No banheiro de uma boate em Copacabana, o artista Celso Maciel esfrega o rosto com sabão. Batom, delineador e a cera que usa para encobrir as sobrancelhas por baixo da maquiagem escoam ralo abaixo. Pouco sobra de sua aparência de cinco minutos atrás. O que permanece — e não sai nem com água, nem com a incansável passagem dos anos — são os trejeitos teatrais, a sagacidade e o timing humorístico que fazem de Lorna Washington uma figura marcante na noite carioca desde os anos 1980.
Conversar com Lorna é um show à parte. Mesmo fora do personagem, ou “desmontada” em seu vernáculo, suas frases são proferidas cheias de entonação e, não raro, ela declama afinadamente trechos de músicas ou faz imitações pontuais de amigas célebres, como a cantora Alcione e a atriz Rogéria. Em seu indivíduo, criador e criatura se misturam. “Meu nome é Celso, mas ninguém me chama assim. Todo mundo me conhece como Lorna Washington.”
Sua vida virou narrativa do documentário “Lorna Washington — Sobrevivendo a Supostas Perdas”. A obra dos diretores estreantes Leonardo Menezes e Rian Córdova foi lançada neste mês após quatro anos de pesquisa sobre a carreira do transformista. “Conheci Rian depois de uma apresentação”, ela relembra sobre o amigo, que também é cantor. “Perguntei se alguém queria dizer algo no microfone. Ele subiu e disse estar lá por causa da mãe. Estou pulando gerações, é isso?”
O filme lembra episódios de sua vida, como os shows na boate Papagaio e suas viagens pelo Brasil e Estados Unidos, intercalando-os com depoimentos da colega Isabelita dos Patins, do carnavalesco Milton Cunha e, mais uma vez, da atriz Rogéria. A amizade surgiu nos bastidores do teatro Alaska, na época do espetáculo Rio Gay, dirigido por Jorge Fernando. No começo, eram apenas cumprimentos informais. Quando Lorna perdeu a mãe, Rogéria a chamou em seu camarim. “Sente-se. Soube que você perdeu sua mãe. Essa é uma dor que morro de medo de ter”, imita Lorna com a voz inconfudível da atriz. Viraram amigas. Em sua primeira internação, Rogéria foi visitá-la no hospital. “Ela chegou achando que eu estava nas últimas, me encontrou sentada lendo um livro: ‘Eu achei que ia me deparar com a Dama das Camélias e você está bem!’ O pessoal do hospital ficou doido, queriam tirar fotos. De repente, ela para e diz: ‘A acústica daqui é ótima!’ E foi embora pelo corredor cantando em francês.”
Sentada em uma maca no Hospital Federal de Ipanema enquanto seu pé é examinado pela enfermeira, Lorna relata que a doença que a deixou internada por quatro meses surgiu pela primeira vez há onze anos, quando voltava de uma viagem a Nova York. Um machucado em seu pé direito evoluiu para um edema, piorado pela infecção bacteriana da osteomielite e pela diabetes. Há dois anos, essa junção de fatores quase levou sua perna embora. As quatro cirurgias para recuperá-la fizeram com que ela tivesse de descer do salto. Os curativos precisam ser refeitos todos os dias e, quinzenalmente, ela visita o hospital. Na mais recente visita, a enfermagem lhe entrega gaze e pomadas, que ela guarda em uma sacola junto ao figurino que usará em uma apresentação à noite. Traz sempre em sua bolsa comprimidos de ácido fólico para a pressão, sulfato ferroso para a anemia e faz aplicações diárias de insulina em sua casa nos subúrbios da cidade.
Apesar de morar longe do centro, o título de “face of Rio” muito bem poderia ser seu já não fosse de Narcisa Tamborindeguy. Celso nasceu em Copacabana, um dos cinco filhos de um porteiro. Seu quarto ficava na garagem do edifício, onde “dormia no seco e acordava no molhado” quando a maré subia para além da avenida Atlântica, muitas vezes na companhia de ratazanas. Mas foi naqueles andares que se educou, ora tendo aulas de etiqueta à mesa com uma prima de Santos Dumont, ora frequentando a biblioteca de um intelectual da Academia Brasileira de Letras. “Fazer a pobre coitada não é minha cara. Eu nunca me senti à margem das coisas.”
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Lorna circula pela cidade recontando histórias sobre pontos turísticos, apontando casas de famosos e indicando quais caminhos pegar para fugir do trânsito. Seu condutor é um ex-gogo boy que trabalha como motorista de Uber – talvez por isso encare com naturalidade uma drag queen paramentada em seu banco do passageiro. Ele lhe faz descontos nas viagens e, como sua cliente se locomove apenas com o andador, busca-a em domicílio no bairro do Engenho da Rainha. As janelas de Lorna dão vista para o teleférico que sobe o morro do Alemão. A irmã Neide mora nos fundos, enquanto seu quarto fica estrategicamente posicionado à frente para que consiga tomar seu banho de sol da cama. Nas paredes, retratos de suas performances e estatuetas religiosas espíritas e católicas.
Quase despercebida, no canto da sala de estar, há uma porta ao lado de uma Bíblia aberta e encabeçada por um leque chinês. Este é o “quarto de Lorna”. A salinha abafada de poucos metros quadrados é apinhada de vestidos costurados por amigos estilistas, bijuterias da rua 25 de Março e acessórios de cabeça bordados com paetês a uma condição na qual caminhar é impossível. Para escolher o figurino, Lorna se debruça por sobre a bagunça e alcança os cabides com sua bengala. Foi pelo vestuário que assumiu sua homossexualidade para a família, quando uma sobrinha descobriu seu guarda-roupa com trajes femininos. Da mãe Aurora não ouviu sermão, mas conselho: “Tome cuidado e seja feliz”.
Enquanto ajeita uma peruca castanha no espelho, ela ri sozinha: “Estou parecendo uma viúva indo receber o pecúlio do falecido marido”. Sua personagem está no meio-termo entre uma Elizabeth Taylor e aquela tia desbocada no almoço de família. Um equilíbrio entre a elegância midiática, o escracho e a crueza de figuras femininas reais. Seu nome, por exemplo, tem inspiração em Lorna Luft, filha de Judy Garland, mas também em uma amiga norte-americana com quem nunca mais teve contatos. Em busca de um sobrenome, batizou-se com a cidade natal da amiga estrangeira.
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Seus números seguem a escola do escárnio e o improviso de Dercy Gonçalves — ela também abandonara os saltos graças a um problema de saúde. É comum que, no palco, repita tiradas bem humoradas que tivera em conversas no camarim poucos minutos antes de subir ao tablado. Lorna dubla músicas e monólogos com perfeição e sua voz canta bem em português e inglês, sem tropeçar nas palavras graças à época em que era professora da língua. Seu propósito, no entanto, não é só a diversão: ao mesmo tempo em que solta palavrões para falar de sexo anal e “trucar a neca” (esconder o pênis para que não marque nas roupas), também critica a bancada evangélica e o Veículo Leve sobre Trilhos implementado pela prefeitura de Eduardo Paes para as Olimpíadas.
“Eu imagino quantas pessoas não deixaram de morrer de AIDS nos anos 1980 só por causa das piadas dela”, diz o diretor Leonardo Menezes. O trabalho de Lorna sempre esteve ligado à conscientização sobre a segurança sexual. Por seu ativismo, já ganhou título de benemérita pela Assembleia Legislativa do estado. Atualmente, faz parte do grupo Pela VIDDA —assim com dois dês mesmo, significando “Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids”. A organização é fundada por portadores de HIV e se volta a pessoas que convivem com o vírus. “Muita gente acha que sou soropositivo. Chegam a me dizer: ‘Você é uma guerreira por ter aids e estar trabalhando até hoje’. Eu não desminto.”
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É mais que natural que sua imagem também desempenhe papel importante na luta contra a homofobia e o preconceito contra travestis e transexuais. “São os paradoxos da vida. Tem eventos de senhoras idosas em que elas não passam sem um número de drag. Mas vai ver se elas querem ter um neto viado.” Diversas vezes, Lorna gosta de lembrar que é uma prestadora de serviço tendo de lidar com o público. “Eu trabalho como qualquer outra pessoa. Não sou estrela: estrela está no céu. Depois que você fica presa em um leito de hospital dependendo de gente até para limpar sua bunda, você tem uma outra visão sobre a vida.”
Extravagâncias à parte, Lorna não leva uma vida desregrada. Não bebe e diz ter horror a cigarro. Suporta com incômodo a barulheira das boates quando seus números se estendem madrugada adentro. Afinal de contas, é de uma época onde os shows de drag queens eram as atrações principais da noite. Hoje, nem todos na plateia entendem os comentários bem humorados que faz enquanto interpreta a canção “Cabaret”, eternizada na voz de Liza Minnelli em filme homônimo de 1972. A canção menciona a amizade da protagonista Sally Bowles com uma amiga festeira de nome Elsie. Era ela quem lhe havia ensinado que a solidão é desnecessária enquanto há música para ouvir e diversões lá fora. Em verso, Sally também canta sobre a morte de Elsie: o defunto mais feliz que ela já vira. Afinal, ela havia aproveitado a vida como em um cabaré.
Apesar de sua perna, Lorna não aparenta a mínima debilitação. Não geme, não reclama de dores, não encara sua condição de saúde com caretice. No entanto, a morte é tema frequente de suas conversas pessoais e monólogos performáticos. “Eu sempre digo: me dê flores em vida, porque depois que eu morrer, só quero oração”, ela declama no palco e na vida. “Mas fiquem tranquilos que eu não vou morrer agora.” O que se pode afirmar com certeza é que, quando Lorna for, ela não irá como Celso. Irá como Elsie.
Refazer “Tarzan” a essa altura do campeonato não parece, a princípio, a mais sábia das decisões. Na história original de Edgar Rice Burroughs, publicada em 1912, Tarzan (nome que significa “homem branco” — dá pra imaginar o que vem por aí) é um filho de ingleses criado por macacos na África. Inimigo dos negros que lá vivem, tratados como bárbaros, Tarzan é o rei (branco) das selvas africanas. É uma história espinhosa para um filme, ainda mais em um ano de forte debate racial, principalmente nos EUA – do movimento Black Lives Matter ao Oscar com baixa representatividade. “A Lenda de Tarzan”, que estreia na quinta, dia 21, é um filme ciente dessas questões e cheio de boas intenções. Mas só isso.
Sua Jane (Margot Robbie) é uma mulher com opiniões, destemida, engenhosa, nada submissa. Os vilões são brancos europeus colonialistas que escravizam e matam congoleses para poder explorar os recursos naturais do país. Há um herói negro, George Washington Williams (Samuel L. Jackson), que encara qualquer perigo para denunciar os horrores que acontecem no Congo e seus nativos não são retratados como inimigos nem como selvagens. Mas, no fim das contas, continua sendo a história de Tarzan, o homem branco responsável por salvar tanto sua mulher — que apesar de dizer com todas as letras que não é “a donzela em perigo”, é a donzela em perigo — quanto os africanos, incapazes de se libertar sem ele.
Logo no início, um letreiro explica que na Conferência de Berlim o continente africano foi dividido por países europeus e que o Congo, rico em diamantes, ficou com a Bélgica. Dado esse contexto, a história começa com Tarzan (o sueco Alexander Skarsgård, cujo abdômen faz Chris Evans parecer um cara normal) diferente daquele que conhecemos, descamisado e cruzando a selva por seus cipós. Casado com Jane, vive na mansão de sua família na Inglaterra e atende por seu nome de batismo, John — ou por seu título, Lorde Greystoke. Leva uma vida pacata, até que recebe um convite do rei da Bélgica, Leopoldo II, para ir ao Congo numa missão diplomática. Tarzan não quer voltar às origens, mas é convencido por Jane, saudosa da África e das aventuras, e por Washington Williams, um americano que quer a ajuda de Tarzan para coletar provas de que a Bélgica está escravizando os congoleses.
O que Tarzan não sabe é que o convite para ir ao Congo é uma armadilha arquitetada por Leon Rom (Christopher Waltz, adicionando mais um vilão à sua coleção), braço direito do rei belga. Ele promete entregar Tarzan para o líder de uma tribo no Congo, que quer sua cabeça, em troca de diamantes, dos quais a Bélgica precisa para sair de uma situação financeira delicada. Como o trailer revela, Jane é capturada por Rom e cabe a Tarzan tirar a camisa para salvar não só a África como a mulher que ama, com Washington Williams ao seu lado.
A partir daí “A Lenda de Tarzan” vira um tipo de filme de super-herói. Os poderes de Tarzan são uma força descomunal (ele luta com um gorila. Crescer com gorilas não torna alguém forte como um gorila, é bom notar), uma capacidade de se mover por cipós que praticamente equivale a voar, e a habilidade de se comunicar com animais. Em vez de salvar Nova York, como os Vingadores, ou outra cidade americana qualquer, Tarzan quer libertar a África da escravidão e tornar o mundo um lugar melhor. Seu arqui-inimigo, um vilão que só falta torcer o bigode, também tem um ou outro truque na manga. E o que não faltam são efeitos especiais e cenas grandiosas.
Mas, se você quer ver um filme de super-herói, é melhor alugar um da Marvel em casa. Não ajuda que o foco seja colocado no personagem menos interessante entre os protagonistas — tanto Jane quanto George Washington Williams, ou até Rom, seriam melhores escolhas, personagens mais interessantes, complexos e divertidos que Tarzan. Skarsgård claramente se preparou horrores para o papel e passou meses em dieta para ficar com aquela barriga, mas seu Tarzan meio soturno, meio atormentado, não gera muita empatia. “A Lenda de Tarzan” tenta ser um Tarzan moderno, mas é previsível do começo ao fim. Da primeira cena ao confronto final, passando pelos flashbacks da origem de Tarzan, que todo o mundo conhece, não há surpresas, não há emoção.
Na tentativa de ser uma versão mais politicamente consciente do que as outras, “A Lenda de Tarzan” não só não atinge plenamente seus objetivos (não tem como, enquanto Tarzan for protagonista ele será um “branco salvador”) como é pouco original — um pecado grave no cinema. Depois de “Caça-Fantasmas” e com um novo “King Kong” à vista, fica o desejo de ver algo novo. Refazer “Tarzan” não é a mais sábia das decisões.
Matt e Ross Duffer, criadores da série “Stranger Things”, que estreou na sexta no Netflix, contaram em entrevista ao site AV Club que, na hora de vender seu projeto ao serviço, mostraram um vídeo com imagens de 26 filmes, numa espécie de trailer para mostrar o que eles tinham em mente. Tinha ali trechos de clássicos do terror, como “Poltergeist” e “Halloween”, de filmes de ficção mais recentes, como “Looper”, e até da homenagem de J.J. Abrams aos filmes de sua infância, “Super 8”. É uma síntese do que é a série, uma colagem de referências — às vezes sutis, às vezes explícitas –, reconfortante para quem cresceu vendo filmes nos anos 1980 e 1990.
Na série do Netflix, o garotinho Will Byers desaparece misteriosamente após passar o dia jogando com seus amigos em uma pacata cidadezinha em Indiana, nos Estados Unidos. Ao longo de oito episódios, vemos como sua família e seus amigos lidam com seu sumiço enquanto acontecimentos misteriosos vão se multiplicando. “Stranger Things” não é só uma série ambientada nos anos 80, e sim uma homenagem declarada à década. Poderia ter sido uma cópia mal feita, uma imitação barata, mas os irmãos Duffer conseguiram apelar para a nostalgia na medida certa, misturando todo tipo de influências, filtrando-as e “trazendo sua sensibilidade”, em suas próprias palavras. E se você já assistiu aos 8 episódios, separamos algumas das referências cinematográficas, musicais e estéticas da série.
Referências do cinema
Logo no primeiro capítulo fica evidente um parentesco entre “Stranger Things” e “E.T.”, de Steven Spielberg. Como em “E.T.”, a série começa com um grupo de pré-adolescentes jogando RPG; um dos protagonistas é criado só pela mãe, as crianças andam pela cidadezinha em que vivem e pela floresta em suas bicicletas; elas encontram uma criatura misteriosa, que praticamente não fala e deve ser escondida dos adultos que querem capturá-la. Em “Stranger Things” não é um alien fofo, e sim uma garotinha que cresceu num laboratório, onde foi vítima de vários experimentos científicos. Mas como o extraterrestre, a menina Eleven é fã de doces e é disfarçada com um vestido e uma peruca loira e comprida para poder circular sem chamar a atenção. Com Eleven, Mike (o líder do grupo de crianças) também descobre o amor depois de uma fase “garotas? Eca” — um pouco de “Anos Incríveis” e “Meu Primeiro Amor”, talvez?
Tem também um quê de “Goonies”, filme produzido por Spielberg sobre um grupo de garotos carismáticos que embarcam numa aventura bem Sessão da Tarde. São filmes que não poderiam ser feitos hoje, em tempos em que crianças pouco brincam na rua e são praticamente todas munidas de celulares. Nesses filmes dos anos 80, a que as crianças dos anos 90 cresceram assistindo, as crianças tinham muito menos supervisão e, com isso, mais liberdade e mais facilidade de se encontrarem em situações perigosas. Para faltar na escola, bastava usar o velho truque de colocar um termômetro no abajur e prometer à mãe que passaria o dia em casa debaixo das cobertas. Depois, era só sair para passear no bosque com os amigos — e ninguém saberia seu paradeiro.
Aos temas clássicos dos filmes infantis os irmãos Duffer acrescentaram um toque de John Hughes, o rei da Sessão da Tarde (breve currículo: “Esqueceram de Mim”, “Curtindo a Vida Adoidado”, “Beethoven”). Mais precisamente de seus filmes sobre a adolescência, como “Clube dos Cinco” e “A Garota de Rosa-Shocking”. É a trama menos interessante de “Stranger Things”, pelo menos no início, mas tinha que estar presente numa homenagem aos anos 80: o triângulo amoroso entre a garota certinha, o popular meio bad boy que se redime ao se apaixonar, e o quietão zoado pela turma popular. De “As Patricinhas de Beverly Hills” a “Clube dos Cinco” a “Atração Mortal” a “Ela É Demais”, os anos 80 e 90 foram cheios de filmes de “high school” — aqueles ambientados nos corredores das escolas americanas. Nancy, Jonathan e Steve cumprem aqui esse papel.
Mas “Stranger Things” não é uma série solar, como boa parte dessas produções. É também uma série de terror. Há um pouco de “A Hora do Pesadelo”, por exemplo: quando imersa na água, Eleven consegue acessar outra dimensão, uma espécie de mundo dos sonhos. Mas como em “A Hora do Pesadelo”, o que acontece nesse mundo pode sim ter consequências no plano real. Não é porque Freddy Krueger aparece em pesadelos que ele não seja perigoso, algo como o monstro de “Stranger Things”, coisa que Eleven sabe muito bem. Nancy, aliás, é o nome da mocinha de “Stranger Things” e de “A Hora do Pesadelo” — e as duas se propõem a entrar no mundo dos sonhos para enfrentar o vilão. Como em “Poltergeist”, há uma cena de criança atraída por uma luz perigosa. A cena em que o policial Hopper digita um relatório afirmando que Will sumiu é praticamente idêntica a uma de “Tubarão”, numa homenagem explícita dos criadores. Dá pra passar o dia todo pescando pequenas referências (no Reddit, há uma discussão só sobre isso).
Referências na trilha sonora
As músicas que acompanham a série ajudam um bocado a dar o peso nostálgico dos anos 80:
The Clash, New Order, Dolly Parton e Toto tocando seu grande hit do sintetizador, “Africa”. E, falando em sintetizadores, a música de abertura da série, composta pela dupla S U R V I V E, é uma mistura de referências oitentistas, seguindo o padrão do revival musical da década, que agora não é mais vista como a década maldita da música (esse movimento em forma de homenagem ficou mais claro com as trilhas sonoras de filmes como “Drive” e “A Corrente do Mal” e de jogos como Hotline Miami). Assim, a música de apoio de filmes de terror, como “Chamas da Vingança“, filme baseado em um livro de Stephen King, ou de praticamente todos os filmes de John Carpenter, foram grandes influências em “Stranger Things” e colaboram para criar o clima tenso e nostálgico ao mesmo tempo.
A fonte (e o pôster, claro)
Se há detalhes sutis que fazem a diferença na série, a fonte escolhida para o letreiro que acompanha os capítulos também é simbólica. A ITC Benguiat foi criada em 1977, tem grande influência de Art Nouveau e aparece em alguns momentos importantes da cultura dos anos 80 e 90: ela foi a escolha para a capa de diversos livros de Stephen King, aparece na arte de “Strangeways Here We Come”, dos Smiths, e também fez parte de uma das mudanças de fonte da série “Star Trek”, já nos anos 90.
E, se nada disso te convenceu, este pôster pode resolver a questão. Não é preciso falar uma só palavra sobre ele, apenas sentir:
“Malditos filmes! Eles acabam com a gente. Tô falando sério.”
Aos 17 anos de idade, Winona Ryder sublinhou as palavras de Holden Caulfield em uma das duas cópias de “O Apanhador no Campo de Centeio” que carregava consigo. “Holden e eu somos uma espécie de equipe”, disse ela. Desde então, Ryder já se referiu, mais de uma vez, à obra-prima de ansiedade de J.D. Salinger como sua bíblia, e não cansa de repetir que leu o romance cerca de 50 vezes. Quando ela tinha 19 anos, no Natal, seu namorado, Johnny Depp, a presenteou com um cartão assinado por Salinger. Aos 20, ela ainda levava uma cópia do livro aonde quer que fosse. Ela até escreveu uma cartinha para o autor, mas nunca a enviou. “Eu dizia algo como, ah, que o livro significava muito para mim, e agradeci”, ela contou à Premiere. Contudo, ela chegou a enviar, de fato, um recado a ele, em 1994, junto com o cartão de Natal. “Caro Sr. Salinger”, dizia. “Recebi isto de presente pois sou muito sua fã, mas pretendo devolver pois respeito a sua privacidade.” O único deus em que ela acreditava enviou de volta uma notinha de agradecimento. “Foi incrível”, Ryder contou à Esquire. “Digo, se bobear, foi o editor dele que digitou ‘obrigado’ e só pediu para ele assinar, ou algo assim, mas significou muito para mim.”
Aos 27, Ryder ainda se ajoelhava no altar de seu herói colegial. Naquele ano, ela mostrou à revista Vogue um porta-retrato da Tiffany, presente de um amigo. De um lado da moldura, estava uma foto dela em 1990, com 19 anos, vestida de preto, óculos escuros, estatelada em um sofá, mostrando o dedo do meio. Do outro, uma página de “O Apanhador no Campo de Centeio”, na qual Holden lê “Foda-se” no muro da escola de sua irmã de 10 anos de idade (“Acho mesmo que, se um dia eu morrer e me enfiarem num cemitério, com uma lápide e tudo, vai ter a inscrição ‘Holden Caulfield’, mais o ano em que eu nasci e o ano em que morri e, logo abaixo, alguém vai escrever ‘Foda-se’”). Dois adolescentes icônicos, com uma diferença de 40 anos de idade, lado a lado. “Eu estava em Paris, promovendo o filme ‘Minha Mãe é uma Sereia’, morrendo de insônia, enlouquecendo. Foi o pior momento da minha vida”, explicou. “É uma versão minha bem adolescente, mas me identifico tanto…”
Para muitos de nós, no entanto, Winona Ryder é uma memória acolhedora. “As pessoas esperam que atores mirins não só interpretem papéis mirins, como representem com afinco os dramas de sua geração, em sintonia”, diz Timothy Shary, crítico de cinema que já publicou inúmeros livros sobre filmes adolescentes, incluindo os títulos “Generation Multiplex: The Image of Youth in American Cinema Since 1980” e “Teen Films: American Youth on Screen”. “Para as garotas excêntricas da minha geração, Winona Ryder era uma semelhante, um ícone aspiracional”, escreveu Alana Massey no BuzzFeed. Embora costumassem descrever Ryder como ingênua, isso implica uma passividade que Ryder evitou em todos os seus filmes adolescentes — em “Ciranda de Ilusões”, ela bate em uma mulher que tira vantagem de um deficiente mental; em “Os Fantasmas se Divertem”, ela se sacrifica para salvar dois fantasmas; em “Atração Mortal”, encoraja o namorado a se explodir (e então usa o corpo dele para acender um cigarro); em “Edward Mãos de Tesoura”, ela se apaixona por um anti-herói gótico; em “A Volta de Roxy Carmichael”, desdenha do bonitão da cidade; e em “Minha Mãe é uma Sereia”, ela o seduz. Nesses filmes, é como se ela não interpretasse papéis, mas sim atuasse como ela mesma. “Winona é uma atriz que trabalha com seu instinto primitivo, acima de tudo”, disse o diretor de “Alien: A Ressurreição”, Jean-Pierre Jeunet. “Essa maneira instintiva de trabalhar é uma qualidade rara, comum entre crianças.”
A atuação pueril — e sua própria natureza pueril — é bem compreensível, visto que ela reverencia Caulfied, personagem que, por sua vez, reverencia crianças.
Assim como ele, Ryder era uma garota excêntrica, inteligente e ambivalente em busca de um lugar na sociedade contrário a tudo o que está aí. Mesmo com vinte e poucos anos, em “Caindo na Real” e “Garota, Interrompida”, ela atuou mais como uma adolescente tardia do que como adulta de fato. Ryder não conseguia seguir em frente por conta do que seguir em frente significava. Nós também não. Nossa nostalgia até hoje a mantém enclausurada na adolescência, junto ao namorado da época, o Johnny Depp pré-excentricidades. No entanto, apesar das nossas tentativas de ressuscitar o passado — “Os Fantasmas se Divertem 2”, “Atração Mortal: O Musical”, Marc Jacobs —, por mais jovem que Ryder pareça, ela já não é mais aquela garota ingênua dos anos 90. Nesse sentido, ela e Holden formam mesmo um time. “O dilema central [de Caulfield] é que ele quer reter a inocência, o solipsismo e a lucidez de uma criança”, escreveu Harold Bloom, “mas, por conta da biologia, ele precisa seguir em frente, rumo à idade adulta ou à loucura”.
***
A atriz foi batizada em homenagem à Winona, Minnesota — sua cidade natal — que, por sua vez, emprestou o nome de uma lenda do povo Dakota, em que a deusa Winona prefere saltar em um abismo a se casar com um homem que não ama. Os amigos a chamam de Noni, isto é, “no knee” [sem joelhos]. Seu sobrenome é Horowitz (quer dizer, Tomchin na verdade, mas é uma longa história). Ela achava que o nome não soava bem para a carreira, e seu pai escolheu Ryder no lugar (talvez enquanto escutava um disco de Mitch Ryder), depois de considerarem October (seu mês de nascença) e Huxley (um de seus escritores favoritos). Seus pais são intelectuais da contracultura — fundaram a Bilblioteca Fitz Hugh Ludlow, a maior coleção de livros sobre drogas psicoativas do mundo — e a criaram em uma comuna, na Califórnia. Sua infância foi inundada de filmes antigos e livros mais antigos ainda. Com sete anos, ela viu Greer Garson no filme “Na Noite do Passado”. “Queria ser como ela”, Ryder contou à Seventeen. “Não havia nada como o rosto de Garson, as expressões […] Esses filmes antigos mexeram comigo; eu ficava com borboletas no estômago quando assistia. Queria fazer parte deles, mesmo daqueles com fins trágicos.” Mas ela só foi estudar no Teatro do Conservatório Americano (ACT), em São Francisco, quando já tinha 12 anos, depois que um punhado de colegas da escola a viram num terno — ela estava numa fase de filmes de gângster —, chamaram-na de “sapatão” e bateram nela. Ela se matriculou no ACT para conhecer pessoas parecidas com ela, e foi aceita depois de apresentar um monólogo que ela mesma adaptou do livro Franny & Zooey, de J.D. Salinger. “Estou ótima. Nunca, em toda minha vida, me senti tão instável, é fantástico.”
Um ano depois, ela fez um teste para o diretor David Seltzer. Ele estava selecionando atrizes para seu novo filme, “A Inocência do Primeiro Amor”, para o papel de Rina, uma jovem adolescente completamente apaixonada pelo personagem do título (Corey Haim), que por sua vez está completamente apaixonado por uma cheerleader (Kerri Green), que está completamente apaixonada pelo capitão do time de futebol americano (Charlie Sheen). Seltzer elaborou o teste em torno de uma cena em particular, do lado de fora de uma festa da escola, onde Lucas foi rejeitado pela cheerleader. Sentado à beira de um rio, enquanto Lucas contempla uma ninfa de libélula engarrafada, Rina junta-se a ele e observa a feiúra do bicho.
Lucas: Vai virar um belo inseto, Rina.
Rina: Mas isso é possível?
Lucas: Dá para imaginar? Transformar algo feio em algo belo?
Rina: Não, francamente, não dá.
“Li a cena com ela, e ela partiu meu coração, pois parecia falar uma verdade profunda mesmo”, contou Seltzer. “Imaginei que Winona seria relegada ao papel de amiga desajeitada pelo resto de sua carreira.” Ao ver a cena, fica difícil chegar a essa conclusão. Embora tivesse apenas 13 anos, Ryder, com sua quietude, sua entrega serena e a capacidade de encantar em silêncio, era uma ilha de carisma. Talvez tenha sido mérito da direção de Seltzer — “A câmera vai ler os seus pensamentos” —, ou talvez fosse o jeito dela mesmo. De qualquer forma, ela domina as poucas cenas em que aparece, e sua desenvoltura contrabalanceia a juventude agitada de Haim. (Seltzer admite: “não rolou muita química entre os dois, ela parecia tão mais velha que ele”.) No fim dos expedientes de filmagem, os jovens atores discutiam o que haviam aprendido com Seltzer, vangloriavam-se de sua técnica — menos Ryder. “David me ensinou a descascar laranjas de uma só vez”, disse ela, e Seltzer se lembra disso com um sorriso estampado. “Ela estava disposta a jogar o jogo. Isso é Winona pura.”
Seu primeiro papel central foi logo em seu segundo filme. Também foi a primeira de muitas personagens mais novas que sua idade de fato. No drama familiar “Ciranda de Ilusões”, Ryder, com 14 anos, interpreta Gemma, de 13, garota do interior que se apaixonada por um deficiente mental de 21 anos de idade (Rob Lowe) depois de deixar o avô (Jason Robards) para morar na cidade com a mãe (Jane Alexander). Alexander, também coprodutor executivo do filme, conta que o diretor Daniel Petrie avaliou centenas de garotas, “até Winona aparecer”. Ela havia trabalhado em apenas um filme, mas sua presença era retumbante. “Ela tinha uma personalidade forte bem singular — era muito autêntica, observadora, incisiva”, descreve Alexander. “Ela irradiava uma naturalidade, e não só em cena, como fora das telas.” Ryder creditou Alexander por ensiná-la a ter paciência entre tomadas, e Robards, por ensiná-la a ser mais natural. “Se eu não tivesse trabalhado com pessoas como Jane e Jason, provavelmente teria bombado diversos papéis”, disse ela. Ela se referia a Robards e Alexander como seus mentores, embora o segundo negue ter ensinado qualquer coisa a Ryder. “Se tive algum mérito, foi incentivá-la a acatar suas emoções”, conta Alexander. “Ela tirava emoções da manga.”
Tim Burton farejou esse dom logo que a viu em um filme pela primeira vez. E se lembrou dela na hora de selecionar os atores para seu novo projeto, um filme sobre dois fantasmas que assombram uma família e fazem amizade com sua filha, Lydia Deetz, uma espécie de Vandinha. “Perguntei da Winona Ryder porque havia visto ela em ‘A Inocência do Primeiro Amor’, e ela tinha uma presença muito forte”, o diretor explicou no livro “Burton on Burton”. Ela também se parecia com a personagem, fisicamente. “Várias peças de roupa eram minhas mesmo”, Ryder contou à Vogue em 1989. “Minha pele era pálida daquele jeito.” E desde a primeira cena, recostada no sofá, ela emerge como uma Cleópatra anêmica no olho do furacão. “Minha vida é um quarto escuro”, Lydia diz sob um véu negro. E então: “pessoas vivas ignoram tudo que é esquisito e diferente. E eu sou esquisita e diferente.” Ryder sentiu uma afinidade com Burton, que era excêntrico como ela (“estou absolutamente só”, Lydia escreve no diário, em sua primeira narrativa Salingeresca, primeira de muitas). “Tim fala a minha língua, sabe?”, disse ela na época. “Compartilhamos a mesma sensibilidade.”
Aparentemente, o mundo todo compartilhava. “Os Fantasmas se Divertem” estreou no Dia da Mentira, em 1988, e rendeu US$ 32 milhões nas primeiras duas semanas, além de um Oscar por Melhor Maquiagem. Conforme Mark Salisbury escreveu no livro “Burton on Burton”, “ser esquisito era bom, aceitável, um triunfo”. Bem como Winona Ryder.
A esquisitice de Winona Ryder não tinha o mesmo apelo fora das telas. “Ela prestava muita atenção na crueldade das garotas adolescentes”, conta Alexander. “’Atração Mortal’ era uma história real, se pararmos para pensar nas coisas que Noni nos contou sobre sua vida escolar.” Mas esse filme só saiu dois anos depois. O roteirista de primeira viagem Daniel Waters vendeu sua obra de humor negro, repleta de jargões, sobre quatro adolescentes — três Heathers e uma Veronica, grupinho popular do colégio Westerberg —, aos estúdios New World. Com a ajuda de Jason Dean — variação homicida do jovem transviado —, Veronica Sawyer assassina a Heather mais popular do grupo e arma para parecer suicídio, desencadeando uma série de imitadores na escola. Waters escreveu o roteiro inspirado no número crescente de adolescentes que se matavam na América dos anos 80. “O filme veio da canonização do suicídio adolescente, e da adolescência em geral”, disse ele. Segundo o livro de John Ross Bowie, “Heathers”, Waters via Veronica Sawyer como “Travis Bickle revestido de Molly Ringwald”. Ele queria a Jennifer Connelly para o papel. O estúdio queria Justine Bateman. Ninguém queria Winona Ryder.
“Li o roteiro e, pela primeira vez, pensei, ‘preciso desse papel’”, Ryder contou à revista britânica The Face em 1989. “Não era uma questão de querer ou achar que deveria, era que ninguém entenderia aquilo como eu.” O roteirista de “Os Fantasmas se Divertem” deu uma cópia do roteiro a ela, mas seu agente implorou para ela não tentar o papel. Ela não deu ouvidos. A produtora Denise Di Novi se lembra da atriz sentada em seu escritório na New World (com a mãe), dizendo: “eu aceito o papel por um dólar. Faço de tudo, não importa o quanto vou ganhar”. Mas embora Waters considerasse ela uma “grande atriz”, não achava que era “atraente o bastante”. E não era a primeira vez que Ryder, cujos primeiros quatro personagens costumavam ser descritos como “familiares”, ouvia isso.
Então, ela entrou numa loja de departamento, renovou o armário e, segundo Waters, “chegou a ameaçou se matar caso não conseguisse o papel”.
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Ela praticamente era a personagem: Veronica era uma gótica suave, Ryder também. Veronica era menos feminina do que as amigas de cabelo volumoso, Ryder também (ela só não usava um monóculo). E ambas pensavam além da dinâmica das panelinhas, e escreviam sobre isso no diário (“eu queria me aprofundar nessa tradição de diários femininos”, disse Waters). Ryder também tinha uma conexão pessoal com a história: a menina excêntrica, a gótica da escola, passou a ser venerada após o suicídio, pelas mesmas pessoas que a alienaram quando era viva. “A história me pegou de jeito, porque eu ficava enojada com os comportamentos na escola”, disse Ryder. E também tinha uma ligação com J.D. Salinger. No rascunho original do roteiro do filme, Heather Duke escrevia sua nota de despedida em uma cópia de “O Apanhador no Campo de Centeio”. Mas Salinger “titubeou com a ideia”, então trocaram por “Moby Dick”. Holden passou a colorir a história de uma maneira mais sutil e abstrata, através do distanciamento entre Veronica e os pais (e adultos em geral), e da equação adolescência e conflitos: “o que os jovens inflingem uns aos outros no colégio é tão ruim quanto o que os adultos inflingem uns aos outros em guerra”.
No fim das contas, Waters transformou Veronica Sawyer em “o Albert Speer do colégio Westerberg”, isto é, uma nazista arrependida. Ele disse a John Ross Bowie que “suavizou” a personagem por conta da postura “volúvel” de Ryder (palavra que, sem dúvidas, ele aprendeu com a resenha de Pauline Kael na New Yorker: “Winona Ryder tem uma aparência adorável, mas seu papel é volúvel e ‘real’ demais para as atrocidades de mentirinha que acontecem a seu redor”). Ryder e sua personagem eram uma só, e sua atuação transcendeu o mero carisma. Em uma cena em particular, ela gargalha com J.D. no funeral de dois jogadores de futebol americano — Veronica matara ambos a tiros —, até que uma garotinha, provavelmente caçula de um dos falecidos, vira-se para eles com um olhar de reprovação. A maneira como o riso de Ryder se dissolve lentamente, como ela vira o rosto, como um filhotinho de cachorro cheio de amores para dar, arremata a sátira. Ela é o condutor moral da trama. “É como se eu trabalhasse com essas pessoas, e o nosso trabalho fosse ser popular e tal”, Veronica fala para J.D., e nós acreditamos nela. Ela não pretendia matar as Heathers, só queria ser mais madura que elas. Conforme ela mesma diz, “está na hora de crescermos, virarmos adultas e morrermos”.
“Atração Mortal” acatou sua atuação e chafurdou nas bilheterias, recebendo em retorno apenas um terço dos custos de produção. O crítico Timothy Shary observou que o lançamento do filme em 1989, depois de suicídios em série no país, foi como lançar um filme sobre tiroteios em escolas um ano após o episódio de Columbine. Então, surgiu o VHS (e a TV a cabo), e de repente o filme virou um clássico cult. “Acho que ‘Atração Mortal’ mexe com os jovens, faz eles refletirem sobre a hipocrisia”, disse Shary. “Instiga debates sobre as ironias do comportamento colegial e, claro, é um dedo na cara dos círculos sociais e sistema de castas das escolas, formalidades que muitos adolescentes detestam, mas aceitam, de qualquer forma.” Até hoje, Veronica Sawyer é a personagem favorita de Ryder.
Não havia mais outro caminho se não o declínio. No final dos anos 80, Karen Leigh Hopkins escreveu um filme obscuro, mágico e realista sobre iconografia, que ela costuma equiparar a “A Noite Americana”, de François Truffaut. O roteiro original de “A Volta de Roxy Carmichael” não tinha um papel para Winona Ryder, mas Hopkins resolveu criar Dinky Bossetti para ela, uma garota de quinze anos que acredita ser a filha renegada de uma celebridade local desaparecida. Dinky tinge as roupas com carvão, cerca o quarto de arame farpado, escreve poemas ranzinzas e, assim como Ryder, é desprezada pelos colegas da escola, que a usam de alvo. Ela prefere “livros a bonecas, botas a sapatilhas de bailarina”, e proclama “quem é que entende os outros, afinal? Quem quer entender? Já é difícil o bastante entender a si próprio”. Assim Hopkins descreve Ryder: “ela era muito parecida com a personagem. Tão inteligente e diferente e ousada”.
Lançado em outubro de 1990, perto do décimo nono aniversário de Ryder, “Roxy Carmichael” foi vítima de uma direção insossa — salvo o floreio burtonesco — e teve pouco retorno. Mas foi um filme intrigante, sim, a ponto de uma empresa de financiamento sondar Hopkins recentemente sobre uma possível refilmagem. “Acho que precisamos desse filme agora, mais do que precisávamos 20 anos atrás”, disse ela. Hopkins se refere especificamente ao tema intimista do filme, o isolamento. “Para mim, o filme era sobre não se identificar com ninguém”, contou. “Estou procurando alguém no mundo com quem possa me identificar”, Ryder admitiu à Premiere, em 1989. “[Dinky] até que é bem parecida comigo”, embora Hopkins não tivesse se dado conta da semelhança logo de cara. “Acho que ela captou a inteligência de Dinky, e a diferença entre quem era Dinky e o resto do mundo”, disse Hopkins. “Não é que ela queria ser diferente, ela era diferente de fato e merecia o papel.”
O papel seguinte de Ryder foi bem diferente. Em “Edward Mãos de Tesoura”, ela interpreta o tipo de garota que sempre desprezou: a cheerleader loirinha. “Kim era parecida com as garotas que me chamavam de esquisitona e tacavam Cheetos em mim na oitava série”, contou ela. A ideia da sinopse — um homem com tesouras no lugar das mãos aparece em uma comunidade suburbana — surgiu de um desenho antigo de Tim Burton, do alto de sua adolescência. “Na época, imperava a sensação de que a minha imagem e a percepção que os outros tinham de mim divergiam da minha essência”, ele declarou em “Burton on Burton”. O diretor notou que Johnny Depp — ídolo adolescente por dentro, hippie por fora — vivia no mesmo limbo. E embora Ryder não fosse como Kim, ela conseguiu se identificar um pouco com a personagem. “Em termos físicos, meu papel no filme era tudo que eu havia repudiado a vida inteira”, Ryder contou à revista britânica Select em 1991. “Mas ela se apaixonou por Edward porque se sentiu diferente.” A peruca clarinha de Hayley Mills fez os olhos de Ryder — o atributo que todos que a conhecem não param de louvar — se sobressaírem ainda mais, transformando-a em uma obra viva de Margaret Keane. “Ambos os atores têm um quê de cinema mudo, sabe? Ambos dizem muito com os olhos, sem precisar emitir uma palavra”, diz Burton nos comentários do DVD.
Na última vez que Winona Ryder interpretou uma adolescente, ela voltou a ser a boa e velha garota excêntrica. Em “Minha Mãe é uma Sereia”, ela é Charlotte Flax, a filha religiosa de uma mãe solteira e sacrílega. Baseado no romance de Patty Dann, de 1986, é mais um drama nostálgico de formação, passado em 1963. “Sereias sempre me intrigaram, essa coisa de ser meio peixe, meio mulher”, Dann explicou via email. “As mulheres da família Flax parecem sereias — todas elas são meio infantis, meio crescidas.” Ao passo que a mãe usa vestidos de bolinha coladinhos, Charlotte veste uma túnica e um terço, e tenta expurgar, com orações, os pensamentos impuros sobre o zelador do convento local (Michael Schoeffling, famoso por interpretar Jake Ryan, o cara dos sonhos em “Gatinhas e Gatões”, antes de largar Hollywood e seguir carreira como marceneiro). O comportamento dela lembra o velho testamento de Ryder, “O Apanhador no Campo de Centeio”. “A ambivalência, a presença simultânea de sentimentos positivos e negativos em grau equivalente, domina Holden no decorrer do livro”, escreveu Harold Bloom. Era um tema que Ryder ainda revisitaria em “Caindo na Real” e “Garota, Interrompida”, e em “Minha Mãe é uma Sereia”, foi realçado pela narração de Charlotte. “Adoro como ela era completamente inconsistente”, disse Ryder. “Eu sou completamente inconsistente.”
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Winona Ryder apareceu na hora certa. O crítico de cinema Timothy Shary caracteriza o gênero adolescente como “cíclico”. O primeiro filme de Ryder, “A Inocência do Primeiro Amor”, foi lançado no fim da era super-hormonal de “Porky’s” (a AIDS e a gravidez adolescente acabaram com a festa) e cinco anos antes da estreia de “Os Donos da Rua”. No período entre 1986 e 1990, durante sua carreira adolescente, pipocaram cerca de 250 filmes americanos sobre adolescentes, sendo os mais memoráveis aqueles sobre a nostálgica perda da inocência, como “Dirty Dancing” (1987), “Hairspray” (1988) e “A Sociedade dos Poetas Mortos” (1989). Três filmes de Ryder — “A Fera do Rock”, “1969”, “Minha Mãe é uma Sereia” — aderiram à moda. Ela estava na crista da onda: pós-sexomania, pré-moda da violência — a pista de pouso ideal para uma alienígena de olhos grandões.
“Era difícil dizer qual garota era o rosto dos filmes adolescentes no fim dos anos 80”, conta Shary. Os Brats já tinham ficado para trás, bem como John Hughes (seu último filme adolescente, “Alguém Muito Especial”, saiu em 1987), embora ninguém se esqueça deles. “[Hughes] mostrou que era possível fazer filmes adolescentes sensíveis sem nudez e sem apelar para a ânsia sexual adolescente”, acrescenta. Ele acredita que isso foi “um fator favorável para atrizes como Winona Ryder se estabelecerem, atrizes que deram as caras no fim dos anos 80 e foram levadas a sério enquanto adolescentes.” Mas, enquanto a musa de Hughes, Molly Ringwald, corria atrás de caras ricos, Ryder cuidava da própria vida. “Molly Ringwald era uma espécie de queridinha da América”, explica Shary, “e acho que Winona Ryder, por outro lado, dedicava-se a papéis mais cínicos, mais calejados”. E ela não tinha papas na língua. “Esses filmes são tão piegas”, disse Ryder a respeito do cânone de Hughes. “Como os adolescentes deixam colarem esses rótulos em suas costas?!?” “Atração Mortal” foi um contraponto — Waters disse à Entertainment Weekly que “há toda uma ala colegial que ninguém estava explorando” — e Ryder se orgulhava disso. “Tem uma garotada muito esperta por aí, que não quer ser insultada por John Hughes”, disse ela. Não por acaso, provavelmente, em “Edward Mãos de Tesoura”, Tim Burton transformou o xodó de Hughes, Anthony Michael Hall, em um psicopata, ao passo que, em “Minha Mãe é uma Sereia”, Ryder transou com o modelete dos anos 80 Jake Ryan depois de Molly Ringwald ousar apenas beijá-lo.
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Embora a maioria de seus filmes não tenha sido um estouro, Ryder foi agraciada pela crítica, e chegou a receber um prêmio do Independent Spirit por “Atração Mortal” e um Globo de Ouro por “Minha Mãe é uma Sereia”. “Quando chegou aos vinte anos, no início dos anos 90, ela já era influente o bastante para fazer filmes como ‘Drácula’ e ‘A Época da Inocência’ e ser levada a sério”, conta Shary. Mas não é por isso que ela virou um ícone. De acordo com o livro “Gods Like Us”, de Ty Burr, essa também foi a década das revistas para fãs. Entertainment Weekly, Premiere, InStyle, People e Us Weekly “revitalizaram o interesse pelo triângulo mulheres, fama e estilo”, escreveu Burr. “As revistas validavam as personas, criavam narrativas públicas, julgavam os escândalos em nome do povo e dissipavam o mistério em torno dos filmes, substituindo-o por uma ilusão de acessibilidade e conhecimento”. Apesar de admitir que as revistas de fofoca “mantiveram a visibilidade pública [de Winona]”, Shary observa que Ryder recebeu as “melhores críticas de todos os tempos” nos anos 90 (sua primeira indicação ao Oscar aconteceu em 1993, por “A Época da Inocência”, com direito a uma indicação consecutiva no ano seguinte, por “Adoráveis Mulheres”). Mas não é o que costumamos recordar. A maior lembrança da época é a Winona eterna. A “Winona Forever”.
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Eles saíram juntos pela primeira vez dois meses após a estreia de “Atração Mortal”, dia 16 de junho de 1989, no Teatro Ziegfeld, em Nova York. Ela tinha 17 anos, e ele, 26. Era a premiere de “A Fera do Rock”, e Winona chegou em um Cadillac cor-de-rosa, vestindo um Giorgio di Sant’angelo colado cor-de-fantasma. Ela mudou do preto rebelde para o branco rebelde (“apesar de ‘Atração Mortal’ não dar muito dinheiro, as pessoas passaram a acreditar que eu poderia interpretar papéis atraentes por causa do filme”). Com um batom cor-de-framboesa e olhos cor-de-pêssego, ela compôs um look suculento. Johnny Depp, protagonista do seriado “21 Jump Street”, apareceu de jaqueta de camurça marrom, jeans e camisa preta (um ano depois, ele ostentou o exato mesmo look no filme “Cry Baby”, de John Waters), igualmente sedutor. Eles tinham cabelos iguais — curtinho, escuro, bagunçado — e eram bem parecidos em outros aspectos. Depp também era pouco convencional, um discípulo dos beatniks e fã do padrinho de Ryder, Timothy Leary, sem falar em Salinger. A beleza dele era atípica, como a dela. “O tipo Johhny Depp de beleza era quase uma afronta a Tom Cruise”, explica Elaine Lui, do blog Lainey Gossip.
No fim de 1989, eles já estavam noivos, e em dezembro do ano seguinte, Depp fez a famosa tatuagem “Winona Forever”. Ryder não era mais a virgem santinha. “Recebi muitos pedidos de casamento ano passado”, disse ela antes de conhecer Depp. “Sou muito ingênua com essas coisas.” Depp, divorciado já aos 22 anos de idade, a iluminou. “Foi uma mudança drástica de identidade”, descreve Lui. “De garota esquisitinha à garota mais linda do mundo com o namorado mais lindo do mundo, vivendo o amor mais lindo do mundo.” E o casal vivia bradando o amor aos quatro ventos. “Amo essa garota. “Amo muito”, declarou Depp na época. “Acho que amo mais ela do que a mim mesmo.” Ryder era menos emotiva, mas não menos franca. “Quando conheci Johnny, era virgem”, disse. “Ele mudou isso. Ele foi o meu primeiro em tudo. Meu primeiro beijo de verdade. Meu primeiro namorado de verdade. Meu primeiro noivo. O primeiro cara com quem transei. Então, ele estará para sempre em meu coração. Para sempre.” A imprensa nunca se fartava. Os paparazzi os cercavam em aeroportos, os tablóides não paravam de falar deles. Em maio de 1991, passaram a morar juntos, e a imprensa ficava de tocaia na vizinhança. “Nós dois éramos muito jovens e bem abertos quanto aos nossos sentimentos”, Ryder contou ao Daily Beast em outubro do ano passado. “Ainda não tínhamos aprendido a não compartilhar tudo com todo mundo.” Mas ela entendeu rápido. “Quando eu era novinha, era a queridinha da imprensa”, ela contou à Harper’s Bazaar em 1990. “Até que noivei o Johnny. Foi de mau a pior.”
Dá para traçar a evolução dela pela Vogue. Em junho de 1989, pela primeira vez, Ryder apareceu na bíblia da moda usando um terno masculino — caracterizada como “meio Annie Hall, meio Holly Golightly”. Seis meses depois, estampou sua segunda edição com fotos topless na cama. Mais ou menos na mesma época, Ryder leu um artigo “nojento” em outra revista, que a listava entre uma série de atrizes que tinham seios surpreendentemente grandes. “Foi a primeira vez que li um texto assim sobre mim, e pensei, ‘nossa, não me veem mais como uma atriz infantil!’”, contou. “Eu me senti violada.” Ainda assim, Ryder, que já fora considerada feia demais para Hollywood, virou hit das capas de revista de moda. Ela, no entanto, não abraçou o papel. Evitava desfiles de moda, não fazia penteados nem maquiagem para os eventos, vestia (e repetia) modelitos vintage no tapete vermelho, e às vezes até combinava o look com Depp — camisetas largonas, jaquetas de couro, jeans.
Ela tinha o estilo perfeito na hora perfeita. O grunge estava fazendo por onde, e a inconformada Noni, miúda apesar das curvas, caiu como uma luva para a década do heroin chic. Mas, oficialmente, ela só se tornou ícone do estilo em 1993 — quando adotou o cabelo pixie. “O novo corte pixie de Winona Ryder lembra a elegância gamine de Audrey Hepburn”, anunciou a Vogue. Para perpetuar a tendência, a revista ainda publicou um artigo sobre a volta do gamine. “O pessoal da moda ama essas coisas”, disse Lui a respeito da chancela da haute couture. “Mas, sério mesmo, é aquele rosto. Aqueles olhos. Aquele rosto ossudo.” Para dar uma ideia, o finado maquiador Kevyn Aucoin contou à Allure em 2000 que nunca gastou mais que 15 minutos na maquiagem de Ryder. “Eu nunca tinha visto um rosto tão perfeito”, disse ele. “Parecia uma boneca de porcelana.”
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Ela, no entanto, não se sentia linda assim. Aos 17, Ryder começou a ter ataques de ansiedade “terríveis”. Um ano depois, largou as filmagens de “O Poderoso Chefão: Parte III” por conta do furor dos tablóides com a crise aguda de sinusite e bronquite que ela enfrentou no set de “Minha Mãe é uma Sereia”. “Não tirei férias”, ela contou à Vogue. “Quando finalmente tirei, estava muito estressada.” Aos 19, piorou. “Eu agia como se estivesse tudo bem — simplesmente sorria”, disse ela. “Estava sempre sob os holofotes.” Contudo, tinha problemas para dormir de novo (ela sofria com insônia desde criança) e estava bem jururu nas filmagens de “A Casa dos Espíritos”. Ela admitiu que a imprensa “pesou” no relacionamento com Depp, mas não foi o único problema. “Eu vivia uma vida que não me deixava confortável, tentando ser a pessoa que descreviam nas revistas e jornais”, ela contou à Rolling Stone. “Eu era a Winona! Era preciosa! Adorável! Sexy!” Ela descreve o momento como uma crise de identidade. “Quando você passa os principais anos da adolescência sendo observada e criticada por milhões de pessoas que acham que sabem o que é bom ou ruim para você, você perde o senso de identidade”, explicou Ryder. Ela se consultou com uma terapeuta que a diagnosticou com “ansiedade antecipatória” — pavor ao antecipar eventos — e com a bizarra condição denominada “nostalgia antecipatória”. (No New York Times, a psicóloga Constantine Sedikides recentemente descreveu essa “condição” pouco conhecida, que poderia muito bem ser a raison d’être da era atual, dado o ímpeto de “construir memórias para serem nostálgicas”.) A terapeuta prescreveu pílulas para dormir, e ela acabou viciando. Em seguida, ela tentou “bancar a alcoólatra por duas semanas”, mas desencanou depois de dormir com um cigarro aceso. Então, em abril de 1993, dois anos depois de canonizar o romance em um artigo da Vogue, Winona Ryder e Johnny Depp terminaram.
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A certa altura, Winona Ryder tinha 12 guitarras. “Nunca me senti fisicamente bonita, mas sempre senti que era única, e isso importava mais para mim”, ela contou à Vogue em 2007. “Curtir a música que eu curtia era muito mais uma questão de individualidade do que beleza.” A casa dela era repleta de pôsteres das bandas The Clash, Patti Smith, The Runaways e The Replacements, e em 1990 ela contou à Seventeen que Paul Westerberg, líder da última, era seu maior ídolo, declaração que, aparentemente, determinou seus relacionamentos futuros. Os Replacements são considerados um dos pioneiros do rock alternativo, e o histórico de namorados de Ryder é uma enciclopédia do gênero. Era como se, paradoxalmente, estivesse tentando estabelecer uma individualidade através dos relacionamentos.
Em menos de um mês após terminar com Depp, que originalmente queria ser músico, ela começou a sair com Dave Pirner, da banda de grunge Soul Asylum. Além de Pirner (que aparentemente compôs “Just Like Anyone” para ela), Ryder já foi associada aos seguintes músicos (a lista não segue nenhuma ordem específica): Ryan Adams (ao que parece, “Cry on Demand” é sobre ela), Beck (supostamente, “Lost Cause” é sobre ela), Conor Oberst, Pete Yorn, Blake Sennett, do Rilo Kiley, e Dave Grohl. Ela também inspirou a referência a “O Apanhador no Campo de Centeio” na canção “Rollerskate Skinny”, da banda Old ’97s — Rhett Miller contou à Nerve que compôs a faixa quando Ryder terminou com Matt Damon e se apaixonou por ele, com quem ela vivia falando do ex. “Escrevi a canção para mandar um recado do tipo, ‘sério mesmo que você está reclamando da vida? Pelo amor!’”, disse ele. Também tem a música “Winona”, de Matthew Sweet, título sugerido por um amigo porque Sweet adorava o filme “Atração Mortal”.
Não demorou muito para virar piada. Segundo a Rolling Stone, em um show, Courtney Love brincou que “Kurt a trocaria por Winona”, ao ponto de um repórter da Sassy especular que homens passaram a montar bandas alternativas só para conhecer Ryder. Mas a maior chacota de todas foi “Caindo na Real”. O filme de Ryder, de 1994, glamurizou a moda grunge, as referências literárias e o estilo roqueirinho que ela vivia. Foi uma versão adolescente tardia de seus filmes de formação que a tornaram famosa. Ela interpretou Lelaina Pierce, uma oradora da turma da faculdade que, de repente, se vê como uma “garota indie desempregada”, tenta ganhar a vida com documentários independentes e acaba virando mainstream. “É sobre pessoas tentando encontrar a própria identidade sem modelos e ídolos reais”, Lelaina disse sobre o próprio filme, descrição que também define bem “O Apanhador no Campo de Centeio” e a própria Ryder. Não por acaso, Helen Childress escreveu o roteiro com a atriz em mente. “Não havia ninguém como ela”, disse. E Ryder adorou. “Foi a primeira vez que sorri e gargalhei e me diverti de fato com um roteiro engraçado assim desde ‘Atração Mortal’”, disse ela.
Quem diria que o filme concederia a trilha sonora da geração X? Um pastiche com refrigerante de máquina, cabelos oleosos, roupas vintage, referências da cultura pop e cafés esfumaçados! Ryder contou ao The San Francisco Examiner que “o roteiro de ‘Caindo na Real’ era bem diferente do resultado final do filme. Deu a impressão de que o documentário da minha personagem ditava a narrativa”. Ela assumiu a culpa, e declarou à Life: “há uma obrigação em comercializar algo quando há uma celebridade envolvida”.
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Ryder era uma celebridade relutante, mas estava prestes a se tornar amiga de uma estrela e tanto. No começo, a favorita para o papel de Janeane Garofalo em “Caindo na Real” era Gwyneth Paltrow. Contudo, três anos após o lançamento do filme, a revista People relatou que, à época, Paltrow estava se recuperando da separação com Brad Pitt no apartamento de Ryder, em Manhattan. Teoricamente, Veronica detestava toda e qualquer Heather, mas àquela altura, ela ficou muito amiga de uma — Paltrow era a estrela convencional, loirinha, prestes a ganhar um Oscar por “Shakespeare Apaixonado”. Ryder e Paltrow apareceram de mãos dadas na premiere de “Cidade de Tiras” em 1997 e, apesar de já estar saindo com Ben Affleck meses depois, ela foi flagrada de mãos dadas com Ryder mais uma vez durante a cerimônia do Globo de Ouro, em janeiro. Foi ela que apresentou Ryder ao melhor amigo de Affleck.
Matt Damon e Winona Ryder formavam um par esquisito. Às vésperas da vitória do Oscar por “Gênio Indomável”, Damon não fazia muito o tipo de Ryder. Elaine Lui acredita que essa seja justamente a questão. “Foi o único momento em que ela foi mainstream”, disse. “Matt Damon foi a chance dela se tornar uma Heather… Acho que, para uma garota como Winona, que nunca foi normal, e nunca se viu como normal”, explicou Lui, “seria muito tóxico ser normal”.
O relacionamento dela com Damon durou dois anos, e com Paltrow, menos ainda. Como uma mancha de batom persistente no colarinho de uma camisa branca, correram as más línguas que Paltrow roubara o roteiro de Ryder para “Shakespeare Apaixonado”.
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Mas a carreira de Paltrow como guru em estilo de vida inevitavelmente levaria o duo à ruptura. Filha do diretor Bruce Paltrow e da atriz Blythe Danner, Paltrow tinha pedigree de Hollywood, assim como Angelina Jolie, que também levaria um Oscar em breve, depois de atuar com Ryder em “Garota, Interrompida”. Jolie hoje é uma das mulheres mais famosas do mundo, mais do que Paltrow, embora ambas sejam igualmente ativas fora das telas, o que as protege do machismo hollywoodiano à medida que envelhecem. “Elas estavam muito mais preparadas para existir diante da fama, e deram um jeito de prosperar”, descreveu Lui. “Winona nunca conseguiu encontrar seu caminho na fama, acho que ela não tem esse dom… Não adianta atuar e produzir, tem que jogar o jogo. E a diferença entre Winona e Gwyneth ou Winona e Angelina é que ela não sabe jogar. Nunca soube e nunca vai saber.”
Foi assim desde o começo. “Fui a algumas festas em Los Angeles e tentei curtir”, Ryder contou à Premiere em 1989, três anos após seu primeiro filme. “Mas fiquei assustada, enojada. Era puro estrelismo, a galera fazendo de tudo para aparecer. É meio triste.” Ela tinha só 17 anos na época e, aos 18, os sentimentos não mudaram. “Agora que tive minha primeira experiência com os tablóides”, ela contou ao New YorkTimes, “tenho receio de conversar com alguém numa limousine por conta do motorista”. Em geral, ela não falava muito. Interagia o mínimo possível com a imprensa — seu primeiro bate-papo com plateia foi com a Oprah, para promover “Minha Mãe é uma Sereia” —, e durante um bom tempo sua única entrevista depois do horário nobre foi com Charlie Rose. Quando abria a boca para falar, reclamavam que ela divagava. Ela estava familiarizada com o “protocolo”, mas achava tudo muito “tosco”, e resolveu priorizar a vida, e não a carreira. “Um artista de verdade não liga para essas coisas de carreira”, disse ela. “Mas é importante para muitas pessoas que se denominam atores e que na verdade são apenas posers.” Essa distinção era importante, estava na bíblia dela. “Se tem uma coisa que detesto, é o cinema. Nem ouse falar disso comigo”, diz Holden. Ryder estava dividida — ambivalente como sempre — entre amar o cinema e amar Salinger. “Por muito tempo, quase tive vergonha de ser atriz”, contou. “Eu achava que era uma profissão superficial.” Não era uma questão de exibicionismo, mas uma asserção. Depois de uma série de patacoadas (“Colcha de Retalhos”, “Boys”, “Celebridades”) e um hit (“Alien: A Ressurreição”), ela declarou à Vogue em 1999: “sou tão famosa quanto sempre serei. Jamais serei mais famosa do que agora”.
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“Estou com o pressentimento de que você está caminhando para uma queda terrível.” —O Apanhador no Campo de Centeio
Certa manhã, Winona Ryder acordou — ela tinha uns 21 anos na época — e se sentiu “sensível demais para viver no mundo”, então deu entrada em um hospital psiquiátrico, onde passou uma semana. Ninguém falava com ela (a não ser para medicá-la). Mas, ao menos, ela começou a fazer terapia. E abriu as portas para “Garota, Interrompida”. “Quando atuam como se fossem ‘normais’, fica a questão: qual é a diferença entre essa pessoa e eu? O que leva ainda a outra questão: poderia ser eu no pinéu”, Susanna Kaysen escreveu acerca da própria institucionalização. Esse livro era justamente o que o médico havia receitado (ou deveria ter receitado) para Ryder, que lamentou não saber dele na adolescência. “Percebi que o que aconteceu comigo não era incomum”, ela contou à Vogue. “Foi tipo, ‘Meu Deus, tentei dizer isso a vida inteira e nunca consegui’.”
A adaptação do best-seller, publicado em 1993, demorou seis anos, e Winona interpretou um papel de 18 anos de idade aos 27. Kaysen conversou bastante com o diretor e co-roteirista James Mangold, mas só foi conhecer seu alter ego quando começaram a filmar, em 1998 (30 anos após os eventos descritos no livro). Ela foi até a Pensilvânia assistir a um dia de gravação, e à noite passou duas horas com Ryder, que estava faminta e exausta. A autora achou que o encontro foi muito rápido para despir a estrela da fama. “Não me encontrei com uma pessoa, parecia mais um artefato”, diz Kaysen. “Achei que não passamos tempo o bastante juntas, não consegui abstrair o fato de estar conhecendo alguém que não era exatamente uma pessoa para mim.” Entretanto, ela compreendeu que Ryder não visava “mimetizar” o comportamento de Kaysen, mas atentar para a própria experiência. “Creio que ela fez um excelente trabalho tentando entender como interpretar uma garota confusa e desesperada, e acho que é porque ela havia passado por isso”, disse Kaysen. “Ela não precisou conversar comigo para entender o papel.”
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“Garota, Interrompida” costuma ser o último filme associado a Ryder. Também é o último filme em que ela deu vida à persona que a tornou famosa: obscura, inteligente, hermética — persona pela qual foi celebrada na juventude, porém institucionalizada enquanto adulta. Apesar de já ter vivido sua fase de formação há bastante tempo, lá estava ela de novo, nas telas, tentando descobrir onde se encaixava, e compreendendo que, na verdade, encaixava-se em lugar nenhum. Assim como Susanna e Holden, Ryder mais uma vez estava presa em um limbo, algo que Mangold notou no set de filmagens. Ao observar sua inaptidão para tomar decisões, ele a chamou de “ambivalente”, ao que ela respondeu: “sou mesmo, não sou?” Ela sempre estava fora do lugar, tanto em cena quanto fora das telas, mas em 1999, quando o filme foi lançado, todo mundo já tinha seguido em frente. E Mangold sabia disso. “Penso nela como uma atriz do cinema mudo”, disse ele, “e acho que ela é uma raridade, talvez até um anacronismo, no cinema falado de hoje”. No fim das contas, a sociopata de Angelina Jolie eclipsou Ryder e sua fala inicial profética: “alguma vez, você já confundiu um sonho com a vida real e roubou qualquer coisa, mesmo com dinheiro no bolso?”
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Dois anos depois, a resposta foi “sim”. Dia 12 de dezembro de 2001, Ryder foi presa por furto na loja Saks, na Quinta Avenida, em Beverly Hills. Ela havia quebrado ambos os braços dois meses antes e estava sob o efeito de oxicodona. Depois do incidente, ela contou à Vogue que andava “esquisita” e tomava o remédio mesmo sem saber se ainda precisava. “Você já tomou analgésicos?”, perguntou. “É pura confusão.” Ryder achava que as coisas estavam sob controle, visto que muitas pessoas cometiam furtos do tipo e se safavam. Ela chegou a esquecer o cartão de crédito no balcão. “Ela desligou. Foi isso que aconteceu”, disse o pai. “Em vez de barrá-la e simplesmente dizer, ‘olha, você esqueceu de passar o cartão’, quando ela saiu da loja com mais de 5.500 dólares em roupas e acessórios, chamaram a polícia.” Detida no escritório da loja, Ryder concordou em reembolsá-los. Mesmo assim, foi presa. “Eu não disse uma palavra”, contou ela um tempo depois. “Não fiz nenhuma declaração. Não fiz nada. Só queria que aquilo tudo acabasse logo.” Ela buscou refúgio em São Francisco, seu lar, e “conscientemente” optou por largar o trabalho. Um ano depois, em um julgamento coberto pela mídia, ela foi condenada por furto e vandalismo a três anos de liberdade condicional e 480 horas de serviços comunitários. Também foi multada e instruída a fazer terapia.
Mesmo sem “o incidente”, o termo que Ryder se refere ao episódio, Elaine Lui acredita que o declínio da carreira da atriz seria inevitável. E depois do lançamento de “Alien: A Ressurreição”, em 1997, ela mal conseguiu trabalho. “Só me chamavam para interpretar papéis tipo policial novata!” Ryder contou à Vogue. “E eu respondi, ‘Não tenho nada a ver com isso. Não vou fazer papel de polícia!’”
Na época do crime, ela tinha acabado de fazer 30 anos. “Era um momento em que eu estava tentando me entender. Estava tentando entender como levar a vida fora do trabalho e dos relacionamentos”, disse ela. Ninguém deu a mínima. Foi três meses depois do 11 de Setembro, e o mundo só tinha olhos para isso. “Ela encapsulou todos os sentimentos daquele momento”, diz Lui. “Mas é claro que uma celebridade não faz a menor ideia de tudo de bom que tem em mãos e precisa entrar numa loja e levar tudo embora.” Ainda faltavam quatro anos para a TMZ nascer, mas o desenrolar minuto a minuto do julgamento de Ryder foi um estouro na internet.
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Depois do caos, Winona Ryder se reergueu aos poucos, quase que imperceptível (um papel sem graça em “A Herança de Mr. Deeds” aqui, uma ponta não creditada como psicóloga em “Maldito Coração” acolá). Ela recebeu mais atenção por sua primeira grande campanha de moda, em partes porque era uma sátira de sua infração. O designer de moda Marc Jacobs, famoso por fazer mashups de cultura pop em suas peças, estética que domina a internet, curtiu o look do julgamento e optou por ela como um dos rostos da campanha de primavera/verão de 2003. “Convidei a Winona para participar da campanha porque ela estava lindíssima nas fotos recentes”, ele contou à Hello!, “mesmo no tribunal”. Os anúncios retratam uma Ryder histérica, cercada de itens recém-comprados, e um par de tesouras ao lado (uma matéria relatou que ela havia cortado as etiquetas durante o incidente). Ryder figurou mais uma vez na campanha de outono/inverno de Jacobs, em um aparente revival de “Os Fantasmas se Divertem”, com uma franja escorrida e uma saia preta de tartã (o desfile de primavera de 2016 de Wes Gordon também fez alusão ao filme, segundo a Vogue, por meio de uma reprodução “obscura e pantanosa” do estilo de Lydia).
Em dezembro de 2015, Jacobs revelou que a primeira campanha de Ryder no mundo dos cosméticos seria a coleção de primavera de 2016 para a Marc Jacobs Beauty. Ele a anunciou no Instagram, veículo que, nas palavras da New Yorker, destaca a “fotografia como uma arte elegíaca e sombria, uma arte que acelera e falsifica a emoção das fotos antigas ao eliminar o peso da história e aplicar, em dois segundinhos, uma textura de tempo.” É a resposta da internet à nostalgia do presente descrita por Fredric Jameson, em que pautamos as nossas vidas por filtros e molduras para compor uma falsa vida digna de lembrança. Na campanha de Jacobs, os olhos de Ryder foram delineados com uma pincelada monocromática, e ele escreveu: “isto me lembra um dos meus filmes favoritos de todos os tempos: ‘O Ano Passado em Marienbad’. A elegância cool, indefectível, e o glamour atemporal da atriz Delphine Seyrig há tempos são referências para mim”. A homenagem moderna de Alain Resnais à era silenciosa apresenta Seyrig como uma Louise Brooks tardia, uma memória que não passa de um sonho, porque nada está muito claro — nem fato, nem ficção; nem tempo, nem espaço. Tudo isso é tão fluido quanto as imagens que emergem na tela, tão fluido quanto o delineador que contorna os olhos de Ryder. Mas a fluidez de Seyrig não é como a de Ryder. Em 2014, Ryder figurou na campanha de outono/inverno da Rag & Bone, com um cabelinho bagunçado que lembra a época de “Caindo na Real”. “Para nós, Winona Ryder é um ícone autêntico”, disse o designer Marcus Wainwright. “Ela também tem uma beleza atemporal.” E é essa atemporalidade que lhe confere valor — ela é a personificação da nostalgia dos anos 90.
É impossível pensar em Ryder sem pensar na era grunge. Na revista do New York Times, em 2011, Carl Wilson cantou a bola do “ciclo da ressurreição cultural de 20 em 20 anos”, anunciando que finalmente havia chegado à nostalgia da geração X. “Em termos mais suaves, a nostalgia é a cola que reforça os laços da solidariedade e experiência compartilhada”, escreveu. “E é um lembrete de que não nos importamos apenas com a criação de uma ideia ou imagem, mas também com a data — as coisas ganham mais significado quando estão em sintonia e contraponto com outros eventos e conceitos da mesma era.” Conforme Tavi Gevinson contou à Entertainment Weekly em 2014, “o que eu sinto quando vejo as fotos da Winona Ryder adolescente de mãos dadas com Johnny Depp, eles de jaqueta de couro, nossa, não tem nada igual”. A única pessoa que chega perto disso é a Winona Ryder de hoje, porque cravada na Winona Ryder de hoje está a Winona Ryder de outrora. Ela carrega o passado consigo. A atriz adolescente que tentou transformar a própria vida em nostalgia, antes mesmo de chegar ao ápice da carreira e se tornar a mulher que Marc Jacobs hoje enquadra em nostalgia. Ela é uma matrioska de nostalgia. A imagem de Winona Ryder impacta mais do que suas últimas atuações — em “Dez Mandamentos Muito Loucos”, “The Last Word”, “E se o Amor Acontece…” —, e isso apazigua o desejo crônico da nossa cultura por preservar o passado, em vez de aceitar o presente.
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De volta a 1991, quando Ryder sequer havia completado 20 anos, a Rolling Stone a elogiou por selecionar “papéis fortes para mulheres”, coisa que muitas outras atrizes não conseguiam fazer. “Ainda não passei por esse problema, porque ainda não interpretei nenhuma mulher de fato”, ela observou, perspicaz. Além do cânone da angústia adolescente, Ryder enfrentou tantas intempéries quanto todo mundo. Ano passado, um artigo da publicação acadêmica The Journal of Management Inquiry revelou que as celebridades femininas atingem um pico salarial aos 34 anos de idade. Para os homens, é 51. “O semblante vivido dos homens é visado pois transmite maturidade, caráter e sabedoria”, dizia o artigo. “O rosto feminino, em contrapartida, é valorizado pela sua juventude.” Isso explica por que, aos 52 anos, Johnny Depp, antigo par de Winona Ryder, está no leme de uma franquia e ganha US$ 30 milhões por filme, enquanto todos os bens de Winona Ryder, 44, estão estimados em metade disso, e a mídia lhe presenteia com migalhas de elogios por não aparentar a idade que tem. “Ele ainda é um possível candidato a Oscar, aos cinquenta e poucos, e ela provavelmente nunca mais vai concorrer, infelizmente”, diz Shary, lembrando que o papel mais chamativo de Ryder nos últimos anos foi de uma “coroa” em “Cisne Negro”. “É um sintoma da maneira como a indústria trata homens e mulheres.” Há quem culpe “o incidente’, mas seu colega de profissão Robert Downey Jr., nascido em 1969, já foi preso muito mais vezes que ela e hoje é o ator mais bem pago do mundo (ah, e pouco tempo atrás, foi perdoado por uma sentença de posse de drogas, de 1999). As mulheres não podem cometer erros, que dirá as mais velhas.
Não é à toa que J.D. Salinger, celebrado pela descrição realista do inconformismo, quase sempre escrevia sobre “pessoas bem jovens”. Enquanto Johnny Depp lucra com os caprichos de papéis principais mais velhos — “Piratas do Caribe”, “Sweeney Todd”, “Alice no País das Maravilhas” —, Ryder fica para trás. Mulheres não podem errar, não podem ser diferentes, e mulheres mais velhas em geral sequer são toleradas. Cabem às mulheres mais velhas, conforme Ryder já é classificada, os papéis de esposas (“O Homem de Gelo”, “Experimentos”), namoradas (“Homefront”) e mães (“Stranger Things“, nova série do Netflix). Resta a Ryder se conformar com papéis coadjuvantes, fato que nos traz ainda mais saudade de Lydia Deetz, Veronica Sawye e Charlotte Flax. Conforme ela contou à Interview, “você se acostuma com certo rumo das coisas, até que, de repente, cresce”.
Mas nós não nos lembramos dela adulta. “A verdadeira heroína Ryder é uma doce alma bamba, em transição rumo à maturidade”, escreveu Richard Corliss em um artigo de 1994 da revista TIME, sobre a geração vigente de vinte e poucos anos, a “Geração Winona”. E embora ano passado a Vogue tenha proclamado uma Winonascença, a própria atriz reconheceu que era um resgate do passado, que as imagens do Instagram retratavam uma “garota frágil de olhos grandões”. “A nostalgia está agarrada à nossa juventude, ao que curtíamos quando éramos novos, e também às pessoas que viveram essa juventude conosco”, Shary disse. “É preciso ter uma memória real da época para sentir nostalgia. Daqui a uma ou duas gerações, o que os papéis de Winona Ryder do fim dos anos 80 tinham de assertivos e acolhedores se dissipará.” Nossa memória de Winona Ryder é uma jovem silenciosa, um rosto gentil, uma voz remota, uma atuação paciente. Winona Ryder agora é mais mordaz, com um rosto anguloso, voz penetrante e postura mais agressiva. “Assustados” é como Lui descreve os olhos que a tornaram célebre. É como se, por não conseguir mais papéis semelhantes a ela, ela estivesse encenando tudo. Recentemente, Ryder contou ao Daily Beast que, quando foi convocada para a série “Show Me a Hero”, da HBO, o criador David Simon alertou: “melhor não mostrarmos esses olhos de Winona”. Foi o oposto do que sua bíblia pregava: seja honesto, inocente, puro. Em resposta, Ryder — que jamais conseguiu ser falsa — cortou os cílios. É praticamente impossível não compará-la com Sansão, o herói bíblico cuja fonte de poder eram as madeixas. É como disse Holden: “há coisas que deviam ficar do jeito que estão. A gente devia poder enfiá-las num daqueles mostruários enormes de vidro e deixá-las em paz.”
Publicado originalmente em Fevereiro de 2016 na Hazlitt. Republicado com autorização. Tradução por Stephanie Fernandes.
No início era somente uma mensagem curta, um tanto enigmática, que parecia ter saído de um arquivo do século 19 e parado ali por engano. Em 15 de fevereiro de 2014, a Folha de São Paulo publicou uma matéria sobre dois bolivianos que, recém-chegados à maioridade, seriam vendidos como escravos numa feira livre de São Paulo na tarde de segunda. De acordo com testemunhas, os dois rapazes foram oferecidos pelo dono de uma oficina de costura aos transeuntes. Durante o processo as negociações esquentaram por divergências sobre o preço, já que o proprietário da oficina, também boliviano, insistia no valor de US$ 500 por cabeça. A situação ficou ainda mais tensa, pois moradores da região indignados tentaram libertar os dois jovens.
Ao lado da matéria havia ainda uma série de informações, da qual se extraíam alguns números. As autoridades estimam que somente na região de São Paulo vivem em torno de 300 mil bolivianos, sendo provável que a maioria, assim como os dois jovens, trabalha ilegalmente em pequenas oficinas de costura. As informações são de que nos últimos anos investigadores de uma unidade especial resgataram da condição análoga à escravidão várias centenas destes trabalhadores, empregados de fornecedores de grandes marcas da moda como Zara e Gap.
Era como se, naquela tarde, uma cortina tivesse se aberto por um breve período de tempo. Algo que acontece apenas às escondidas, em garagens cheias de mofo ou em oficinas de fundo de quintal, inesperadamente ocorreu diante de todos, no meio da rua.
Em seguida, a cortina se fechou novamente.
Uma semana após o incidente, os dois bolivianos mergulharam no anonimato do qual tinham saído. O que permaneceu foram perguntas. Como é possível que, hoje, 127 anos depois da escravidão ser proibida no Brasil, no meio de um centro econômico-financeiro como São Paulo, dois jovens rapazes serem negociados como se fossem cabeças de gado? O que se passa com este mundo bruto, medieval, que aparentemente reside no ponto cego da modernidade? Funciona de acordo com que regras?
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 20 milhões de pessoas em todo o mundo estão submetidas a condições análogas à escravidão. Elas trabalham em fábricas de tijolos indianas, em minas chinesas e em bordéis tailandeses. Costuram, cuidam dos campos ou constroem estádios para a Copa do Mundo de futebol no Catar. A fundação australiana Walk Free, que anualmente publica um índice de escravidão global, propôs em seu relatório de 2013 a cifra de 36 milhões de escravos modernos – além do trabalho forçado eles também contabilizaram casos de casamentos forçados e de escravidão por dívida. “Os grilhões da escravidão moderna”, escrevem os autores, “raramente são de natureza física”. Hoje existem maneiras mais sutis de submeter as pessoas – dívidas, isolamento e ameaças. Da mesma forma, dificilmente se herda essa condição pelo nascimento, como era no passado. Hoje é principalmente por meio de falsas promessas que elas são atraídas a lugares indignos e é por isso também que a escravidão moderna é um crime difícil de compreender – com frequência parece que as pessoas agiram por vontade própria.
Além disso, embora em quase todos os países as leis proíbam a escravidão contemporânea, somente os casos menores chegam ao judiciário. A comprovação é difícil não só em razão da frequente escassez de evidências. Muitas vezes são as próprias vítimas que permanecem em silêncio, seja por um sentimento de culpa ou por receio de vingança do contratante. Em outros casos, os governos travam as investigações, pois atrair muita atenção poderia ter um efeito dissuasivo para a economia do país.
É bem possível que essa tenha sido uma das razões pelas quais o consulado boliviano em São Paulo, que na semana seguinte à da venda mal-sucedida providenciou uma silenciosa viagem de volta à terra natal para os jovens, deixou de responder vários questionamentos. Uma equipe de fiscalização do Ministério do Trabalho, que na sequência procurou elucidar os acontecimentos, solicitou, em vão, a cooperação do consulado. Como alguns meses depois a fiscalização obteve uma compensação financeira para os rapazes no valor de US$ 6 mil a ser paga pelo ex-empregador, foi necessária a ajuda de um padre para enviar-lhes o dinheiro. O padre, que recebeu ambos em seu abrigo para refugiados até que viajassem, era o único que ainda mantinha contato com eles.
Esta é a primeira coisa que se nota nesta história estranha e cheia de reviravoltas inesperadas: qualquer pessoa que estiver à procura de Ismael e Juan Carlos precisa ter paciência.
Ismael
Era uma tarde do mês de julho. Ismael havia proposto a Praça 25 de Maio no centro de Sucre como ponto de encontro, em um banco próximo à fonte. “Dane-se o recrutador”, disse ele no primeiro telefonema, “eu não tenho medo”. Mas de repente ele cancelou, alegando que seu novo chefe o havia mandado para um ônibus noturno rumo ao sul. Ismael subitamente sugeriu pegar uma carona com ele, porém acabou voltando ao plano original. Praça 25 de Maio então, no banco perto da fonte.
Prédios coloniais brancos contornavam a praça. Meninas gordinhas com tranças grossas no cabelo, talvez com 8 ou 9 anos de idade, corriam de banco em banco. Jornaleiros, de uns 12 anos no máximo, bradavam as manchetes de seus jornais através do rarefeito ar andino, enquanto outros simplesmente mantinham as mãos estiradas, a fim de angariar algumas moedas.
Ismael aparentava estar um pouco sem fôlego quando finalmente apareceu na praça; um adolescente pequeno, magro, com o rosto marcado pelas cicatrizes de alguém que viveu muito tempo na rua desde muito cedo. Ele se senta no banco e me encara com olhos cerrados e desconfiados.
Está vestindo uma camiseta nova com o escudo da Ferrari; seus tênis são da Nike. Tem o mesmo corte de cabelo do Neymar e os braços cobertos por longas e apertadas luvas que se parecem com tatuagens – ele diz que são para proteger a pele contra o sol. Em sua mão esquerda ele tatuou um coração contendo as palavras “eu e você”, sendo o “você”, conforme explicou, sua namorada Belinda, de 17 anos, mãe de seu filho Adán, que completara 4 anos na última semana.
Ismael, nota-se logo, não é uma pessoa muito falante. Ele tem esse jeito monossilábico, meio apreensivo, peculiar a muitos jovens, quando sentem que podem estar sendo imprudentes ou fazendo alguma coisa errada.
“Desculpa”, diz Ismael, “mas eu realmente não tenho muito tempo. Faz pouco tempo que sou ajudante no ônibus noturno e meu novo chefe pressiona bastante. Se você quiser, venha comigo e conversamos pelo caminho. Caso contrário, volto em dois dias”.
E o Juan Carlos? Ele está pela cidade?
“Ele já foi embora. Está na Argentina com o pai dele. Trabalham em construções em Buenos Aires.”
Ismael contou que Juan Carlos ficou sumido durante semanas e que depois de tudo por que tinham passado no Brasil, ele fica muito preocupado com seu “irmãozinho gordo”, como ele o chama. Os dois cresceram no mesmo bairro, nas ásperas encostas acima de Sucre. Eles jogaram futebol nos mesmos descampados e frequentaram a mesma escola, a qual abandonaram mais ou menos na mesma época, Ismael com 13 anos e Juan Carlos com 11.
Seus pais, disse ele, queriam que eles ganhassem dinheiro para aliviar as finanças familiares. Não tinha como ser diferente. Seu pai frequentou a escola por tão pouco tempo que mal aprendeu a ler corretamente. Ainda quando criança fora trabalhar carregando pedras nos canteiros de obras de Sucre. Quando suas costas não aguentavam mais o peso, ele pegou um empréstimo e comprou uma pilha de tapetes e cobertores. Há sete anos, seu pai senta-se todos os dias numa pequena cabana no Mercado Campesino. Nos dias bons, diz Ismael, ele vende dois cobertores.
Ismael trilhou os passos de seu pai. Ao amanhecer ele e Juan Carlos saíam e visitavam os canteiros de obras de Sucre. Quando precisavam, ele carregava pedras pelos andaimes ou misturava cimento. Quando Juan Carlos, um ano mais tarde, foi enviado por sua mãe ao Chile por alguns meses para ajudar na oficina de costura de uns conhecidos, Ismael partiu para Santa Cruz. Fatiou frangos na cozinha de um restaurante chinês e, em seguida, mudou-se para La Paz, onde costurou roupas tradicionais numa alfaiataria. Então, novamente Sucre, canteiros de obras, dias sem dinheiro, uma infância sem propósito. Uma vida cujo horizonte era o dia seguinte.
A Bolívia é o país mais pobre da América do Sul. Mais da metade da população vive com menos de um dólar por dia. O próprio presidente Evo Morales trabalhou nas plantações de coca quando jovem. Mais tarde, foi cortador de cana na Argentina. Ismael conhece a história. Ele aprendeu com ela que, ao fim de um longo caminho, com alguma sorte as portas de um palácio podem se abrir.
Como seria ir para o Brasil?, perguntavam-se às vezes Ismael e Juan Carlos, enquanto estavam sentados no meio-fio por aí. Um lugar onde se ganhava em um mês o que na Bolívia levaria um ano inteiro. Imagina só: trabalhar um pouco e guardar dinheiro para ter um táxi. Construir uma casa para Belinda e Adán. “Sonhávamos acordados”, conta Ismael. “Nós não tínhamos dinheiro nem mesmo para sair daqui.” Então chega a hora dele ir. “Às seis”, ele diz. “No terminal. A linha em que eu trabalho se chama 6 de Octubre.”
Como a maioria dos ônibus que ali aguardam seus passageiros na madrugada, o de Ismael também é uma geringonça velha e enferrujada. Colado no para-brisa, um adesivo da Virgem Maria ao lado de uma foto de uma mulher nua. Enquanto Ismael desinfeta os assentos com um spray, os passageiros se reúnem no portão. Crianças perambulam no entorno vendendo cobertores. Quando todos já embarcaram, Ismael coloca um filme de Kung Fu no aparelho de DVD e se coloca ao lado do banco do motorista.
“Você viu a garota na fileira 26?”, diz o motorista, que ainda estala a língua. O rosto de Ismael esboça um breve sorriso.
O ônibus passa por uma estrada local em direção à paisagem lunar sem vegetação dos Andes. Ele roda por vilas escuras, iluminadas somente pelos monitores dos cibercafés. Novamente escuridão e muitas curvas. Os faróis dianteiros iluminam as barreiras de segurança da estrada, atrás dos quais se abrem profundos vales nos quais durante o dia se pode ver os destroços queimados de ônibus que caíram. Ismael gosta de trabalhar no ônibus. É mais seguro do que qualquer coisa já fez até então, diz ele. O itinerário lhe dá paz. A sensação de não estar parado.
Ele já não precisa implorar para que alguém lhe dê um trabalho, como no dia em que o recrutador falou com ele, em janeiro de 2014. Ismael conta que ele estava frustrado, pois ninguém mais precisava dele nas obras. Ele foi até seu pai no mercado e emprestou algumas moedas para comer alguma coisa em um restaurante popular quando de repente uma mulher se aproximou. Ela perguntou se poderia se sentar ao lado dele.
Ismael assentiu com a cabeça. Era meio-dia, as outras mesas estavam cheias. “Ela era alta e tinha por volta de 40 anos”, falou. “Ela mexeu em seu caldo de galinha e me mediu de canto de olho por algum tempo. Então perguntou: você já se imaginou trabalhando no Brasil?”
Ismael olhou diretamente para ela.
“O que eu ganho com isso?”, respondeu.
“Quinhentos por mês”, replicou a mulher. “Em dólares.”
“Quinhentos! No duro?”
Era mais do que ele jamais havia imaginado.
A oficina, disse ela, pertencia a um tio em São Paulo. O negócio estava indo tão bem que estavam em busca de mão-de-obra. O turno iniciaria às 8 horas da manhã e terminaria às 5 horas da tarde. “Pense nisso”, disse ela. “Um ônibus com um futuro colega seu sai hoje à noite.”
Estrelas cadentes caíam no céu. Ismael alcança as folhas de coca do motorista, que previnem a fadiga. Vez ou outra ele salta do ônibus para pagar o pedágio.
[olho]“A ida de ônibus, a volta no próprio Toyota”, sorriu Ismael[/olho]
“Eu sei que isso soa ingênuo”, diz. “Mas eu não duvidei nem por um segundo.” Ainda do mercado ele telefonou para Juan Carlos, que assim como ele só pensava no dinheiro. A seguir, foi para casa pegar algumas coisas. Ismael entrou em seu quarto, que não tinha portas ou janelas, e enfiou algumas roupas na mochila. Aproximou-se da cama e levantou o travesseiro, sob o qual mantinha tudo que tinha algum valor num saco plástico. Sua identidade, um pente, uma foto dele com Belinda em frente a um canteiro de flores no parque.
“Não precisa chorar”, disse Ismael enquanto abraçava em despedida sua irmã Sandra, a única que estava em casa. “Esta é a minha grande chance”.
Então ele partiu para a rodoviária, onde Juan Carlos já o esperava. A mulher do mercado apareceu e comprou-lhes passagens para o Paraguai. O terceiro trabalhador, um homem chamado René, deveria subir em Santa Cruz.
Assim, eles se foram. Um país que eles nem sequer imaginavam que se falava outra língua. Nenhum de seus professores havia mencionado que no Brasil se usava outra moeda, ou talvez até tenham dito, mas eles não prestaram atenção. “A ida de ônibus, a volta no próprio Toyota”, sorriu Ismael empolgadamente. Ambos riram. O sentimento era de aventura.
Bignami
Agora eles faziam parte de um grande movimento migratório, um sobre o qual não se sabe muito. Pessoas da Bolívia, do Peru e do Paraguai espalham-se por toda a América do Sul. Circulam num zigue-zague pelos Andes, sempre atraídas por empresas no Brasil, onde se tornou mais complicado devido ao milagre econômico do início do milênio encontrar mão-de-obra local disposta a fazer o “trabalho sujo” por uma ninharia, especialmente no setor têxtil. Desde que o Brasil, em meados da década de 90, sob pressão do Fundo Monetário Internacional, abriu seus mercados para mercadorias estrangeiras, os produtores nacionais concorrem com produtores de baixo custo como os de Bangladesh e da China. A fim de reduzir custos, muitas empresas terceirizaram sua produção para pequenos fornecedores. A grave recessão que o Brasil enfrenta no momento fez com que a pressão se tornasse ainda maior.
Somente em São Paulo existem hoje cerca de 8 mil oficinas, mas “se apertarmos o cerco”, diz Renato Bignami, “aparecerá o dobro em outro lugar”.
Bignami, um inteligente advogado de 43 anos, lidera a pequena unidade especial que investiga os casos de escravidão contemporânea para o Ministério do Trabalho em São Paulo. Seu escritório localiza-se no oitavo andar de um edifício comercial. Pisos de linóleo, luzes de neon. Bignami diz escolher casos que terão grande impacto, como no caso da grife de roupas Zara: em 2011 foram resgatados 56 bolivianos de dois fornecedores que produziam blusas para a coleção de primavera da marca.
A Zara foi o maior êxito de Bignami. Os trabalhadores eram forçados a cumprir turnos de até 14 horas. Vários quartos sem ventilação. O local trancado o tempo todo. Dos US$ 65 que a Zara cobrava em suas boutiques por uma blusa, US$ 4 iam para o fornecedor e US$ 1 para cada trabalhador. “Espetacular, mas nada incomum”, diz Bignami, que manteve algumas peças no armário.
Em 2011 o controlador da Zara, o grupo Inditex, foi condenado a pagar uma multa no valor de US$ 1,4 milhão. Ao mesmo tempo, o grupo assinou um termo de ajustamento de conduta se obrigando a garantir melhores condições de trabalho entre seus fornecedores. Pelo descumprimento do acordo, o Ministério do Trabalho brasileiro aplicou uma nova multa em 2015 no montante aproximado de US$ 300 mil. A Inditex entrou com recurso.
Dezenas de milhares de pessoas por todo o país têm se unido e cooperado com a polícia nos últimos anos, que resgatou de condições desumanas, de oficinas e frigoríficos, de canteiros de obras e plantações de cana – africanos, haitianos, paraguaios, e especialmente bolivianos, frisa Bignami.
“O caso do Ismael e do Juan Carlos”, continua, “apenas nos abriu os olhos para a ponta de um enorme iceberg. Um exemplo fantástico que reúne muitas coisas: tráfico de pessoas, trabalho forçado e escravidão por dívida. E por trás de tudo isso uma potência do mercado da moda!”.
Bignami abre uma pasta e retira um relatório que ele teve acesso após a conclusão das investigações do Ministério Público. Ele acredita que o fato do ônibus em Sucre ter partido na mesma noite não é coincidência. Ismael e Juan Carlos não deveriam ter tempo hábil para desconfiar. Além disso, diz ele, faz parte da estratégia do recrutador abordar propositalmente pessoas que não têm como bancar a viagem até o local de trabalho.
Numa caderneta que chegou às mão de Bignami durante uma operação policial, o dono da pequena oficina, um homem chamado Serapio Maigua, detalha com uma caligrafia simples todos os custos de viagem em que incorreu. A soma total chega aos mil dólares. Isso incluía as passagens de ônibus, dois refrigerantes, duas refeições e uma “ajuda de custo” de US$ 800 a uma mulher que deveria assegurar que a polícia na fronteira não fizesse muitas perguntas. Segundo Bignami, em seu interrogatório Maigua esclareceu como tudo era feito.
Ele se inclina para trás.
“Mil dólares”, diz ele. “Não é muita coisa.”
Foi o dinheiro que Maigua adiantou. Ismael e Juan Carlos aceitaram, pois acreditavam que não levaria muito tempo até que pudessem quitar a dívida. Mal sabiam que tinham caído numa armadilha. “Com estas dívidas, correntes invisíveis os prenderam a Maigua”, explica Bignami.
A ideia é simples: quem deve para o empregador não pode simplesmente ir embora quando se cumpre turnos de 14 horas diárias. Quem tem dívidas dificilmente reage mal quando lhe dizem que o pagamento será menor do que o combinado. De acordo com Bignami, a dívida é o padrão que se repete em praticamente todos os casos. Sem isso, tudo o que se segue seria inconcebível.
A escravidão por dívida é um dos critérios para classificar um caso específico como escravidão contemporânea. O trabalho forçado é outro, sendo que o constrangimento pode ser praticado de diversas formas. Diferentemente do caso de Ismael e Juan Carlos, que prescindia de portões trancados. A oficina em que se encontravam ficava em Cabreúva, um buraco no interior de São Paulo.
Um lugar do qual é difícil fugir com uma mão na frente e outra atrás.
De acordo com Bignami, fala-se em condições análogas à de escravo quando as condições materiais no local de trabalho atentam contra a dignidade humana; quando, por exemplo, falta água potável, não há banheiro e cabos elétricos ficam expostos podendo causar um curto-circuito. Vale ressaltar ainda que a legislação brasileira prevê uma jornada de trabalho máxima de 44 horas semanais e um salário mínimo mensal de R$ 880. Teoricamente, ele acrescenta, o empregador já se torna passível de punição se violar qualquer um dos critérios. O caso de Maigua era tão grave que violava todos.
Ismael
“Desde o início ele foi um cara estranhamente desagradável”, afirma Ismael. “Ele nos buscou com seu carro em São Paulo, mas durante todo o caminho para Cabreúva não nos dirigiu uma só palavra.”
Ismael está sentado num banco não muito longe da rodoviária, na cidade de Tarija, no sul da Bolívia. Depois da chegada, ele lavou as cortinas do ônibus em um rio e agora aguardava pela volta à cidade de Sucre. “Eu acho que ele poderia pelo menos ter perguntado como foi a viagem”, diz Ismael.
Eles viajaram por quase uma semana. Maigua escolheu fazer um desvio pelo Paraguai, porque, atualmente, a fronteira entre o Brasil e a Bolívia está sendo monitorada com mais rigor.
“Quanto nós vamos ganhar?”, perguntou Ismael no carro.
“Sobre isso nós falamos depois”, disse Maigua.
A viagem durou cerca de uma hora e meia, até que, em Cabreúva, eles entraram em uma rua secundária. Maigua estacionou o carro em frente a um sobrado de esquina, cujos muros estavam cobertos por graffitis. Atrás das persianas azuis abaixadas, encontrava-se, no andar térreo, a oficina. De suas máquinas de costura, uma dúzia de jovens rostos bolivianos olharam para eles.
[olho]“Eu sei, tudo cheirava a armação. Mas o que a gente poderia ter feito? Fugir? Pra onde?”[/olho]
Maigua conduziu ambos, assim conta Ismael, para o seu quarto no primeiro andar, onde eles colocaram suas mochilas. Depois ele ordenou que eles fossem para uma mesa na oficina, onde começaram logo a cortar com uma tesoura as linhas em excesso dos uniformes prontos, que Maigua produzia para uma empresa chamada Atmosfera. Em seu site, a própria Atmosfera se identifica como líder em locação, higienização e conserto de uniformes. A empresa atua nos segmentos hospitalar, industrial e de hotelaria. Desde 2011 faz parte do grupo multinacional Elis, cujos 180 mil funcionários no mundo todo, incluindo Alemanha e na Suíça, produziram US$ 1,3 bilhão.
Nada disso tinha importância para Ismael. Tudo o que lhe interessava era o salário. “E os US$ 500 prometidos?”, perguntou ele novamente em uma noite. Maigua, porém, esquivou-se. “Vocês precisam entender”, disse ele. “Eu tive despesas por causa de vocês, a viagem, a passagem da fronteira. Primeiro vocês me pagam com trabalho e depois a gente vê o resto.” Para que pudessem comprar algo para comer, Maigua lhes arranjava R$ 50. Isso ele também anotava meticulosamente em sua caderneta.
“Eu sei, tudo cheirava a armação”, diz Ismael. “Mas o que a gente poderia ter feito? Fugir? Pra onde?”
De certa maneira, eles estavam presos. Ismael pedia emprestado um telefone para ligar para sua irmã Sandra. Não precisa se preocupar, dizia ele, está tudo bem. Todas as manhãs, às 7 horas, eles iam para a oficina, depois cortavam linhas, dobravam uniformes, e os empilhavam no porta-malas do carro de Maigua. Fixada no teto da oficina, diz Ismael, havia uma câmera de vigilância. Quando Maigua achava que eles estavam muito lentos, gritava com eles. Suspendia o horário de almoço. Parecia que, nesses dias, ele estava sob forte pressão. A caderneta de Maigua estava repleta de anotações. “Só Deus está conosco”, rabiscou ele certa vez na margem de uma folha.
À noite, depois de um turno de 12 ou 14 horas de trabalho, Ismael e Juan Carlos se sentavam na cozinha com seus colegas. Eles bebiam cachaça barata e descobriram que ninguém ganhava mais do que US$ 200. Só uma pessoa, um gordão, chegou a US$ 500, diz Ismael, mas ele era sobrinho de Maigua.
Numa dessas noites o celular do sobrinho de Maigua desapareceu e reapareceu apenas na manhã seguinte quando o encontraram na mochila de Ismael. Ele diz não fazer a menor ideia de como o celular foi parar lá e que o devolveu imediatamente, mas o sobrinho de Maigua o ameaçou. A partir desse dia todos passaram a evitá-lo. Durante o dia, na oficina, ninguém mais trocou uma palavra com ele. Maigua, que logo ficou sabendo do acontecido, fazia ainda mais pressão. Alguns dias depois, quando o adiantamento que tinham recebido acabou, eles pediram um adicional. Maigua simplesmente disse que eles deveriam ter planejado melhor as despesas. Eles também passavam fome, pois os outros se negavam a dividir a comida com eles.
“Certo dia”, diz Ismael, “nós simplesmente decidimos ir embora”.
Numa segunda-feira pela manhã, depois de quase três semanas em Cabreúva, eles não apareceram na oficina. Arrumaram suas mochilas e foram em direção à rua principal, onde, num ponto, esperavam que algum ônibus passasse. Pouco tempo depois, subitamente, Maigua apareceu diante deles.
“Aonde vocês vão?”, perguntou ele.
Ismael e Juan Carlos disseram que queriam voltar para São Paulo, e lá iriam procurar por algo diferente. De repente, descreve Ismael, Maigua se tornou gentil. Tudo bem, falou. Ele disse conhecer um bairro lá, onde existiam muitos bolivianos, que ficava a poucas horas dali. Ele disse que poderia levá-los até lá.
O Brás, uma região ao norte do centro de São Paulo, sempre foi um local de imigrantes. Em meados do século passado as famílias vindas da Itália negociavam seu café. Mais tarde chegaram comerciantes de tecidos vindos do Líbano – em suas oficinas de costura, os coreanos se encarregavam dos trabalhos mais fáceis. Quando os libaneses se mudaram para bairros melhores, os coreanos assumiram essas lojas. Eles contrataram, então, bolivianos, que hoje, após duas gerações, ascenderam a proprietários.
No centro do Brás existe a rua Coimbra, uma estreita rua, na qual os comerciantes ambulantes oferecem suas mercadorias em espanhol. Nos postes de luz é possível ver um emaranhado de fios, parecendo ninhos, que levam energia às oficinas instaladas nos pisos superiores. No comércio local, no piso térreo, pode-se comprar máquinas de costura. Existem filiais da Western Union e restaurantes bolivianos, que trazem até mesmo viagens de ônibus em seus cardápios. A rua Coimbra se assemelha um pouco ao Mercado Campesino, onde tudo começou.
Maigua estacionou seu carro próximo à calçada. Segundo Ismael, suas mochilas com seus passaportes foram colocadas no porta-malas do carro. Alguns minutos depois eles estavam em frente a um salão de beleza. Viram como Maigua se afastou alguns metros deles para conversar com outros homens. Às vezes eles olhavam para os dois, como se os examinassem. Palavras soltas no ar, que nesse momento eles ainda não sabiam o que significavam.
“Quinhentos”, gritou um dos homens.
“Muito pouco”, gritou Maigua.
“Setecentos!”
O que está havendo aqui? perguntava-se Ismael. Eles ficaram lá parados cerca de meia hora, sem que nada se passasse. Então, veio até eles uma mulher que estava passando pela rua. “Tenham cuidado”, murmurou ela, “eles estão negociando o preço de vocês!” A todo momento, ela disse, a gente fica sabendo sobre trabalhadores que ficaram doentes e que foram levados para a floresta, em vez de um médico. Sempre saem notícias nos jornais sobre homens cujos cadáveres são encontrados em valetas, sem os rins, que são vendidos no mercado ilegal de órgãos. Ismael e Juan Carlos se olharam. Seu irmão menor estremeceu.
“Tenha calma”, sussurrou Ismael, que nunca em sua vida tinha sentido tanto medo. Até aquele momento ele pensava que eles podiam vender cobertores de algodão. Mas uma pessoa? Alguém como ele?
Antonio Andrade
Eram quase cinco e meia quando o celular de Antonio Andrade tocou. Na linha, estava Jorge Merúvia, amigo de Andrade, que há muito tempo comandava um restaurante na rua Coimbra. “Você não vai acreditar, Andrade”, falou Merúvia. “Tem um cara rondando por aqui e perguntando para as pessoas se elas não precisam de dois trabalhadores. Eu chamei a polícia. Vem pra cá!”
Não existem muitas pessoas em São Paulo que conhecem o dia a dia da comunidade boliviana melhor do que Antonio Andrade, que há mais de 20 anos veio de Sucre para o Brasil por meio de uma bolsa de estudos. Andrade, um tipo de muitos amigos, cabelos escuros compridos, estudou design de comunicação. Hoje administra um site que informa sobre a comunidade dos bolivianos em São Paulo. Andrade mesmo se define como um híbrido, meio jornalista, meio ativista. Ele quer informar, mas ao mesmo tempo trata-se de ultrapassar as barreiras que separam os bolivianos da sociedade brasileira.
Foi Andrade quem providenciou uma cama para Ismael e Juan Carlos em um abrigo para imigrantes de uma igreja. “Eles estavam totalmente acabados”, conta, numa manhã de agosto do ano passado em seu pequeno escritório. Na delegacia, trancaram os dois numa cela, enquanto Maigua tentava negociar algo com os policiais. “Como se fossem eles os criminosos!”, conta Andrade.
Ele diz que pensou por um momento em trazê-los consigo para casa, mas depois pensou que não seria conveniente. Andrade tem três filhas, a mais nova acabara de fazer 9 anos e a mais velha tem 15. Segundo ele, “eles não são meninos fáceis”. Nos dias que se seguiram, ele fez uma espécie de pequena entrevista com eles. Foi aí que ele notou as cicatrizes no antebraço de Ismael.
“Eu perguntei: ‘o que você tem aí?’ Ele respondeu: ‘nada, por quê?’ Então, eu insisti: ‘não tente me esconder nada, eu mesmo usei droga. E as suas tatuagens? Malfeitas assim, as pessoas só fazem na prisão.’”
Andrade sorriu ironicamente quando ele soube que Ismael usava luvas de couro em Sucre.
“Ah, claro”, disse ele. “Por causa do sol.”
Como Andrade preferia se informar por si mesmo sobre Ismael e Juan Carlos, por volta do meio-dia ele resolveu ir à Cabreúva. Ele queria ver se Maigua falaria com ele.
O problema, afirma ele, é a falta de conhecimento das pessoas. Elas não fazem ideia que os trabalhadores escravos que se dirigem às autoridades recebem do Estado uma autorização de residência. Que lhes cabe como forma de compensação pela injustiça sofrida, direito a cuidados médicos, subsídio para aluguel e um salário mínimo. Ninguém diz isso a eles. Quando um patrão ouve que alguém quer fugir da ilegalidade, eles começam a ameaçar a pessoa. Pense nas suas dívidas! Na sua família. Andrade relata que quase todos se conformam. Talvez por medo ou por ignorância ou até mesmo porque o seu salário miserável ainda é melhor do que o que eles ganhariam em seu país.
Maigua
Depois de duas horas, Andrade estacionou seu carro em frente à oficina de costura. Ele desceu do carro e olhou pela porta entreaberta. Um homem veio até ele, talvez 30 anos, pequeno e robusto, de bermuda e chinelos.
“Señor Maigua”, perguntou Andrade.
“O que você quer?”
“Queria saber se podemos conversar um pouco? Sobre a questão dos dois trabalhadores.”
Maigua veio para fora hesitante.
“Mas eu já disse tudo”, respondeu ele. Andrade, porém, insistiu. Por fim, Maigua consentiu.
Lá dentro da oficina, ouve-se o zumbido das máquinas. Uma dúzia de trabalhadores com máscaras do tipo cirúrgicas fogem ao olhar do estranho. Maigua sobe a escada estreita. No primeiro andar ele fecha a porta da cozinha. Em um canto, sobre o fogão, estão panelas que parecem que não são lavadas há semanas. “Às vezes eu tenho a impressão que eu tenho 15 crianças pequenas, que só me dão preocupação”, disse ele.
[olho]“É como no futebol: um time tem um jogador que não precisa mais. Outro está à procura. Então a gente precisa negociar a transferência. Todo mundo faz assim”[/olho]
“Como Ismael e Juan Carlos”, comenta Andrade.
Maigua balançou a cabeça.
“O dinheiro que eu dei pra eles”, contou, “eles gastaram tudo com bebida. Eles afanaram o celular de um dos empregados. Quando eu os apanhei naquela manhã no ponto de ônibus, eu perguntei: ‘onde vocês querem ir?’ Eles falaram: ‘a um lugar onde a gente seja respeitado’. O que eu poderia ter feito? Simplesmente abandoná-los ali?” Maigua olhou pela janela. “É um pouco como no futebol”, continuou. “Um time tem um jogador que não precisa mais. Outro está à procura. Então a gente precisa negociar a transferência. Todo mundo faz assim. Meu erro foi fazer isso no meio da rua”.
“Isso é que foi o erro?”, perguntou Andrade.
“O transporte deles me custou um mês de aluguel!”
É uma lógica estranha, mas Maigua afirma que queria ajudar Ismael e Juan Carlos. Ao mesmo tempo, ele queria transferir as dívidas que eles tinham com ele a outra pessoa, a fim de não ter perdas. Seus olhos se enchem de lágrimas.
“Há 30 anos”, disse ele, “eu lutei, e agora sou alvo das pessoas”.
Trinta anos. A voz embargada de Maigua ao recordar-se. O vilarejo não muito distante da cidade boliviana de Potosí, onde ele ajudava seus pais nos campos secos durante a colheita de trigo. Aos 11 anos, o primeiro trabalho em Santa Cruz, como ajudante na produção de tijolos. O segundo trabalho, em uma loja de material de construção. A pergunta era: sua vida seria assim para sempre?
Maigua tinha 18 anos quando comprou uma passagem de ônibus para o Brasil, após juntar as economias de um ano inteiro. Ainda durante a viagem, disse ele, um boliviano ofereceu a ele uma vaga em uma oficina de costura. Maigua aguentava turnos de 14 ou 16 horas de trabalho, sete dias por semana. Às vezes, conta, ele levantava às 3 horas da manhã, porque assim as melhores máquinas estavam livres. Por ser econômico e não beber ele conseguiu comprar sua própria máquina de costura. Assim ele costurava por conta própria bermudas de surf, “para Adidas e Nike”, ressalta.
Depois, em 2006, sua primeira oficina com seis empregados. Em 2009, sua primeira máquina eletrônica. Em 2012, a primeira casa, pequena, para ele e sua esposa.
A história de Maigua, da maneira como ele contou, é a história de uma autoexploração de anos, que ao final, quase desemboca em um pouco de liberdade. Não é nenhum acaso que tenha muitos pontos de convergência com a história de Ismael e Juan Carlos. São histórias de vida que se repetem, biografias em que conceitos como direito, lei ou moral não têm nenhum significado. Tudo o que importa é a perseverança da vontade, força pura do próprio corpo. Se a pessoa não suporta isso, assim pensa Maigua, ele volta como um homem derrotado ao seu lar.
[olho]Maigua, no fundo, também é uma vítima[/olho]
Maigua não esperava de Ismael e Juan Carlos nada além do que esperava de si mesmo. No momento em que eles não serviram mais para ele, foram trocados como uma máquina defeituosa.
Ele não entende por que está sendo investigado por tráfico de pessoas pelo Ministério Público. Conforme ele afirmou, tudo custou dinheiro, seu advogado e a multa, que agora ele precisa pagar. Há semanas os pagamentos estão atrasados, também porque a Atmosfera, depois do incidente, cancelou todos os pedidos. A empresa era o único cliente que Maigua tinha na época.
Para o advogado Renato Bignami este é um ponto crucial. Maigua, segundo ele, no fundo também é uma vítima.
Em seu relatório, ele explica em várias páginas porque Maigua não tinha um negócio independente. A empresa Atmosfera comandava tudo: a produção, os prazos de entrega, o preço por mercadoria e o molde das peças. Nos uniformes eram costuradas etiquetas que identificavam a Atmosfera como proprietária. Se as peças fossem reprovadas no controle de qualidade, bem como se Maigua não respeitasse os prazos de entrega, multas eram aplicadas.
O problema, segundo Bignami, é a terceirização, através da qual a empresa reduz os custos de produção. As demandas exigidas de Maigua eram tão drásticas, que ele só poderia cumprir explorando, de forma ilegal, seus trabalhadores. “A responsabilidade por isso”, afirma Bignami, “recai somente sobre a empresa Atmosfera”.
Quando, depois do término de suas pesquisas, ele confrontou o diretor da empresa com os resultados encontrados, este procurou minimizá-los. Ele explicou que fornecedores como Maigua trabalham por conta própria, por isso não existe nenhum controle interno. A empresa não sabia de nada, não podiam ser responsabilizados. É isso o que todos dizem. Entretanto, a empresa concordou em pagar a compensação exigida por Bignami, talvez porque a quantia de US$ 6 mil seja um valor irrisório comparada às perdas que um escândalo na imprensa poderia gerar.
Atualmente, a Atmosfera não quer mais se pronunciar publicamente sobre o caso. Bignami espera que o diretor seja responsabilizado judicialmente. Além disso, ele quer que a empresa seja incluída numa lista que apresenta nomes de empresas que têm, em sua cadeia de produção, ligação com casos de trabalho escravo. Para Bignami, esta lista é um instrumento muito útil. “Se quisermos mudar algo”, ele afirma, “precisamos ir atrás dos peixes grandes. Eles só são vulneráveis quando sua reputação está em risco”.
Juan Carlos
Para Serapio Maigua parece uma piada de mau gosto, que justo os dois jovens que mais lhe causaram problemas, saiam no fim das contas com US$ 6 mil, enquanto ele, após tantos anos, provavelmente tenha de encerrar suas operações. Antonio Andrade parecia pensativo ao entrar em seu carro depois de mais uma visita. É engraçado, disse ele, como às vezes os limites se tornam confusos. Como às vezes é difícil distinguir quem são os autores e quem são as vítimas. A partir de que ponto termina a exploração? Onde, exatamente, começa a escravidão?
Durante sua volta de Tarija, quando pegou sua mochila na rodoviária de Sucre, Ismael disse nunca mais querer sair do país. Ele tem planos de tirar a carteira de habilitação para depois trabalhar como motorista de ônibus. “Continuamos a conversa amanhã”, disse ele ao se despedir. “Mantenha contato.”
Um telefonema ao meio-dia. Novamente, surge uma melodia e o verso “eu desejaria nunca ter te conhecido” [uma música alemã]. Então, de repente, uma voz estranha diz: “Aqui é o Juan Carlos!” Ele queria saber se era o jornalista e se a gente não poderia se encontrar. Ele disse que era urgente.
Você não está na Argentina com seu pai?
“Na Argentina? Eu nunca estive na Argentina, muito menos com meu pai. Meu pai era um bêbado, que apanhou tanto, que de algum modo desenvolveu um tumor no peito. Ele morreu quando eu tinha dois anos.”
Pouco depois Juan Carlos apareceu em uma cafeteria na Praça 25 de Maio, um jovem de 18 anos com cabelo partido de lado e um casaco azul da Adidas. Ele tinha ideogramas chineses tatuados no pescoço. Segundo Juan Carlos, os caracteres significam Mariella, o nome da sua nova namorada, que assim como ele é pouco gorda, mas muito simpática. Juan Carlos não contou a ela sobre o pesadelo que vivera há alguns meses. Ele chora toda vez que toca no assunto: como a aventura no Brasil se transformou em puro terror.
A história, da maneira como ele contou, assemelha-se em muitos pontos com aquela contada por Ismael. Apenas algumas coisas foram omitidas por seu amigo.
“Ismael”, disse Juan Carlos, “é um trapaceiro. Pouco me admira que tenha dito que eu estava na Argentina”.
Conforme ele relatou, quando o padre enviou a indenização para Sucre por meio da Western Union, a quantia foi transferida em nome de Ismael. Na época, ele era o único dentre os dois que tinha um número. Ele disse que Ismael prometera-lhe pagar a sua parte cabia e ele confiou no amigo.
Ismael trouxe-lhe US$ 1.500. Isso era a metade do que ele esperava, mas Ismael explicou que mandaram menos do que tinham informado.
Juan Carlos não acreditou nele.
“Ele deve”, supõe, “ter embolsado US$ 4.500. De onde teriam condições de construir um novo andar para sua casa?”
Ele mesmo ficou apenas com uma pequena parte, com o que comprou algumas calças e casacos. Todo o restante ele entregou para sua mãe, que compra roupas para revender em sua barraca no Mercado Campesino.
Os dois não conversam há meses. Segundo Juan Carlos, corre pelo bairro o boato de que Ismael recebeu a visita de um jornalista. Teria se aproximado sob o pretexto de entregar um celular, para que ele pudesse interceptar a próxima ligação. Ele acha que o visitante deve ser Antonio Andrade, já que ele não conhece outro jornalista. Juan Carlos contou que Andrade disse a eles uma vez que Dilma Rousseff, a presidente afastada do Brasil, se encarregaria pessoalmente de enviar a eles alguma ajuda todo mês. Gostaria apenas de lembrá-lo disso.
“No Brasil a experiência foi ruim, porém as coisas com o Ismael foram bem piores.” Juan Carlos perdeu seu melhor amigo.
Publicado originalmente em Abril de 2016 pela Zeit Magazin. Republicado com permissão. Tradução por Danilo Freire e Yasmim Nimbu.
Sequências, remakes e afins não são novidade em Hollywood. Aliás, neste ano o que não faltou foram filmes desse tipo, de “Procurando Dory” a “Truque de Mestre 2” — sim, até “Truque de Mestre” ganhou uma continuação em 2016. Nenhum desses filmes, porém, foi recebido com tantas pedras na mão quanto “Caça-Fantasmas”, que estreia na próxima quinta, dia 14. Além de ter o trailer com maior número de avaliações negativas no YouTube (mais de 928 mil), o filme tem uma avaliação de 3,7 numa escala que vai até dez no IMDb, antes mesmo de estrear — portanto, antes de as pessoas que deram a menor nota possível terem visto mais que um punhado de cenas.
Entre os argumentos contra o novo “Caça-Fantasmas” alguns se destacam: 1) está na hora de Hollywood começar a investir em produções originais e deixar de lado as franquias estabelecidas, 2) refazer um filme de sucesso é uma estratégia caça-níquel e 3) mexer num clássico desses vai estragar de alguma forma a infância das pessoas. O primeiro ponto faz sentido, e provavelmente pouca gente discorda de que é bom ver coisas novas no cinema. Também é verdade que o número de remakes e continuações da vida é bem alto (quando “Branca de Neve e o Caçador” ganha uma sequência é realmente a hora de Hollywood parar pra pensar no rumo que está tomando). Mas onde estavam essas pessoas quando saiu um novo “Jurassic Park”, pra ficar em só um exemplo? Se partimos do princípio de que reboots vão ser feitos quer a gente queira, quer não, por que não com mulheres no elenco? Então quer dizer que mulheres não podem caçar fantasmas?
Em relação ao segundo argumento, o diretor de “Caça-Fantasmas”, Paul Feig, respondeu que todo filme lançado tem como objetivo ganhar dinheiro. Filmes não são feitos sem perspectiva de lucros, não há executivos bonzinhos querendo financiar produções porque o mundo merece ver aquela história nas telas. Se você pensar muito, também é um argumento defensável, seria muito bom se lucro não fosse a primeira coisa na cabeça das pessoas. Mas, para Hollywood, isso é inviável.
Sobre o terceiro: se a infância de alguém vai ser arruinada com um novo “Caça-Fantasmas”, sinto muito mesmo. Não deve ter sido fácil.
Ajuda a entender o ódio em relação a “Caça-Fantasmas” descobrir quem são seus maiores detratores. Para a surpresa de ninguém, eles são, em maior parte, homens. O site Screen Crush analisou o perfil de quem havia avaliado o filme no IMDb e constatou que 1.865 homens haviam se manifestado, contra 169 mulheres, uma diferença e tanto. Entre todas as pessoas que votaram, 57,7% deram a menor nota possível — novamente: sem ter visto o filme, que ainda não estreou –, mostrando a profundidade do ódio. Mas, comparativamente, as notas dadas por mulheres foram mais altas que as dos homens. Entre a crítica o filme vai bem melhor, com 75% de avaliações positivas no Rotten Tomatoes. Mas a Slate revela outro dado interessante: 88% das críticas escritas por mulheres são positivas, contra 71% entre os homens.
Não dá para falar do novo “Caça-Fantasmas” sem falar da questão de gênero no cinema. Dando uma olhada bem rápida nos comentários do YouTube você encontra várias opiniões estilo “lixo feminista polui Hollywood de novo!” ou “[mulheres] nem conseguem criar seus próprios esportes ou personagens” (argumento baseado no fato de que mulheres praticam boxe, “copiando” os homens. Tão absurdo que nem vale a pena rebater). Para esse tipo de comentarista, que sempre se viu no cinema nos inúmeros protagonistas homens, fazer com que mulheres se sintam representadas não só não importa como é um defeito, um fator que torna inviável a possibilidade de o filme ser bom.
“Caça-Fantasmas” chega ao cinema com uma responsabilidade grande. Se fosse ruim, poderia ser usado como prova de que não vale a pena investir em filmes protagonizados por mulheres — enquanto Melissa McCarthy é criticada cada vez que um filme seu não corresponde às expectativas, Johnny Depp faz há anos projetos fracassados sem maiores consequências. A boa notícia é que não é o caso. “Caça-Fantasmas” fica o tempo todo num terreno bem seguro e é menos original que “Missão Madrinha de Casamento”, pra ficar em outra comédia encabeçada por Kristen Wiig e Melissa McCarthy, mas é um bom passatempo e não ofende ninguém que entrar na sala de cinema com um espírito minimamente receptivo. Tiremos logo esse elefante da sala: não, “Caça-Fantasmas” não vai estragar sua infância.
No filme, Wiig é Erin, professora do departamento de física da Universidade de Columbia assombrada por um livro sobre fantasmas que escreveu anos antes com Abby (McCarthy). Prestes a receber uma promoção, ela descobre que a ex-amiga colocou o livro à venda e a reencontra depois de anos para pedir que ela tire o volume de circulação. Não é difícil prever que ela acabará convencida a abraçar novamente o entusiasmo pelo sobrenatural, formando um grupo de caça-fantasmas com Jillian Holtzmann (Kate McKinnon), colega de Abby responsável pelas invenções malucas, e Patty (Leslie Jones), funcionária do metrô e especialista na história de Nova York. A história é um pouco previsível: elas serão vistas como malucas até que uma grande crise que só elas podem resolver aparece. O que não chega a ser um problema — o sétimo episódio de “Star Wars”, que em muito lembra “Uma Nova Esperança”, está aí para provar.
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O problema é que “Caça-Fantasmas” está mais para divertidinho que hilário — o que tinha potencial para ser. Seu elenco é muito bom: Kristen Wiig é uma das melhores atrizes que saíram do “Saturday Night Live” nos últimos tempos, Melissa McCarthy é uma das comediantes mais famosas da atualidade (foi inclusive indicada ao Oscar, coisa rara na comédia hoje em dia) e Kate McKinnon e Leslie Jones são boas revelações, talvez o que o filme tenha de melhor. Até Chris Hemsworth, o Thor, mostra que sabe fazer comédia como Kevin, o secretário hipster hiper burro contratado por ser bonito. Com esse elenco “Caça-Fantasmas” poderia ser engraçadíssimo, mas é somente legal, uma comédia na média. Os fantasmas são muito bonitos, os efeitos são bons, você leva alguns sustos e, sim, dá algumas risadas (algumas piadas, infelizmente, são prejudicadas pela tradução). Também há um apelo aos saudosistas, com participações de quase todo elenco de “Os Caça-Fantasmas” de 1984, aparições do homem de marshmallow, do logo original do grupo e da famosa música-tema.
É um filme que tenta afagar os fãs do original, mas sem deixar de alfinetar quem o gongou na internet. Piadas com a repercussão negativa do filme aparecem aqui e ali: quando elas colocam no YouTube o vídeo de um encontro com um fantasma alguém escreve algo como “mulheres não caçam fantasmas” e Abby diz que não se deve ler comentários na internet. Outra referência é quando o vilão do filme diz que cansou de ser motivo de chacota e que agora vai se vingar fazendo bullying com os outros — o elenco disse em entrevistas que seus críticos eram nerds amargurados que viviam no porão da casa dos pais. Mas a melhor forma de responder a quem criticou sem ver teria sido fazer um filme excelente.
Numa visão “copo meio cheio”: “Caça-Fantasmas” não é o desastre que vai prejudicar outras comédias encabeçadas por mulheres e já é original pelo fato de que tem quatro (quatro!) protagonistas femininas. Para quem cresceu se vendo na tela na pele de secretárias, irmãs chatas, namorada do mocinho sem nenhuma profundidade, isso já é uma vitória. Mas é uma pena que Paul Feig não tenha usado as críticas precoces para jogar tudo pra cima e fazer algo mais fora da caixinha, tão bom que convertesse os céticos e acabasse de uma vez com essas críticas machistas.
O Netflix divulgou recentemente dados de uma pesquisa sobre os hábitos de consumo de seriados e dividiu os programas em dois tipos: as séries para devorar — aquelas que as pessoas veem rápido, gastando mais de duas horas por sessão à frente da TV — e as séries para saborear — as que o público assiste com calma. Segundo esse estudo, os três gêneros mais favoráveis a maratonas televisivas são, respectivamente, suspense, terror e ficção científica. “Stranger Things”, série que estreia no Netflix na próxima sexta, dia 15, foi feita sob medida para ser consumida rapidamente: é uma mistura desses três gêneros com um tiquinho de aventura.
Nos primeiros minutos da série um garoto chamado Will chega em sua casa vazia tarde da noite e vê um vulto. Tenta ligar para alguém para pedir ajuda, mas o telefone não funciona. Ele corre desesperado enquanto o cachorro late, a porta abre sozinha e uma figura que não vemos — e, assim, é mais ameaçadora — o alcança. São cinco minutos saídos diretamente de um filme de terror. A primeira temporada da série gira em torno desse desaparecimento e das formas encontradas por cada um de lidar com isso — seus amigos, sua mãe, o irmão, o pai distante, os colegas de escola.
É um drama familiar com uma boa dose de sobrenatural, digna de um “Arquivo X”. Enquanto a mãe (Winona Ryder), desesperada, espera que Will volte, coisas estranhas começam a acontecer na casa — luzes que piscam, telefonemas misteriosos, descargas elétricas, figuras sem rosto que dão as caras. Assim como ela, não sabemos o que aconteceu com Will, só que não é nada bom — e a série é habilidosa ao manter essa tensão no ar. Há alguns outros núcleos na história, com conexões que a princípio não entendemos muito bem: os amigos do garoto encontram no meio do mato uma menina traumatizada e misteriosa, que tem pistas a respeito do paradeiro de Will; o policial que investiga o sumiço a fundo; a irmã mais velha de um dos amigos de Will que começa a andar com a galera popular da escola; os funcionários de um departamento do governo americano. Na primeira metade da temporada, de oito episódios, há tanto mistério que chega a ser difícil dar algum spoiler — eu mesma não sei direito o que está acontecendo.
https://www.youtube.com/watch?v=LgFOjRR9uac
Nesse sentido, “Stranger Things” não poderia ter encontrado casa melhor que o Netflix, com seu modelo de soltar todos os episódios de uma vez só. Ao fim de um capítulo — cada um tem em torno de 50 minutos — você se vê com tantas dúvidas que é natural optar por ver o próximo, para ver se as coisas ficam mais claras. Mas, pelo menos no início, não é isso que acontece e você entra e sai do episódio com as mesmas questões. O fato de que o capítulo seguinte está a um clique de distância faz com que a série fique mais preguiçosa ao avançar a história e tudo fique bastante lento — você não precisa de um grande acontecimento para garantir que o público continue assistindo, diferente de uma série que libera novos episódios semanalmente.
Ter tempo para construir os capítulos da forma que quiser, sem ter que respeitar os horários da grade de televisão e os intervalos comerciais, é uma vantagem de produzir séries para serviços de vídeo on demand. Mas não é porque você pode fazer um episódio longo que seja necessário fazê-lo — séries como “Love” e “Flaked”, do Netflix, parecem sofrer do mesmo mal, com histórias que avançam lentamente demais. “Stranger Things” vai agradar quem gosta de séries como “Orphan Black” e “Wayward Pines”, mas seria melhor se tivesse um pouco mais de ritmo e se revelasse um pouco mais a cada episódio. Às vezes é um pouco frustrante passar praticamente uma hora à frente da TV para perceber que você praticamente não saiu do lugar.
Na metade da temporada as pontas soltas são tantas que é difícil cravar se a série é boa ou ruim — se as soluções forem complicadas demais corre o risco de ficar inacessível como “Orphan Black” e se forem simples demais pode virar uma decepção anticlimática. Mas o começo é promissor, com destaque para as boas atuações do numeroso elenco infantil, cuja dinâmica remete um pouco a um filme da “Sessão da Tarde”, como “E.T.” — das bicicletas que guiam pela cidadezinha, passando pelos segredos escondidos dos adultos e pelo companheirismo na hora de colocar a amizade à frente de tudo. Com um pouco de paciência, “Stranger Things” é um bom programa para o fim de semana, para quando o tempo e a disposição em ficar deitado no sofá são grandes e a pressa em chegar direto ao ponto é pequena. É, no fim das contas, uma série perfeita para o Netflix — para o bem e para o mal.
Jaloo tem suas razões para confiar no acaso. Em sua vida, a sucessão de acontecimentos imprevistos já lhe rendeu resultados positivos. Foi em uma dessas eventualidades que veio para São Paulo, chamado para trabalhar em estúdios nas regiões da Vila Curuçá e do Belém. Ali, neste mesmo bairro alguns meses depois, conseguiu conhecer seus ídolos da banda colombiana Bomba Estéreo ao chegar cedo para um show no Sesc Belenzinho. O encontro resultou em uma parceria ainda não divulgada nos estúdios da Red Bull Station.
Hoje, é ele a subir no palco. Antes da apresentação a convite da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, ele se esconde do frio de uma noite de São João na comedoria do local. Sua silhueta esguia se encorpa com um casaco azul da Adidas e se alonga sobre um sapato creepers. A touca não deixa ver, mas os cabelos são longos, fartos, negríssimos e levam um corte que remete a índios amazônicos, cantoras pop, e Judy, a irmã beatnik de Doug Funnie.
“Isso aqui que é inverno. Lá no Pará, a gente só finge que passa frio”, ele recorda com bom humor da época em que lhe chamavam de Jaime Melo pelas ruas de Castanhal. Foi ali, a poucos quilômetros de Belém, que ele viveu a maior parte de seus 28 anos. O restante de sua vida se divide entre as viagens de ônibus para Ananindeua, aonde ia estudar Publicidade e Propaganda, e a vinda para a capital paulista, há quatro anos sua casa.
A biografia de Jaloo não segue um roteiro clichê. Se hoje trabalha com música, ele não a conhecia até o fim da adolescência. Ouvia de rabo de orelha o brega que agradava seus pais e os sons de aparelhagem que a irmã punha para varrer a casa. Da mesma maneira, quem vê sua figura no palco hoje, transitando entre masculino e feminino, não imagina que sua sexualidade era reprimida a ponto de quase não existir. Seu primeiro beijo foi acontecer aos 18 anos.
A alegria era encontrada nas existências virtuais: os videogames. Até hoje, Jaloo sabe enumerá-los por ordem de processador: “Tinha o NES de 8 bits. Aqui no Brasil, o piratão dele era o Dynavision versões 1, 2, 3 e 4… No final, era tudo a mesma coisa. De 16 bits, eu tinha o Super Nintendo. Jogava tudo o que tinha para jogar, mas era louco por RPG, tipo Final Fantasy”. Os chiptunes, sons característicos dos games de primeira geração, hoje fazem parte de suas músicas. Faixas como “Last Dance”, “Ah! Dor!” e “Tanto Faz”, de seu primeiro álbum, trazem batidas que parecem saídas de consoles dos anos 1990.
A estreia de seu disco autoral leva o título de #1, lido como “primeiro”. A cifra foi escolhida por sua internacionalidade, já que o ordinal “1º” não é reconhecido mundo afora. Quem deu a dica foi Carlos Eduardo Miranda, diretor do selo Stereomono e definido por Jaloo como alguém que “está sempre um passo à frente”. O álbum sucede trabalhos que já haviam lhe garantido certa notoriedade pela internet, como o “Female & Brega”, lançado em 2012 com divas pop remixadas em tecnobrega; e o “Couve”, batizado com uma corruptela de “cover” em 2013.
Antes com status de DJ e produtor, agora recebe novos títulos. “Nunca me considerei um cantor”, ele rebate. “Eu acho ‘artista’ melhor, porque abraça todo o cuidado que eu tenho em diversos sentidos, inclusive na voz.” No gogó, diz não fazer nem firula. É dono de um sotaque leve e um vocal suave, do qual tem raiva pela falta de intensidade. Para isso, tem tentado aprender o melisma sozinho. A técnica consiste em imprimir diversas notas em uma mesma sílaba. Sabe a Mariah Carey? Então.
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Sem autodidatismo, aliás, não existiria Jaloo. Na faculdade, depois de assistir no documentário “Brega S/A”, sobre como as festas de aparelhagens eram produzidas, baixou o software Fruity Loops pirateado e se dedicou a fazer versões de suas músicas preferidas. “É um programa que eu não largo de jeito nenhum. Todo mundo tem preconceito, ficam com essa coisa de Mac. E aí eu faço um disco rodando o Fruity Loops craqueado no Windows e a Apple Music vai lá e me considera o melhor novo artista de 2015”, ironiza.
Jaloo pede para a entrevista continuar no camarim. Lançava olhares inquietos ao salão movimentado. Nervosismo, talvez, já que dali a poucas horas ele se apresentaria. Não era. “Sou virgem com ascendente em capricórnio. É tenso. Virgem é ordeiro, chato”, ele explica. Após nos realocarmos, ele se incomoda novamente com um espelho.
Com seu trabalho não é diferente. “Não deixo ninguém encostar nas minhas coisas. A Grimes, uma das minhas cantoras preferidas, diz uma coisa que eu peguei para mim: ‘Eu não estou pedindo ajuda’. Ser autossuficiente é algo pelo que eu prezo”, afirma. “Eu dirigi meus três clipes. Mas o que mais aparece é gente querendo dirigir vídeo, produzir música para eu cantar. Se você quer minha voz, vai levar todo o pacote também.”
Já o ascendente em capricórnio ele responsabiliza por seu planejamento a longuíssimo prazo — que o faz ter até seu quarto álbum já pensado. “A ideia é lançar um por ano. No começo de 2017 sai o próximo.” E o que ele adianta? “Vai ser bem mais agressivo que o primeiro, principalmente na sonoridade. Quero que seja bem bate-coco.” Comparo com Die Antwoord, ele aprova.
[olho]”No segundo disco, eu pretendo definir mais o gênero da persona e quero que seja muito mais cru”[/olho]
“Outra coisa é que o primeiro disco segue a estética plástica. É um ser que acabou de vir ao mundo, novinho, polido, e que transita entre os gêneros. No segundo, eu pretendo definir mais o gênero da persona e quero que seja muito mais cru”, revela. “Zero Photoshop. Se duvidar, ainda vou puxar mais os defeitos: espinhas, oleosidade de pele, do cabelo. Quero que tudo apareça.”
Assucena Assucena, uma d’as Bahias, irrompe pela sala. Da bolsa, tira peças do figurino que usará no palco. Pergunto sobre o tamanho do salto. Quem responde é Jaloo: “Você acostuma. Quando laceia, não machuca mais”. Sua relação com a moda é próxima e tem se estreitado, com apelo de revistas femininas e figuras como Alexandre Herchcovitch. “Eu não me levo a sério nessa coisa de ícone fashion. Por exemplo, eu adoro repetir roupa. Acho que eles me dão essa atenção pela descontrução que eu faço da próprio moda: ao mesmo tempo que uso figurinos legais, uso moletom surrado no meu dia a dia.”
Sua inspiração artística para as roupas e a música vem de diversos canais, em um exercício de captar algo que ele chama de “tendência invisível”: padrões que se repetem na cultura popular e são identificados antes mesmo de virem à tona. A internet é um campo fértil, descoberto só depois de ganhar seu primeiro computador com 18 anos. Hoje, Jaloo declara paixão a memes em sua profusão de perfis pelas redes sociais, cada vez mais difíceis de administrar sozinho — o Facebook já é responsabilidade de sua assessoria. No visual de sua persona, a paleta de cores rosa e azul e os 3D mal acabados tem referência à onda do vaporwave, originária dos submundos virtuais.
[olho]”Gosto de ser esquisito e parecer um ET”[/olho]
Na música, é apaixonado pelo pop e vidrado em Björk. “Mas escuto muito mais os clássicos do que os trabalhos atuais. Se você for ver, eu ouço mais Ariana Grande”, ele responde em menção a uma fase mais experimental da islandesa. As comparações que tem recebido da imprensa com ela, David Bowie ou Lady Gaga, porém, ele dispensa: “É errado achar que os brasileiros estão chupinhando tudo o que os estrangeiros fazem”.
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Da mesma forma em que usa referências populares para criar, Jaloo pretende que suas criações caiam em domínio público em uma espécie de ciclo energético da criatividade. Em apelo aos fãs, pede para que eles postem seus clipes e remixes em seus canais do YouTube. Isso porque o site costuma barrar obras que não possuem direitos autorais, como seu cover de “Baby”, escrita por Caetano Veloso. Afinal, é a partir desse desprendimento inventivo, da pirataria e do sample, que floresceram ritmos como seu tecnobrega nativo.
“O kuduro em Angola, o funk no Rio, o tecnobrega na Amazônia, o bhangra na Índia… São todos feitos com software piratas, são todos distribuídos e consumidos pela periferia, e não se comunicam um com o outro. Eu chamo isso de ‘elo invisível’ entre as periferias e comparo com as pirâmides, que existiam nas civilizações maia e egípcia sem elas nunca terem se encontrado. E aí dizem que os extraterrestres são mediadores disso e eu adoro essa coisa de alienígena. Gosto de ser esquisito e parecer um ET. Eu chamava minha música de sci-fi brega.”
O termo já não é mais usado por Jaloo por receio de que ele engesse sua vontade de estar em constante mudança. Talvez por esse desprendimento de rótulos, ele consiga se aproximar naturalmente de temas que exigem tanto engajamento: maconha, androginia, homossexualidade. “Isso é minha natureza. Não gosto de falar que levanto bandeiras porque não tenho essa pretensão. Ser comparado a uma mulher na juventude me deixava triste. Hoje me fortalece. No fim das contas, é o que sou. Não quero ser uma pauta de programa de TV.”
Jaloo sai apressado sem se despedir. Ainda precisava se maquiar e aprontar o figurino. Quando entra em cena, ele é uma visão em branco com um collant que marca suas costelas. Minutos antes, ainda no camarim, ele dizia que já fora muito julgado por sua origem, sua sexualidade e seu trabalho com batidas eletrônicas e referências populares. Atualmente, ele diz não se incomodar mais por haver encontrado seu público, que neste momento acompanhava-o nos refrões embalados pelos instrumentos da Cozinha Mineira e por sua mesa de som futurística.
Sinto que Karl Ove Knausgard e eu somos amigos — a recíproca, infelizmente, não é verdadeira. É modo de dizer, claro. Mas sinto como se, de alguma forma, o conhecesse e como se ele fosse me entender também caso tomássemos uma cerveja. Não é um tipo de sensação de todo incomum com celebridades: você vê tantas coisas sobre elas, tantas entrevistas, posts em redes sociais, fotos, vídeos, que sente como se soubesse de fato como elas são na vida real. Com Karl Ove (sinto que somos íntimos, então o chamo pelo nome) a ilusão é ainda mais intensa. Em seus livros ele revela coisas sobre si que não se sabe nem sobre os amigos mais próximos e que provavelmente poucos assumiriam pra alguém, quanto mais pro mundo todo. Um parágrafo de Karl Ove vale mais que mil selfies ou entrevistas para Jimmy Fallon.
Minha história com ele começa três Flips atrás, em 2013, e ganha novos episódios todo mês de junho, quando um novo livro seu é lançado no Brasil. Karl Ove era um dos convidados do evento e lançaria aqui “A Morte do Pai”, o primeiro livro de sua série autobiográfica “Minha Luta”. Chegaram alguns exemplares na redação em que eu trabalhava e uma amiga, com indicações sempre certeiras, me deu um. “Lê esse, é bom.” Abri o livro no metrô, voltando para casa e fui fisgada na primeira frase, devidamente anotada num caderno para referência: “Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para”.
Que ele também ache esse trecho particularmente bom é mais uma evidência de que estamos na mesma sintonia, digo para mim mesma. Numa conversa com James Wood publicada na Paris Review, Karl Ove diz: “O tempo todo em que escrevi esses seis livros senti que não era uma boa escrita. O que é bom, acho, são as primeiras páginas do primeiro livro, a reflexão sobre a morte. Quando estávamos publicando aquele primeiro livro meu editor me pediu para remover aquelas páginas, porque elas eram muito diferentes do resto e ele estava certo. Ele está certo, seria melhor, mas eu precisava de um trecho do livro em que a escrita fosse boa. Passei semanas e semanas naquele pedaço e acho que é uma prosa modernista, de alta qualidade. O resto do livro não está no meu nível”.
“A Morte do Pai” me acompanhou em bares, pautas, trajetos de metrô e ônibus e desde então aguardo ansiosamente o dia do ano em que o volume seguinte será lançado — algo como esperar o novo “Harry Potter” quando eu era criança. Comprei para mim um exemplar autografado de um dos livros, de um sebo americano. Dei os livros do Karl Ove de presente para um monte de gente. Fiz minha parte para ajudar a espalhar sua palavra pelo mundo. Para cada momento da vida há um trecho do Karl Ove que cai bem – ele tem bons conselhos. Exemplo prático, de uma frase de “Um Outro Amor”, que também integra meu caderno: “(…) que pecar é se colocar numa posição onde o pecado se torna possível. Encher a cara, quando você sabe o que está pensando e conhece o impulso que existe dentro de você, é se colocar nessa posição”. Sábio.
A sinopse de um livro de Karl Ove não faz jus a ele. “Mas… É um livro sobre a vida do cara?”, perguntou meu irmão quando tentei convencê-lo de comprar “A Morte do Pai” para ler durante as férias. Se é pra ser direto e confuso: sim, é — mas não é. A vida dele não tem nada de muito especial, no fim das contas. Mas é como ele disse numa entrevista (vou ter que confiar na minha memória nessa, já li tantas dele que agora não consigo mais achá-las): toda vida merece esse tipo de atenção, mesmo que nada de extraordinário te aconteça. O que faz com que os livros de Karl Ove se destaquem não é o enredo, mas a forma como ele conta as coisas, com uma honestidade brutal sobre si mesmo e todos à sua volta. Ele não pinta um autorretrato favorável. Coloca na página as mesquinharias, os defeitos, as humilhações, passagens vergonhosas que preferiríamos esquecer. Todo o mundo pode achar algo em Karl Ove, porque na escrita dele a vida é como ela é.
***
Um ano depois, em junho de 2014, perto da Copa do Mundo no Brasil, fiz uma entrevista com ele por telefone. Há quem diga que é melhor não conhecer seus ídolos e por alguns dias, enquanto tentava marcar de falar com ele, temi pelo pior. Temi que ele fosse chato e temi que eu fosse perder a compostura. Mandei um e-mail para ele para acertarmos o horário e escrevi tentando ser ao mesmo tempo formal (ele não podia saber que eu o amava) e simpática (eu queria que ele me amasse). Ele respondeu assim:
Hi Fernanda,
Hope this reach you well! I´m fine, thank you – as everybody else here occupied with football in your country (hopefully, Chile will beat Holland, for Brazil will beat Holland, but Chile, that´s a tough one!) I´m honored that you will interview me. Tomorrow between 11 and 13 is fine!
All my best, Karl Ove
Pura simpatia. Grande uso de exclamações. Conversamos sobre futebol! Ele estava honrado em ser entrevistado por mim. Marcamos para as 11h no horário dele, na Suécia. Uma escolha estratégica da minha parte: seriam 6 horas da manhã aqui e a redação estaria vazia. Não contei com o fato de que no dia anterior a gente sairia de madrugada do jornal e eu praticamente não dormiria. Mas eu queria privacidade.
Karl Ove é tão bom entrevistado quanto escritor. Seu tom de voz, seu sotaque e sua cadência são reconfortantes e suas respostas são inteligentes e assertivas. Escritores, em geral, são bons de conversa, e Karl Ove não é exceção. Conversamos por pouco menos de uma hora, bem mais do que coube no papel, principalmente sobre a série “Minha Luta” — na época o segundo volume, “Um Outro Amor”, era lançado no Brasil. Enquanto o primeiro se debruça mais sobre sua complicada relação com o pai, o segundo fala de seus filhos e do segundo casamento. Os dois são igualmente bons — depois, o próprio Karl Ove admite que segurou um pouco a mão, soltando-se de novo no último. Consequências do bafafá gerado pelo lançamento dos livros na Noruega — nem todas as pessoas citadas na obra ficaram contentes.
Novamente conversamos sobre futebol e ele revelou que estava escrevendo com um amigo sobre a Copa do Mundo no Brasil. Não me disse, porém, para quem estava torcendo (“Não dá pra falar isso pra uma brasileira!”). Chuto que era para a Argentina — país que ele sonhava em conhecer e que daria nome à série “Minha Luta”. Não polemizamos e terminamos a conversa em bons termos. Pensei em dizer que eu gostava muito do trabalho dele, mas uma das primeiras lições que recebi como trainee de jornalismo foi: “Não bata palmas em um jogo de futebol se você estiver trabalhando”. Transferindo a lição para o jornalismo cultural, achei que não era de bom tom eu me revelar assim para a fonte, mesmo que não tivesse ninguém ali para presenciar e mesmo que provavelmente eu nunca mais fosse falar com ele de novo. Quando minhas previsões no futebol se concretizaram e as dele caíram por terra, pensei em escrever um e-mail. Não o fiz.
***
Três anos depois de ter cancelado sua vinda à Flip, Karl Ove veio a Paraty. Cruzei com ele a primeira vez no hotel em que ele estava hospedado com seu filho, John. Eu saía de uma entrevista coletiva com Misha Glenny quando um jornalista à minha frente esbarrou em um homem alto, de camisa de manga comprida, de cor clara como suas calças. “Sorry”, disse ele. Levantei os olhos para ver quem era e fiquei em choque: Karl Ove Knausgard, o próprio. Mais alto do que eu imaginava, bastante imponente. Nos segundos que levei para me recuperar da surpresa e voltar a fazer sinapses, ele já tinha desaparecido. Tudo bem, horas mais tarde seria a vez da coletiva dele.
A sala estava bem mais cheia na entrevista de Karl Ove que na de Misha Glenny. Dessa vez vestido de preto, entrou sorrindo, cumprimentando todos que estavam ali. Durante uma hora, interrompida pela organização do evento, Karl Ove falou sobre literatura, Brexit e, claro, o 7 a 1 que levamos da Alemanha. A bem da verdade, quando você lê todas as entrevistas com Karl Ove que aparecem pela frente as novidades já não são muitas. Todo o mundo quer saber de “Minha Luta”, a obra que provavelmente o definirá para sempre.
Sobre como consegue lembrar de tantos detalhes sobre a sua vida, desde a infância, ele é sincero: “Quando comecei, a premissa era de que tudo devia ser verdade. Tinha que ter vivido tudo que escrevi, não devia inventar nada. Mas, ao mesmo tempo, não fiz pesquisa alguma. Queria escrever um livro sobre memória, sobre o que tinha na minha cabeça. Há coisas nos livros que tem gente que me disse que nunca aconteceu, ou não aconteceu daquele jeito, e estão lá. Queria explorar a memória. Há detalhes romanceados, que inventei”. Em suma, em suas próprias palavras, trata-se de um romance não ficcional. Tudo é verdade, mas uma verdade subjetiva.
Seu principal tema de interesse é a noção de identidade, em todas suas formas: nacional, pessoal, sexual, masculina… Criamos imagens de nós mesmos como se estivéssemos contando uma história. Quando falamos de nós para alguém, há toda uma narrativa por trás. Tudo é organizado por histórias, mas ao mesmo tempo a vida é muito mais complexa que isso. Vida e narrativa: as duas estão em constante batalha em sua obra. Durante anos, aliás, tentou escrever sem êxito, sem conseguir colocar para fora aquilo que tinha dentro de si. Foi quando conseguiu desaparecer na escrita, aos 26 anos, que as coisas começaram a dar certo. “Não sei como aconteceu, mas era como se eu sumisse na escrita. Não percebia a mim mesmo. É a experiência que você tem quando lê um livro muito bom, mergulha nele e desaparece. Você faz isso mesmo quando escreve sobre si.” Ao mesmo tempo em que conta uma história muito pessoal, fala de algo que vai além dele. “É muito estranho, mas é o mais alto que você chega como escritor. É quase budista. A sensação é ótima.”
Quando começou a escrever “Minha Luta”, achou que ninguém — nem seus amigos — teria interesse em ler algo tão narcisista. Era só algo pessoal que ele tinha que escrever. “Mas quando me encontro com leitores eles sempre falam de si, sempre sobre algo que apareceu na leitura que está conectado a eles. Percebi que somos muito mais parecidos do que achamos”, afirma. Seus livros, diz, não são sobre sua vida. “É uma vida bem comum, não fiz nada de muito espetacular. Os livros são uma forma de explorar, de tentar entender, e isso é o que um romance faz. Então os chamo de romances. Posso escrever 20 páginas sobre mascar chiclete, se isso me interessar. Você não leria isso numa autobiografia de um político”, fala. “Por que ler um livro sobre a vida do cara?”, perguntou meu irmão. Karl Ove responde, com mais eloquência que eu: “É o mesmo que ler Marcel Proust. A vida dele é um lugar em que todo o tempo e a cultura acontecem. Ele escreve sobre arte, música, sociedade. Pra mim, a vida dele é chata e pouco interessante. Mas seus livros não são”.
Escrever “bonito” não era uma preocupação, afirma. O que importa é ser livre na escrita, escapar de todas as regras de “isso pode, isso não pode”. A literatura é o único lugar onde se pode experimentar de tudo, desafiar as normas, e a pior coisa que ele conhece é a crítica moralista. Conta que às vezes fica irritado lendo alguma coisa, mas se lembra de que, quando lê, é a voz do autor que ecoa em sua cabeça e é essa voz que ele tem que obedecer. Não cabe a ele julgar.
Mesmo afirmando que boa escrita não é fundamental, repete o que disse à Paris Review sobre as primeiras páginas do primeiro livro da série — foram as mais trabalhosas e as melhores. “Trabalhei tanto tempo naquelas dez primeiras páginas. Meses. Polindo, tornando-as grande literatura. E aí falei ‘foda-se’ e só escrevi. Primeiro cinco páginas por dia, depois dez. Meu editor leu e disse que o começo era tão diferente do resto que eu devia cortar. Eu disse que de jeito nenhum, é a única parte do livro em que dá pra ver que eu sei escrever”, diz, rindo. Se você escreve rápido, tem um material mais bruto, mais direto, mas também mais cheio de clichês. Nos livros três e cinco ele utilizou estruturas mais primitivas. São volumes mais simples. “Mas não é esse o ponto, o ponto é pegar algo do meu coração e levar para o coração dos leitores e é isso.” Se para isso você precisa de clichês, vá com os clichês.
Hoje, Karl Ove vive com a mulher, Linda, e quatro filhos num vilarejo de 200 pessoas. Sua vida, basicamente, consiste em levar e buscar as crianças na escola e escrever. Como hobby, cuida de sua editora (“mas aí é literatura também”, reflete). Jogava futebol, mas onde vive agora só adolescentes jogam e ele não aguenta mais o ritmo e a correria. Então assiste a futebol na TV. Depois de tentar descrever que tipo de homem é em mais de 3 mil páginas, diz que é difícil dar uma definição assim de supetão. “Sou um homem de família. Queria fazer algo diferente, tipo ficar bêbado e fazer coisas. Sou um homem de família e odeio essa ideia. Tenho um jardim e odeio a ideia de ter um jardim. Meu pai tinha um jardim. Queria ser outra coisa, mas não sou. Estou lá e tenho aquela vida. E eu amo cuidar do jardim e ficar com meus filhos.”
Com sua editora, publica de dez a 12 livros por ano, só de coisas de que gosta (como Michel Laub, que tentou publicar, mas perdeu os direitos para outra editora). Por enquanto só gastou dinheiro, mas espera que neste ano finalmente não saia no prejuízo. Termina agora uma série de quatro livros, cada um com o nome de uma estação do ano. Os dois primeiros são de textos curtos, explicando para a filha que ainda não tinha nascido no início do projeto várias coisas, numa espécie de enciclopédia de objetos e sentimentos. O terceiro é um romance, “muito sobre o amor”. O quarto, “Verão”, ele ainda está escrevendo. A ideia era não falar de si nem de sua família, mas não deu muito certo. “Não deu pra evitar, e está sendo sofrido de novo. Mas esta é a última vez.”
Karl Ove menciona o livro sobre a Copa do Mundo, sobre o qual me falou brevemente dois anos atrás. O volume é resultado de uma troca de correspondência entre ele e um amigo. Karl Ove escrevia sobre “os times de que vocês não gostam: Argentina, Itália”, conta, antes de perguntar para que times europeus torcemos no Brasil. Portugal?, chuta. Também ficou traumatizado com o 7 a 1. “Eu não queria assistir, doía. Foi uma tragédia. Era uma grande história: era aqui, tinha o Neymar, tinha um fantasma do passado. E acontece isso. Nunca tinha visto um time desse tamanho colapsar completamente. Minha mulher até saiu da sala. Eu senti quase como se não fosse mais esporte, como se fosse outra coisa. Deve ter sido muito difícil.” Depois dessa, Karl Ove foi embora.
***
Do intervalo entre sua entrevista coletiva, na tarde de quinta, e sua mesa na Flip, na tarde de sexta, só soube de pedaços daquilo que ele fez. Alguém disse que o viu comendo com o filho num restaurante na beira do rio, com o cardápio bem levantado em frente ao rosto, como que para se esconder. Na fila para a mesa de Henry Marsh — neurocirurgião cujas operações Karl Ove viu para escrever um texto — outro amigo o viu passar sozinho e tirou uma selfie com ele. Uma amiga o flagrou de bermuda pela cidade e outra o encontrou a caminho de sua mesa na sexta. Na noite de quinta seu nome estava na lista para uma festa lotada, mas ele não apareceu.
Uma hora antes de sua mesa começar, as cadeiras posicionadas em frente ao telão, nos fundos da tenda dos autores, estavam praticamente todas ocupadas — embora boa parte das pessoas ali não soubesse direito quem ele era. “É um holandês”, disse alguém. “Poxa, não vai dar pra entender nada”, respondeu a mulher ao lado. Assistir às mesas do lado de fora, com as pessoas que não compraram ingresso, é uma experiência engraçada — melhor, em certo sentido, que ver a palestra na área de imprensa, rodeado por outros jornalistas empenhados em registrar o máximo possível de frases ditas no computador. Se a mesa é ruim, as pessoas se distraem, levantam e vão embora, ou falam ao celular. Quando a conversa dá certo, o público bate palmas para o telão, o que não faz muito sentido se você parar pra pensar. Então dá para sentir melhor a recepção da coisa. Karl Ove esteve na segunda categoria.
Entre algumas perguntas originais (Karl Ove não experimentou cachaça, informação nova pra mim), várias questões repetidas, que eu mesma havia feito dois anos atrás: como ele se lembra de tudo o que aconteceu?, o quanto daquilo é ficção?, como foi lidar com a repercussão, principalmente na família?, mas ele não tem vergonha de se expor tanto?, o título “Minha Luta”, dividido com o livro de Adolf Hitler, foi uma provocação? Dá pra ter uma ideia.
Mas se você quiser um resumo do que é Karl Ove Knausgard, se quiser explicar para alguém qual é a dele, por que alguém deveria se dar ao trabalho de ler sobre a vida normal de um norueguês, ouvir o que ele disse na Flip é uma grande oportunidade — aliás, ele revelou dias depois, em São Paulo, que essa é sua última turnê mundial para promover “Minha Luta”, então é bom aproveitar. Como alguém que escreve, sempre me intriga ao conversar com escritores sobre aquilo que os leva a escrever, sobre os temas que os interessam, sobre como ter coragem de se expor assim para o mundo em palavras que ficam para sempre, sobre o que constitui uma boa escrita.
“A motivação por trás da escrita é chegar a algo que você não sabia antes. Se você escreve algo e reconhece o que está na página, provavelmente não é muito bom. Se você chega a alguma coisa que não tinha visto, aí está a escrita, é por isso que você escreve. Isso também é leitura, você não quer ler algo em que já pensou. Como é possível, escrever algo e não reconhecer, dizer ‘não sou eu’? É um presente dos céus? Não. Literatura é isso, linguagem é isso, fora de nós. Se você se joga nisso, muda. Você se vê de uma maneira diferente. Aí você está escrevendo. É estranho, quando você escreve sobre si acha que não há nada que não saiba, mas 90% do que sai é de coisas sobre você que você não sabia”, diz. “No fim, não era eu. Eu estava escrevendo um romance. É por isso que pude ser tão duro comigo mesmo, revelar meus segredos. O objetivo era o livro.”
Contar as coisas como elas são não é o motivo mais nobre do mundo e, como escritor, ele sente uma dificuldade em conciliar a vontade de ser uma boa pessoa com a busca pela verdade. “É o que torna fazer isso tão difícil. Quando o que você sacrifica não é você, e sim pertence a outra pessoa… Você está tomando algo de alguém para si. Literatura é uma das coisas mais importantes que temos, mas não funciona no nível pessoal. Você passa por isso todos os dias quando é escritor. Se você tem um amigo que passa por alguma coisa muito importante e você toma isso pra você e escreve… Não é algo que uma pessoa boa faria.”
Ao escrever “Minha Luta”, não pensou nas consequências. Nem pensou que fosse ser publicado, na verdade. Mas quando o livro saiu e 10% da população norueguesa o comprou, viu que tudo tinha mudado. “Fiquei deprimido porque tinha vendido, tinha vendido minha família, minha alma, tudo que eu tinha. Aí tentei nunca pensar nisso, fingir que nunca tinha acontecido. Venho aqui e penso que ninguém me leu. Fico em negação. E funciona.” Mas o fato é que houve reações, “consequências morais”. Seu tio ficou cheio de raiva e quis processá-lo. “Ele é o irmão do meu pai, era como se ele tivesse voltado. Foi terrível, mas eu fiz algo para ele.” A pressão da mídia foi outra consequência. Sua mulher teve uma crise e foi internada antes do fim da série — fato que entrou no último volume. “Foi incrivelmente triste, e tive que escrever sobre isso de novo. Por quê? Porque sabia que seria bom, foi tão terrível assim.” Por isso, a última frase da série diz que ele deixará de ser escritor, porque a dor era muito grande. Não deu exatamente certo.
Karl Ove sente culpa, mas tenta lidar com ela. Sente culpa por causa dos filhos, que vão crescer estando naqueles livros, apesar de não se arrepender de nada que está escrito. “É, de alguma forma, imoral escrever sobre os outros. Mas se você vai escrever sobre sua vida, não dá pra falar só de você, porque viver é se relacionar com outros. É uma posição difícil de estar. Não posso falar que meu livro é mais importante que a sua vida, mas de algum jeito eu o fiz”, fala. Foi uma experiência autodestrutiva, que começou porque ele se sentia frustrado, bravo, como se não tivesse nada a perder. “Eu podia ter deixado minha família, poderia ter feito várias coisas, mas escrevi um livro. Eu não ligava”, diz.
Linda, sua mulher, também é escritora e só pediu para que ele não a retratasse como uma chata. Quando ele lhe deu um manuscrito, ela estava num trem, e primeiro ligou para dizer que aquilo era terrível, mas que ela poderia viver com isso. Depois, ligou mais brava. Na terceira vez, estava chorando. “Mas o problema não era o livro, era o relacionamento. Então conversamos por dias.” Escrever esses livros foi a pior coisa que poderia ter feito, mas ao mesmo tempo foi libertador. “Foi ok, não foi perigoso. As pessoas ficaram bravas, mas ninguém morreu, ninguém se matou.”
Mais do que expor os outros, Karl Ove expôs muito de si, incluindo coisas de que tem vergonha, como o fato de que não tinha se masturbado até os 19 anos, que não tinha dividido com ninguém. Quando contou a um amigo, ouviu dez minutos de risada e achou que não desse pra ficar pior. “Mas ainda tenho vergonha”, diz, rindo. “Ao escrever você tem que ser completamente livre e dizer as coisas mais estúpidas. Vergonha é um tópico nos meus romances desde o comecinho. Se você se interessa por identidade, tem que se interessar pela vergonha.”
Falhar é importante, parte do processo. “A primeira parte dessa história foi passar dez anos tentando escrever, sem sucesso. Quase todo trabalho envolve falhar, falhar, falhar, falhar. Se você pensa em música, se você quer improvisar você tem que ensaiar todos os dias, até fazer sem pensar. Também é verdade na literatura. Pensar é superestimado. Sei coisas intuitivamente porque o faço há muito tempo.”
“O maior desafio é ser honesto, de verdade, e não se repetir. É muito difícil, especialmente se você é bem-sucedido. É por isso que admiro tanto David Bowie. Ziggy Stardust foi um sucesso, e aí o que ele faz? Algo completamente diferente. Isso é muito corajoso”. O importante é continuar. “Às vezes acredito no hype, que fiz algo bom. Depois abro esse livro e penso que não, que tenho que fazer melhor. É assim que lido com isso.”
***
Isenção é importante no jornalismo, mas é impossível pedir para qualquer pessoa que não tenha paixões — por times, ideologias, gêneros de filmes ou autores. Então, desde que a paixão não seja cega e o senso crítico permaneça, não tem problema escrever sobre algo de que você gosta. Eventualmente vai acontecer. Mas desde que liguei para Karl Ove pela primeira vez e decidi por não dizer “ei, gosto muito do seu trabalho” e encerrei com o “obrigada pela entrevista” de praxe me perguntei se teria alguma diferença ou não eu ter falado isso pra ele. Afinal, eu já gostava dele e seria impossível tirar isso de mim pra escrever. Faria alguma diferença ele saber?
Mas sem muito tempo para refletir quando tive a oportunidade de dizer alguma coisa para ele em Paraty, segui um de seus conselhos (“pensar é superestimado”) e disse que, dois anos atrás, a gente tinha conversado e eu tinha me arrependido de não ter dito que eu realmente amava os livros dele. Ele deu uma risadinha e disse algo como “poxa, obrigado, isso é muito legal da sua parte!”. Pensando bem a respeito (agora sim), se há uma coisa que a saga de Karl Ove nos ensina é que escrever de um ponto de vista pessoal, sentindo alguma conexão com o seu tema, é bom. Escrever é transformar aquilo que é extremamente pessoal em uma coisa que já não é mais você. No fim das contas, se pudesse dizer algo mais a ele, o agradeceria por essa lição. Mas sempre teremos junho do próximo ano.
Essa família comum em todos os aspectos, com pais jovens, como eram quase todos os pais naquela época, e dois filhos, como quase todos os pais tinham naquela época, havia se mudado de Oslo, onde tinha morado na Thereses Gate, perto do Bislett Stadion, durante cinco anos, para Tromøya, onde uma casa fora construída para eles num loteamento. Enquanto aguardavam que a casa ficasse pronta, alugariam uma outra, mais velha, no acampamento Hove. Em Oslo o pai tinha estudado durante o dia, inglês e norueguês, e trabalhado como guarda-noturno durante a noite, enquanto a mãe havia frequentado a escola de enfermagem em Ullevål. Mesmo que ainda não houvesse terminado a formação, o pai tinha procurado e conseguido um emprego como professor no ginásio de Roligheden, enquanto ela trabalharia no hospital psiquiátrico de Kokkeplassen. Os dois haviam se conhecido em Kristiansand quando ela tinha dezessete anos, ela engravidara aos dezenove, e os dois se casaram aos vinte, na pequena fazenda em Vestlandet onde ela havia crescido. Ninguém da família do noivo compareceu ao casamento, e mesmo que aparecesse sorrindo em todas as fotografias, nota-se uma zona de solidão ao redor dele, percebe-se que não está no próprio ambiente em meio aos irmãos e irmãs, aos tios e às tias, aos primos e às primas da noiva.
Hoje os dois têm vinte e cinco anos, e têm a vida inteira pela frente. Trabalho próprio, casa própria, filhos próprios. Os dois estão juntos, e o futuro que almejam pertence a eles.
Será mesmo?
(Trecho de a “Ilha da Infância, Minha Luta 3”, de Karl Ove Knausgard)
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São 3.500 páginas distribuídas em seis volumes carregados de memórias e reflexões sobre a infância em um lugar remoto da Noruega, sobre trocar a fralda dos filhos e sobre faxinar meticulosamente a casa onde o pai alcoólatra acabara de morrer; relatos minuciosos sobre a água esquentando para preparar um chá, que evoluem para ensaios sobre Dostoiévski e Deus, e então a prosa volta a falar sobre papinha de bebê, Talking Heads, a vida de escritor e a história trágica – aos olhos do menino – de uma meia perdida na aula de natação. A série “Minha Luta“, do norueguês Karl Ove Knausgard, leva ao extremo o esforço de lembrança e apaga as linhas entre autobiografia e ficção. Publicada entre 2009 e 2011 na Noruega, onde se tornou um fenômeno de público e despertou intensos debates pela exposição crua de pessoas próximas ao autor, a obra chega aos leitores brasileiros traduzida diretamente do idioma original pelo gaúcho Guilherme da Silva Braga, 34 anos, responsável pela tradução a partir do volume dois – o quarto tomo, “Uma Temporada no Escuro”, foi lançado em junho no Brasil pela Companhia das Letras.
Apenas nas últimas duas décadas, e graças a escolhas bancadas por editoras como a 34 e a própria Companhia das Letras, traduções diretas de línguas “distantes”, como o russo, se tornaram possíveis no Brasil. Antes disso, Dostoiévski e outros russos, por exemplo, só chegavam ao Brasil intermediados pela tradução francesa – o que, de certa maneira, “contaminava” o texto final. Mesmo Franz Kafka só teve suas obras completas traduzidas diretamente do alemão a partir do trabalho de Modesto Carone, que iniciou na década de 1980 a monumental tarefa de traduzir toda a obra do escritor tcheco (que escrevia em alemão).
No caso de Guilherme Braga, doutor em Literaturas Inglesas e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o seu encontro com a língua norueguesa não partiu de um interesse acadêmico, mas pessoal. “Essa é uma história tortuosa que levou quase dez anos para se completar. Meu interesse pelo norueguês surgiu no meio dos anos 1990, junto com o meu interesse por bandas norueguesas de black metal – um dos principais itens de exportação cultural da Noruega”, conta. No início dos anos 2000, resolveu procurar algum professor de norueguês em Porto Alegre. Não encontrou nenhum, mas descobriu a professora Margareta Berg e o Instituto Brasileiro-Escandinavo de Intercâmbio Cultural, onde era possível estudar sueco. “Resolvi entrar no curso, pois eu sabia que o sueco e o norueguês são línguas extremamente parecidas e que, sabendo uma delas, entender a outra seria relativamente fácil”, lembra.
Depois de um ano de estudos, fez uma viagem à Suécia e, de volta ao Brasil, continuou os estudos do idioma enquanto traduzia peças do dramaturgo sueco August Strindberg “como exercício”. Em 2005, passou a trabalhar profissionalmente com tradução literária a partir do inglês, e dois anos mais tarde pediu demissão do emprego de professor de inglês para se dedicar à tradução em tempo integral. As versões engavetadas de Strindberg acabaram saindo em 2010 pela editora Hedra, no volume “Senhorita Júlia e Outras Peças“. Outras traduções literárias do sueco se seguiram, como o romance “A Traidora Honrada“, lançado pela Bolha/Autêntica, e “Doutor Glas“, um dos romances favoritos de Braga, que saiu pela Arte & Letra.
“O pessoal da L&PM – para quem a essa altura eu já havia traduzido dezenas de obras literárias em inglês – me escreveu perguntando se com o meu sueco eu não poderia ler um livro norueguês que a editora estava pensando em lançar e escrever um parecer a respeito. Aceitei o convite e não apenas escrevi o parecer como também me ofereci para fazer a tradução desse excelente romance, chamado ‘Antes que Eu Queime‘, baseado nos meus conhecimentos de sueco e usando vários materiais de apoio que comprei especialmente para a ocasião”, conta Braga.
Enquanto ele traduzia o livro, a NORLA, um importante órgão de divulgação de literatura norueguesa no exterior, concedeu ao tradutor uma bolsa de viagem à Noruega. Ainda sem encontrar professores de norueguês em Porto Alegre, estudou o idioma sozinho em casa por cerca de quarenta dias antes de embarcar para encontrar Gaute Heivoll, o autor do romance. “Logo depois de voltar fui convidado a participar de um evento para tradutores no festival literário de Lillehammer, também na Noruega, e na esteira disso tudo a Companhia das Letras me convidou a traduzir a série de romances ‘Minha Luta’, do Karl Ove Knausgard”, recorda-se.
Vendo que a tradução do norueguês estava começando a se tornar uma coisa séria em sua carreira, Braga voltou à Noruega outras vezes para estudar o idioma e participar de cursos e seminários para tradutores. “No meio disso tudo, li uns quantos romances noruegueses para me familiarizar melhor com a cena literária do país, ao mesmo tempo em que eu traduzia o Knausgard. Foi um ciclo muito estranho, muito inesperado e ao mesmo tempo muito interessante para mim”, diz Braga.
As visitas à Noruega ajudaram Braga a entender melhor o fenômeno Knausgard – foram 500 mil exemplares do primeiro volume vendidos em um país de cinco milhões de habitantes e exaustivas discussões na imprensa sobre os limites de sua obra, que, afinal, se baseia também na vida íntima de outras pessoas. “Na Noruega não existem grandes desigualdades sociais, não existem grandes desigualdades de gênero e assim por diante – e essa igualdade generalizada chega a tal ponto que você nem ao menos vê pessoas com roupas muito diferentes umas das outras quando anda pela rua. Talvez por isso os noruegueses também vivam vidas mais parecidas entre si, o que a meu ver possibilita a praticamente qualquer norueguês se identificar com os aspectos da vida cotidiana e trivial que é narrada nos romances do Knausgard”, analisa. Junto ao inegável talento literário do escritor e às questões morais e éticas que a série pode suscitar, o tradutor também atribui o sucesso de público de “Minha Luta” na Noruega, ao menos em parte, à “histeria dos jornalistas para transformar tudo em polêmica o tempo inteiro”.
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O processo de tradução de Braga geralmente passa por uma primeira versão mais apressada, ao mesmo tempo em que toma um contato inicial com a obra. Depois, ele relê o material com calma para fazer os acertos necessários e deixar o texto redondo. Durante o trabalho com “Minha Luta”, tradutor e autor nunca se comunicaram para conversar sobre as versões. “Eu vi o Knausgard em dois eventos literários na Noruega. Em um deles, não cheguei nem perto. Costumo ficar meio sem jeito nessas situações, e pelos romances eu sabia que o encontro com o tradutor de um país distante teria o potencial de se transformar em uma situação infinitamente constrangedora e sofrida para o Knausgard, a dizer por outras experiências similares que ele narra nos romances”, observa.
O segundo encontro foi em uma sessão de autógrafos. Braga comentou com ele que estava traduzindo a série e gostaria de fazer uma entrevista a ser publicada no Brasil. Na ocasião, Knausgard pareceu receptivo à ideia e disse que topava, mas o tradutor nunca mais teve resposta da agente dele sobre o pedido. “Não sei se ela não repassou o pedido ou se ele não respondeu, mas o fato é que a entrevista não foi feita porque nunca recebi uma resposta. Em todo caso, eu estaria mentindo se dissesse que estou surpreso, a dizer pela opinião que tenho sobre a personalidade do Knausgard pela maneira como ele se apresenta em suas obras”, diz.
O estilo narrativo de Knausgard, alternando descrições simples e coloquiais com trechos ensaísticos complexos, pode parecer um desafio a mais para o tradutor; é como se no mesmo universo habitassem dois ou mais níveis de prosa diferentes. “Embora essa mudança seja de fato marcante no Knausgard – o contraste entre a simplicidade e a concisão dos diálogos e a complexidade quase barroca das frases intermináveis nos trechos ensaísticos é brutal –, não tive muitas dificuldades com as transições porque eu já tinha experiência com os diálogos simples das histórias em quadrinhos e com a prosa rebuscada do século XIX”, conta Braga.
As dificuldades maiores estão nas sutilezas entre o norueguês e o sueco, que o autor faz questão de enfatizar – às vezes de maneira jocosa. O segundo volume, “Um Outro Amor”, é ambientado em grande parte na Suécia. “Uma parte significativa desse livro é um esforço da parte do Knausgard para convencer o leitor de que, apesar de serem países supostamente parecidos, a Noruega e a Suécia têm na verdade uma cultura muito diferente”, observa. Para Braga, traduzir tudo iria contra a intenção do texto original. Um norueguês consegue ler em sueco do mesmo modo que um falante de português consegue ler trechos em espanhol, mas o resultado final seria incompreensível para o leitor brasileiro. “O jeito foi, na maioria dos casos, manter as partes em sueco no idioma original, para deixar claro que os personagens estavam falando idiomas diferentes e, por meio de acréscimos extremamente breves e discretos, sugerir ou dar a entender ao leitor brasileiro o que estava acontecendo. O mesmo se aplica em menor grau para os trechos em dialeto”, diz.
Uma conversa entre o tradutor e Knausgard, que está em visita a América do Sul pela primeira vez na Flip 2016, não deve acontecer agora. Escaldado pelo fracasso da tentativa anterior, Braga não se animou a procurá-lo novamente. Por enquanto, continua a trabalhar no quinto volume de “Minha Luta”. “Pessoalmente, gosto da série especialmente pelo talento que o Knausgard tem para escrever sobre coisas banais e insignificantes. Também me agrada muito a forma como, mesmo no meio de um grande arroubo filosófico, Knausgard muitas vezes acaba constatando que é apenas mais um cara como qualquer outro e que todas as teorias mirabolantes dele podem ser completamente furadas. Tenho me divertido bastante com esses livros.”
Nem o frio nem a garoa fininha diminuíram o entusiasmo do público na segunda noite de Flip, em Paraty, numa conversa sobre um tema que foge da literatura: a neurociência. Durante a mesa do meio-dia, sobre “a dimensão simbólica e a experiência estética de caminhar pela cidade e seus espaços construídos”, segundo descrição do site do festival, sob sol forte, sobravam metade das cadeiras em frente ao telão que exibe as conversas para quem não tem ingressos. Às 19h30, cenário diferente, e o público aplaudia o engraçado neurocirurgião inglês Henry Marsh e a neurocientista sem meias palavras Suzana Herculano-Houzel.
Marsh, 66, que lança na Flip o livro “Sem Causar Mal”, colocou por terra presunções de fãs inverterados de séries médicas como “Grey’s Anatomy” (não há vergonha em admitir, apesar de o próprio Marsh dizer que não vê). “Cirurgia cerebral não depende de mãos firmes. Depende de tomar decisões, e você aprende mais com seus erros”, afirmou. O problema, complementou, é que quando o médico erra quem paga o pato é o paciente, que pode sofrer danos irreversíveis. Outro mito que caiu por terra: que cirurgiões são ególatras sem sentimentos que ficam mais convencidos a cada sucesso. Marsh contou que, depois de uma operação bem-sucedida, o que sente é alívio e não algum tipo de euforia egoísta. “Porque sei que sou falível. Você fica mais modesto com o tempo”, disse.
E mais: cirurgia é uma atividade em equipe, não um lugar para “Michelangelos e Beethovens da medicina”. Amigos conhecem melhor que você as suas limitações. “Quando penso em meus erros, se eu tivesse perguntado para alguém o que fazer não teria errado.” Até hoje o médico diz sentir medo antes de uma cirurgia e essa sensação que, no fim das contas, é responsável pelo prazer da cirurgia. “Você fica eufórico porque, no fundo, está muito preocupado. Dizem que cirurgiões são psicopatas, mas se fossem eles não ligariam pro paciente e, se não ligassem, não sentiriam prazer ao final.”
Mesmo para quem não tem interesse particular em medicina — é um festival de literatura, afinal — ouvir os dois cientistas foi uma agradável surpresa. Boa parte da conversa, afinal, foi filosófica, com referências a literatura e cultura. Por exemplo: qual a posição dos dois sobre inteligência artificial? Marsh é da opinião de que nem chegaremos a um ponto em que as máquinas ficarão mais inteligentes que os humanos e que isso é papo de ficção científica. “Ciência se baseia na experimentação e há um limite nos experimentos que podemos fazer em um cérebro humano. Por mais que saibamos bastante sobre o cérebro, há muito que não sabemos”, afirmou. Computadores, em sua opinião, não são tão inteligentes quando parecem. No plano teórico, entende que você pode ser contra essas máquinas filosoficamente, e há um impacto econômico se elas começam a substituir os homens.
Suzana concordou. “Há um abismo entre um cérebro e um cérebro desenvolvido”, disse. O de laboratório não tem capacidade de auto-organização, de se adaptar à sua existência. As habilidades que cada pessoa tem e que as diferenciam dos outros são resultado dessa capacidade somada à experiência de cada um. Um cérebro de laboratório pode fazer conexões. Ok, mas não é grande coisa.
[olho]“Queremos escapar da morte e dos impostos, mas não conseguimos”[/olho]
E sobre a vida eterna? Lembraram uma mesa do ano passado em que se discutiu a possibilidade de que pessoas naquela tenda conseguissem chegar não à imortalidade, mas pelo menos a uma vida de uns bons 400 anos. “Improvável”, rejeitou Marsh. “Mesmo que seja possível, é uma ideia péssima. Seria muito custoso, é ruim socialmente. Uma ideia terrível. E por que alguém iria querer viver pra sempre?” Quanto mais velha a população, mais caro fica tratar suas doenças. São maiores os riscos de câncer, demência, etc. O Estado simplesmente não teria condições de bancar. “Queremos escapar da morte e dos impostos, mas não conseguimos.”
O argumento de Suzana é um pouco mais poético. “Morrer é consequência de estar vivo. Você pode atrasar um pouco, envelhecer bem, mas o final dessa história é inevitável. A morte é o estado de equilíbrio”, disse. Pessoalmente, também é contra e cita o livro “As Intermitências da Morte”, de José Saramago, em que ninguém mais morre, como sugestão de leitura – “deveria ser obrigatória!”. A morte tem várias funções, como permitir que novas gerações venham e o mundo siga em frente. Temos que fazer as pazes com o fato de que a vida tem prazo de validade e seguir em frente também.
Sobre sua muito discutida saída do Brasil, Suzana, que em fevereiro deste ano recebeu um convite para lecionar e fazer pesquisas na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, disse não só não ter arrependimentos como estar feliz da vida. “Você está falando do fato de que agora eu posso fazer meu trabalho?”, questionou, sob palmas do público. Lá, ela conta, a administração é feita por administradores, a informática é gerida por técnicos de informática e ela não é sua própria agente de viagens. “Essa deveria ser a norma.” Suzana não esperava a repercussão de sua decisão, já que é normal um cientista receber proposta para trabalhar em outra instituição. “Uma brasileira ser convidada e ser motivo de comoção é absurdo. Embora continue achando que não é da conta de ninguém, achei uma boa oportunidade de mostrar como funciona a ciência no Brasil.”
“Fui muito criticada por colegas por desestimular jovens cientistas. O que queriam, que eu mentisse?” Ela contou que sai do trabalho todos os dias se sentindo contente, e acha uma pena que os cientistas que não trabalhem no Brasil não possam viver isso num futuro próximo. Depois veio mais paulada, dessa vez no fato de que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação foi fundido com o Ministério das Comunicações pelo presidente interino Michel Temer. O orçamento, disse, já era curto e agora é uma fração do que era. “Acho que a população, em geral, não tem noção de como nossa vida depende de ciência e tecnologia. Deixar isso na mão dos outros é uma decisão que eu não tomaria pro meu país.”
[olho]“Fui muito criticada por colegas por desestimular jovens cientistas. O que queriam, que eu mentisse?”[/olho]
Perguntaram se ela acha certo que o Estado invista em pesquisas sem aplicação prática e ela não hesitou. “A pesquisa científica sem aplicação é a ciência.” A única condição necessária para fazer ciência é reconhecer sua ignorância a respeito de algo. “O que se ganha com isso é conhecimento. Quando ele vai ser útil? Só Deus sabe. Se soubesse seria meio para atingir fim e isso é engenharia, não ciência.” Mais aplausos. “E sem ciência não existe engenharia.”
Já para o fim da conversa, o assunto voltou a ser o cérebro e Marsh se derreteu: “O cérebro vivo é lindo, como olhar para a Terra do espaço”. Suzana complementou: os cérebros dos primatas são “uma gracinha”, cérebros de cavalos e zebras são os mais feios e os mais bonitos são os dos guaxininis — “tem três vezes mais neurônios do que deveria. O guaxinim é um primata e não sabe”.
Para quem acha que o povo de biológicas e exatas quer tirar a poesia e a magia da vida, Suzana deu uma resposta, bem, de biológicas e exatas – mas com algum apelo para as humanas, vai. “Pensar que as moléculas se reorganizam para formar um ser, para mim, é poesia suprema. Ver que você é um arranjo de moléculas muito particular…”, diz. “Isso nos dá uma noção mais natural do nosso lugar, da nossa condição. A gente é só mais uma espécie.”
Misha Glenny, jornalista britânico que participa da Flip deste ano, recebe um grupo de jornalistas falando português na manhã de quinta (29), numa pousada em Paraty. “Me coloquei duas condições [ao escrever o livro “O Dono do Morro: Um Homem e a Batalha pelo Rio”, sobre o traficante Nem da Rocinha]. A primeira é que quis tentar aprender português. Isso foi há dois anos e meio, três anos. O início foi bem fácil. É fácil ler português. Mas falar é quase impossível. Foi um choque”, diz, rindo. “ Português não é uma língua muito fonética, é um problema. Mas me empenhei. E quando eu falava com as pessoas na favela elas falavam [o idioma] ‘rocinha’.”
Morar pelo menos dois meses na favela carioca era a segunda condição — e foi o que fez dois anos atrás. “Foi um desafio, a vida na favela é muito difícil. Mas achei que se ia escrever sobre a favela precisava entender as condições de lá. Tinha que entender a condição do Nem.” A ideia de escrever um livro sobre o traficante nasceu em 2011, quando Nem foi preso. Glenny estava no Rio e, ao ver toda a atenção que o acontecimento recebeu por parte da mídia, lembrou-se da prisão de O.J. Simpson, que parou os Estados Unidos. “Todas as redes de televisão foram [atrás]. Foi uma resposta não histérica, mas sensacionalista. Li tudo sobre ele em jornais, vi TV. Metade do Rio achava que o Nem era um demônio e metade achava que era um herói, um tipo de Robin Hood.”
Mas o que chamou particularmente sua atenção foi ver que Nem só tinha entrado no tráfico aos 24 anos, para cuidar da filha, com uma doença rara. Glenny queria ver as condições que o levaram a esse mundo. “Ele, pra mim, era um símbolo da desigualdade da sociedade brasileira e carioca. É uma sociedade bem dividida. Estava procurando um assunto para explicar o Brasil para as pessoas de fora. É um país de quatro ou cinco estereótipos: futebol, samba, Carnaval… Pra mim, é um país muito mais complexo, mas a visão de fora é cronicamente simplista. Buscava um assunto para explicar essa complexidade e Nem me pareceu esse assunto.”
Escreveu para o traficante na penitenciária e ficou surpreso quando, poucas semanas depois, recebeu um convite para ir até lá discutir o projeto. Foram, ao todo, 24 horas de conversas e, logo de cara, Glenny perguntou a Nem sobre sua família. “Ele tinha sido entrevistado dezenas de vezes e nunca tinham perguntado sobre a infância dele. Para mim, essa linha de perguntas rendeu muitos frutos”, conta o jornalista. Os pais de Nem eram alcoólatras e desde cedo ele era testemunha de episódios de violência doméstica. Tinha uma relação particularmente forte com o pai, que trabalhava em um bar em Copacabana. Foi lá que ele levou um tiro no joelho, em meio a um assalto. Saiu do hospital sem conseguir andar e Nem, aos 11 anos, foi o responsável por cuidar dele pelos meses que se seguiram e culminaram em sua morte por infarto.
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“Sua obsessão é ser um bom pai. E ele tem muitas oportunidades, tem sete filhos, dois adotados”, diz Glenny. Durante a juventude, Nem não trabalhou com drogas, com as quais se envolveu para ajudar a família: entregava revistas da Net na zona sul do Rio, gerenciando uma equipe. “Era visto por todos como uma pessoa do bem. É um diferencial a idade em que entrou pro tráfico. Era muito inteligente e gerenciava uma equipe na zona sul. O Lulu, que era o dono do morro, reconheceu seu talento e ele subiu rápido.” Um entrevistado que não quis ser identificado no livro contou ao jornalista que Nem conseguia olhar para um monte de cocaína e saber de cara quanto aquilo renderia e para onde a droga deveria ser distribuída para otimizar os resultados.
Nem entendia, por exemplo, a importância da informação — fácil de vazar — e a ameaça que celulares e redes sociais representavam para sua organização. Falava pouco ao telefone e tinha um assistente responsável por carregar um monte de celulares para ele, cada um para falar com um membro da organização. A polícia desvendou toda a hierarquia da quadrilha, mas mesmo assim não conseguia fazer a conexão de cada membro com o líder por causa de sua precaução.
O livro, lançado aqui pela Companhia das Letras, não é apenas uma história de Nem, mas também a história da Rocinha. “É parcialmente uma história do desenvolvimento das favelas no Rio e do impacto da cocaína na cidade”, resume o autor. Em 1982, a taxa de homicídios no Rio de Janeiro e em Nova York era igual. Sete anos depois, o número era três vezes maior no Rio. “Isso porque o Brasil se tornou o principal país de trânsito de cocaína da Colômbia para a Europa. Quando um país se torna trânsito principal da droga ele desenvolve o hábito local também. Isso aconteceu aqui, especialmente no Rio”, afirma Glenny. Graças a geografia do Rio, cheia de morros, várias facções rivais se formaram para disputar a hegemonia, situação diferente de São Paulo, controlada pelo PCC.
Essas favelas cariocas não têm a história contada, diz o jornalista. E ele quis contribuir contando aos leitores sobre acontecimentos que pouca gente conhece. Cada morro é diferente: na Maré, há muito medo, medo real. Na Rocinha instaurou-se outro clima, “cool”. “O dono do morro tem três instrumentos para exercer o poder político na favela: o monopólio da violência, o apoio da comunidade e a corrupção da polícia. Nem diz que para ele o mais importante era o apoio.” Ele assumiu o comando da Rocinha em 2005 — em 2004, o Comando Vermelho havia mandado matar o antigo chefe. Sob sua gestão, a taxa de homicídios caiu drasticamente, fato constatado por pesquisadores e confirmado pela polícia.
“Quando morei na Rocinha o que me impressionou é que tem uma atividade econômica feroz”, conta Glenny. “Foi a primeira favela com bancos. Tem todos os tipos de loja, inclusive o primeiro sex shop numa favela. Tem Bobs. Acho que isso parcialmente foi resultado da política do Nem na favela. Ele percebeu que se a taxa de homicídio cai, o lucro dos negócios sobe. Ele nega ter feito isso conscientemente, mas levou parte dos lucros do tráfico para uma espécie de sistema de bem-estar social embrionário na favela.”
Mais segurança na favela impacta o consumo de cocaína, que tem como boa parte do público gente de classe média e classe média alta — fato que Nem logo sacou. “Como era percebido como um lugar seguro, vinha muita gente de fora, que já ficava na boate. A Rocinha virou uma marca na época do Nem, todo o mundo queria ir lá. Artistas faziam shows, políticos tiravam fotos, porque sabiam que não teria problema.” O traficante investiu também na corrupção policial, e assim ficava sabendo com antecedência de batidas na favela. “O tráfico teve um impacto na economia, mas é uma interação muito complexa”, sintetiza Glenny.
Entre os entrevistados do jornalista está José Mariano Beltrame, Secretário de Segurança do Rio de Janeiro. “Ele me disse que a ausência do Estado nas favelas foi um choque para ele e ele quis mudar. A UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] foi um experimento muito corajoso e só foi possível porque em 2007, quando Cabral assumiu, as forças políticas em nível federal, estadual e municipal estavam prontas para colaborar.” Para Glenny, Beltrame fez um bom trabalho. “A falha do Estado foi não apoiar a UPP policial com a social. As UPPs diminuíram as taxas de homicídio, mas as taxas de outros crimes, como roubo e estupro, aumentaram”, diz. O sistema, agora, está colapsando, segundo ele, em parte porque Beltrame não tem os recursos para continuar com as UPPs em tempos de crise.
Seu prognóstico para o futuro, porém, é bem pouco otimista, não só para as favelas. “Acho que a situação nas favelas ficará mais ou menos estável até os Jogos Olímpicos. Tenho medo de depois a situação piorar no morro e no asfalto. O morro e o asfalto são intimamente interligados, mesmo que as pessoas não percebam.”