “investimentos externos”.

Tommaso contava com Nicoli para sua nova empreitada. Ele já havia participado da reunião no Copacabana Palace, em agosto de 1971, onde também estavam Carlo Zippo, Lucien Sarti e Christian Jacques David. Sabia trabalhar e estava pronto. Em um depoimento dado ao Dops tempos depois, Nicoli confessaria que conhecia todos os integrantes do grupo, inclusive Buscetta, “elemento de projeção da cúpula da máfia”, e que o havia encontrado “umas quatro ou cinco vezes” no Brasil. Juraria, no entanto, que em nenhuma delas por motivos escusos. Admitia conhecer Tommaso, mas não imputava a ele nenhum crime.

O distrato do negócio com Jango parecia ter trazido mau agouro ao supersticioso Tommaso. Março, mês em que estivera com o ex‐presidente brasileiro no Uruguai, era período de embaraço na história siciliana. Por duas vezes, em séculos distintos, o povo da ilha tentou uma revolução pela independência contra estrangeiros dominantes. Fracassara em ambas. O mês que marcava o começo das guerras para os povos europeus antigos faria seus estragos naquele ano bissexto de 1972.

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Por que ‘O Alquimista’ é um fenômeno nos EUA?

“O Alquimista”, de Paulo Coelho, é um livro curioso. Quase todo o mundo diz que odeia, pouca gente diz que leu. Mas muita gente comprou e ainda compra o livro — pelo menos nos Estados Unidos. Entra semana, sai semana, o livro de Coelho aparece na lista de mais vendidos do jornal The New York Times. Em outubro, completou oito anos na lista, feito que nenhum outro escritor alcançou. Na versão mais recente, da primeira semana de novembro, “O Alquimista” ainda está lá, rondando o top 10 em exemplares vendidos, como na semana anterior, na anterior, na anterior… Paulo Coelho seria o Romero Britto das letras: criticado aqui, sucesso lá.

Mas “The Alchemist” é um livro realmente curioso: embora continue vendendo bem nos Estados Unidos, achar algum estudioso de literatura brasileira no país que se dispusesse a falar sobre ele foi tarefa dificílima, com zero porcento de aproveitamento. De um professor na Universidade da Flórida: “Ontem uma estudante do Equador disse que tinha o livro e o havia lido. Posso relatar uma história de quando conheci Paulo Coelho (um jantar na casa dele). Ele me perguntou: ‘Você não leu meus livros, né?’. E eu respondi: ‘Não’. Ele continuou: ‘Não importa’. Não estudo muito ficção, muito menos o Senhor Rabbit. E se você tiver algo a ver com a Rede Globo: não, obrigado”.

Uma professora do Novo México, indicada pelo professor da Flórida, também não podia falar. “Não sou especialista em Paulo Freire”, lamentou. Outro estudioso foi bem sincero: “Não tenho muito interesse nem experiência com a obra do Paulo Coelho. Boa sorte no seu projeto!”. Mais uma negativa na sequência, de uma professora também da Flórida, mais detalhada: “Não falo sobre Paulo Coelho porque considero que seus livros são de autoajuda, mal escritos e mal traduzidos. Sei que um professor de religião que trabalhava aqui e usava Paulo Coelho como um profeta da saúde e da riqueza individual na ascensão da crise econômica e da cultura neoliberal. Como Jonathan Livingston Seagull, acho que o trabalho de Coelho é popular porque oferece às pessoas respostas fáceis para as perguntas difíceis da vida. É isso pra mim”.

Em entrevista ao UOL, o próprio Paulo Coelho tampouco foi muito esclarecedor ao tentar explicar o sucesso do seu livro nos Estados Unidos. “Acho que a história do ‘Alquimista’ é a história de todos nós. Descontadas as diferenças culturais, somos muito parecidos em nossas emoções”, disse, sucinto. Para tentar entender o que é que esse livro tem, a única alternativa possível foi deixar de ser uma pessoa que fala mal de Paulo Coelho sem ter lido seus livros e virar uma pessoa que fala de Paulo Coelho com conhecimento de causa. É uma transformação rápida: “O Alquimista”, mesmo em inglês, é daqueles livros que se lê em poucas horas.

Como numa fábula, a trama é simples, os personagens — salvo pouquíssimas exceções — não têm nome próprio (são “o menino”, “o inglês”…) e o que mais importa é a mensagem. Santiago é um pastor que tem um sonho recorrente com as pirâmides do Egito. Um dia, encontra um velho que lhe conta sobre a missão pessoal de cada um, aquilo que sonhamos em fazer, mas que costumamos deixar pra lá pelas pressões da vida quando crescemos. A missão de Santiago seria encontrar um tesouro nas pirâmides. Ele tem, então, duas opções: continuar com seu rebanho e levar uma vida previsível, cansando-se de tudo em alguns anos, ou jogar tudo pro alto e ir para o Egito atrás de sua missão. Não parece uma tarefa fácil, mas se você for atrás de seus sonhos, diz o livro, o mundo te ajudará a chegar lá.

Para que o livro continue, Santiago, é claro, escolhe ir para o Egito. É nessa jornada que encontra o tal alquimista do título, que o ajudará a terminar sua jornada e o ensinará lições sobre o mundo e a vida — mas não sobre como fazer ouro, pois essa não é a missão de Santiago. Em síntese: vá atrás dos seus sonhos e tudo aquilo que você deseja pode se tornar realidade se você se empenhar e souber ouvir os sinais que o universo te dá. Paulo Coelho estica a fábula por páginas e páginas, mas a moral é bem conhecida: se você quiser muito que algo aconteça, o universo vai te ajudar. Com força de vontade, tudo é possível.

Não chega a ser um livro tão ruim, mas tanto a forma quanto o conteúdo são tão, tão simples, que “O Alquimista” faz mais sentido para crianças, como historinha para ser lida antes de dormir com uma lição de moral otimista. No prefácio do livro, numa edição comemorativa, Paulo Coelho diz que “O Alquimista” não vendeu muito no início. Lentamente, com o boca a boca, os números começaram a crescer. Nos Estados Unidos, a febre começou quando Bill Clinton foi fotografado segurando um exemplar. Depois, celebridades como Will Smith começaram a citá-lo como um de seus livros favoritos.

Escolher “O Alquimista” como livro preferido é uma resposta de miss, estilo “desejo a paz mundial”. Você passa uma imagem de quem tem um bom coração. “O Alquimista” é um incentivo ao sonho americano de “se você trabalhar você chega lá”, uma antecipação de fenômenos de autoajuda como “O Segredo”, mas em roupagem de literatura. Ao escrever uma fábula, Paulo Coelho fez um livro motivacional com menos estigma do que um “Quem Mexeu no Meu Queijo” e que não fica datado — fábulas não envelhecem. Não é um livro estudado por acadêmicos, ou o livro que você vai deixar em cima da mesa pra impressionar seus convidados, mas é fácil de ler e, se você estiver nesse espírito, reconfortante. Respostas fáceis para questões difíceis, como disse uma das professoras que não quis dar entrevista. Quem não quer isso? Por isso, semana que vem, pode apostar, “O Alquimista” ainda estará na lista dos mais vendidos.

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Flip 2016 Literatura

O homem que sabia norueguês

Essa família comum em todos os aspectos, com pais jovens, como eram quase todos os pais naquela época, e dois filhos, como quase todos os pais tinham naquela época, havia se mudado de Oslo, onde tinha morado na Thereses Gate, perto do Bislett Stadion, durante cinco anos, para Tromøya, onde uma casa fora construída para eles num loteamento. Enquanto aguardavam que a casa ficasse pronta, alugariam uma outra, mais velha, no acampamento Hove. Em Oslo o pai tinha estudado durante o dia, inglês e norueguês, e trabalhado como guarda-noturno durante a noite, enquanto a mãe havia frequentado a escola de enfermagem em Ullevål. Mesmo que ainda não houvesse terminado a formação, o pai tinha procurado e conseguido um emprego como professor no ginásio de Roligheden, enquanto ela trabalharia no hospital psiquiátrico de Kokkeplassen. Os dois haviam se conhecido em Kristiansand quando ela tinha dezessete anos, ela engravidara aos dezenove, e os dois se casaram aos vinte, na pequena fazenda em Vestlandet onde ela havia crescido. Ninguém da família do noivo compareceu ao casamento, e mesmo que aparecesse sorrindo em todas as fotografias, nota-se uma zona de solidão ao redor dele, percebe-se que não está no próprio ambiente em meio aos irmãos e irmãs, aos tios e às tias, aos primos e às primas da noiva.

Hoje os dois têm vinte e cinco anos, e têm a vida inteira pela frente. Trabalho próprio, casa própria, filhos próprios. Os dois estão juntos, e o futuro que almejam pertence a eles.

Será mesmo?

(Trecho de a “Ilha da Infância, Minha Luta 3”, de Karl Ove Knausgard)

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São 3.500 páginas distribuídas em seis volumes carregados de memórias e reflexões sobre a infância em um lugar remoto da Noruega, sobre trocar a fralda dos filhos e sobre faxinar meticulosamente a casa onde o pai alcoólatra acabara de morrer; relatos minuciosos sobre a água esquentando para preparar um chá, que evoluem para ensaios sobre Dostoiévski e Deus, e então a prosa volta a falar sobre papinha de bebê, Talking Heads, a vida de escritor e a história trágica – aos olhos do menino – de uma meia perdida na aula de natação. A série “Minha Luta“, do norueguês Karl Ove Knausgard, leva ao extremo o esforço de lembrança e apaga as linhas entre autobiografia e ficção. Publicada entre 2009 e 2011 na Noruega, onde se tornou um fenômeno de público e despertou intensos debates pela exposição crua de pessoas próximas ao autor, a obra chega aos leitores brasileiros traduzida diretamente do idioma original pelo gaúcho Guilherme da Silva Braga, 34 anos, responsável pela tradução a partir do volume dois – o quarto tomo, “Uma Temporada no Escuro”, foi lançado em junho no Brasil pela Companhia das Letras.

Apenas nas últimas duas décadas, e graças a escolhas bancadas por editoras como a 34 e a própria Companhia das Letras, traduções diretas de línguas “distantes”, como o russo, se tornaram possíveis no Brasil. Antes disso, Dostoiévski e outros russos, por exemplo, só chegavam ao Brasil intermediados pela tradução francesa – o que, de certa maneira, “contaminava” o texto final. Mesmo Franz Kafka só teve suas obras completas traduzidas diretamente do alemão a partir do trabalho de Modesto Carone, que iniciou na década de 1980 a monumental tarefa de traduzir toda a obra do escritor tcheco (que escrevia em alemão).

No caso de Guilherme Braga, doutor em Literaturas Inglesas e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o seu encontro com a língua norueguesa não partiu de um interesse acadêmico, mas pessoal. “Essa é uma história tortuosa que levou quase dez anos para se completar. Meu interesse pelo norueguês surgiu no meio dos anos 1990, junto com o meu interesse por bandas norueguesas de black metal – um dos principais itens de exportação cultural da Noruega”, conta. No início dos anos 2000, resolveu procurar algum professor de norueguês em Porto Alegre. Não encontrou nenhum, mas descobriu a professora Margareta Berg e o Instituto Brasileiro-Escandinavo de Intercâmbio Cultural, onde era possível estudar sueco. “Resolvi entrar no curso, pois eu sabia que o sueco e o norueguês são línguas extremamente parecidas e que, sabendo uma delas, entender a outra seria relativamente fácil”, lembra.

Depois de um ano de estudos, fez uma viagem à Suécia e, de volta ao Brasil, continuou os estudos do idioma enquanto traduzia peças do dramaturgo sueco August Strindberg “como exercício”. Em 2005, passou a trabalhar profissionalmente com tradução literária a partir do inglês, e dois anos mais tarde pediu demissão do emprego de professor de inglês para se dedicar à tradução em tempo integral. As versões engavetadas de Strindberg acabaram saindo em 2010 pela editora Hedra, no volume “Senhorita Júlia e Outras Peças“. Outras traduções literárias do sueco se seguiram, como o romance “A Traidora Honrada“, lançado pela Bolha/Autêntica, e “Doutor Glas“, um dos romances favoritos de Braga, que saiu pela Arte & Letra.

“O pessoal da L&PM – para quem a essa altura eu já havia traduzido dezenas de obras literárias em inglês – me escreveu perguntando se com o meu sueco eu não poderia ler um livro norueguês que a editora estava pensando em lançar e escrever um parecer a respeito. Aceitei o convite e não apenas escrevi o parecer como também me ofereci para fazer a tradução desse excelente romance, chamado ‘Antes que Eu Queime‘, baseado nos meus conhecimentos de sueco e usando vários materiais de apoio que comprei especialmente para a ocasião”, conta Braga.

Enquanto ele traduzia o livro, a NORLA, um importante órgão de divulgação de literatura norueguesa no exterior, concedeu ao tradutor uma bolsa de viagem à Noruega. Ainda sem encontrar professores de norueguês em Porto Alegre, estudou o idioma sozinho em casa por cerca de quarenta dias antes de embarcar para encontrar Gaute Heivoll, o autor do romance. “Logo depois de voltar fui convidado a participar de um evento para tradutores no festival literário de Lillehammer, também na Noruega, e na esteira disso tudo a Companhia das Letras me convidou a traduzir a série de romances ‘Minha Luta’, do Karl Ove Knausgard”, recorda-se.

Vendo que a tradução do norueguês estava começando a se tornar uma coisa séria em sua carreira, Braga voltou à Noruega outras vezes para estudar o idioma e participar de cursos e seminários para tradutores. “No meio disso tudo, li uns quantos romances noruegueses para me familiarizar melhor com a cena literária do país, ao mesmo tempo em que eu traduzia o Knausgard. Foi um ciclo muito estranho, muito inesperado e ao mesmo tempo muito interessante para mim”, diz Braga.

As visitas à Noruega ajudaram Braga a entender melhor o fenômeno Knausgard – foram 500 mil exemplares do primeiro volume vendidos em um país de cinco milhões de habitantes e exaustivas discussões na imprensa sobre os limites de sua obra, que, afinal, se baseia também na vida íntima de outras pessoas. “Na Noruega não existem grandes desigualdades sociais, não existem grandes desigualdades de gênero e assim por diante – e essa igualdade generalizada chega a tal ponto que você nem ao menos vê pessoas com roupas muito diferentes umas das outras quando anda pela rua. Talvez por isso os noruegueses também vivam vidas mais parecidas entre si, o que a meu ver possibilita a praticamente qualquer norueguês se identificar com os aspectos da vida cotidiana e trivial que é narrada nos romances do Knausgard”, analisa. Junto ao inegável talento literário do escritor e às questões morais e éticas que a série pode suscitar, o tradutor também atribui o sucesso de público de “Minha Luta” na Noruega, ao menos em parte, à “histeria dos jornalistas para transformar tudo em polêmica o tempo inteiro”.

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O processo de tradução de Braga geralmente passa por uma primeira versão mais apressada, ao mesmo tempo em que toma um contato inicial com a obra. Depois, ele relê o material com calma para fazer os acertos necessários e deixar o texto redondo. Durante o trabalho com “Minha Luta”, tradutor e autor nunca se comunicaram para conversar sobre as versões. “Eu vi o Knausgard em dois eventos literários na Noruega. Em um deles, não cheguei nem perto. Costumo ficar meio sem jeito nessas situações, e pelos romances eu sabia que o encontro com o tradutor de um país distante teria o potencial de se transformar em uma situação infinitamente constrangedora e sofrida para o Knausgard, a dizer por outras experiências similares que ele narra nos romances”, observa.

O segundo encontro foi em uma sessão de autógrafos. Braga comentou com ele que estava traduzindo a série e gostaria de fazer uma entrevista a ser publicada no Brasil. Na ocasião, Knausgard pareceu receptivo à ideia e disse que topava, mas o tradutor nunca mais teve resposta da agente dele sobre o pedido. “Não sei se ela não repassou o pedido ou se ele não respondeu, mas o fato é que a entrevista não foi feita porque nunca recebi uma resposta. Em todo caso, eu estaria mentindo se dissesse que estou surpreso, a dizer pela opinião que tenho sobre a personalidade do Knausgard pela maneira como ele se apresenta em suas obras”, diz.

O estilo narrativo de Knausgard, alternando descrições simples e coloquiais com trechos ensaísticos complexos, pode parecer um desafio a mais para o tradutor; é como se no mesmo universo habitassem dois ou mais níveis de prosa diferentes. “Embora essa mudança seja de fato marcante no Knausgard – o contraste entre a simplicidade e a concisão dos diálogos e a complexidade quase barroca das frases intermináveis nos trechos ensaísticos é brutal –, não tive muitas dificuldades com as transições porque eu já tinha experiência com os diálogos simples das histórias em quadrinhos e com a prosa rebuscada do século XIX”, conta Braga.

As dificuldades maiores estão nas sutilezas entre o norueguês e o sueco, que o autor faz questão de enfatizar – às vezes de maneira jocosa. O segundo volume, “Um Outro Amor”, é ambientado em grande parte na Suécia. “Uma parte significativa desse livro é um esforço da parte do Knausgard para convencer o leitor de que, apesar de serem países supostamente parecidos, a Noruega e a Suécia têm na verdade uma cultura muito diferente”, observa. Para Braga, traduzir tudo iria contra a intenção do texto original. Um norueguês consegue ler em sueco do mesmo modo que um falante de português consegue ler trechos em espanhol, mas o resultado final seria incompreensível para o leitor brasileiro. “O jeito foi, na maioria dos casos, manter as partes em sueco no idioma original, para deixar claro que os personagens estavam falando idiomas diferentes e, por meio de acréscimos extremamente breves e discretos, sugerir ou dar a entender ao leitor brasileiro o que estava acontecendo. O mesmo se aplica em menor grau para os trechos em dialeto”, diz.

Uma conversa entre o tradutor e Knausgard, que está em visita a América do Sul pela primeira vez na Flip 2016, não deve acontecer agora. Escaldado pelo fracasso da tentativa anterior, Braga não se animou a procurá-lo novamente. Por enquanto, continua a trabalhar no quinto volume de “Minha Luta”. “Pessoalmente, gosto da série especialmente pelo talento que o Knausgard tem para escrever sobre coisas banais e insignificantes. Também me agrada muito a forma como, mesmo no meio de um grande arroubo filosófico, Knausgard muitas vezes acaba constatando que é apenas mais um cara como qualquer outro e que todas as teorias mirabolantes dele podem ser completamente furadas. Tenho me divertido bastante com esses livros.”

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As origens do crime

Reportagens sobre crimes pipocam diariamente em jornais e sites pelo mundo. Se há bastante repercussão, acompanha-se por algum tempo as investigações, depois o julgamento e a história geralmente morre por aí. O crime começa quando é cometido e termina quando alguém é declarado culpado. É a concepção mais comum, com a qual o jornalista Eli Sanders, que escreve para o jornal semanal gratuito de Seattle The Stranger, não concorda. Quando, no verão de 2009, seu editor lhe pediu para escrever sobre um crime no bairro de South Park, no sul da cidade, ele não tinha muitos detalhes sobre a história, mas foi a fundo nela. Fez uma matéria. Depois outra. Dois anos depois, outra — pela qual ganhou, em 2012, o Pulitzer de reportagem. E depois, neste ano, um livro, chamado “While the City Slept”, no qual investiga as origens do crime, deixando de lado os detalhes mais horripilantes do crime em si.

Em 2009, um homem com uma faca invadiu a casa em que Jennifer Hopper e sua noiva, Teresa Butz, moravam e durante mais de uma hora as estuprou repetidas vezes. Jennifer foi esfaqueada, mas conseguiu fugir da casa, nua, para pedir socorro aos vizinhos. Ela sobreviveu. Teresa, não. A história chocou as pessoas do bairro, com quem Teresa e Jennifer eram bastante ligadas e era esse luto o foco da primeira reportagem de Sanders. “Enquanto eu trabalhava naquele texto estava acontecendo uma caça à pessoa que tinha atacado elas. Quando eu terminei a matéria, Isaiah Kalebu tinha sido preso pelos crimes. Foi assim que comecei. Olhei para o luto, o choque, o alarme no bairro e fiz um retrato breve, da melhor forma que pude, de quem eram Jennifer e Teresa. Depois descrevi a prisão do homem que era suspeito de ter atacado as duas”, conta o jornalista pelo telefone, dos Estados Unidos.

Continuou seguindo o caso de perto depois da prisão, e a reportagem seguinte narrava os meses anteriores ao crime na vida de Isaiah Kalebu, sob o título “The Mind of Kalebu – What the Alleged South Park Killer Was Thinking” (a mente de Kalebu – o que o suposto assassino de South Park estava pensando). O texto tenta entender como ele chegou àquele ponto, passando pelas condições sociais em que ele cresceu e também pela sua saúde mental, humanizando o assassino. É um texto difícil de ler, porque ao tentar decifrar quem era o assassino de Teresa, o que o tinha levado a cometer os crimes, Sanders mostra que se os sistemas de saúde mental e judicial dos Estados Unidos fossem melhores, o estupro das duas e a morte de Teresa poderia ter sido evitados, descoberta que desenvolveu no livro. “Tracei um retrato das fendas pelas quais Kalebu escapou, e hoje as entendo melhor. Acho que no livro tentei demonstrar isso com mais profundidade.”

Os sinais de que Isaiah Kalebu precisava de ajuda começaram na infância, quando um professor percebeu que ele tinha dificuldades na escola, apesar de ser inteligente, e recomendou que ele procurasse um psicólogo. Os pais não só se recusaram a levá-lo como o matricularam numa escola religiosa, que era contra intervenção médica nesses casos. Para a família de Kalebu a solução para problemas mentais não era buscar ajuda. Tudo se resolveria se ele se esforçasse mais, pedir ajuda seria um sinal de fraqueza.

Nos anos seguintes, intensificaram-se os sinais de que ele precisava de tratamento. Em 2008, Kalebu entrou em um prédio comercial com um pitbull, disse que havia comprado o imóvel com dinheiro ganho com comércio de açúcar, “demitiu” várias pessoas e se instalou por lá até ser levado a um hospital psiquiátrico para avaliação, onde deu declarações como “eu sou o rei”. Saiu dali com o diagnóstico de que era bipolar e maníaco. Entre essa primeira avaliação e a morte de Teresa, Kalebu foi preso diversas vezes. Ameaçou matar a mãe, brigou com policiais, aterrorizou uma funcionária de um hospital e a tia, que o expulsou de casa — na semana seguinte o imóvel pegou fogo e ela morreu (ele era um dos suspeitos). Duas vezes um psicólogo do Estado afirmou que ele representava um risco para a sociedade e mesmo assim, menos de uma semana antes da morte de Teresa, um juiz permitiu que ele saísse do hospital e cuidasse do próprio tratamento psicológico, sem acompanhamento.

Isaiah Kalebu com sua advogada no julgamento pela morte de Teresa Butz. Crédito: Mike Siegel/AP Photo
Isaiah Kalebu com sua advogada no julgamento pela morte de Teresa Butz. Crédito: Mike Siegel/AP Photo

O sistema de saúde mental americano, escreveu Sanders no Stranger, é tão criticado quanto mal financiado. “Permitiu que Kalebu seguisse sua vida normal quando deveria ter sido contido, como fica aparente em quase cem páginas de documentos da polícia e de tribunais que ele gerou nos 16 meses seguintes ao seu exame em Harborview, assim como em vídeos de suas numerosas aparições no tribunal naquele período”, diz sua matéria. Em um julgamento dias antes da morte de Teresa, o promotor não levou em consideração passagens mais recentes de Kalebu pela polícia porque não havia um sistema unificado nos computadores que permitisse que se checasse tudo relacionado a uma determinada pessoa. Se o sistema fosse melhor, ele talvez estivesse preso no dia em que entrou na casa de Jennifer e Teresa.

Tudo isso estava na mente do jornalista quando, em 2011, foi ao julgamento de Kalebu, sem saber ainda se escreveria algo a respeito. “Eu me sentia conectado à história e queria ver no que ia dar. E quando Jennifer deu seu depoimento ficou muito, muito claro para mim que algo precisava ser escrito. Me senti compelido a escrever algo sobre a clareza e a coragem do seu depoimento. Esse texto ganhou o Pulitzer um ano depois”, conta. No relato, Sanders deixa as partes mais escabrosas daquela noite de lado, para colocar os holofotes na coragem da mulher em contar sua história. Segundo o texto, Jennifer sentou no banco das testemunhas para dizer: “Isso aconteceu comigo. Vocês precisam ouvir. Isso aconteceu com a gente. Vocês precisam ouvir quem foi perdido. Vocês precisam ouvir o que ele fez. Vocês precisam ouvir como Teresa lutou contra ele. Vocês precisam ouvir o que eu amava nela. Vocês precisam ouvir o que ele tirou de nós. Isso aconteceu”. O texto foi publicado com o título “The Bravest Woman in Seattle” (a mulher mais corajosa de Seattle).

O autor não achava que os pormenores da violência fossem necessários à narrativa. Pelo contrário, tinham o potencial de distrair o leitor de seu objetivo, que era contar a história de Jennifer. Seu relato é poderoso, sem sensacionalismo. “Você tem que entender o horror do crime para compreender o poder de seu testemunho. Mas é sobre seu testemunho. Sua coragem, o amor que ela e Teresa tinham, a forma como elas tentaram apelar para a humanidade de Isaiah Kalebu. O custo e as constequências das ações. Não achei que precisasse colocar mais horror em algo que já era horrível.”

“Eu já achava que talvez tivesse um livro ali, porque para todo canto que eu olhava na história tinha indivíduos — Jennifer, Teresa, Kalebu, suas famílias — cujas vidas tinham lições importantes. Depois que ganhei o Pulitzer tive a oportunidade de realmente escrever o livro”, lembra o autor. “Senti uma responsabilidade de tirar lições úteis do que foi uma tragédia terrível. Não vi um motivo para seguir com isso a não ser que tivesse um propósito. Espero que tenha alcançado isso.”

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Depois do julgamento, em que Kalebu foi condenado à prisão perpétua, Jennifer se aproximou de Sanders, escrevendo com a ajuda dele um texto para o Stranger. Quando a oportunidade de escrever um livro se concretizou, buscou também as famílias de Teresa e Kalebu. “Normalmente, como jornalista, tenho prazos muito definidos. Nesse caso eu tinha muito tempo para dizer, ok, agora não é uma boa hora para a gente falar disso, talvez a gente possa se falar em uma semana, ou um mês. Podemos falar um pouco agora e um pouco depois. Essa questão do tempo foi fundamental para minha habilidade de trabalhar com todas as pessoas envolvidas.”

Essa falta de tempo na vida de um jornalista explica, em sua opinião, por que a cobertura de crimes na imprensa não explora as causas do crime. “Mas é importante que façamos isso quando podemos. É importante que empresas de mídia coloquem recursos nesse tipo de trabalho quando podem. É caro, em termos do tempo de um repórter, mas acho que é mais esclarecedor do que só cobrir os detalhes do crime, o julgamento e o veredito e pronto”, opina. “É como se falássemos pras pessoas que o crime começa quando é cometido e termina com o veredito. Isso é um episódio da série ‘Law & Order’, não é a vida. Acho que o crime começa antes e suas consequências permanecem muito tempo após o julgamento.”

Segundo Sanders, os Estados Unidos gastam muito mais dinheiro construindo presídios do que investindo em saúde mental. “Chegamos num ponto em que há dez vezes mais pessoas com doenças mentais em cadeias do que em hospitais no país. Está de ponta-cabeça, é um uso muito ruim de recursos”, afirma. “Há décadas falhamos em prestar atenção na saúde mental das pessoas, no sistema criminal e nas necessidades individuais das pessoas.” O sistema criminal, diz, não está na pauta de nenhum dos candidatos à eleição presidencial americana, que será realizada neste ano. “Políticos às vezes falam disso logo que crimes acontecem. Mas mesmo assim não é uma conversa muito esclarecedora”, diz. “Quem está seguindo as eleições deste ano vê que falam de um carnaval de outras questões. Mas disso, não.”

Ele ressalta que a grande maioria das pessoas que vivem com doenças mentais não são violentas. Pelo contrário, há mais chances de que elas sejam vítimas de crimes do que responsáveis por eles. “Não acho que um leitor cuidadoso vá ler meu livro e terminar pensando que pessoas com doenças mentais sejam todas violentas e criminosas em potencial. Se você pensar um pouco, vê que isso é um pouco ridículo. ‘Doenças mentais’, em primeiro lugar, é um termo casual muito amplo sobre o qual nem há um consenso. Engloba tudo desde uma ansiedade leve à esquizofrenia. Acho que qualquer um que parar pra pensar vai perceber o quão louco é dizer que qualquer um que viva algo que chamamos de doença mental seja violento.”

É só importante que para casos como os de Isaiah Kalebu, que tinha um histórico de violência, o tratamento correto seja dado o quanto antes. Contar histórias como essa e aprofundar-se nas raízes do crime, em sua opinião, ajuda as pessoas a prestar mais atenção na origem da violência e a entender que o problema não se resolve só com presídios. “Esse é nosso trabalho como jornalistas. As pessoas não estão ouvindo dos políticos. Temos que tentar fazer nossa parte.” Não era seu sonho, quando começou a carreira, escrever sobre crimes. “Mas minha trajetória me levou até aqui. Desenvolvi com o tempo o sentimento de que há mais coisas em histórias de crimes do que dá pra contar nas matérias pequenas que escrevia. Vi nesse livro uma oportunidade de contar uma história mais abrangente e, espero, oferecer algum significado e lições.”

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‘Missoula’: questões essenciais sobre o estupro

Mesmo depois da circulação de um vídeo em que uma adolescente de 16 anos está nua e desacordada enquanto um grupo de homens no Rio de Janeiro diz que ela foi estuprada por mais de 30, o delegado que comandava as investigações afirmou que a polícia não podia “ser leviana de comprar a ideia de estupro coletivo” quando, na verdade, não se sabia realmente o que tinha acontecido. O caso é ilustrativo de como é difícil acusar alguém de estupro — nem um vídeo é suficiente para que a vítima convença o mundo de que está falando a verdade. O caso é da semana passada, no Brasil, mas encontra paralelo nas várias histórias contadas por Jon Krakauer, autor de “Na Natureza Selvagem”, em “Missoula”, livro americano do ano passado lançado há um mês aqui. O tempo passa, o cenário muda, mas as histórias contadas por Krakauer poderiam muito bem estar acontecendo aqui e agora.

Segundo o autor, o livro nasceu de seu choque com a descoberta de que uma amiga sua havia sido estuprada duas vezes durante a adolescência — uma delas por um amigo da família. Envergonhado por saber tão pouco sobre o trauma provocado por esse tipo de violência, começou a pesquisar. Deparou-se, então, com o caso de Allison Huguet, estuprada pelo amigo de infância Beau Donaldson na cidade americana Missoula, no Estado de Montana. Como no caso de sua amiga, Allison não havia sido atacada por um psicopata escondido nos arbustos numa rua deserta: quem a violentou foi alguém próximo, que ela considerava como da família. As duas não são exceção. Pelo contrário: segundo dados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a cada cinco estupros, quatro são cometidos por conhecidos da vítima.

Krakauer comprovou isso empiricamente. Só em Missoula, sede da Universidade de Montana, encontrou vários outros casos de estudantes universitárias estupradas por colegas, amigos próximos ou aqueles caras que você conhece numa festa e que parecem super legais e esclarecidos até não serem mais. Ainda sem saber que aquilo seria um livro, o escritor foi até a cidade acompanhar o julgamento de Beau. “O que foi interessante a respeito de Allison foi que era um caso que era uma barbada e ela teve que lutar tanto. Foi tão traumatizante para ela fazer com que os promotores levassem o caso a sério e não dessem apenas uma palmadinha no cara”, disse ele em uma conversa com blogueiras feministas em Nova York. “Pensei que era uma das partes mais interessantes do livro, ver como era difícil até em um caso desses conseguir prestação de contas, justiça, retribuição, como você quiser chamar. Pareceu óbvio, então, que uma vez que eu fiquei sabendo de Allison eu deveria escrever sobre essa série de ataques.”

missoula capa

Com base em entrevistas com os envolvidos, documentos judiciais e gerados por processos disciplinares universitários, e-mails, boletins de ocorrência e transcrições de audiências, Krakauer faz um retrato bastante representativo das dificuldades enfrentadas por quem denuncia um estupro. A história começa e termina com Allison, que foi a uma festa na casa de um amigo, bebeu e caiu no sono no sofá da sala, pensando estar segura. Acordou com Beau, seu melhor amigo, penetrando sua vagina por trás com o pênis. Com medo de ser mais machucada caso se debatesse — jogador de futebol americano, Beau pesava mais de cem quilos ante os menos de 60 de Allison –, fingiu continuar dormindo. Quando o ataque terminou, ela fugiu correndo, descalça e com a calça aberta (ele havia arrancado o botão e destruído o zíper). A mãe a resgatou e a levou a um hospital coletar um kit de estupro — quando foi “praticamente estuprada de novo”, com todas as áreas íntimas vasculhadas por estranhos durante horas.

As consequências daquela noite foram sentidas por muito tempo. Allison ouviu boatos maldosos a seu respeito, teve dificuldades em retomar os estudos e foi hostilizada pela cidade, que idolatrava o time de futebol, quando decidiu denunciá-lo para a polícia, mais de um ano depois. Até seus amigos a chamaram de puta mentirosa e disseram que ela só queria chamar a atenção, como se ganhar a fama de mulher estuprada fosse algo a ser almejado.

Com a ajuda de um detetive, ela conseguiu gravar uma confissão de Beau, mas mesmo assim o promotor encarregado do caso disse que iria brigar por uma pena branda, que poderia nem ter tempo de prisão. O fato de que ele não tinha antecedentes criminais e de que tinha um futuro promissor pela frente, por exemplo, contariam a favor de Beau — afinal, ele era estuprador arrependido da casa ao lado, não o psicopata com uma faca. O melhor a fazer, segundo o promotor, era não brigar muito e se contentar com a pena que o réu estivesse disposto a aceitar.

Allison representa boa parte das dificuldades encontradas por quem é vítima de estupro: a dificuldade que é passar pela coleta do kit de estupro e fazer a denúncia, as consequências psicológicas não superadas (“a sentença dele é de anos, a minha é para a vida inteira”, diz ela em um ponto do julgamento), a desconfiança de todos — da polícia aos amigos –, a culpabilização pela violência que sofreu, os xingamentos recebidos. É particularmente triste que o seu seja o caso “feliz” do livro: Beau foi preso, mas quase escapou, mesmo que tenha confessado o crime. Outros ataques narrados no livro saíram impunes, em relatos tão pesados quanto importantes.

O autor Jon Krakauer. Crédito: Linda Moore/Divulgação
O autor Jon Krakauer em foto de divulgação de 2003. Crédito: Linda Moore

Outra estudante, por exemplo, foi estuprada por cinco jogadores de futebol americano da universidade depois de beber numa festa, perdendo e recobrando a consciência repetidas vezes enquanto eles se revezavam para fazer sexo com ela durante duas horas. Assim como Allison, ela realizou exames que atestaram seus machucados e fez a denúncia à polícia. Os detetives, porém, duvidaram de seu relato com os motivos clássicos para questionar a vítima. Ela não teria traído o namorado e inventado que tinha sido estuprada por ter se arrependido depois? Será que os homens não tinham achado, por algum motivo, que aquilo era consensual? Será que ela não se enganou sobre o que aconteceu? No fim das contas, o detetive responsável concluiu que não havia “causa provável para oferecer denúncia contra nenhum dos envolvidos no incidente”. Afinal, era a palavra dela contra a de cinco.

Qualquer semelhança com o caso da adolescente estuprada por 30 homens no Rio não é mera coincidência. Segundo “Missoula”, pelo menos 80% dos estupros não são denunciados e uma pequena parcela dessas denúncias resulta em condenação. “Há uma mitologia de que mulheres mentem sobre terem sido estupradas. Algumas mulheres mentem — entre dois e 10% segundo pesquisas. Muitos estudos dizem isso. É um número pequeno, não muito diferente dos outros crimes”, disse Krakauer em entrevista à NPR. “A diferença é que nos outros crimes não se assume que a vítima está mentindo. Você acredita na palavra da vítima. As vítimas de estupro são tratadas de um jeito diferente do que as de outros crimes. O livro é um olhar de perto sobre o que é ser vítima de estupro: a dor e os obstáculos pelos quais você passa para conseguir qualquer tipo de justiça.”

“Missoula” tem o nome de uma pequena cidade americana, mas é sobre muito mais do que ela. Vem à memória, por exemplo, a denúncia de alunas da USP de estupros em festas promovidas na faculdade de medicina e a existência de uma cultura machista nos trotes universitários. Segundo elas, não só as denúncias não eram investigadas pela faculdade como elas ainda eram perseguidas pelos colegas, que as chamavam de mentirosas — como várias personagens do livro.

“É sistêmico pra caramba. Missoula é, infelizmente, um caso típico. Tem bons policiais e promotores, mas até mulheres detetives têm essa sensação de resignação, tipo… Você sabe que os promotores não vão atrás desse cara, por que vamos gastar nosso tempo? Literalmente, se eles não têm uma confissão nem levam à justiça. Temos um longo, longo caminho pela frente”, disse Krakauer no ano passado.

Meticuloso, “Missoula” é uma leitura importante, não só nesta semana, em que houve grande repercussão de um caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro. É importante porque acontece sempre, uma vez a cada 11 minutos no Brasil — como a maioria dos casos não é registrado, o número deve ser ainda maior. Enquanto 30 homens violentarem uma mulher sem que um só se manifeste, enquanto as pessoas duvidarem das vítimas, enquanto disserem “ninguém merece ser estuprado, mas…”, precisaremos discutir o estupro. Precisamos discutir o estupro. E as questões que “Missoula” levanta são fundamentais.

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Um livro, mil páginas e 2 milhões de dólares

O ponto de partida da história de Garth Risk Hallberg é razoavelmente comum. Rapaz de 20 e poucos anos pega um ônibus para Nova York, tem uma ideia, resolve transformá-la num livro, que escreve nas horas vagas enquanto ganha a vida com um trabalho mais tradicional. O desfecho, porém, é inusitado. Em vez de parar na gaveta, o livro, um calhamaço de mais de mil páginas (na edição em português — a americana tem ainda impressionantes 900 e muitas páginas), foi disputado por várias editoras num leilão que terminou em 2 milhões de dólares. Para um autor que nunca tinha publicado um romance. E que ainda vendeu os direitos para o cinema. Para Scott Rudin, produtor de filmes como “A Rede Social” e “Onde os Fracos Não Têm Vez”.

Cidade em Chamas”, lançado no Brasil neste mês pela Companhia das Letras, apresenta uma coleção variada de personagens, com diferentes capítulos mostrando os pontos de vista de cada um ao longo de vários anos, com pequenos interlúdios (cartas, trechos de revistas, e-mails e escritos dos personagens). No centro da história estão William e Regan Hamilton-Sweeney, irmãos que fazem parte de uma rica família cuja vida muda após o pai se casar com uma mulher ruim que tem um irmão ainda pior — como indica o apelido “irmão demoníaco”, pelo qual ele é chamado em boa parte da história. Em torno deles gira uma lista extensa de personagens, como um professor negro e gay, uma jovem fotógrafa e o amigo apaixonado por ela, um grupo de punks adeptos do “pós-humanismo”, um jornalista, a funcionária de uma galeria e por aí vai.

Com uma grande relação de personagens vem uma grande relação de temas e tramas, passando pela cena da música punk em Nova York no fim dos anos 1970, o ativismo da esquerda, quase todos os tipos de problemas familiares imagináveis e uma história policial que culmina no blecaute que atingiu a cidade americana entre 13 e 14 de julho de 1977. Hallberg mostra que seus interesses são variados assim que atende ao telefone, no escritório da editora Penguin em Barcelona, onde está há alguns meses. “Estava lendo agora sobre o seu país!”, diz, empolgado, dois dias depois de a Câmara brasileira ter autorizado a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Sobre a situação política? “É claro. Fico feliz que você tenha um minuto para conversar sobre cultura”, diz ele (meia hora adiante na entrevista ele fará uma relação inesperada entre a situação do Brasil e seu livro). “Cidade em Chamas” já nasceu assim, conta ele: não como uma ideia simples, e sim com política, cultura e história entrelaçados.

Capa do livro 'Cidade em Chamas'
Capa do livro ‘Cidade em Chamas’

PRÓLOGO

“Por mais estranho que pareça, todas as coisas que você mencionou [uma lista que incluía diversos personagens, o real blecaute em Nova York e os tiros que um dos personagens recebe na primeira parte do livro] chegaram até mim fundidas no verão de 2003 no espaço de três minutos”, conta ele. Mas essa trama tem um prólogo e, como mostra no livro, Hallberg é um contador de histórias que não poupa detalhes em nome da concisão e volta ainda mais no tempo para tentar explicar as ideias por trás da ideia. Tudo começa em Nova York, que (com o perdão do clichê) é quase um personagem da história. Desde os 17, em meados dos anos 90, Hallberg, nascido na Carolina do Norte, sonhava em morar lá. Mas as circunstâncias nunca permitiam. Antes de ir para lá, foi morar em Washington DC, onde sua então namorada, com quem se casou mais tarde, foi estudar, já que não conseguia bancar a universidade em Nova York.

[olho]”Quem poderia dizer que Nova York esperaria pra sempre? A cidade estava lá agora, precisávamos ir”[/olho]

Era lá que eles estavam no 11 de Setembro. “Foi, para tanta gente, um acontecimento muito traumático. A escala daquilo. A visão do assassinato em massa e da destruição da cidade que sempre prometeu tanto pra mim e pra tantas pessoas, por diferentes motivos. Houve um momento naquele dia, quando Washington estava sob ataque, em que você simplesmente não sabia o que estaria de pé no final”, lembra. Embora traumatizantes, os atentados de 2001 também foram esclarecedores para ele. Nos 18 meses seguintes, notou como uma solidariedade tomou conta de Washington e passou, enquanto o sentimento persistiu em Nova York. Logo ele voltou a fazer viagens para a cidade, a poucas horas de onde morava, assim como fazia no colegial. “Era uma época estranha. Tinha uma grande vulnerabilidade e também uma grande sensação de possibilidade, de claridade machucada. No verão de 2003 minha mulher e eu decidimos que tínhamos que nos mudar. Era a hora. Quem poderia dizer que Nova York esperaria pra sempre? A cidade estava lá agora, precisávamos ir.”

Chegando a Nova York de ônibus para procurar um apartamento, reviveu a sensação que tinha quando adolescente ao ver a cidade no horizonte, em que seu coração “meio que se iluminava” — experiência que deu a Mercer, um dos personagens do livro. “Senti que a cidade estava falando comigo e dizendo ‘você conseguiu, está aqui. É a aqui que você pertence, com todas essas pessoas que não encontram uma sensação de pertencimento em nenhum outro lugar’.” Mas algo tinha mudado: as Torres Gêmeas já não estavam ali e a paisagem era diferente. Naquela hora, o iPod em modo aleatório tocou a música ‘Miami 2017’, de Billy Joel, sobre uma Nova York em chamas durante um blecaute, escrita no meio dos anos 70, “época dos discos da Patti Smith, poesia de vanguarda, filmes de Scorsese e milhões de outras coisas”.

“[A música é] sobre uma sensação de uma sociedade na beira do abismo. Imagino que você entenda isso neste momento”, diz ele, na primeira referência ao Brasil. Billy Joel canta do ponto de vista de alguém do futuro, que se mudou para a Flórida para fugir da destruição de Nova York nos anos 1970. “Mas ele canta com uma estranha tristeza, como se algo tivesse se perdido na vontade das pessoas de fugir do risco, da vulnerabilidade, do perigo e do sofrimento invisível. Elas também fugiram de algo que é necessário para uma vida com significado. Eu estava olhando para a cidade no horizonte, ouvindo essa música, e pensei: ‘Aquela época é, de alguma forma, essa época’. A gente também estava num momento de escolha entre, de um lado, segurança e ordem, que são coisas ótimas, e, do outro, liberdade, possibilidade e consciência.”

Esse era o livro, pensou. “Comecei a visualizar os personagens. Tem esse banqueiro andando, ele está com problemas, alguém faz uma oferta que ele não pode recusar. Em outro lugar alguém levou um tiro e está no hospital. Tem esses garotos vindo de Long Island. Metáforas, imagens, acontecimentos. Provavelmente só uns 3% do que virou o livro, mas muitas das coisas essenciais”, afirma. “Foi uma sensação de calor e fusão, como o universo um segundo depois do Big Bang, quando ainda não tinha esfriado e se organizado. Foi uma sensação poderosa de possessão que eu tive. Pra ser honesto, fiquei com medo.”

[olho]”Foi uma sensação poderosa de possessão que eu tive. Pra ser honesto, fiquei com medo”[/olho]

Mesmo ambientada nos anos 70, a trama é atual e não tem uma cara de época. “Era muito importante para mim, por uma razão que não consigo especificar, que não fosse um romance histórico”, diz ele. “Claro que você pode ler Hilary Mantel [autora de uma série de livros sobre a era do rei Henrique VIII] e aprender muito sobre os dias de hoje, sobre política, entre outras coisas. Mas, para mim, esse livro era um romance contemporâneo. Eu senti que tudo que era urgente pra mim em 2001, e 2003 e 2007 queria se expressar dessa forma. A crise financeira, os ataques terroristas, o retorno da história ao solo americano, de certa forma, e o que parece ser uma era global de ansiedade.”

Hallberg, nascido em 1978, também sentia que conhecia aquela época, mesmo que não a tenha vivido. Em sua cabeça, os anos 70 em Nova York se misturavam com os sinais apagados de delicatessens e o entretenimento na rua que via quando era adolescente, nos anos 90. “Tinha algo na textura daquele tempo, um quê de um grande cataclisma no passado que capturou minha imaginação. O cérebro de um escritor é uma estranha coisa estranha e danificada que… Você se apega a pedaços de coisas e não sabe o porquê, mas eles ficam flutuando no fundo da sua cabeça. Dirigindo ouvindo Patti Smith… Eu tinha uma sensação poderosa de ‘conheço esse mundo’.” Se fizesse pesquisas e descobrisse que algo que imaginou estava errado, o ímpeto de fazer ficção poderia se perder. Ou ele poderia se sentir obrigado a usar os fatos coletados. “Eu queria espaço para coisas imaginárias ou anacrônicas”, diz.

Como pesquisa mais formal, fez duas coisas. A primeira foi conversar com pessoas que tinham vivido os anos 70 e o blecaute em Nova York, bem informalmente, sem contar que ia usar aquilo num livro. “As pessoas tinham memórias incrivelmente novelescas, detalhadas. Assim eu soube que minha intuição sobre aquele momento estava certa. Ficou preso na cabeça das pessoas. Parte das pessoas não se lembrava de nada dos anos 80, mas sabia onde estava quando as luzes se apagaram.” E durante um verão, para mergulhar de vez no universo do livro, ia à biblioteca ler o jornal daquele mesmo dia em 1976 ou 1977 em vez de ler as notícias atuais. “Queria coisas objetivamente verdadeiras, mas queria que elas estivessem lá a serviço da ficção.”

PRIMEIRO CAPÍTULO

No dia em que teve a ideia do livro, Hallberg escreveu só uma página. Por algum motivo, mesmo que sentisse uma espécie de eletricidade, achou que não conseguiria continuar. “Eu tinha 24 anos, era um ninguém. Não me parecia alguma coisa que as pessoas faziam aos 24. Coloquei a página na gaveta e pensei que talvez voltasse a ela em dez anos”, conta. Voltou em quatro, depois do universo do livro não deixar sua cabeça. Foram mais três anos e meio escrevendo. Boa parte desse tempo foi gasto tentando encontrar as conexões entre as cenas que tinha imaginado lá atrás. “Eu não queria planejar tudo antes, porque achei que ia virar uma máquina em vez de uma árvore. Queria algo anárquico, mas orgânico. Fiquei no escuro, trabalhando com tentativa e erro. A história foi pra muitos lugares que eu não esperava.”

[olho]”O único jeito de eu fazer era desencanar da ideia de publicar e só ouvir o que o livro queria”[/olho]

A única certeza era de que o clímax seria o blecaute. De qualquer forma, durante a escrita ele sentia que aquilo tudo era impublicável. “Por causa do tamanho e da loucura toda. Ainda acho que é um livro pouco usual de várias formas. Era um projeto impossível. O único jeito de eu fazer era desencanar da ideia de publicar e só ouvir o que o livro queria — sempre tem um leitor imaginário no quarto com você. Eu achava que era um cara de 20 e poucos anos sem o talento pra fazer isso e todo o mundo dizia que a atenção das pessoas está diminuindo. Como isso iria pras livrarias?” Hallberg procurou não dar ouvidos a quem falava que hoje as pessoas só querem saber do que dá pra ler em 140 caracteres. “Pensei que, bom, se eu vou passar a vida fazendo isso, devo tentar fazer algo que eu sempre amei.” No caso: livros que, independente do tamanho e do tema, façam com que você leia rápido, que te arrastem para seu universo. “Como ‘Água Viva’, da Clarice Lispector, que é um tipo de livro bem diferente”, exemplifica.

Entre as criações mais desenvolvidas por Hallberg está o grupo que se autodenomina Pós-Humanistas. São músicos e frequentadores da cena punk que moram juntos numa grande república no oeste de Manhattan e colocam fogo em prédios da cidade como ato político. “Uma coisa que peguei desse período nos Estados Unidos, de modo geral, e em Nova York especificamente, foi essa erupção de violência, que era uma extensão lógica dos sonhos utópicos dos anos 60, com os quais simpatizo profundamente, mas também uma traição desses sonhos. Embora dê pra entender as frustrações das pessoas, suas ações tornaram a política impossível”, diz, citando grupos com o Weather Underground, um grupo militante de esquerda que colocava bombas em prédios do governo e bancos para protestar, entre outras coisas, contra a guerra do Vietnã.

“As pessoas estavam muito frustradas com o ritmo lento do progresso em direção à utopia e começaram a fazer coisas que eram profundamente anti-utópicas. Injustas, maldosas. E justificavam isso para elas mesmas. Mas não pode haver conversas até que todo o mundo concorde em parar de matar. Esse tipo de ação levou aos anos 80, época em que cresci, que afastou as pessoas das demandas justas dos anos 60. Criou-se um tipo de ideologia reacionária”, afirma. Parte da razão pela qual está interessado na situação do Brasil hoje, diz, é seu interesse pelas lutas ideológicas. A esquerda reagindo à direita, que reage à esquerda, que reage à direita, num ciclo sem fim. “Estou digredindo. Há algo no nome pós-humanismo que é importante pra mim, porque promete ir além do humanismo. Mas também implica em dizer que não somos mais humanistas, que não assinamos embaixo das antigas noções de dignidade humana, de direitos humanos, como se víssemos isso como coisas ideológicas.”

PERSONAGENS E EMPATIA

Em meio aos muitos personagens do livro, não há heróis. Hallberg diz que em seu trabalho a empatia é fundamental. “Empatia não é o ato fácil de identificar alguém igual a mim. É o ato mais desafiador de ver a outra pessoa com todas suas falhas e particularidades e ainda ver que, nas mãos de um autor diferente, ela poderia ser eu e eu poderia ser ela. É uma luta diária na vida pra se sentir assim em relação às pessoas que você encontra e é uma luta com os personagens do romance.”

A figura mais próxima do vilão é o “irmão demoníaco”, que aparece menos na história, mas se relaciona com vários dos personagens de alguma forma. “Eu queria que houvesse um antagonista no livro”, diz o autor. “Pra ser totalmente honesto, me inspirei no vice-presidente americano Dick Cheney”, completa, rindo. O personagem não é nebuloso só para os leitores, mas também para o autor. “Ele é um enigma. Quando eu tentava entrar nele, não conseguia. É como tentar abrir uma ostra com a unha”, diz. “Não sei se fico feliz ou não por algo ter escapado do meu controle no livro. É uma coisa bem estranha. Conversei com outros escritores e tem algo sobre escrever ficção: quando você está realmente fazendo isso, quando está no projeto certo, você quer que pareça um pouco impossível. Você sempre quer que seja algo que você seja incapaz de fazer.”

No processo de escrita, Hallberg diz que se sente como todos os personagens, mas ao mesmo tempo não é nenhum deles. “Todos têm partes de mim dentro deles, então todos são, de algum jeito, autobiográficos. Mas também são todos muito diferentes de mim, desconhecidos correndo no escuro”, reflete. “Há momentos em que estamos muito com nós mesmos, mas muito com outras pessoas. Ler poesia é um desses momentos. Olhar para pinturas. Sexo. Usar alguns tipos de drogas. Um longo casamento. Criar os filhos. Hoje meu filho subiu na minha cama, ainda estava escuro, e por um momento eu senti que poderia ver o mundo pelos olhos dele. Lembrei da experiência que eu sabia que ele estava tendo”, diz. O ponto ideal é atingido quando se misturam numa história as experiências pessoais do autor com a dos outros. Uma fusão de John Lennon e suas canções pessoais com Paul McCartney e suas letras sobre personagens imaginários. “Eles nunca foram tão bons sós quanto foram juntos”, opina. “Às vezes John Lennon escreve tão bem porque fala sobre si como se fosse outra pessoa. Às vezes McCartney escreve lindamente sobre outras pessoas porque escreve quase como se elas fossem ele.”

Essa visão de Hallberg sobre a escrita como forma de empatia está enraizada em “Cidade em Chamas”, em que a frase “eu te vejo, você não está só” se repete e funciona como uma espécie de síntese da história toda. Anos atrás, escreveu um artigo para o New York Times no qual tentava entender porque as pessoas escrevem ficção. Para alguns autores, escreveu ele, a ficção mostra que não estamos sozinhos. “Achei que era uma visão ao mesmo tempo bonita e vaga. Escrever pode ser algo muito altruístico ou muito narcisista. Ficção pode ser boa para mim porque faz com que eu me sinta menos sozinho. Ou pode me lembrar de que há outras pessoas no mundo e que tenho que olhar para além de mim. Boa ficção é isso, mas também é mais. É ganhar a sensação de não estar sozinho ao ser forçado a praticar a empatia em vez de demandar empatia dos outros”, diz.

Ele escreve para explorar o mistério que são os outros, uma das grandes oportunidades que viver em cidades grandes te dá. Na maior parte do tempo, diz, passamos pelos outros como se fossem obstáculos, só queremos que eles saiam da nossa frente na escada do metrô. Mas há momentos, principalmente em épocas de crise, em que você percebe o quanto cada vida vale. Quando você vê, por exemplo, alguém chorando falando ao celular. “É uma experiência muito urbana, de se sentir sobrecarregado pela preocupação com o outro a ponto de esquecer de si por um momento. Eu queria que o livro tivesse isso. E no fim percebi que tudo me levava para essa frase [“eu te vejo, você não está sozinho”]. Eu tentei articular isso no texto para o jornal, mas não consegui expressar isso direito fora da ficção”, afirma.

LUZ E SOMBRA

Além de romancista, Hallberg foi poeta (sem muito talento, afirma) e também é crítico literário. Começou escrevendo para o blog de um amigo e chamou a atenção de revistas, que passaram a encomendar textos seus. Ficção sempre foi o sonho, mas acabou esbarrando na crítica e precisava pagar o aluguel. Ler resenhas de outros escritores sobre seu próprio livro, porém, é o caminho pra ficar louco, diz. No final de um livro é preciso se desapegar. “Acho que para conseguir se desprender do seu livro e abrir espaço emocional para outro projeto, e para manter a habilidade de desaparecer no seu trabalho, ajuda mais não ouvir o que as pessoas estão dizendo. Seja bom ou ruim. Quase não importa se falam bem ou mal, no fim o efeito é o mesmo: ajudar você a fingir que não tem que se desapegar da sua obra.”

Também não ajuda estar sob os holofotes como esteve no fim do ano passado, quando revistas como Vogue e New York escreveram seu perfil perto da publicação do livro, destacando os 2 milhões de dólares que ele tinha recebido e chamando-o de fenômeno literário. “Acho que nenhum escritor busca isso. E por um bom motivo: nosso trabalho é muito privado, é muito mais sobre as sombras do que sobre os holofotes. O trabalho é jogar a sua luz pra fora. Parece pouco natural ter a luz voltada pra você”, reflete. “Eu tinha uma mesa e um pedaço de papel e passei anos assim. Foi muito difícil, mas foi uma experiência que me deu algo. Meu trabalho continua sendo sentar nessa mesa e me doar à página. Pra fazer isso, me esforço ao máximo para não pensar onde os holofotes estão e no que as pessoas estão dizendo. Sentar num quarto sozinho por anos é uma ótima preparação pra isso.”