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Flip 2016

Misha Glenny e a história pouco contada da Rocinha

Misha Glenny, jornalista britânico que participa da Flip deste ano, recebe um grupo de jornalistas falando português na manhã de quinta (29), numa pousada em Paraty. “Me coloquei duas condições [ao escrever o livro “O Dono do Morro: Um Homem e a Batalha pelo Rio”, sobre o traficante Nem da Rocinha]. A primeira é que quis tentar aprender português. Isso foi há dois anos e meio, três anos. O início foi bem fácil. É fácil ler português. Mas falar é quase impossível. Foi um choque”, diz, rindo. “ Português não é uma língua muito fonética, é um problema. Mas me empenhei. E quando eu falava com as pessoas na favela elas falavam [o idioma] ‘rocinha’.”

Morar pelo menos dois meses na favela carioca era a segunda condição — e foi o que fez dois anos atrás. “Foi um desafio, a vida na favela é muito difícil. Mas achei que se ia escrever sobre a favela precisava entender as condições de lá. Tinha que entender a condição do Nem.” A ideia de escrever um livro sobre o traficante nasceu em 2011, quando Nem foi preso. Glenny estava no Rio e, ao ver toda a atenção que o acontecimento recebeu por parte da mídia, lembrou-se da prisão de O.J. Simpson, que parou os Estados Unidos. “Todas as redes de televisão foram [atrás]. Foi uma resposta não histérica, mas sensacionalista. Li tudo sobre ele em jornais, vi TV. Metade do Rio achava que o Nem era um demônio e metade achava que era um herói, um tipo de Robin Hood.”

Mas o que chamou particularmente sua atenção foi ver que Nem só tinha entrado no tráfico aos 24 anos, para cuidar da filha, com uma doença rara. Glenny queria ver as condições que o levaram a esse mundo. “Ele, pra mim, era um símbolo da desigualdade da sociedade brasileira e carioca. É uma sociedade bem dividida. Estava procurando um assunto para explicar o Brasil para as pessoas de fora. É um país de quatro ou cinco estereótipos: futebol, samba, Carnaval… Pra mim, é um país muito mais complexo, mas a visão de fora é cronicamente simplista. Buscava um assunto para explicar essa complexidade e Nem me pareceu esse assunto.”

Escreveu para o traficante na penitenciária e ficou surpreso quando, poucas semanas depois, recebeu um convite para ir até lá discutir o projeto. Foram, ao todo, 24 horas de conversas e, logo de cara, Glenny perguntou a Nem sobre sua família. “Ele tinha sido entrevistado dezenas de vezes e nunca tinham perguntado sobre a infância dele. Para mim, essa linha de perguntas rendeu muitos frutos”, conta o jornalista. Os pais de Nem eram alcoólatras e desde cedo ele era testemunha de episódios de violência doméstica. Tinha uma relação particularmente forte com o pai, que trabalhava em um bar em Copacabana. Foi lá que ele levou um tiro no joelho, em meio a um assalto. Saiu do hospital sem conseguir andar e Nem, aos 11 anos, foi o responsável por cuidar dele pelos meses que se seguiram e culminaram em sua morte por infarto.
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No dia 10 de novembro de 2011, Nem foi preso. Crédito: Felipe Dana/AP
No dia 10 de novembro de 2011, Nem foi preso. Crédito: Felipe Dana/AP

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“Sua obsessão é ser um bom pai. E ele tem muitas oportunidades, tem sete filhos, dois adotados”, diz Glenny. Durante a juventude, Nem não trabalhou com drogas, com as quais se envolveu para ajudar a família: entregava revistas da Net na zona sul do Rio, gerenciando uma equipe. “Era visto por todos como uma pessoa do bem. É um diferencial a idade em que entrou pro tráfico. Era muito inteligente e gerenciava uma equipe na zona sul. O Lulu, que era o dono do morro, reconheceu seu talento e ele subiu rápido.” Um entrevistado que não quis ser identificado no livro contou ao jornalista que Nem conseguia olhar para um monte de cocaína e saber de cara quanto aquilo renderia e para onde a droga deveria ser distribuída para otimizar os resultados.

Nem entendia, por exemplo, a importância da informação — fácil de vazar — e a ameaça que celulares e redes sociais representavam para sua organização. Falava pouco ao telefone e tinha um assistente responsável por carregar um monte de celulares para ele, cada um para falar com um membro da organização. A polícia desvendou toda a hierarquia da quadrilha, mas mesmo assim não conseguia fazer a conexão de cada membro com o líder por causa de sua precaução.

O livro, lançado aqui pela Companhia das Letras, não é apenas uma história de Nem, mas também a história da Rocinha. “É parcialmente uma história do desenvolvimento das favelas no Rio e do impacto da cocaína na cidade”, resume o autor. Em 1982, a taxa de homicídios no Rio de Janeiro e em Nova York era igual. Sete anos depois, o número era três vezes maior no Rio. “Isso porque o Brasil se tornou o principal país de trânsito de cocaína da Colômbia para a Europa. Quando um país se torna trânsito principal da droga ele desenvolve o hábito local também. Isso aconteceu aqui, especialmente no Rio”, afirma Glenny. Graças a geografia do Rio, cheia de morros, várias facções rivais se formaram para disputar a hegemonia, situação diferente de São Paulo, controlada pelo PCC.

Essas favelas cariocas não têm a história contada, diz o jornalista. E ele quis contribuir contando aos leitores sobre acontecimentos que pouca gente conhece. Cada morro é diferente: na Maré, há muito medo, medo real. Na Rocinha instaurou-se outro clima, “cool”. “O dono do morro tem três instrumentos para exercer o poder político na favela: o monopólio da violência, o apoio da comunidade e a corrupção da polícia. Nem diz que para ele o mais importante era o apoio.” Ele assumiu o comando da Rocinha em 2005 — em 2004, o Comando Vermelho havia mandado matar o antigo chefe. Sob sua gestão, a taxa de homicídios caiu drasticamente, fato constatado por pesquisadores e confirmado pela polícia.

“Quando morei na Rocinha o que me impressionou é que tem uma atividade econômica feroz”, conta Glenny. “Foi a primeira favela com bancos. Tem todos os tipos de loja, inclusive o primeiro sex shop numa favela. Tem Bobs. Acho que isso parcialmente foi resultado da política do Nem na favela. Ele percebeu que se a taxa de homicídio cai, o lucro dos negócios sobe. Ele nega ter feito isso conscientemente, mas levou parte dos lucros do tráfico para uma espécie de sistema de bem-estar social embrionário na favela.”

Mais segurança na favela impacta o consumo de cocaína, que tem como boa parte do público gente de classe média e classe média alta — fato que Nem logo sacou. “Como era percebido como um lugar seguro, vinha muita gente de fora, que já ficava na boate. A Rocinha virou uma marca na época do Nem, todo o mundo queria ir lá. Artistas faziam shows, políticos tiravam fotos, porque sabiam que não teria problema.” O traficante investiu também na corrupção policial, e assim ficava sabendo com antecedência de batidas na favela. “O tráfico teve um impacto na economia, mas é uma interação muito complexa”, sintetiza Glenny.

Entre os entrevistados do jornalista está José Mariano Beltrame, Secretário de Segurança do Rio de Janeiro. “Ele me disse que a ausência do Estado nas favelas foi um choque para ele e ele quis mudar. A UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] foi um experimento muito corajoso e só foi possível porque em 2007, quando Cabral assumiu, as forças políticas em nível federal, estadual e municipal estavam prontas para colaborar.” Para Glenny, Beltrame fez um bom trabalho. “A falha do Estado foi não apoiar a UPP policial com a social. As UPPs diminuíram as taxas de homicídio, mas as taxas de outros crimes, como roubo e estupro, aumentaram”, diz. O sistema, agora, está colapsando, segundo ele, em parte porque Beltrame não tem os recursos para continuar com as UPPs em tempos de crise.

Seu prognóstico para o futuro, porém, é bem pouco otimista, não só para as favelas. “Acho que a situação nas favelas ficará mais ou menos estável até os Jogos Olímpicos. Tenho medo de depois a situação piorar no morro e no asfalto. O morro e o asfalto são intimamente interligados, mesmo que as pessoas não percebam.”

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‘Missoula’: questões essenciais sobre o estupro

Mesmo depois da circulação de um vídeo em que uma adolescente de 16 anos está nua e desacordada enquanto um grupo de homens no Rio de Janeiro diz que ela foi estuprada por mais de 30, o delegado que comandava as investigações afirmou que a polícia não podia “ser leviana de comprar a ideia de estupro coletivo” quando, na verdade, não se sabia realmente o que tinha acontecido. O caso é ilustrativo de como é difícil acusar alguém de estupro — nem um vídeo é suficiente para que a vítima convença o mundo de que está falando a verdade. O caso é da semana passada, no Brasil, mas encontra paralelo nas várias histórias contadas por Jon Krakauer, autor de “Na Natureza Selvagem”, em “Missoula”, livro americano do ano passado lançado há um mês aqui. O tempo passa, o cenário muda, mas as histórias contadas por Krakauer poderiam muito bem estar acontecendo aqui e agora.

Segundo o autor, o livro nasceu de seu choque com a descoberta de que uma amiga sua havia sido estuprada duas vezes durante a adolescência — uma delas por um amigo da família. Envergonhado por saber tão pouco sobre o trauma provocado por esse tipo de violência, começou a pesquisar. Deparou-se, então, com o caso de Allison Huguet, estuprada pelo amigo de infância Beau Donaldson na cidade americana Missoula, no Estado de Montana. Como no caso de sua amiga, Allison não havia sido atacada por um psicopata escondido nos arbustos numa rua deserta: quem a violentou foi alguém próximo, que ela considerava como da família. As duas não são exceção. Pelo contrário: segundo dados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a cada cinco estupros, quatro são cometidos por conhecidos da vítima.

Krakauer comprovou isso empiricamente. Só em Missoula, sede da Universidade de Montana, encontrou vários outros casos de estudantes universitárias estupradas por colegas, amigos próximos ou aqueles caras que você conhece numa festa e que parecem super legais e esclarecidos até não serem mais. Ainda sem saber que aquilo seria um livro, o escritor foi até a cidade acompanhar o julgamento de Beau. “O que foi interessante a respeito de Allison foi que era um caso que era uma barbada e ela teve que lutar tanto. Foi tão traumatizante para ela fazer com que os promotores levassem o caso a sério e não dessem apenas uma palmadinha no cara”, disse ele em uma conversa com blogueiras feministas em Nova York. “Pensei que era uma das partes mais interessantes do livro, ver como era difícil até em um caso desses conseguir prestação de contas, justiça, retribuição, como você quiser chamar. Pareceu óbvio, então, que uma vez que eu fiquei sabendo de Allison eu deveria escrever sobre essa série de ataques.”

missoula capa

Com base em entrevistas com os envolvidos, documentos judiciais e gerados por processos disciplinares universitários, e-mails, boletins de ocorrência e transcrições de audiências, Krakauer faz um retrato bastante representativo das dificuldades enfrentadas por quem denuncia um estupro. A história começa e termina com Allison, que foi a uma festa na casa de um amigo, bebeu e caiu no sono no sofá da sala, pensando estar segura. Acordou com Beau, seu melhor amigo, penetrando sua vagina por trás com o pênis. Com medo de ser mais machucada caso se debatesse — jogador de futebol americano, Beau pesava mais de cem quilos ante os menos de 60 de Allison –, fingiu continuar dormindo. Quando o ataque terminou, ela fugiu correndo, descalça e com a calça aberta (ele havia arrancado o botão e destruído o zíper). A mãe a resgatou e a levou a um hospital coletar um kit de estupro — quando foi “praticamente estuprada de novo”, com todas as áreas íntimas vasculhadas por estranhos durante horas.

As consequências daquela noite foram sentidas por muito tempo. Allison ouviu boatos maldosos a seu respeito, teve dificuldades em retomar os estudos e foi hostilizada pela cidade, que idolatrava o time de futebol, quando decidiu denunciá-lo para a polícia, mais de um ano depois. Até seus amigos a chamaram de puta mentirosa e disseram que ela só queria chamar a atenção, como se ganhar a fama de mulher estuprada fosse algo a ser almejado.

Com a ajuda de um detetive, ela conseguiu gravar uma confissão de Beau, mas mesmo assim o promotor encarregado do caso disse que iria brigar por uma pena branda, que poderia nem ter tempo de prisão. O fato de que ele não tinha antecedentes criminais e de que tinha um futuro promissor pela frente, por exemplo, contariam a favor de Beau — afinal, ele era estuprador arrependido da casa ao lado, não o psicopata com uma faca. O melhor a fazer, segundo o promotor, era não brigar muito e se contentar com a pena que o réu estivesse disposto a aceitar.

Allison representa boa parte das dificuldades encontradas por quem é vítima de estupro: a dificuldade que é passar pela coleta do kit de estupro e fazer a denúncia, as consequências psicológicas não superadas (“a sentença dele é de anos, a minha é para a vida inteira”, diz ela em um ponto do julgamento), a desconfiança de todos — da polícia aos amigos –, a culpabilização pela violência que sofreu, os xingamentos recebidos. É particularmente triste que o seu seja o caso “feliz” do livro: Beau foi preso, mas quase escapou, mesmo que tenha confessado o crime. Outros ataques narrados no livro saíram impunes, em relatos tão pesados quanto importantes.

O autor Jon Krakauer. Crédito: Linda Moore/Divulgação
O autor Jon Krakauer em foto de divulgação de 2003. Crédito: Linda Moore

Outra estudante, por exemplo, foi estuprada por cinco jogadores de futebol americano da universidade depois de beber numa festa, perdendo e recobrando a consciência repetidas vezes enquanto eles se revezavam para fazer sexo com ela durante duas horas. Assim como Allison, ela realizou exames que atestaram seus machucados e fez a denúncia à polícia. Os detetives, porém, duvidaram de seu relato com os motivos clássicos para questionar a vítima. Ela não teria traído o namorado e inventado que tinha sido estuprada por ter se arrependido depois? Será que os homens não tinham achado, por algum motivo, que aquilo era consensual? Será que ela não se enganou sobre o que aconteceu? No fim das contas, o detetive responsável concluiu que não havia “causa provável para oferecer denúncia contra nenhum dos envolvidos no incidente”. Afinal, era a palavra dela contra a de cinco.

Qualquer semelhança com o caso da adolescente estuprada por 30 homens no Rio não é mera coincidência. Segundo “Missoula”, pelo menos 80% dos estupros não são denunciados e uma pequena parcela dessas denúncias resulta em condenação. “Há uma mitologia de que mulheres mentem sobre terem sido estupradas. Algumas mulheres mentem — entre dois e 10% segundo pesquisas. Muitos estudos dizem isso. É um número pequeno, não muito diferente dos outros crimes”, disse Krakauer em entrevista à NPR. “A diferença é que nos outros crimes não se assume que a vítima está mentindo. Você acredita na palavra da vítima. As vítimas de estupro são tratadas de um jeito diferente do que as de outros crimes. O livro é um olhar de perto sobre o que é ser vítima de estupro: a dor e os obstáculos pelos quais você passa para conseguir qualquer tipo de justiça.”

“Missoula” tem o nome de uma pequena cidade americana, mas é sobre muito mais do que ela. Vem à memória, por exemplo, a denúncia de alunas da USP de estupros em festas promovidas na faculdade de medicina e a existência de uma cultura machista nos trotes universitários. Segundo elas, não só as denúncias não eram investigadas pela faculdade como elas ainda eram perseguidas pelos colegas, que as chamavam de mentirosas — como várias personagens do livro.

“É sistêmico pra caramba. Missoula é, infelizmente, um caso típico. Tem bons policiais e promotores, mas até mulheres detetives têm essa sensação de resignação, tipo… Você sabe que os promotores não vão atrás desse cara, por que vamos gastar nosso tempo? Literalmente, se eles não têm uma confissão nem levam à justiça. Temos um longo, longo caminho pela frente”, disse Krakauer no ano passado.

Meticuloso, “Missoula” é uma leitura importante, não só nesta semana, em que houve grande repercussão de um caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro. É importante porque acontece sempre, uma vez a cada 11 minutos no Brasil — como a maioria dos casos não é registrado, o número deve ser ainda maior. Enquanto 30 homens violentarem uma mulher sem que um só se manifeste, enquanto as pessoas duvidarem das vítimas, enquanto disserem “ninguém merece ser estuprado, mas…”, precisaremos discutir o estupro. Precisamos discutir o estupro. E as questões que “Missoula” levanta são fundamentais.