O nível de satisfação na saída de “Batman vs Superman: A Origem da Justiça”, que estreia na quinta (24), provavelmente está relacionado com o nível de expectativa depois de ver seus trailers. Quem achava que o filme ia ser horrível pode sair relativamente contente — ele não chega a ser tão ruim assim. Por outro lado, quem se empolgou com a história pode sair decepcionado, afinal o filme é uma versão (bem) mais longa do trailer. No início da exibição do filme para a imprensa, um vídeo do diretor Zack Snyder pede para que ninguém dê spoilers da história, como se o trailer não tivesse revelado quase tudo.
Falar sobre a história, aliás, não é muito fácil. Quando você para e pensa sobre o que aconteceu, vê que a história pode até entreter, mas é cheia de buracos. Tem coisas sem explicação, cenas de sonhos soltas, tramas que não evoluem. Mas, de qualquer forma, aqui vai: depois de presenciar o cenário de destruição da batalha de Superman (Henry Cavill) contra Zod, que aconteceu no filme “O Homem de Aço”, e ver um de seus funcionários perder as duas pernas por causa disso, Batman (Ben Affleck) fica desconfiado do outro herói. Por ser um alienígena capaz de destruir todo o mundo, pensa Batman, ele não seria de confiança. Já o Superman acha que o Batman é um justiceiro que não respeita leis e quer que ele pare de circular por Gotham. Quando Clark Kent e Bruce Wayne se encontram, Bruce aponta que a posição de Clark é um pouco hipócrita, mas enfim. Vamos aceitar a premissa e seguir em frente.
Nem só Batman começa a desconfiar do Superman. Depois de salvar Lois Lane (Amy Adams) de uma entrevista com um terrorista e, no processo, causar a morte de vários africanos, Superman começa a ser considerado um perigo por parte dos americanos e, principalmente, por uma senadora. Nada de muito interessante sai dessa vertente da história — o Superman questiona sua existência durante cinco minutos e o conflito, que poderia ser legal, se resolve. Enquanto isso, Batman investiga um homem chamado Português Branco, por motivos que — além de incluir a Mulher Maravilha (Gal Gadot) na história — não ficam muito claros.
O elo comum entre todas as tramas é Lex Luthor (Jesse Eisenberg), milionário cheio de tiques que lembra muito Mark Zuckerberg em “A Rede Social” (Eisenberg parece interpretar sempre o mesmo papel, sempre meio detestável e, desta vez, bem pouco sutil, para ficar num eufemismo). Luthor quer que Batman e Superman se enfrentem também por razões misteriosas. Talvez quem entenda mais dos quadrinhos tenha alguma pista, mas para os leigos nada do que Lex faz tem pé nem cabeça. A única explicação possível é que ele é completamente louco e, por isso, suas ações não precisam fazer sentido mesmo. É pouco para um vilão.
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Também não é surpresa pra ninguém que viu o trailer que, a certa altura, Batman, Superman e Mulher Maravilha se unem de uma maneira esquisitíssima para lutar contra o vilão sem personalidade e com ares de ex machina chamado Apocalipse (culpe a tradução dos quadrinhos pela confusão com o vilão de X-Men, já que o nome original do monstro é Doomsday). A aparição da super-heroína fez com que parte da sala de cinema batesse palmas. Ela vai bem na cena de luta e Gal Gadot faz o que pode no resto do filme para que sua personagem seja interessante. Mas depois de cruzar com o caminho de Bruce Wayne nas investigações do Português Branco, ela é escanteada e aparece zanzando por aí durante o resto da história.
Não há nenhuma explicação para quem é ela, nenhum minuto dedicado à sua origem (em compensação, vemos os pais de Batman serem assassinados pelo que parece ser a milésima vez). Se seu nome é mencionado é tão breve que não dá nem para lembrar. O mesmo vale para os outros heróis. Quem esperava ver mais do Flash ou do Aquaman sairá desapontado. Eles aparecem durante um segundo, de forma bem questionável, só para estabelecer uma base para o filme da Liga da Justiça, planejado para o ano que vem. É difícil acreditar em um bom futuro para a franquia enquanto Zack Snyder estiver à frente dos principais títulos.
A Mulher Maravilha, aliás, não é a única personagem feminina mal aproveitada pela trama: uma atriz boa como Amy Adams merecia algo melhor do que a Lois Lane que recebeu, que aparece aqui e ali para apurar uma história sem pé nem cabeça sobre uma projétil, para ser salva pelo Superman e para dizer palavras de conforto para Clark Kent, numa atuação robótica de Henry Cavill. Ele tem a cara do herói, é verdade, mas um pôster com seu rosto teria feito um trabalho quase tão bom quanto. O trabalho de Cavill somado ao roteiro pouco interessante do personagem faz com que ninguém tenha apreço algum ao nome mais famoso da DC.
Mas há a parte boa: Ben Affleck, que declarou recentemente ao “New York Times” que seu trabalho no filme tinha prevalecido sobre aquilo que aconteceu na sua vida pessoal após a separação de Jennifer Garner, está bem no papel — uma ótima surpresa. Há mais Batman na versão Ben Affleck do que no Batman de Christian Bale. Seu Batman é complexo e não hesita em marcar bandidos com uma brasa em formato de morcego. O Batman não é um super-herói clichê, só com bondade no coração e boas intenções.
Também não são clichês algumas questões que o filme propõe: o impacto que essas batalhas de heróis contra vilões têm nas cidades (prédios destruídos, mortes, ferimentos), a ideia de que mesmo os super-heróis mais perfeitos e bondosos também têm falhas e pontos fracos — como Superman, que arrisca a vida de pessoas inocentes para salvar a mulher que ama –, a discussão sobre a necessidade de respeitar a lei mesmo quando é para fazer uma boa ação. “Batman vs Superman” não é ruim. Há uma história boa por trás do filme — ela só não é bem contada.
As crianças dos anos 90 não podem reclamar da falta de desenhos animados para preencher seus dias. Dos clássicos como “Scooby Doo”, de 1969, aos contemporâneos “Doug” e “Pokémon” tinha um pouco de tudo — comédia, ação, fantasia, produções americanas, japonesas. Só faltava uma animação brasileira — ainda mais uma de sucesso. Cenário bem diferente do de hoje, na melhor fase da animação nacional brasileira na televisão, com bastante oferta e retorno de audiência: atualmente, tanto no Discovery Kids quanto no Cartoon Network, os maiores canais infantis da TV paga, animações nacionais estão entre os líderes de popularidade.
A história do primeiro sucesso brasileiro no gênero, “Peixonauta”, começa lá atrás, 20 anos antes de sua estreia, em 2009. Foi quando Celia Catunda e Kiko Mistrorigo resolveram abrir uma produtora de animação quando quase ninguém produzia séries aqui e a animação nacional era mais voltada a publicidade ou vinhetas. A TV Pinguim, uma das produtoras de animação pioneiras no país, começou produzindo programas curtos para a TV Cultura — como “Rita”, em 1990 — e para o canal Futura. Naquele período, com pouco espaço na TV brasileira para produtoras independentes, os dois viajavam pelos mercados de televisão mundo afora com seus projetos debaixo do braço em busca de parceiros para produzir suas animações.
Em uma dessas viagens, fundamentais para o estabelecimento de uma rede de contatos, “Peixonauta” caiu nas graças e, produzido em associação com a Discovery, estreou no Discovery Kids em 2009 — antes da Lei da TV Paga, que estabeleceu cotas para exibição de programação nacional nos diferentes canais da TV fechada e estimulou o mercado de produtores. O programa sobre um peixe detetive em trajes de astronauta logo se tornou um dos campeões de audiência do canal. Na semana de estreia, surpreendeu o canal e foi a atração mais vista por crianças de quatro a 11 anos no horário. No ano seguinte, já era o líder na emissora, ganhou o prêmio de melhor programa infantil de televisão pela Associação Paulista de Críticos de Arte e passava em cerca de 60 países. Hoje, vai ao ar em mais de 80 países e tem um novo longa-metragem em vista para o futuro.
“Peixonauta” colocou a TV Pinguim no mapa do mercado audiovisual internacional. Tanto que a segunda série de sucesso da produtora, “O Show da Luna”, foi ao ar primeiro nos Estados Unidos, alguns meses antes de chegar ao Brasil em 2014. Na série, voltada para crianças em idade pré-escolar, Luna é uma menina curiosa e interessada por ciência que a cada episódio sai com um bloco de notas em busca de respostas para “tudo que é pergunta”, como diz sua canção de abertura. Tanto “Luna” quanto “Peixonauta” foram pensados para poderem ser entendidos e apreciados em qualquer canto do mundo — apesar de um país asiático ter pedido para que Luna não mostrasse as pernas descobertas por uma saia, o que foi negado pela produtora.
Coproduzido pela Discovery, o desenho ultrapassou o britânico “Peppa Pig” em popularidade e terminou o ano passado como líder de audiência no canal, garantindo uma segunda temporada de 26 episódios para este ano. A menina também ganhou as prateleiras e está em roupas, brinquedos, bonecos, artigos de papelaria, ovo de Páscoa, entre outros objetos.
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DO LADO DE LÁ
No mesmo ano em que “Peixonauta” estreava no Discovery Kids, começava o hit nacional do concorrente Cartoon Network, “O Irmão do Jorel”. Lançada em setembro de 2014, já era a animação mais vista do canal entre crianças 4 a 11 anos já no mês seguinte e teve novos episódios anunciados no fim do ano. O desenho começou a ser esboçado em 2003, época em que o criador Juliano Enrico compartilhava fotos constrangedoras de sua família na internet. “Sem exagero. Existe uma tonelada de fotos lindamente constrangedoras de família na minha casa. Tem foto até da família dos outros”, lembra Juliano.
“Com o tempo fui adaptando memórias e transformando aquelas pessoas das fotos (a maioria da minha família) e aquela atmosfera bizarra brasileira dos anos 70, 80 e 90 em personagens e cenários pra quadrinhos e depois série animada de TV.” O desenho mostra o cotidiano de uma família excêntrica, em que o filho mais novo é conhecido apenas como “o irmão do Jorel”, tamanha a popularidade de seu irmão, Jorel.
Em 2009, o Cartoon Network, que já mapeava o mercado nacional de animação, começou a buscar novos criadores e produtores para fazer novas séries. No Fórum Brasil de Televisão, o canal fez um pitching para que pessoas apresentassem suas ideias, vencido por Juliano. “A ideia do pitching era investir num piloto [primeiro episódio de uma série e espécie de teste], e se ficasse bacana, satisfatório, a gente transformaria em série”, conta Daniela Vieira, diretora de conteúdo do Cartoon Network no Brasil. “Juliano era um criador, não tinha produtora nem é sócio de nenhuma até hoje. A gente demorou anos pra desenvolver o piloto. Porque o que ele fez, com a nossa ajuda, foi literalmente viajar o Brasil procurando produtores ideias de animação, voz original — que é um setor bastante novo no Brasil, o de dublagem já existe há muito tempo, mas o de voz original é bem prematuro ainda.”
Juliano acabou escolhendo o Copa Studio para produzir o piloto. Durante a produção, conheceu Andrei Duarte, ilustrador que criou o conceito visual dos cenários (e que dá a voz para o protagonista, o irmão do Jorel), e Vini Wolf, diretor de animação da primeira temporada. “Esse tempo foi muito valioso pra encontrarmos as equipes certa pra transformar aquelas folhas grampeadas com grampeadores enferrujados em uma série de animação pra TV de humor engraçado.” Quando o piloto ficou pronto, Daniela conta que o canal gostou “muito, muito, muito” e deu sinal verde para a produção da série, que começou em 2011.
Segundo Daniela, ter desenhos nacionais sempre foi muito importante para o canal, mesmo antes da Lei da TV Paga. Mas foi só em 2010 que o canal passou a ter uma equipe responsável por conteúdo no Brasil. Hoje, há uma equipe “robusta”: gente para produzir, promover e divulgar as animações, num cardápio bem variado. “A gente tem um misto de personagens que estão enraizados na cultura brasileira, então o Cartoon Network é a casa de ‘Turma da Mônica’ e ‘Sítio do Picapau Amarelo’, e personagens originais, como ‘O Irmão do Jorel’, que tem total aderência ao DNA do Cartoon, mas que tem um saborzinho nacional”, diz Daniela.
Antes da Lei, de 2011, eram quatro as séries nacionais do canal. Hoje são oito, numa lista que inclui ainda “Historietas Assombradas (para Crianças Malcriadas)”, “Gui e Estopa”, “Tromba Trem” e “Carrapato e Catapultas”. Todas, para Daniela, têm uma temática universal e uma veia cômica — fundamental para o canal –, mas elementos com os quais as crianças brasileiras conseguem se identificar. As séries são todas dubladas em espanhol e exibidas no Cartoon em toda América Latina.
MELHORA EXPONENCIAL
Na avaliação de Daniela, nos últimos anos a qualidade dos desenhos brasileiros teve uma melhora exponencial. “Falta muito ainda. Não vou dizer que a gente tem um nível de produção comparado a Estados Unidos, Europa e Ásia, porque a gente não tem. Mas tem um nível excelente”, afirma. Há oito anos, havia uma oferta grande de programas pré-escolares educativos, mas pouca variedade de gêneros, diz ela. “Não tinha série de humor, de ação, que mistura live action com animação. Era muito um gênero só e um público-alvo só. Hoje você encontra uma gama muito variada de projetos.”
O Cartoon Network recebe projetos de muitos criadores com ideias brilhantes, mas com pouca capacitação técnica para desenvolvê-los. É um problema que tanto Celia Catunda quanto Daniela Vieira apontam: não há escolas de animação no Brasil. “Tem muita ideia que precisa ser polida”, diz Daniela. Hoje, inclusive, conta que há aumento de demanda por animações brasileiras e não há produtores que atendam. “Com capacidade de produção e nível de qualidade excelente tem algumas casas que fazem isso. Muito concentradas no eixo São Paulo e Rio, a gente está tentando descobrir casas em outros Estados do país pra trazê-los pro Cartoon. A gente entra em fila indiana. Muitos projetos não estream quando a gente quer porque não dá tempo de produzir.” Mas em sua opinião, nos últimos dez anos o Brasil “fez um avanço absurdo” e no últimos cinco ainda mais. “Deu pra começar a brincar de animação.”
Brincadeira que, segundo Juliano Enrico, é bem trabalhosa. “As maiores dificuldades de se fazer uma série de animação são as inúmeras etapas que precisam começar e acabar com precisão cirúrgica pra não gerar um engavetamento entre os envolvidos e atrasos e tristeza no coração da equipe e de todo o Brasil. Isso tudo até que é divertido. Quando dá certo. Até agora deu certo. Mas é difícil”, diz ele. “É quase uma maratona com umas 50 pessoas correndo juntas acorrentadas umas as outras durante 18 meses. O equilíbrio entre produção e criação mantém essas 50 pessoas correndo loucamente com um propósito.”
Pelo fato de fazer uma série de animação ser um processo demorado — chegando a 24 meses, segundo Daniela –, não haverá produções novas neste ano no Cartoon. “Uma série que receba uma aprovação agora vai pro ar no fim de 2017, comecinho de 2018”, diz. Neste ano, o canal não abriu oportunidades para novos produtores, mas pediu novas temporadas de tudo o que já está no ar, com exceção de “Carrapato e Catapultas”. “A gente prefere criar uma relação longeva, saudável, com produtores que já estão na casa — o que já é bastante, é um volume expressivo de séries”, diz.
Antes da sessão de “Mundo Cão” para jornalistas começar cada um recebeu um papel que pedia: por favor, não deem spoilers para os leitores. Parece um pedido esquisito. Não contar demais de uma história sem aviso e estragar a experiência de quem quer ver um filme é que nem lavar as mãos depois de ir ao banheiro: tem gente que não faz, mas é senso comum. Na coletiva de imprensa, realizada logo depois da exibição emSão Paulo, percebe-se o porquê do panfleto. Quase nenhuma das respostas dadas pela equipe do filme, que estreia na quinta (17), pode ser usada numa reportagem sem que alguma reviravolta da história seja revelada.
Dirigido por Marcos Jorge, de “Estômago” (2007), o filme mostra as repercussões do encontro entre Santana (Babu Santana), funcionário do centro de zoonoses, e Nenê (Lázaro Ramos), que cria cachorros para aterrorizar quem atrapalhar seu negócio de máquinas de jogo em bares. Quando um de seus cachorros escapa e vai parar em uma escola, Santana e seu parceiro capturam o animal e o levam para o centro. Pela lei, se em três dias o dono não aparecer, o cachorro é sacrificado. Mordido na bunda pelo cachorro, o colega de Santana tem pressa para dar o fim no cão assim que o prazo termina, e o animal acaba por morrer minutos antes de Nenê chegar para buscá-lo.
Até então, Santana levava uma vida sossegada com os filhos, João (Vini Carvalho) e Isaura (Thainá Duarte), e a mulher, Dilza (Adriana Esteves), uma evangélica que vende calcinhas sexy — mas não de enfiar na bunda — pelo bairro. Depois de conhecer Nenê e entrar num confronto tenso com ele, acaba a paz. Santana chama o dono do cachorro de animal, e, como vingança, Nenê sequestra João, começando um jogo de gato e rato entre os dois no qual tabuleiro vira algumas vezes. Não dá pra contar mais nada. Como diria Marcos Jorge, é um filme cheio de “truquinhos do diretor”.
A história nasceu de uma obsessão de infância do cineasta pelo homem da carrocinha e de sua vontade de falar sobre amor entre pai e filho. Ainda quando fazia “Estômago”, o filme foi ganhando forma. Não à toa Babu Santana interpreta Santana: quando os dois filmavam juntos o longa de 2007, anos atrás, Marcos pensava em seu protagonista como “um cara bonachão, de coração muito bom”, como Babu.
O papel veio a calhar, diz Babu. “Foi um filme que me confortou. Eu tinha acabado de perder minha mãe, foi uma ação que não permitiu minha cabeça de se desmotivar. Segurou muito minha onda e minha autoestima”, diz ele sobre a experiência. “O Santana foi lindo. É a figura mais humana com quem me deparei. Como na nossa vida, alguma atitude que a gente toma ou alguma coisa em que a gente tropeça pode mudar tudo.” Depois de Babu, foi a vez de Lázaro entrar no projeto. “Eu me senti à vontade pra convidar qualquer ator brasileiro que eu sentisse no nível que eu queria. E o Lázaro foi escolha quase que natural. Ele é um dos maiores atores brasileiros”, afirma o diretor, questionado sobre o fato de seus dois personagens principais serem negros.
“Não escolhi esses dois caras por eles serem negros. Escolhi porque eles são dois dos melhores atores brasileiros. Depois eu fui fundo na questão black, porque desde que eu fiz o roteiro a música estava impregnada no personagem do Santana, que é baterista”, continua o cineasta. “A família tem esse tom de pele lindo que representa fundamentalmente o Brasil. Até nas minhas publicidades — sou diretor de publicidade — tenho o costume de colocar muita gente negra. Acho que isso é um valor. Eu procuro a verdade. Como o Brasil é um país com muita gente misturada, eu sou misturado, quase todos nós somos misturados, acho natural que o cinema reflita isso. É curioso que não faça e que esse seja um filme que de certa forma se diferencie dos outros por esse motivo. Esse não deveria ser um motivo.”
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Para Lázaro, a motivação foi poder abordar um tema em que pensa muito, mas não entende: a vingança pelas próprias mãos. Também diz ter se sentido pronto, pela primeira vez, para interpretar um vilão (com direito a risada maquiavélica e tudo). “Sempre fugi um pouco desse tipo de personagem. E em ‘Mundo Cão’ me senti preparado, achei que era o momento certo pra fazer um personagem muito diferente de mim, muito impulsivo, mais apaixonado por futebol e por cachorro do que por seres humanos. Exatamente o oposto de mim”, diz. “Tentei investigar como o ser humano consegue chegar ao limite por esses dois motivos.”
O amor de Nenê por cachorros e o Palmeiras trouxe duas grandes dificuldades para o diretor. A primeira foi trabalhar com os animais. “Eu me meti numa enrascada nesse filme, porque você começa a escrever o roteiro dizendo ‘cachorro ataca, cachorro é preso, cachorro foge’ e cada uma dessas palavras que você coloca no roteiro dá um trabalho infernal”, lembra. “É muito mais fácil treinar o cachorro pra ser simpático do que pra parecer agressivo sem ser agressivo.” Cada plano tem um truque, diz, como uma corda que manteve o cachorro parado na marca apagada na finalização. Foram 12 diárias com cachorros e 12 noites não dormidas, diz ele. Apesar do trabalho, Marcos é grato aos cães, “verdadeiros atores”, que são citados pelo nome nos créditos finais depois dos atores humanos. “O cachorro é um pouco a metáfora. Eles me permitem passar agressividade sem que gere um filme violento.”
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Segundo desafio: o futebol. Em uma das cenas — que aparece no trailer, então tudo bem falar dela –, Nenê leva João, filho de corintiano, ao estádio para ver o Palmeiras e um plano sequência mostra a sensação do menino de chegar à arquibancada pela primeira vez. Outra cena daquelas que você coloca no roteiro e depois causam dor de cabeça, lembra Marcos. “É o plano mais difícil do filme, um plano sequência feito com duas câmeras separadas, fundidas na finalização. Ali tem 3D, 2D, drone, steadicam”, conta, acrescentando que a cena levou meses para ficar pronta. “[Foi] essa sensação de ir ao estádio pela primeira vez que eu quis passar e quis fazer com plenitude. Inventei um plano que depois me deu muito trabalho pra fazer, mas acho que passa essa energia do estádio.”
Mas futebol é um penduricalho. O tema principal do filme fica claro logo no início, quando os dois protagonistas se enfrentam no centro de zoonoses. Por que Santana não disse pra Nenê que o principal responsável pela morte do cachorro era seu parceiro? Há, em primeiro lugar, um elemento de lealdade à corporação. “Ele se sente ofendido como profissional. O trabalho dele é caçar cachorro. A carrocinha que a gente usou, que nos foi emprestada pelo centro de zoonoses de São Paulo, tinha furos de bala na traseira. Os caras andavam pela cidade e levavam tiros. Os laçadores de cães são uma categoria profissional vituperada. No entanto, nos anos 70 e 80 eles erradicaram a raiva no Brasil. São pessoas que fazem seu trabalho. Não é culpa deles. Eles têm orgulho do trabalho deles, fazem um trabalho útil para a sociedade”, diz. “O Santana toma essas dores porque é da natureza dele. Ele é o cara que toma a frente, que tem a pegada de defender.”
É também mais que isso. Tanto a cena quanto o filme falam sobre a escalada da violência e a dificuldade em identificar onde ela começa — esse sim o ponto central da história. “Uma hora você não sabe mais por quê, você não entende mais por que começou aquilo tudo. O fato é que aconteceu o que aconteceu, não interessa se eu tive ou não tive culpa”, diz Babu. Marcos concorda: “O que se diz é mais importante do que o que originou a discussão. Ontem, na rua, eu vi um guarda e um ciclista brigando fisicamente, numa discussão que começou com um bate-boca e num momento um dos dois pegou um martelo de uma construção. Me lembrou muito essa discussão. Começa por um motivo meio banal, as pessoas dizem coisas erradas e de repente aquilo é mais importante, a falta de paciência. Isso é a violência que a gente vive hoje”.
Uma ameaça, uns super-heróis capazes de enfrentar a ameaça, os socos, pontapés e explosões que acontecem nesse enfrentamento e uma frase espertinha no final. Poderia ser a descrição do trailer de vários filmes de super-heróis — e é. De acordo com Dana Polan, professor do departamento de cinema da Universidade de Nova York, essa é uma das receitas para as prévias de blockbusters de ação. A semelhança entre trailers lançados numa mesma época não é mera coincidência: cada época tem seu tipo. Muita coisa mudou desde o nascimento dos trailers, por volta de cem anos atrás – com as mudanças tecnológicas e socioculturais, transformou-se não só a forma como eles são produzidos e consumidos, como também sua cara.
Segundo Polan, os trailers parecem ter começado por volta do meio da década de 1910 — é difícil precisar a data e definir qual foi o primeiro filme a usar esse tipo de vídeo curto para promover seu lançamento. No início, eram exibidos depois do filme no cinema, e foi daí que nasceu seu nome, já que um dos significados da palavra “trail”, em inglês, é vir em seguida. Os pequenos filmes mostravam alguns trechos importantes do longa, dando ênfase para cenas de ação ou romance, com um aviso de “em breve no cinema”. No início, os trailers serviam como propaganda não só para o filme como também para a indústria cinematográfica. “Eles diziam: ‘Olhem como é dinâmico o mundo dos filmes! Você realmente quer perder isso?’”, diz Polan, lembrando a presença de grandes letreiros e efeitos ópticos que marcavam os trailers até os anos 1950.
Entre os anos 1930 e 1950, as prévias destacavam o elenco. “Enfatizavam muito o nome da estrela e, em segundo lugar, como seu personagem se encaixava no filme sendo promovido. Em outras palavras, não era a trama que era vendida, e sim como a estrela aparecia no filme”, afirma ele. Para Keith Johnston, autor do livro “Coming Soon: Film Trailers and the Selling of Hollywood Technology”, sem edição em português, até 1930 ainda estavam sendo testadas estruturas e diferentes estéticas para os trailers, resultando em vinhetas mais experimentais. Durante os anos 1920, havia três grandes tipos de trailers: os curtos, com menos de um minuto, o título do filme e algumas fotos; os regulares, de um a dois minutos, com o título, animações e uma ou duas cenas; e os de luxo, com dois a três minutos de duração e cenas do filme.
Alexander S. Davis, doutorando do departamento de cinema da Universidade de Nova York, diz que as tendências nos trailers acompanham a evolução da tecnologia no cinema. “Se os trailers são feitos para mostrar o que há de mais único e valioso em um filme, as inovações na tecnologia (uso de widescreen, 3D, efeitos especiais etc.) devem impactar o modo como eles são construídos”, diz. “Com o widescreen os filmes passaram a ser um espetáculo de imagem e os trailers poderiam focar nas grandes paisagens em vez de na narrativa ou no filme em si. Quando essa tecnologia envelhece, os trailers voltam a ser propagandas da narrativa.”
[citacao credito=”Alexander S. Davis” ]Se os trailers são feitos para mostrar o que há de mais único e valioso em um filme, as inovações na tecnologia (uso de widescreen, 3D, efeitos especiais etc.) devem impactar o modo como eles são construídos[/citacao]
Johnston dá outro exemplo. Com a chegada do som ao cinema, começou uma nova tendência, com um mestre de cerimônias apresentando o filme, caso do trailer de “The Jazz Singer”, de 1927. Quando ficou comum ter som no filme e a edição de sons ficou mais sofisticada, aumentou o balanço entre letreiros, cenas, música e narração — o que ficou conhecido como o estilo “clássico” dos trailers.
“Não estou dizendo que a tecnologia ajuda o trailer a evoluir — porque isso não é uma questão de evolução, e sim de tentativa e erro por parte da indústria. Mas há momentos claros em que novas tecnologias forçam ou encorajam produtores de trailers a experimentar”, diz Johnston. Até os anos 1960, o monopólio da produção de trailers estava nas mãos da National Screen Service, que produzia as prévias de modo industrial, com uma fórmula um pouco parecida. Letreiros que contavam um pouco da história e faziam promessas como “se você busca aventura, vai encontrar neste filme”, um narrador, algumas cenas não muito reveladoras do filme e apresentação do elenco e personagens — como o caso de “Casablanca”.
AGILIDADE
Nos anos 1960, começaram a aparecer outras empresas, como a Kaleidoscope, mais dispostas a experimentar. Andrew J. Kuehn, que fundou a companhia em 1968, produziu mais de mil trailers, incluindo os de “Tubarão”, “E.T” e “Star Wars”. Seus trailers eram mais ágeis, ainda com a presença de narração — mas narradores com mais personalidade –, bastante música e que contavam a história por meio de cenas, abrindo mão dos letreiros explicativos. Em uma entrevista citada pela revista Varietyem seu obituário, Kuehn afirmou: “Um trailer tem um objetivo: levar o público das suas casas para uma sala de cinema. Para fazer isso você tem que gerar um senso de urgência. No processo de chegar a esse ritmo avançamos o estilo de edição. Realmente forçamos os limites do que o público poderia aceitar”.
Com o sucesso de franquias e blockbusters como “Star Wars”, os estúdios passaram a querer ter mais controle sobre seus trailers, afirma Polan. O lançamento de um filme passou a significar também a venda de outros produtos: livros, quadrinhos, brinquedos, e depois vídeos. “A partir dos anos 1970 cada vez mais a qualidade e a cara dos trailers passou a ficar nas mãos dos estúdios e seus diretores, para que o trailer fizesse parte do mesmo universo narrativo que o filme”, diz ele.
Populares anos atrás, as narrações viraram tão clichê que hoje são mais usadas por comédias que querem tirar um sarro — ou por vídeos engraçadinhos como os do Honest Trailers, que mostrariam “a realidade” do filme. “Agora estamos num momento em que montagens estão mais populares, com menos coisas escritas e narrações. Mas é provável que isso mude de novo, com trailers como os de ‘Magic Mike XXL’ e ‘Independence Day: Ressurgence’ mostrando que letreiros estão crescendo em popularidade novamente”, palpita Johnston.
ERA DA INTERNET
A internet representou outra grande mudança no universo dos trailers. “Ela definitivamente mudou a forma como consumimos trailers. Agora há múltiplos trailers lançados para construir interesse, teasers lançados muito antes do filme para garantir que ele estará na cabeça das pessoas desde já, e trailers que podem mostrar violência, sexo e palavrões que cinemas não podem, prometendo aos espectadores um reflexo mais preciso do filme”, diz Davis. Para ele, embora a internet não tenha mudado muito a cara dos trailers, agora são produzidos vídeos especificamente para o consumo na internet, perfeitos para serem pausados e analisados.
Quando os trailers só existiam na sala de cinema, eram um aviso de que o lançamento do filme estava próximo. Na internet, divulgar um trailer novo não tem necessariamente como objetivo principal tirar alguém de sua casa para comprar um ingresso. É o caso do sétimo episódio de “Star Wars”: muita gente já queria ver o filme quando ele foi anunciado. O primeiro trailer não convenceu as pessoas a ir ao cinema, só as deixou com mais vontade de ir.
“Muitos blockbusters lançam trailers um ano antes do filme. O trailer não faz com que ninguém fique pronto pra ir no cinema no ano seguinte, mas aumenta o reconhecimento e a antecipação e torna o filme uma parte da conversa cultural que as pessoas têm. Provavelmente os filmes menores, independentes, se beneficiam mais dos trailers [como estratégia para atrair público]”, diz Dana Polan. “Trailers são ferramentas inestimáveis para contar as pessoas que seu filme existe e merece ser visto, mas são de alguma forma supérfluos na era da internet, em que a expectativa é cultivada pela discussão online”, concorda Alexander S. Davis.
Já vemos na internet várias versões de um mesmo trailer — teaser, versão internacional, trailer 1, trailer 2 –, mas segundo o livro “Promotional Screen Industries”, de Paul Grainge e Cathy Johnson, o número é muito maior e mais de 200 versões são feitas para um blockbuster moderno. Os estúdios encomendam diversas opções e as versões que chegamos a ver compilam os trechos favoritos do estúdio. Como blockbusters dependem muito do fim de semana de estreia, a expectativa do público tem que ser a maior possível, e por isso diferentes versões de um trailer, com uma ou outra cena diferente, são lançadas. Cada vídeo novo contribui para os comentários na internet — gerando muita propaganda gratuita, segundo Keith Johnston.
De acordo com uma de suas pesquisas, mais de 60% das pessoas têm a internet como fonte primária de trailers. “O que é interessante é que essas pessoas estavam quase sempre procurando um trailer específico — não apenas vendo o que estava pra estrear — ou respondendo a recomendações que viram nas redes sociais. As pessoas veem os trailers como parte de suas interações sociais, compartilhando e discutindo, querendo estar atualizadas e também mostrando suas preferências”, conta.
SPOILER?
Com tanta quantidade de informações sobre um filme disponível na internet anos antes de seu lançamento, os trailers já não precisam apresentar personagens, atores e elementos básicos da trama como as prévias de antigamente. Uma reclamação comum hoje, aliás, é que os trailers revelam demais da história e estragam as surpresas do filme. Tanto que Zack Snyder, diretor de “Batman v. Superman” teve que garantir aos fãs que seu trailer não contou a trama toda. “É legal que eles achem que é demais e aprecio o fato de que as pessoas não querem saber, mas tem muita coisa que eles não sabem. Muito do filme não está ano trailer”, disse ele à MTV.
Segundo Polan, um produtor de trailers foi a uma aula de sua mulher, professora de publicidade, e disse para um estudante que é “óbvio que trailers revelam muito do enredo”. “Precisamos fazer com que você queira ir ver o filme. Damos muitas informações, mas sabemos que isso vai fazer com que você vá ao cinema. Se você comprar seu ingresso e sair achando que tudo estava no trailer a gente não liga. Nosso objetivo é levar você à sala de cinema, não o que acontece depois que você vê o filme”, disse ele.
Ele vai além e diz que vivemos uma cultura de repetições e que estamos dispostos a ver tudo mais de uma vez. Assim, tanto faz se já sabemos a história toda do filme ou não. Esse seria o “efeito spoiler”, segundo Davis. Segundo uma teoria psicológica, as pessoas tendem a gostar mais de um filme ou de uma série de TV se sabem o que vai acontecer. “Fazendo com que você saiba demais sobre um filme antes de vê-lo, um estúdio pode fazer com que você goste mais dele, o que vai te levar a recomendá-lo para seus amigos. Mas é incrivelmente especulativo, apesar de ser uma teoria que eu adoro”, afirma ele.
[citacao credito=”Keith Johnston” ]O desafio é: o que é informação demais? Isso varia drasticamente de pessoa pra pessoa — então como você decide? Provavelmente você opta por algo no meio do caminho[/citacao]
Além disso, ressalta Johnston, não dá para saber se um trailer revelou demais antes de ver o filme pronto. “O clipe dos velociraptors correndo ao lado do Chris Pratt em ‘Jurassic World’ — eu vi aquilo no trailer e em outros vídeos sobre o filme. Estragou a experiência pra mim? Não, porque é legal visualmente, mas o filme não é sobre isso”, opina. “O desafio é: o que é informação demais? Isso varia drasticamente de pessoa pra pessoa — então como você decide? Provavelmente você opta por algo no meio do caminho, o que significa que você vai irritar algumas pessoas por mostrar demais e outras por não contar o suficiente.”
Embora exista uma fundação que guarda 60 mil trailers — disponíveis para consulta presencial em Los Angeles, na coleção do Packard Humanities Institute –, Johnston ressalta que eles não estão na maior parte dos arquivos de filme, e que quando estão não são prioridade para restauração. “É uma perda real para a história do cinema. Há lacunas que nunca serão preenchidas, o que reduz a possibilidade de mostrar o verdadeiro escopo dos trailers que existiram nos últimos cem anos”, diz ele. “Há mais pesquisa para se fazer sobre trailers? Com certeza. Só alcançamos a superfície.”
Existe uma diferença entre filmes ruins e filmes chatos. Dá para se divertir num domingo à noite vendo uma comédia ruim na televisão, por exemplo. Talvez você não recomende pra ninguém ou prefira dizer que passou o fim de semana vendo “O Poderoso Chefão” caso te perguntem, mas não quer dizer que tenha sido chato. E existem filmes que são bons, mas não muito legais. Você pode dizer orgulhoso numa roda de amigos que viu, gostou, mas no fundo sabe que não veria de novo. “Tudo Vai Ficar Bem”, de Wim Wenders, é um dos infelizes filmes que combinam as duas características.
É mais uma história de um homem jovem, branco, em crise. No filme, que estreou na quinta (10), James Franco é Tomas, um escritor com bloqueio criativo, sofrendo para escrever duas páginas depois de ter lançado dois romances. O relacionamento com Sara (Rachel McAdams) também vai mal, mas não sabemos muito bem o porquê. A questão, diz ele, é que eles têm planos incompatíveis: ela quer ter filhos e ele quer escrever. A verdade é que ele é, vamos usar um eufemismo, difícil. Enquanto ela quer investir no relacionamento ele ignora seus telefonemas e qualquer tentativa de aproximação. Quando ela o pressiona, ele diz platitudes (como seu pai, mais tarde, aponta sabiamente) do estilo “não é você, sou eu”.
Voltando para casa um dia num dia com neve, Tomas não vê duas crianças que cruzam a estrada num trenó e atropela uma delas. A mãe dos meninos (Charlotte Gainsbourg) não o culpa: trata-se de um acidente, ela diz, a culpa foi dela que não colocou as crianças para dentro de casa porque não conseguia largar um livro. Depois disso, não há grandes acontecimentos. Tomas não consegue se esquecer do acidente, ele entra numa espiral rumo ao fundo do poço, termina o namoro, mas sua carreira decola (em um momento, o acusam de ter usado os acontecimentos daquele dia fatídico como inspiração).
Rachel McAdams, coitada, não tem muito com o que trabalhar e faz o melhor possível com o papel, apesar de ter um sotaque esquisitíssimo. James Franco mal consegue manter os olhos abertos, parecendo estar eternamente chapado. Charlotte Gainsbourg chora, reza ou murmura o tempo todo. Mas o pior é a edição: depois de uma cena (que acrescenta pouco, diga-se de passagem) de conversa entre Tomas e o pai, por exemplo, pode vir uma da personagem de Charlotte (tão mal desenvolvida que tive que olhar no IMDb seu nome: Kate) passeando com seu cachorro. Por que motivo? Não sabemos. É uma sucessão de cenas aleatórias e as transições são tão bruscas, com tanto fade-out, que em diversos momentos você acha que o filme acabou.
Vários saltos de tempo são dados, também sem sutileza. Um letreiro avisa que passaram-se dois anos, depois quatro, depois mais quatro. Mas em mais de uma década de história nada de interessante acontece, Tomas continua o mesmo, só ganha uma nova namorada — mais uma personagem fraca, que pelo menos tem uma filha interessante. Mais para o final parece que a história vai virar um suspense (a trilha sonora sinistra ajuda a passar essa impressão), mas isso também não evolui muito. Embora o filme tenha uma cara própria, o que é bom, e uma premissa que poderia ser interessante, ele nunca deslancha. Nem toda história de homem em crise é boa. Nem todo homem “difícil” é interessante ou profundo. Às vezes ele é só chato mesmo.
Bem antes de “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu, ser indicado ao Oscar, uma animação brasileira disputava outro importante título internacional. Pouco mais de vinte anos atrás, “Cassiopéia”, de Clóvis Vieira, brigava com “Toy Story” pelo reconhecimento de primeira animação 100% digital. O filme começou a ser produzido antes e com bem menos recursos, mas foi lançado alguns meses depois do longa da Disney. Mesmo assim, há uma controvérsia em torno da primazia de “Toy Story”, já que o longa usou escaneamento de bonecos modelados em argila, enquanto o filme brasileiro foi feito completamente no computador, sem usar imagens ou modelos feito fora dele.
Depois do lançamento, os dois filmes seguiram trajetórias completamente diferentes: enquanto “Toy Story”, lançado em dezembro de 1995, virou uma franquia de sucesso pelo mundo, com um quarto filme em fase de pré-produção, “Cassiopéia”, que saiu em 1996, encontrou dificuldades na distribuição, não conseguiu ser exibido no exterior e teve sua continuação cancelada por falta de dinheiro. Hoje em dia pouco se fala do filme brasileiro pioneiro, que pode ser visto inteiramente no YouTube, com a aprovação do diretor, que trabalha agora no filme espírita “Deixe-me Viver”. Até imagens do filme são escassas.
Mas um lugar não se esqueceu de “Cassiopéia”. Duas décadas depois de seu lançamento, um cartaz de “Cassiopéia” ainda enfeita um dos salões do restaurante Nello’s, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Foi por ali que o filme começou a tomar forma, quando Clóvis Vieira conheceu Nello De Rossi, dono do restaurante e, na época, também da produtora NDR. Nello era um ator italiano que havia se mudado para o Brasil em 1973 e que, mesmo com um restaurante de sucesso, não conseguia se afastar do cinema, sua grande paixão. “Quando papai abriu a produtora, foi um êxodo do restaurante. Todo mundo foi trabalhar lá”, lembra Patricia De Rossi, filha de Nello, numa conversa no restaurante. “Minha mãe dizia que aqui era o pão de cada dia. A gente trabalhava de dia lá e de noite ajudava aqui. Todo o mundo preferia trabalhar na produtora.”
Clóvis, que animava filmes de publicidade e fazia vinhetas desde os anos 1970, conheceu Nello nos anos 1980, quando o italiano produzia o filme “Jeitosa, um Assunto Muito Particular”, com Lúcia Veríssimo e John Herbert, cujo cartaz também enfeita o restaurante. “Meu estúdio também prestava serviços para longas, fazia coisas como efeitos especiais e letreiros de apresentação. O Nello gostou do meu projeto do ‘Pifft’ e queria produzir, mas naquela época era muito caro e não foi para frente”, conta Clóvis, referindo-se ao seu projeto de animação sobre um morcego chamado Pifft, que acabou não virando filme. “Em 1991 sugeri substituir o projeto do ‘Pifft’ pelo ‘Cassiopéia’, devido à diminuição dos custos. A introdução da imagem digital viria a nos beneficiar.”
Segundo Patricia, que foi assistente de montagem de “Cassiopéia”, Nello se apaixonou pela nova história de Clóvis — ambientada num planeta na constelação de Cassiopéia, que vive em paz até a chegada de invasores que sugam sua energia vital — apesar de não entender nada de animação ou computadores. “Durante a produção ele dizia: ‘Nossa senhora, eu gostei da ideia, apostei no Clóvis, mas nunca mais vou me envolver numa coisa que eu não sei’.” Era uma tecnologia nova e que Nello, morto em 2013, não entendia. Mas esse nem foi o maior dos problemas. No making of do filme, também disponível no YouTube, ele diz ter feito uma coisa que nunca se deve fazer no cinema: começar um filme sem saber como financiar o filme até o último fotograma.
Quando Nello entrou no projeto, “Cassiopéia” era só um embrião, ainda sem roteiro. Foi ele quem apresentou a Clóvis a roteirista Robin Geld, que se juntou a uma equipe formada por Aloisio de Castro e José Feliciano. “Trocávamos ideias. O filme foi sendo feito sem roteiro. Na medida que avançávamos, criávamos as situações, como nas novelas. Um dia a Robin me disse: ‘Sonhei com uma lua, o filme precisa ter uma lua’. Então criei a cena da Lua que foi o desfecho do filme”, diz o diretor.
INVESTIMENTO E ROUBO
A produção começou com um investimento do próprio Nello em 1992. No ano seguinte, foi aprovada a Lei do Audiovisual, que dá incentivos fiscais para quem direciona recursos a projetos audiovisuais, e com ela, conta Clóvis, a equipe conseguiu captar por volta de R$ 700 mil. O filme todo foi feito no Brasil, enviado para os Estados Unidos apenas para ser transposto para película cinematográfica no laboratório DuArt, em Nova York. Por volta de seis meses antes da finalização do filme, houve uma invasão na produtora e alguns CDs com o trabalho de “Cassiopéia” foram roubados. “Isso atrasou o lançamento”, lembra Patrícia. Até hoje não se sabe direito o que aconteceu. “Foi proposital pra Disney dizer que lançou [um filme 100% digital] antes. Os americanos gostam de fazer primeiro. A gente acredita que foi uma sabotagem intencional”, diz ela.
[olho]”A gente acredita que foi uma sabotagem intencional”[/olho]
As dificuldades não acabaram por aí. Depois de pronto, conta Patricia, foi complicado arrumar uma distribuidora para levar o filme às salas de cinema. “É a segunda parte do drama. ‘Cassiopéia’ foi lançado pela PlayArte na época da Olimpíada. Queimou nossa primeira semana, porque o foco era totalmente a Olimpíada. O filme morre”, afirma. “E era um filme importante, o primeiro todo digitalizado no Brasil, e não deram a atenção necessária. A distribuição foi ruim e, por consequência, a repercussão foi morosa, triste.” Clóvis concorda: “O filme foi mal lançado, no dia da abertura da Olimpíada de Atlanta. Os distribuidores queimaram o filme. Mas em vídeo foi bem lançado, havia lista de espera nas locadoras”, diz. Por causa da distribuidora, diz, “Toy Story” chegou aos cinemas antes mesmo tendo começado a ser produzido depois.
Ainda que tenha sido lançado depois de “Toy Story”, há quem diga que “Cassiopéia” é o primeiro filme totalmente digital por não ter feito o escaneamento dos bonecos. Clóvis não liga muito para o título ou para a polêmica. “Isso não tem muita importância. O que vale no mundo é o marketing e a data do lançamento nos cinemas”, diz o diretor. “Contudo, nós saímos na frente. A Disney soube que estávamos fazendo um filme totalmente digital. Quando perceberam que estávamos na frente, correram para a Pixar, de Steve Jobs, que tinha projetos na área. Então a Disney jogou US$ 30 milhões no colo de Jobs para terminar antes que nós. Pessoalmente, fico feliz em fazer a Disney e Jobs terem corrido atrás de nós por algum tempo. Hoje perdemos de mil a zero. Mas essa disputa fez bem a ambas as partes.”
NO EXTERIOR
Fora do Brasil, “Cassiopéia” também não emplacou. “Conseguimos distribuição nos Estados Unidos, mas precisaríamos investir na dublagem em inglês. Fomos à Ancine pedir autorização para captar R$ 400 mil. Negaram dizendo que o Nello não era naturalizado brasileiro, só residente. Ele ficou desgostoso depois de tanto fazer pelo cinema brasileiro. Então desistimos do projeto”, diz Clóvis.
[olho]”Durmo feliz sabendo que um dia rivalizei com Steve Jobs e a Disney”[/olho]
Patricia diz que Nello esperava ganhar dinheiro com produtos relacionados a “Cassiopéia” — brinquedos, roupas, mochilas e outras mercadorias com a imagem de seus personagens — e que não quis que ceder esse lucro de licenciamento a distribuidoras estrangeiras que manifestaram interesse no filme. “Se alguém investe no filme, tem que ter a certeza de que pode fazer o merchandising e ganhar pela venda”, diz ela. “Todo mundo conversava com o pai pra ele ser mais flexível, mas ele não queria abrir mão da possibilidade do lucro do merchandising. Ele não entendia que no primeiro filme ele tinha que ceder. No segundo filme, se o primeiro for um sucesso, você pode ditar regras. Isso papai não entendeu.”
Uma continuação de “Cassiopéia” chegou a ser anunciada, mas por falta de financiamento o projeto foi engavetado. Depois disso, a NDR fechou as portas. “Foi nossa última produção. Mas papai viveu com o cinema dentro dele a vida toda”, diz Patricia. Apesar dos pesares, ela conta que Nello ficou feliz com o resultado. Clóvis segue a mesma linha: diz que sempre assiste ao filme e que não mudaria nada em toda sua trajetória. “Tínhamos limitações técnicas, pois a tecnologia de hardware e software estava nos primórdios. Tiramos leite de pedra. Fizemos o máximo que alguém no Brasil faria nas mesmas condições”, afirma. “Não rendeu dinheiro, mas durmo feliz sabendo que um dia rivalizei com Steve Jobs e a Disney.”
Em tempos em que Donald Trump é o favorito a disputar a presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano, “House of Cards” não parece tão novelona assim. Sim, Frank Underwood, presidente na série, já matou duas pessoas, colocou um jornalista na cadeia por cyberterrrorismo e derrubou um presidente com uma facilidade impressionante. Pelo menos nas primárias disputadas por Frank, diferente da realidade, ninguém mencionou o tamanho do seu pênis e pregar a supremacia branca é algo que pode destruir uma candidatura. Mas “House of Cards” abraça cada vez mais a ideia de que é sim uma novelona, com diálogos cheios de frases de efeito, vilões maquiavélicos e reviravoltas. Se você tem uma boa história e bons personagens, como é o caso desta quarta temporada, isso não é um problema.
Na terceira temporada, “House of Cards” deu uma cambaleada. Nos dois primeiros anos, a trama girava em torno da escalada de Frank Underwood — preterido no cargo de Secretário de Estado e com sangue nos olhos –, que passou de deputado a presidente. Na terceira, com o objetivo inicial atingido, o panorama mudou um pouco. Frank tentou emplacar um projeto pouco popular para aumentar os empregos reduzindo programas de governo e se envolveu em questões diplomáticas com a Rússia, governada por um presidente que lembra bastante Putin. Enquanto isso, o braço-direito de Frank, Doug, passou a temporada no fundo do poço, recuperando-se lentamente de uma tentativa de assassinato. As histórias novas não engrenaram, a série só esquentou no final e deu saudades das primeiras temporadas.
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Não é o caso dos episódios novos, que estrearam na sexta (4). As primárias são bem mais interessantes que o dia a dia de Frank como presidente e ele é muito melhor quando colocado contra a parede. Na quarta temporada, os desafios vêm de vários lados: Lucas, o repórter que Frank colocou na cadeia, é libertado depois de ajudar o governo numa investigação; seu ex-chefe, Tom Hammerschmidt, começa a investigar Frank por conta própria; Claire, mulher de Frank, impõe condições difíceis para ajudá-lo nas eleições; Heather Dunbar continua no páreo para disputar a presidência e o candidato republicano e Will Conway faz bastante pressão sobre os Underwood.
Ajuda o fato de vermos mais da vida dos Conway fora da relação com Frank — Tom Yates, escritor contratado para contar a história do casal na terceira temporada, por exemplo, foi mal construído desde o início e é difícil ligar pra ele até hoje. Os novos episódios deixam de lado alguns velhos conhecidos, como Jackie e Remy, mas os novos personagens — como a complicada mãe de Claire — são melhores que os que apareceram no ano passado.
SURREALISMO
Desde que Frank cometeu o primeiro assassinato com as próprias mãos, lá no primeiro ano, caiu um pouco a aura de “realidade” da série. Quando ele matou uma jornalista em público, numa estação de metrô lotada, a história ficou mais inverossímil ainda. Mas é justamente nesses momentos que a série tem seus pontos altos: não quando tenta ser séria e falar de política externa, não quando quer ser um retrato dos bastidores da política americana, mas quando encurrala Frank e Claire (Kevin Spacey e Robin Wright, que seguraram as pontas mesmo na terceira temporada) e os força a buscar uma saída, por mais louca ou improvável que seja — até porque está difícil competir com a realidade das primárias americanas.
Quando os desafios que eles enfrentam parecem intransponíveis e os adversários dos Underwood estão à altura (a ética Heather Dunbar, que apareceu na temporada anterior, não é), é difícil parar de assistir a “House of Cards”. Não porque é um grande drama político, mas porque é uma novela das boas. E isso a quarta temporada — com menos tramas paralelas, mais focada na busca do casal pela indicação à presidência, mas ainda totalmente maluca — entrega.
Fernando Cavalcanti era o fotógrafo plantonista da madrugada no jornal Notícias Populares na noite de 2 de março de 1996, um sábado. Parte do trabalho envolvia ouvir a frequência da polícia num rádio e monitorar os crimes que aconteciam no período, para ir atrás daquilo que o jornal queria documentar. Ao ouvir um trecho de uma conversa, Fernando ligou para a delegacia em busca de informações sobre uma ocorrência e ficou sabendo pelo policial de um outro caso que desconhecia: um avião havia caído na serra da Cantareira. As informações eram poucas, mas com um repórter e um motorista, Fernando foi até o local. No caminho, ouviu o primeiro rumor de que os passageiros eram os membros da banda Mamonas Assassinas.
Naquela noite, 20 anos atrás, Fernando foi o primeiro fotógrafo a chegar aos destroços e a fazer imagens dos corpos dos integrantes da banda, que estamparam a capa do NP, que circulou entre 1963 e 2001. Com fama de jornal “espreme que sai sangue” e manchetes surreais, o NP já tinha publicado imagens de mortos, mais sangrentas que a dos Mamonas, em sua capa. Em 1992, por exemplo, colocou na primeira página a primeira foto dos mortos no Carandiru, com uma foto de corpos enfileirados ocupando toda a metade superior da capa. No caso dos Mamonas, porém, o interesse do público foi maior. A tiragem do jornal naquele dia foi recorde, lembra Fernando: 250 mil exemplares foram às bancas com a manchete “queda de avião mata a banda mais famosa do Brasil”.
Com letras bem-humoradas e figurinos variados, cheios de fantasias, a banda tinha estourado no ano anterior e lançado apenas um disco, com o nome da banda e músicas como “Robocop Gay”, “Vira-Vira” e “Pelados em Santos”. À época, o álbum tinha vendido mais de 1,75 milhão de cópias — o recordista do ano — e era sucesso principalmente entre as crianças. No auge, o grupo formado por músicos de 20 e poucos anos começava a ficar conhecido fora do Brasil e tinha viagem marcada para Portugal.
A banda, formada por Dinho, 24, Bento Hinoto, 25, Júlio Rasec, 28, Samuel Reoli, 22, e Sérgio Reoli, 26, voltava para São Paulo de um show no estádio Mané Garrincha, em Brasília. O avião fez o último contato com o aeroporto de Guarulhos às 23h20 e, depois de receber autorização para pousar, arremeteu. Segundo investigação, uma manobra arriscada do piloto e o desrespeito às normas de segurança da aviação causaram o acidente, que matou nove pessoas. O enterro, realizado em Guarulhos no dia 5 de março, reuniu 100 mil pessoas.
[olho]A tiragem do jornal naquele dia foi recorde: 250 mil exemplares foram às bancas[/olho]
Hoje com 43 anos, Fernando relembra em seu apartamento, com quadros de algumas de suas principais fotos e capas de jornal penduradas na parede, a noite do acidente. As imagens dos Mamonas estão numa caixa cheia de negativos, fotos soltas e álbuns com outras imagens impressionantes — mães reconhecendo corpos de filhos, famílias passando ao lado de cadáveres sem olhar para eles, crianças queimadas, cabeças cravejadas de balas. No NP, onde trabalhou por cerca de oito meses, fazia todo o tipo de pauta e já tinha visto muitos cadáveres, de todos os tipos, antes de ver os Mamonas. “Vi mais mortos naqueles oito meses do que as pessoas veem numa vida. Quantos corpos você já viu? Uns dez?”, pergunta.
Chegando ao local do acidente, um grupo de repórteres já estava a postos, sem acesso à área onde seriam feitas as buscas por corpos. Ainda era noite e o avião no qual os Mamonas estavam tinha caído no meio da mata. Todos esperavam até que, já com a luz do dia, chegou um helicóptero da Globo, cuja equipe fez um acordo com a equipe de busca: a emissora emprestaria o helicóptero se pudesse ter acesso às imagens do acidente em primeira mão. Formou-se um grupo para acessar o local e Fernando, que estava escondido no mato, tirou o colete que o identificava como fotógrafo e se infiltrou na equipe de resgate, seguindo atrás deles, com apenas uma lente e — o que descobriu chegando lá — um filme só, com 36 poses.
Depois de um tempo vendo cadáveres, diz ele, o choque com esse tipo de imagem diminui. No início tudo tem mais impacto, mas com o passar do tempo você se habitua a ver o sangue e consegue se desligar. E é diferente ver uma imagem através da câmera, que media a realidade, ressalta. “Se me perguntam qual a cor da camiseta do morto depois eu não me lembro, tenho que ver a foto”, exemplifica. O que dói de verdade é ver o sofrimento dos familiares. O corpo, no fim das contas, é só um corpo, de alguém que já se foi.
[olho]A Globo fez um acordo com a equipe de busca: a emissora emprestaria o helicóptero se pudesse ter acesso às imagens do acidente em primeira mão[/olho]
O que viu ali foram destroços do avião, equipamentos com o logo dos Mamonas e os corpos — encontrados a partir das 5h45 — em diferentes estados. Não dava, por exemplo, para reconhecer o vocalista, Dinho, pelo rosto — só um pedaço do seu maxilar permaneceu ligado ao tronco. Uma das imagens de que Fernando se lembra até hoje é a dos corpos embalados sendo içados por helicópteros da polícia, já que era impossível pousar no local.
Assim que a Globo concluiu sua matéria, todos os jornalistas foram liberados para chegar ao local e então Fernando teve acesso a mais filme — um motoboy do jornal veio pegar as primeiras imagens para levá-las ao jornal, já que na época não era possível mandá-las do local. Na hora, conta ele, você não sente que está fazendo uma cobertura importante, não pensa na importâncias das fotografias ou na relevância do acontecimento. Você simplesmente faz as fotos.
A ficha de que todos os integrantes de um dos grupos mais populares do momento tinham morrido num acidente de avião caiu quando ele chegou em casa para um almoço de domingo com a família, em que seus primos estavam chorando. Chegando lá, também se tocou de algo que tinha passado despercebido. Para o trabalho, os fotógrafos do NP usavam roupas escuras, já que frequentavam favelas e cenas de crimes e era melhor ser o mais discreto possível. Umas duas semanas antes do acidente, Fernando tinha fotografado os Mamonas num show e tinha ganhado uma camiseta dos integrantes, toda preta com um escrito que dizia “Mamonas”. Naquela noite, ele estava vestindo aquela camiseta, com outra blusa por cima, e não tinha notado. A sessão de fotos com a banda foi rápida, diz, mas ele se lembra que os músicos eram bem disponíveis e topavam fazer de tudo — estilo “jogar o Dinho pra cima”.
[olho]Uma vez que você entrega as fotos para os editores do jornal, você não tem noção do que vai acontecer com elas[/olho]
Uma vez que você entrega as fotos para os editores do jornal, você não tem noção do que vai acontecer com elas, diz ele. Não sabia, então, que as fotos dos corpos dos Mamonas iriam parar na capa, nem a dimensão que isso teria. A curiosidade do público foi tão grande que mesmo com a tiragem recorde do NP houve gente que não conseguiu ver as fotos, que mais tarde iriam parar na internet. O jornal organizou em sua redação uma exposição com as imagens, tão popular que os seguranças tiveram de colocar um fim na fila e impedir mais pessoas de entrar. Fernando recebeu propostas para vender as fotos originais para pessoas interessadas em revendê-las, mas negou.
Alguns meses depois de tirar as fotos dos Mamonas, Fernando, jornalista de formação, foi para a Inglaterra, onde passou quase sete anos. Lá conseguiu seu primeiro emprego no jornal semanal Sunday Times também trabalhando numa cobertura de uma morte de uma figura pública. Quando chegou em Londres para fazer um curso, ligou para o jornal atrás de uma oportunidade e, depois de mostrar o portfólio cheio de imagens de impacto, foi chamado para uma equipe de 30 fotógrafos que trabalhariam para o jornal cobrindo o funeral da princesa Diana, morta num acidente de carro. A foto que publicou no dia hoje ocupa uma das caixas em seu apartamento, assim como as fotos dos destroços do acidente dos Mamonas.
E num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles. Jó 1:6
A primeira cena de “A Bruxa” mostra um pai de família discutindo, de forma ríspida, com os sacerdotes de uma vila do século 17. William (Ralph Ineson) acredita que todos aqueles presentes na vila não temem e oram a Deus o suficiente. É preciso mais. Para William, há algo muito latente: o Bem e o Mal existem em sua forma mais pura. E, mesmo com séculos de distância, o filme de estreia do diretor Robert Eggers é capaz de causar a mesma crença no espectador.
Após o debate, a família deixa a vila e decide criar sua própria fazenda – e seu próprio mundo – próxima a uma floresta. William e sua esposa, Katherine (Kate Dickie), levam os cinco filhos para uma nova vida, uma vida calvinista. A filha mais velha, Thomasin (Anya Taylor-Joy), com feições angelicais, fica encarregada de cuidar do irmão mais novo, um bebê que, durante uma brincadeira boba, some de forma repentina. Daí em diante, a vida da família em sua pequenina fazenda se transforma. William e todos passam a ser uma espécie de Jó, da Bíblia, mas em uma versão em que todos pecam e, por consequência, perdem a batalha para Satanás.
Se hoje vivemos em tempos em que tudo é racionalizado e cientificamente esmiuçado, como entender e ter empatia com os sentimentos e reações que um povo sentia perante ameaças externas e, possivelmente, espirituais? Se hoje há teorias de que comidas estragadas causaram delírios em Salem na época das famosas queimas das bruxas, e se não damos mais espaço ao que pode não ser terreno, como mostrar o medo e o terror de quem acreditava, sem sombra de dúvida, que o Bem e o Mal disputavam o espaço na Terra?
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O esforço de Eggers e da produção do filme em nos transportar para a região da Nova Inglaterra, nos EUA, no século 17 é impressionante. O diretor diz ter estudado diversas publicações da época e criado uma gigantesca paranoia para conseguir criar uma pequena fazenda de época em seus mínimos detalhes – do figurino ao jeito em que as plantações eram feitas, passando pela linguagem da época e a iluminação à base de luz de velas. Tal esforço poderia ser apenas um TOC desenfreado de toda a produção, mas é extremamente necessário para acreditarmos e nos conectarmos com o que acontece durante todo o filme. Com uma paleta de cores escura e fria e bom uso da iluminação natural, Eggers criou a sensação de estarmos dentro de um quadro de Goya – fascinante, mas ao mesmo tempo assustador.
Além do trabalho de figurino e cenário, “A Bruxa” atinge isso com sua trilha sonora. Composta por Mark Kovern e executada com instrumentos incomuns, como a Nyckelharpa e o Waterphone, a música do filme cria a tensão necessária, com seus crescendos acompanhados de bons cortes, e é tão poderosa que faz com que o close em animais, como um coelho e uma cabra, crie um medo e uma tensão palpável, real, temerosa.
A construção desse cenário faz com que “A Bruxa” não seja um filme de terror da escola mais popular nos tempos atuais. Ele não irá lhe dar sustos repentinos, nem abusar de cortes frenéticos para causa confusão. O filme mora mais próximo de filmes como “O Iluminado”, mexendo com o imaginário do espectador de uma forma cruel e bem alimentada. Isso faz com que, ao aproximar-se da conclusão, em que o Mal toma forma e mostra seu verdadeiro plano, mesmo nós, racionais e céticos seres do século 21, consigamos acreditar que, sim, o mundo nada mais do que uma eterna batalha entre a luz e a escuridão.
O que mais impressionou Adriana foi o olhar fixo do advogado em seus olhos durante toda a conversa. Sentada na sala de sua casa, ela contava a história de seu filho Carlos Eduardo da Silva Souza, de 16 anos — um dos cinco jovens fuzilados até a morte dentro de um carro por policiais militares, em Costa Barros, bairro pobre do subúrbio carioca, em novembro do ano passado. Ele lhe disse que estava disposto a representá-la gratuitamente. “Acreditei mesmo foi no olhar. Vi que o olho dele encheu d’água”, recorda-se.
Advogado de responsabilidade civil há quase 30 anos, João Tancredo foi escolhido representante de Adriana Pires da Silva, uma atendente de lanchonete de 36 anos, naquele mesmo dia. Nos últimos anos, Tancredo se tornou uma das primeiras pessoas para quem ativistas de direitos humanos telefonam quando uma tragédia como a que abateu o filho de Adriana choca o Rio de Janeiro e o país. Foi para ele que a Comissão de Direitos Humanos da Alerj ligou quando o estudante João Pedro Cruz Alves, de 23 anos, foi morto por tiros de fuzil por não parar em uma blitz. Também foi ele o advogado chamado pela ONG Rio de Paz quando a família do auxiliar de pedreiro Amarildo de Souza começou a se manifestar pelas ruas da favela da Rocinha exigindo saber sobre seu paradeiro.
O currículo de Tancredo se confunde com uma espécie de retrospectiva macabra das duas últimas décadas. Começando pelo naufrágio do Bateau Mouche, no réveillon de Copacabana, em 1989; passando pelo assassinato do conferente Mário Josino em uma blitz pelo policial Rambo, em São Paulo, em 1997; as chacinas de Vigário Geral, em 1993, da Via Show, em 2003, e da Baixada, em 2006; o acidente Gol-Legacy, em 2006, e da Air France, em 2009; o assassinato do menino João Hélio, em 2007, e muitos outros.
Em 2008, foi laureado pela Medalha Pedro Ernesto, a mais alta distinção oferecida pela Câmara dos Vereadores carioca, por sua luta no campo de direitos humanos. Luzia, irmã gêmea de Tancredo, se lembra bem do orgulho que sentiu do “Joãozinho” neste dia. “A pessoa não é aquilo que plantou para ser”, disse.
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Um de dez irmãos, João Batista Tancredo foi registrado aos 9 anos de idade, pouco antes de entrar em um trem que o levaria de Palma, em Minas Gerais, onde nasceu, ao Rio de Janeiro. Para viajar, era preciso apresentar uma certidão de nascimento, e Tancredo, assim como quatro outros irmãos, não haviam sido registrados até então. Dois dos irmãos mais velhos já aguardavam a família no bairro de Santa Lucia, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, onde foram morar todos. Era 1966.
Passaram dois anos ali, em uma casa sem água, sem esgoto, à beira de uma rua de terra. Até então, Tancredo e boa parte dos irmãos nunca havia ido à escola. Ele passava os dias na rua ou ajudando um dos irmãos, que trabalhava como mecânico. “Eu ralava pra cacete”, conta, rindo. De Duque de Caxias, deram um “upgrade”, como descreve, para Vigário Geral, onde passou a maior parte da juventude. Lá, já com 11 anos, começou a estudar, segundo se recorda, na escola municipal Eneyda Rabello de Andrade. Um de seus irmãos mais velhos, Fernando, já estudava. Como não tinha caderno para começar as aulas, pegou o do irmão para aproveitar as páginas que faltavam. “Eu cheguei na escola e a professora falou ‘ah, você não pode ficar nessa série, sua letra é muito boa’”, conta Tancredo, imitando uma voz fina. Ele aceitou o elogio: “Eu não falei porra nenhuma”.
Tancredo me conta a história de sua infância, afundado em sua cadeira, no escritório. A narração é salpicada de piadas e gargalhadas, mas também de trechos em que o advogado abaixa o volume e o tom de sua voz, às vezes recorrendo a alguns segundos de silêncio. É como se falasse de um tempo alegre e trágico ao mesmo tempo. De fala onomatopeica, Tancredo gesticula amplamente. Abre os braços, apoia o queixo, cobre os olhos parcialmente, entrelaça os dedos das mãos e rói as unhas.
Sua infância e adolescência são memórias embaçadas. “É uma defesa natural, que você pegue o passado e desmonte porque você precisa se proteger. Entendo isso bem”, reflete. Lembra-se de ficar muito tempo na rua, e até mesmo, com uns 12 anos, de cheirar solvente com os meninos do bairro. Também se recorda que trabalhava muito, primeiro ajudando os irmãos, depois, com carteira assinada. O primeiro registro no documento veio de uma borracharia onde era hábito dos funcionários consertar um pneu e rasgar o outro para conseguir um serviço extra.
Tancredo não dá muitos detalhes, mas também se lembra das vezes em que, ao voltar para casa à noite, foi agredido por policiais, que lhe jogavam no chão e pisavam na sua cabeça. Adolescente, não era raro escolher os caminhos mais longos para chegar a sua casa e, assim, evitar ver cadáveres ainda quentes serem velados por suas famílias no meio da rua. “O rabecão costuma demorar uns dois dias para chegar lá”, conta.
Aos 13 anos, Tancredo conseguiu chegar à quarta série. Mas, naquele ano, foi expulso da escola. “Eu estava fazendo uma prova. Tinha uma troca de bilhete, coisa de moleque. E a professora tomou minha prova”, diz e silencia. “Parece que , naquele momento, eu senti que ela tinha destruído o passado. O que consegui avançar, eu tomei uma recuada. Eu me lembro, assim, da reação: explosiva.” Tancredo deu um soco na professora.
***
O passado pontilhado de lembranças difíceis certamente impulsionou Tancredo a trilhar seu caminho. Sua irmã Luzia diz que, dos amigos de Vigário Geral, muitos já morreram, “uns de tiro, outros de doença”. Pessoas próximas ao advogado se recordam de ocasiões em que ele, longe das tribunas do fórum, interferiu em conflitos entre a polícia e cidadãos.
Um deles ocorreu em uma sexta-feira, no fim da década de 1990. Tancredo voltava do Centro para seu apartamento, no Flamengo, sozinho no carro. Acabara de tomar uns chopes com seu sócio, Leonardo Amarante. Eram quase duas horas da manhã. Passava por uma avenida escura quando quase bateu na traseira de um ônibus, que parara no ponto. Tancredo olhou para o outro lado da rua e viu um rapaz ser revistado de forma agressiva por dois policiais. Um deles o segurava em uma gravata. Tancredo saiu do carro e se meteu na briga. No meio da madrugada, o telefone de Amarante toca. “Alô, aqui é o Rangel”. O hoje desembargador Paulo Rangel era promotor na época, e apenas um conhecido do advogado. “O que houve?”, perguntou Amarante, intrigado com a ligação. “Estou aqui na delegacia com o João.”
Rangel encontrara Tancredo por acaso no meio da briga e tentara resgatá-lo. O advogado não queria ir simplesmente embora, e sim prestar queixa contra os policiais. Mas, para isso, precisava da ajuda do rapaz que fora agredido. “Eu perguntei para ele ‘o senhor se sentiu ofendido?’, e ele falou ‘não’. Eu pensei ‘filha da puta’”, conta Tancredo, rindo, ao se recordar do episódio. Foi, junto com Rangel, para a delegacia da praça Mauá mesmo assim fazer o registro. De lá, saíram para tomar um chope.
No seu escritório, ele se recorda do escritório, e diz ter quatro processos penais de resistência policial contra ele. “Eram todos reações a essas revistas. Dava uma boa folha penal. Muito orgulho dessa folha penal!”, conta, gargalhando.
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Michelle Lacerda é sobrinha de Amarildo, e foi uma das pessoas mais ativas nas manifestações da família contra o desaparecimento do pedreiro, em 2013. A mãe de Michelle, Maria Eunice, criou Amarildo desde os 8 anos de idade, quando a mãe dos dois faleceu.
Michelle conheceu Tancredo na segunda passeata feita na Rocinha para exigir respostas sobre o caso. Naquela sexta-feira, o grupo fechou a Autoestrada Lagoa-Barra, exigindo uma reunião com o secretário de Segurança. Em meio às centenas de manifestantes, Antônio Carlos Costa, presidente da ONG Rio de Paz, apresentou Tancredo a Michelle. Marcaram de fazer uma reunião na casa da família no fim de semana para que o advogado fosse apresentado à esposa, Elizabeth Gomes da Silva, e aos filhos de Amarildo. A esta altura, todos estavam morando na casa de Maria Eunice, por se sentirem ameaçados na casa da família.
[olho] “Era uma prática comum, isso [a tortura]. Só que o Amarildo era epilético – sem tratamento, claro – e não resistiu”[/olho]
A escolha de Tancredo como advogado da família foi feita naquele mesmo dia. Segundo Michelle, cerca de 15 advogados já haviam batido à sua porta desde a primeira reportagem sobre o caso ser publicada. Um deles, quando ouviu de Michelle quem ela havia escolhido, lhe disse que Tancredo não tinha boa índole e não lutava pelo direito de seus clientes.
A família tinha certeza de que Amarildo tinha sido morto por policiais desde o primeiro momento. A tortura de jovens pela polícia, segundo moradores, era comum. Tancredo conta ter levantado junto a Carlos Eduardo Barbosa, líder comunitário na favela, outros vinte casos. “Era uma prática comum, isso [a tortura]. Só que o Amarildo era epilético – sem tratamento, claro – e não resistiu”, conta Tancredo.
É comum encontrar Tancredo nas fotos das diversas passeatas organizadas pela família para cobrar respostas do governo. Em algumas aparece no fundo, com o olhar preocupado. Michelle conta que, durante a última manifestação feita na Rocinha, vários policiais cercaram Elizabeth, filmando seu rosto de perto. “E aí, o João Tancredo se enfiou, entrou no meio dos policiais e falou ‘estou aqui, sou o advogado dela. Quer cercar, me cerca, então’. E eu achei aquilo corajoso, no mínimo, né? Tudo bem, ele é nosso advogado, mas eu não me meteria na frente de um policial por um cliente meu, não, gente. Desculpa”, diz, rindo.
Tancredo costuma ter uma relação próxima com seus clientes. Adriana, mãe do jovem morto em Costa Barros, troca mensagens com o advogado com frequência. Entre o fim e o início do ano, o advogado passou dias preocupado com o estado depressivo de Adriana. No início de fevereiro uma advogada do escritório a levou para uma consulta com o psiquiatra e pagou uma conta de mais de 300 reais em remédios.
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Os casos defendidos por Tancredo não são apenas responsabilidade de seu escritório, especializado em responsabilidade civil. Também são atendidos via Instituto de Defensores de Direitos Humanos, o DDH, uma ONG criada por Tancredo em 2007.
De início, o objetivo do DDH era cuidar apenas de casos emblemáticos, para dar visibilidade a eles. A ideia foi desbancada depois dos protestos de 2013. Seus advogados atenderam centenas de manifestantes e defenderam cerca de 40 deles nos tribunais. Hoje, a instituição também quer influenciar políticas públicas, e tem projetos contra a banalização da prisão provisória, assistência jurídica a movimentos sociais e outros. Outro objetivo para este ano é que a instituição se torne independente da imagem de João Tancredo, por vontade também do próprio. Presidente da instituição até o momento, ele será substituído pela professora Roberta Pedrinha, especialista em Direito Criminal em março.
Os trabalhos do DDH são pro bono, sem nenhum custo para o cliente – algo oferecido apenas pela Defensoria Pública estadual ou grupos de advogados que também oferecem defesa gratuita, mas em menor escala. Os honorários de sucumbência, como se chama o pagamento ao advogado determinado pelo juiz ao réu, portanto inevitável mesmo em um contrato filantrópico, são destinados ao financiamento da ONG – assim como o aluguel de uma sala de Tancredo na rua do Ouvidor. Diretor-executivo da instituição, o advogado Thiago Melo conta que a questão dos honorários ainda está na teoria, já que o DDH tem apenas nove anos de existência e não houve nenhum ganho de causa ainda. Também são parceiras organizações de renome, como a Open Society Foundations e o Fundo Brasil de Direitos Humanos, que financiam projetos específicos, como o que oferece assistência jurídica gratuita a presos provisórios.
Mas mesmo o DDH já foi motivo de polêmicas. Durante 2014, Tancredo e o instituto se juntaram a artistas em uma campanha intitulada “Somos Todos Amarildo”, cuja intenção era arrecadar recursos para comprar uma casa para a família do auxiliar de pedreiro e financiar uma pesquisa sobre pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro. A campanha foi um sucesso e arrecadou R$ 310 mil. Em março de 2014, uma reportagem da revista “Veja” intitulada “Cadê o (dinheiro) do Amarildo?” dizia que o DDH havia retido 80% do valor arrecadado na campanha, enquanto a família de Amarildo esperava ficar com metade do dinheiro. O montante destinado ao DDH teria como destino um “projeto ainda indefinido”, reclamara a revista. “O cheiro de oportunismo é fortíssimo”, concluiu a reportagem.
Quase dois anos depois, o DDH veio a público dizer que o projeto não conseguira sair do papel por falta de colaboração do governo do Estado com dados sobre os desaparecidos, apesar de repetidos esforços dos pesquisadores envolvidos. Os R$ 250 mil arrecadados à época foram, então, destinados em parte à família de Amarildo, mas também a entidades sem fins lucrativos, como o Grupo Tortura Nunca Mais.
A criação do DDH veio depois de o advogado ter sido exonerado da Comissão de Direitos Humanos da OAB após um embate com o então presidente da entidade, o deputado federal Wadih Damous. Tancredo defendia na imprensa que a morte de 19 pessoas no Complexo do Alemão em uma operação policial antes do início dos Jogos Panamericanos fora uma chacina deliberada. À época, a saída de Tancredo foi creditada à pressão exercida sobre a OAB pelo governo do Estado, então comandado pelo peemedebista Sérgio Cabral. Já Damouh deu entrevista à época sugerindo que Tancredo era irresponsável, e que aquilo tudo não passava de uma tentativa de “antecipar a sucessão eleitoral na Ordem”.
Hoje os dois não são brigados. Mas o advogado não é unanimidade na comunidade forense. Na boca miúda, advogados o acusam de procurar a mídia exageradamente, e de buscar clientes em evidência justamente para se promover – mesmo quando não cobra pelos serviços, como quando os casos são encaminhados via DDH. Por representar clientes cujas histórias trágicas estão em evidência, seu nome aparece com frequência nos jornais – assim como informações sobre seus casos, regularmente publicadas em colunas de notas como a do jornalista Ancelmo Góis, do jornal O Globo.
Adriana, mãe do adolescente assassinado em Costa Barros, já estava sendo atendida pela Defensoria Pública, quando a ONG Rio de Paz ofereceu a ela os serviços de Tancredo, sem ônus algum. O advogado quer seguir seu processo até o fim e conseguir um bom resultado para Adriana, o que pode levar anos – ela diz que o importante é ter justiça, e que o dinheiro pode ficar para a filha. Já a Defensoria espera fechar um acordo para o restante das quatro famílias já em março.
Tancredo critica a defensoria por fechar maus acordos – “ (a defensoria) informa que conseguirá um acordo de R$ 100 mil para a família. Absurdo.” A fala, já repetida para outros órgãos de imprensa, incomodou o defensor Daniel Lozoya, integrante do Núcleo de Direitos Humanos, responsável pelos casos de Costa Barros. Lozoya diz que os termos do acordo são sigilosos, mas que não aceitaria um mau negócio. Diz também que alguns advogados às vezes atacam a defensoria “para se promover”.
Thiago Melo, do DDH, ironiza a teoria de que a motivação de Tancredo é a autopromoção. “Quem dera todo mundo quisesse se promover desta maneira”, diz. E completa: “Qualquer advogado poderia estender a mão, mas infelizmente há poucos que se dispõem a isso”.
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João Tancredo é um homem não muito alto, nos seus 59 anos, com entradas no cabelo grisalho. Assim como os advogados mais tradicionais da cidade, usa camisas sociais com suas iniciais bordadas no peito e abotoaduras. Magro, vai de bicicleta de seu apartamento, em Ipanema, para o trabalho quase todos os dias – são mais de 10 quilômetros pedalando. Perguntei-lhe se ele se considera vaidoso. Ele disse que não. Sente-se necessário, útil.
Segundo ele, mais de 90% de seus clientes são pobres o bastante para pedir gratuidade de justiça. “Com o cliente pobre, você consegue exercer uma atividade de cidadania muito interessante”, refletiu. “Você consegue realizar com ele alguns dos seus ideais. Você consegue punir o causador de um dano grave; uma empresa que não deu o equipamento de segurança, absurdamente. Você acaba realizando. Pode ser egoísmo isso. Talvez, não sei. Mas você acaba realizando as coisas que você queria fazer na vida”, disse, segurando as duas mãos com as palmas abertas para cima.
Com o passar dos anos e a ascensão profissional, é comum que advogados parem de ir ao tribunal com tanta frequência. Mas Tancredo gosta de ir ao fórum. Vai quase todos os dias e não deixa de cumprimentar as dezenas de pessoas, conhecidas ou não, que lhe chamam pelos corredores. Da recepcionista ao desembargador. Fala alto, dá poderosos tapas nas costas, abraça, beija e conta a mesma piada várias vezes para pessoas diferentes.
Seu carisma lhe permite conquistar pessoas improváveis, como o desembargador Bernardo Garcez, ex-presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio. Tancredo o defendeu em uma ação de danos morais impetrada por outro desembargador, Gabriel de Oliveira Zéfiro. Garcez agrediu o colega, com quem tinha desavenças anteriores, com uma cabeçada dentro de uma agência bancária.
Tancredo acredita que seu jeito entrão e boa gente contribuiu para o sucesso de sua carreira. Há magistrados que são seus clientes; funcionários do fórum gostam de seu jeito de quem “veio de baixo”. Mas a festa que seu escritório costumava bancar anualmente para os funcionários dos tribunais estaduais do Rio é alvo de fofocas. A festa começou a ser realizada em 1994, com cerca de 300 convidados. Em 2014, eram 1.300. A ideia sempre foi convidar apenas os funcionários das varas, para se contrapor a grandes escritórios da cidade, que costumam convidar juízes e desembargadores a suas festas.
Ao custo de cerca de 150 mil reais, a confraternização de fim de ano, regada a caipirinhas de melancia com manjericão e outras iguarias, contava com DJs e mimos, como cabines de fotografia. Tancredo costumava subir ao palco para fazer sorteio de prêmios, como tablets. Naturalmente, não há servidor nas varas que não o conheça. E, em um tribunal com uma taxa de congestionamento de 88% e quase 10 milhões de processos pendentes, isso conta.
A edição de 2015, no entanto, foi cancelada por causa da crise financeira (muitas empresas processadas pelo escritório não estavam pagando o que deviam), e também pelo entendimento de Tancredo de que algumas pessoas estavam interpretando mal o motivo da do evento. Era uma confraternização, não uma forma maliciosa de conquistar os funcionários, diz. Ele ainda não decidiu se o evento voltará a ser realizado.
***
Tancredo matriculou-se no curso de Direito na Universidade Cândido Mendes, em Ipanema, em 1982, aos 25 anos. Lá havia o turno da noite, o que lhe dava a opção de trabalhar durante o dia. Em certa altura, fazia três estágios ao mesmo tempo para conseguir pagar as contas. Formou-se aos 30 anos – o primeiro a ter curso superior em sua família.
Tancredo trabalhava como advogado do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), quando o então amigo de faculdade Leonardo Amarante convidou-o para começar um escritório. Também recém-formado, ele acabara de passar no concurso para procurador do Estado e fora lotado em Nova Friburgo. O salário inicialmente era uma fortuna para um homem sozinho, mas a inflação deu conta de destruí-lo a passos largos. Havia a possibilidade de advogar, e ele estagiara em um escritório especializado em responsabilidade civil. Decidiu chamar Tancredo para, juntos, começarem a empreitada. Os dois alugaram uma salinha do tamanho de um quarto pequeno na cidade, e começaram a trabalhar. Foi Tancredo quem fez a mesa do escritório, de um pedaço de madeira encontrado na casa de um amigo.
[olho]“Durante muito tempo eu pensava: ‘Isso é correto, procurar o cliente?’. Você pensa assim, né, se isso é é-ti-co”[/olho]
No início, os clientes vinham de forma controversa. Tancredo conta que lia os jornais e fazia pesquisas nos arquivos de processos criminais da região para encontrar vítimas que ainda não houvessem entrado com pedido de indenização. “Passei muito fim de semana visitando cliente”, conta. “A maioria não tinha noção de que tinha direito. Sequer tinha noção”. A chamada “captação de clientela” é considerada uma infração disciplinar pela OAB – apesar de não ser rara e de sua regularização estar sendo debatida pela ordem. Advogados concorrentes o criticam por captar clientes, algo que ele diz não fazer há mais de vinte anos.
“Durante muito tempo eu pensava: ‘Isso é correto, procurar o cliente?’. Você pensa assim, né, se isso é é-ti-co”, diz, separando as sílabas. E, com a voz séria, continua: “Sob a visão da advocacia burguesa, não. Você tem que estar sentado no seu gabinete esperando os seus clientes. Empresário e tal vem. E a massa de miseráveis, seus processos vão para a prescrição… Vai tudo embora. Funciona mais ou menos assim. Pode ser que eu esteja criando uma forma distorcida para falar que o que eu estou fazendo é certo. Isso é uma coisa que sempre me perseguiu”.
Faltavam minutos para o início do ano de 1989, quando o Bateau Mouche IV afundou na Bahia de Guanabara, a caminho de Copacabana. Das 142 pessoas a bordo, 55 morreram. Uma delas, a atriz Yara Amaral, de 52 anos, ainda no auge de sua carreira recheada de grandes peças de teatro e novelas da Rede Globo. Yara deixava os dois filhos, Bernardo e João Mário, ainda adolescentes, aos cuidados do ex-marido, Luis Fernando Goulart. O Bateau Mouche foi o primeiro caso de grande repercussão a cair nas mãos de Tancredo.
Bernardo é hoje um homem em seus quarenta anos, baixo e magro, de cabelos quase grisalhos. Ele me disse se lembrar bem do processo de escolha do advogado que cuidaria do caso de sua mãe. Havia, obviamente, dezenas batendo à porta de sua família. A ideia para decidir sobre o método de escolha partiu de um amigo de seu pai, o advogado Cyro Kurtz. “O Cyro matou a charada. Ele disse: ‘esse é um caso que vai se arrastar pela Justiça. E esses grandes figurões vão querer aproveitar esse início de mídia. A mídia só vai cobrir no início. Depois, desaparece. E assim vão desaparecer os advogados. Então, o melhor é o quê? Pegar advogados novos. Competentes, mas novos. E esse vai ser o caso da vida deles’”.
Cyro recomendou que Luis procurasse os advogados que trabalhavam junto com seu filho, Fábio Kurtz: Leonardo Amarante e Tancredo, ambos já especializados em responsabilidade civil. Os dois tornaram-se, então, advogados da família de Yara e de 22 outros que o procuraram posteriormente. Bernardo se lembra de visitar o advogado em um escritório minúsculo, cuja aparência sugeria uma mistura de firma de contabilidade com repartição pública – em nada semelhante ao atual e bem aparelhado escritório da Avenida Rio Branco. Com seu nome estampado em inúmeras reportagens, Tancredo começou a ganhar notoriedade – e mais clientes começaram a procurá-lo. A Justiça deu conta de realizar a profecia de Cyro, e algumas partes do caso não foram resolvidas até hoje. Mas Tancredo e Amarante ainda são advogados das famílias – não todas, já que algumas já receberam indenização.
[olho]Tancredo está acostumado a incluir músicas, charges e até ditados chineses em suas peças[/olho]
No início, Tancredo e Amarante se complementavam. Tancredo conhecia todo mundo no fórum e sabia se relacionar com as pessoas, e Amarante ficava mais no escritório, redigindo petições. Com os anos, Tancredo aperfeiçoou sua escrita, e hoje tem orgulho de suas peças, que às vezes parecem colagens artísticas – ou “petições panfletárias”, como dizem seus adversários nos tribunais. Gosta de ilustrar os processos com fotos chocantes, inclusive na capa – como a foto de uma mulher com seu filho bebê dentro de um caixão – para descontentamento de alguns juízes.
A imprensa adorou a ironia de quando Tancredo usou a letra de Chico Buarque em uma ação indenizatória em nome do próprio contra dois de seus detratores – o jornalista João Pedrosa, que fez comentários grosseiros em uma foto da filha do compositor no Instagram, e o empresário Guilherme Junqueira Motta, que o xingou nas ruas do Leblon e no Facebook. O advogado abriu cada uma das ações assim: “Dinheiro não lhe emprestei/ Favores nunca lhe fiz/ Não alimentei o seu gênio ruim/Você nada está me devendo/Por isso, meu bem, não entendo/ Porque anda agora falando de mim”.
Tancredo está acostumado a incluir músicas, charges e até ditados chineses em suas peças. É sua estratégia para chamar seus casos à atenção de juízes assoberbados com uma média de 3.500 ações novas por ano. Sua inserção preferida é um trecho da música “Pedaço de mim”, também de Chico: “A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”. No julgamento do caso da queda do voo Air France, em 2011, Tancredo recitou os versos durante uma explanação, levando a desembargadora Marilene Melo Alves às lágrimas. “Ela tinha perdido uma filha”, explica o advogado.
Para Amarante, o estilo de Tancredo lembra o do advogado americano Melvin Belli, famoso por defender Jack Ruby, o homem que matou Lee Harvey Oswald pelo assassinato do presidente John Kennedy, em 1964. Belli era conhecido por sua eloquência e sustentações performáticas, com recursos criativos, como levar a perna mecânica que sua cliente seria obrigada a usar e dá-la para os membros do júri segurarem. Por mais que tenha despertado inúmeras críticas da comunidade forense americana, em que não desfrutava de muito prestígio, muitos consideram que Belli ajudou a criar importante jurisprudência em casos de defesa do direito do consumidor nos Estados Unidos.
Amarante e Tancredo se separaram em 2003. Dessa forma, Tancredo pôde mergulhar fundo nos casos de violência policial, algo que não podia fazer enquanto associado a um procurador do Estado. Além dos perigos óbvios relacionados a esse tipo de defesa, existe ainda um agravante. É muito comum o advogado ganhar a causa, mas não levar o dinheiro. No início de 2014, autorizado pela Alerj a usar uma parcela dos recursos dos depósitos judiciais, o Tribunal de Justiça do Rio pagou R$ 3,4 bilhões em precatórios judiciais que haviam se arrastado por 15 anos, em favor de cerca de 12 mil pessoas físicas e jurídicas.
Amarante acha que o amigo se expõe muito em sua atuação em causas ligadas aos direitos humanos. A família também tem suas reservas. Luzia conta que toda vez que vai visitar clientes em favelas, a sobrinha Neya, que também é assistente no escritório, pede para a família rezar. Não à toa, Tancredo já foi vítima de dois atentados, além de já ter recebido algumas ameaças de morte. Em 2008, um motociclista deu quatro tiros contra seu carro. Os vidros blindados salvaram sua vida. Ele voltava de uma reunião na favela Furquim Mendes, em Jardim América, onde conversara com familiares de rapazes assassinados pela polícia.
Depois disso, andou acompanhado de seguranças por um tempo, diminuiu suas visitas a clientes em áreas de riscos – mas não parou. “Eu digo que a visibilidade é que dá a garantia.”
***
No dia 17 de fevereiro, Tancredo entrou na 7ª Câmara Cível para defender o direito à indenização dos familiares do jovem Magno Ferreira da Silva, morto a tiros por policiais, em 2007, aos 15 anos, enquanto entrava no barbeiro para cortar o cabelo. Seria difícil contar o número de casos similares defendidos por Tancredo. Mas Magno morrera a cerca de três quilômetros de distância da escola municipal Eneyda Rabello de Andrade, em Vigário Geral.
“Quando eu tinha 15 anos, eu estava lá ralando à beça”, diz Tancredo, lembrando de sua adolescência na mesma comunidade.
O advogado recorria da sentença de uma juíza que havia fixado um valor de R$ 200 mil para cada um dos pais de Magno, a título de indenização. Queria um valor maior. O relator do caso, desembargador André Gustavo Corrêa de Andrade – seu cliente em uma ação contra o Bradesco – começou falando que não concordava com o recurso de Tancredo. O advogado argumentou, disse que Magno fora morto pelas mãos de quem deveria lhe proteger. No final, três desembargadores concordaram com sua tese, e dobraram o valor da indenização.
Tancredo saiu com um sorriso satisfeito da sala da câmara. Perguntei-lhe se o caso tinha algum valor especial. Ele concordou. “Dá uma sensação de que eu consegui fazer o bem.”
Tancredo espera desfecho semelhante para o caso de Adriana. Pediu à Justiça que o Estado arque com despesas médicas, pensão por morte e danos morais no valor de R$ 1,7 milhão para ela e a filha de 6 anos.
Um painel ocupa a parede mais ampla da sala da casa de Rubens Ewald Filho, quase 71 anos, o crítico de cinema mais conhecido do país, rosto do Oscar na TV brasileira por mais de três décadas. A imagem na parede mostra um set de filmagem, a atriz principal à frente, imponente. Mas não é nenhuma diva de Hollywood. O nome dela é Vanja Orico (1931-2015) e a cena é de “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, vencedor do festival de Cannes de 1953, o maior expoente dos filmes de cangaço, gênero conhecido como o faroeste brasileiro. “Vanja era uma pessoa completamente doida”, diverte-se Rubens. Rubricas como essa se repetem na longa conversa com o crítico em sua casa, numa tarde de sábado chuvosa e abafada em dezembro passado.
Na noite anterior, Rubens havia perdido a amiga Nydia Licia, atriz e diretora teatral falecida aos 89 anos, a quem considerava uma espécie de “madrinha” no mundo artístico. “É, tenho um velório para ir hoje.” Ele mal havia se recuperado do choque pela morte de Marília Pêra, ocorrida exatamente uma semana antes. Rubens considerava a atriz mais que uma amiga, uma “cúmplice”. “Ela era uma estrela, uma figura única, cantava, dirigia. Marília foi um mito do teatro brasileiro, a gente nunca achava que Marília fosse morrer. Ela ia estar com 90 anos representando, dirigindo”, diz. Na opinião dele, Pêra foi uma artista até maior que Fernanda Montenegro. “Fernanda é uma senhora atriz, mas nunca dirigiu, não cantava, era outro lance”.
Rubens conta que se aproximou de Marília Pêra quando escreveu um roteiro baseado em um livro de Mario Prata e a convidou para o papel principal. Por algum motivo, os direitos do filme foram parar nas mãos de outro produtor, e a produção acabou nunca saindo. “Marília achou que eu havia dado para outra pessoa, imagina! Mas isso nos uniu”, conta. Ele lembrou a história no Festival de Gramado de 2015, ocasião em que a atriz foi premiada. Marília já estava doente, mas não falou sobre isso para ninguém. “Foi a despedida dela. Ela estava linda”.
Rubens mora sozinho em uma casa confortável, algo rústica, em um condomínio fechado em Cotia, a cerca de 30 quilômetros do Centro de São Paulo. De lá ele só costuma sair para ir ao cinema. Filmes nacionais de grande apelo, como as comédias da Globo Filmes, ele prefere ver junto com o público nas salas de cinema dos shoppings mais próximos (Raposo e Granja Vianna). Ele tenta ir ao máximo possível de cabines (sessões fechadas para a imprensa), que costumam acontecer pela manhã em cinemas mais centrais em São Paulo, mas o trânsito da rodovia Raposo Tavares, ligação entre Cotia e a Capital, está cada vez pior. Quando consegue chegar, aproveita para emendar dois ou três filmes na sequência, geralmente no shopping Frei Caneca.
Além da grande imagem de “O Cangaceiro”, inúmeros quadros de filmes ocupam as paredes da casa, inclusive as do banheiro – em um deles há um pôster com dedicatória do ator John Forsythe. Pilhas de DVDs e revistas se concentram numa espécie de mezanino que faz as vezes de pequeno escritório e sala de projeção (ele vê os filmes em uma TV comum de tela plana, diante de um sofá bastante próximo ao aparelho). Ultimamente tem visto muitos filmes enviados pelas distribuidoras em plataformas digitais. “Adoro Vimeo. Esse filme filipino de quatro horas e quinze eu vi no Vimeo”, diz, em referência a “Norte, O Fim da História”, de Lav Diaz.
Rubens prefere ficar em casa – “eu e meus filminhos”. A ele não interessa aparecer em colunas sociais ou virar nome de prato no restaurante Paris 6. “Você não me vê em boate, em estreia de filme… eu só saio de casa pra ir ao cinema ou ao teatro. Não vou a coquetel, não vou a nada. Não é minha proposta sair na Caras, não tenho o menor problema com eles, me tratam muito bem, mas esse tipo de coisa eu fujo como o diabo da cruz, eu vou cada vez menos”, diz. Na casa, comprada na época em que foi executivo da HBO, Rubens recebe a visita da empregada três vezes por semana (frequência que ele pretende diminuir por conta da crise econômica, que já lhe tirou alguns trabalhos) e eventualmente de um jardineiro. A piscina não parece ter sido utilizada nos últimos meses. Um vendaval havia derrubado duas árvores do terreno recentemente. Pergunto das visitas, que são poucas.
“Mas você tem bastante amigos”, digo.
“Estão morrendo. Um por semana.”
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O cinema é a única janela para as memórias da infância de Rubens, nascido e criado em Santos. Ele costuma dizer que nunca jogou bola na rua e nunca teve amigos quando era criança. A diversão eram as sessões de cinema e as horas e horas recortando os anúncios dos filmes no jornal e montando sua própria programação de cinema. “Até os nove anos eu não lembro nada a não ser os filmes que eu vi. É uma infância bloqueada, é como seu eu tivesse nascido com nove anos. Eu só tinha os filmes para me segurar, e eu começo a anotar num caderninho, de nove para dez anos. É por isso que eu tenho todos os filmes que vi”, recorda-se.
No final de 2015, essa conta chegava a mais de 35.300 filmes assistidos, uma média que nem vale a pena tentar estabelecer, de tão fora da realidade de uma pessoa comum. Rezava a lenda que Rubens assistia a dois ou mais filmes ao mesmo tempo – o que ele confirma. “O segredo é simples: se você está vendo um filme em português e outro com legenda, é fácil seguir. O jovem hoje faz cinco coisas ao mesmo tempo e isso é absolutamente normal para eles. Eu só estava diante do meu tempo, nada mais”, brinca. Hoje, sem precisar editar guias de filmes, ele parou com esse hábito.
[olho]”Até os nove anos eu não lembro nada a não ser os filmes que vi”[/olho]
Além dos caderninhos, quando criança Rubens fazia um livreto só com filmes do Oscar, outro só com diretores. Como em um romance em que as premissas da trama são lançadas no primeiro capítulo para serem retomadas ao longo da história, décadas depois Rubens lançou um dos mais importantes livros de consulta sobre cinema no Brasil, o “Dicionário de Cineastas”, editado pela primeira vez em 1977. “Na verdade tudo já tinha a semente”, observa.
Duas revistas foram fundamentais em sua formação: a “Filmelândia”, adaptação da americana “Screen Stories”, que trazia roteiros de filmes adaptados como uma pequena novela; e a “Cinelândia”, versão brasileira de “Modern Screen”. Ambas eram editadas no Brasil pela Globo, e os editores locais recheavam esta última com informações sobre a vida dos diretores e incluíam filmes de outros países, como França e Argentina. “O que importava não era se o artista ia se separar ou não. Tinha isso, mas tinha também Hitchcock, John Ford, Cecil B. DeMille… quer dizer, ainda garoto eu consegui pegar esses diretores graças a isso. Você tinha uma informação de cinema que te permitia ser autodidata, que foi o que aconteceu, eu fui atrás de livros. Aprendia línguas muito fácil: francês, italiano, inglês. Isso tudo foi o alimento para eu querer correr atrás, porque era impossível sonhar em fazer cinema. Não existia, né? A chanchada terminou e aí veio um nada e só depois o Cinema Novo, que vem com perseguição de governo e tudo mais”, conta.
Rubens não faz questão de esconder como a relação com a família – “extremamente repressiva” – era difícil. Quando criança, os pais o levavam ao cinema – ele lembra que iam todos juntos, mas o hábito de recortar e colar jornais e revistas era motivo de luta constante com a mãe. Ela achava tudo aquilo “uma porcaria”. “Era aquela família, que era muito comum na época, que quem mandava era a avó, sabe? A avó era uma bruxa. Quando eu escrevi a novela ‘Drácula’, eu pus a Cleide Yaconnis fazendo a minha avó. Quando eu fiz ‘Éramos Seis’ também tinha uma avó que era… eu tentei pôr pra fora diversos fantasmas”, diz.
Rubens diz que não tem mais família. Cortou relações com o irmão, a quem acusa de ter se aproveitado financeiramente dele. Consequentemente, não fala mais com os sobrinhos. Cuidou dos pais na velhice e levou a mãe, Elza, para viajar. A infância em Santos foi abastada, a família era dona de fazendas de banana no litoral. O pai, que gostava muito de praticar esportes, foi presidente do tradicional Clube de Regatas Saldanha da Gama. Aos 60 anos, porém, Rubens pai quebrou. “Ele era um homem acostumado a mandar, acostumado a ter tudo, também acostumado a trair a minha mãe com vedetes do teatro de revista – não tô julgando nada, se ele era feliz assim não tenho nada com isso… enfim, ele era um conquistador. Mas quando perde tudo ele se senta numa cadeira e nunca faz mais nada. Passa vinte anos assim até morrer com 80”, lembra.
Muitas vezes, Rubens narra suas recordações usando verbos no presente, como se alguns fragmentos do passado voltassem a acontecer no momento em que sua fala é projetada. Uma pergunta objetiva pode dar margem a uma longa digressão em cima de uma lembrança periférica; mesmo em seus e-mails ele emenda uma frase na outra obedecendo somente ao fluxo de seu pensamento. Ele é mais alto e mais corpulento do que aparenta na televisão – muito de sua saúde se deve, segundo ele, à natação que praticava na juventude. Voltou a fazer exercícios regulares nos últimos 15 anos e procura levar uma vida saudável. Parece estranho dizer isso, mas a indefectível barba lhe dá uma aparência de menino.
“Como é curiosa a trajetória de vida”, ele diz. Para um pouco, suspira e retoma o fôlego. “Eu não planejei ficar sozinho, mas fiquei. As pessoas nem sabem porque eu nunca conto isso, mas eu fui casado… e ela faleceu de erro médico. Quer dizer, mais uma coisa desagradável da vida, uma coisa que te marca… aí você não quer nada mais.” Ao final da entrevista, retomo o assunto do casamento, mas Rubens fica muito desconfortável. “É uma coisa triste, não vejo porque falar. Dá raiva, dá tudo, desperta as emoções que você por tanto tempo controlou.” Eu não peço mais detalhes.
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No domingo, dia 28, quando entrar no ar direto de Los Angeles pelo canal pago TNT para apresentar e comentar a entrega do Oscar, Rubens Ewald Filho terá participado das transmissões de 33 edições do prêmio pela TV brasileira. Embora as sementes estivessem lá na infância nos caderninhos, ele também não planejou ser o “crítico do Oscar”. “Pois é! Por que não me chamam para apresentar o prêmio Davi de Donatello?”, brinca. Depois volta a falar sério: “É o ônus que eu tenho que carregar”, admite. No passado, Rubens não gostava quando ficava sabendo de colegas de crítica e jornalismo que o consideravam “vendido” a Hollywood. “Mas todos eles voltaram atrás. A melhor maneira de conviver com isso é estar com a cabeça sossegada. Nesses dois últimos anos, se você for ver o que eu tenho falado mal do cinema americano, é muito forte. Nunca deixavam antes. Hoje eu critico abertamente… não que eles se incomodem com isso.” E solta uma gargalhada.
O crítico de cinema Inácio Araujo, da Folha de S.Paulo, foi contemporâneo de Rubens no início de ambos no Jornal da Tarde. Para ele, a associação da imagem do colega, hoje amigo, ao Oscar é muito justa e quase obrigatória, por todo o trabalho que ele fez nessas últimas décadas. “Para mim, uma transmissão do Oscar, que é coisa muito chata, diga-se de passagem, ficaria insuportável sem o Rubens”, diz. E conclui: “Tínhamos maneiras bem diferentes de ver o cinema, mas acho que o tempo apagou essa distância. Distância que era muito boa”.
Rubens começou sua carreira de jornalista escrevendo para o jornal A Tribuna de Santos. Cursou a graduação em jornalismo ao mesmo tempo em que fazia faculdade de direito pela manhã – “tenho carteira e tudo” – e história e geografia à tarde. No final dos anos 1960 chegou a São Paulo para trabalhar no Jornal da Tarde. Era copidesque no caderno de Variedades, mas também produzia reportagens e críticas. Foi contemporâneo do crítico e diretor Rubem Biáfora – um de seus grandes inspiradores. Nessa época, começou a conhecer as pessoas que orbitavam a produção de cinema e teatro no Brasil. Uma dessas pessoas foi o diretor Walter Hugo Khoury, que o levou para a frente da tela.
“Eu estava no Jornal da Tarde e passa o Walter Hugo Khoury, olha pra mim e diz: ‘você tem a cara muito boa’. No dia seguinte eu estava filmando”, diz. Rubens chegou a participar de “Amor, Estranho Amor”, o clássico maldito de Khoury em que a jovem Xuxa Meneghel contracena lascivamente com um menino de 12 anos. A experiência de ser requisitado por sua aparência física abriu uma nova perspectiva para Rubens. “Eu era meio gordinho e toda aquela repressão familiar, a avó, não tinham me dado autoestima nenhuma. Eu me achava um horror. Minha autoestima até hoje não é muito alta. Eu não conseguia me gostar”, conta.
Para ajudar a resolver essas questões, até tentou a psicanálise nos primeiros anos em São Paulo – passou por dois analistas, mas a experiência não foi adiante. “A análise me ajudou a raciocinar, a pensar. Isso eu peguei meio rápido, foi útil, mas eu não consigo ficar muito preso. Tem um momento em que o analista passa a te irritar. Eu podia entrar mudo e sair calado e acabou”, lembra. E dá uma banana: “Aham, meu rico dinheirinho!”
Para um jovem no Brasil da década de 1970, o cinema representava uma abertura e trazia algo de resistência ao momento político da ditadura militar. O fato de dominar outras línguas o ajudou muito a entrar a fundo nos filmes da Nouvelle Vague, da Comédia Italiana, na obra de Federico Fellini, até hoje seu diretor preferido, e nos novos cinemas de diversos países. Era um período de efervescência, para usar sua expressão. Inclusive no Brasil. “Para uma pessoa jovem, não há como não gostar do Cinema Novo”, diz.
“Rubens tem fome de cinema”, diz o professor Máximo Barro, da faculdade de cinema da FAAP. “Aceitando ou não o que ele estava escrevendo no jornal, a gente pelo menos sabia que ele tinha visto o filme.” Na época, não era raro aparecer nos jornais críticas baseadas em publicações estrangeiras ou “de ouvir falar”. Rubens chegou a ser professor de cinema na FAAP na época da criação do curso, mas ficou por pouco tempo. Anos depois, voltaram a trabalhar juntos na Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que Rubens coordenou. “Ele é uma pessoa que leva muito a sério aquilo a que ele se dedica”, afirma Máximo.
A chegada à Globo, no início dos anos 1980, catapultou a imagem de Rubens como crítico de cinema. Na interpretação dele, a TV o queria para “falar as verdades” nos anos de abertura política. “Eles me usavam – num bom sentido, e eu concordei com isso – em falar coisas que a única pessoa que falava em televisão era eu. Criticar alguém, por exemplo”, diz.
[olho]”Estavam querendo proibir um filme e eu falei: ‘Não tem nada que proibir, o filme é tão ruim que as pessoas já vão fugir da sala, não vão nem aguentar ficar até o final’”[/olho]
Um dos alvos da crítica foi o diretor Neville D’Almeida, diretor de “Os Sete Gatinhos”, adaptação da obra de Nelson Rodrigues. “Fiz uma crítica no Jornal da Globo. Estavam querendo proibir o filme e eu falei: ‘Não tem nada que proibir, o filme é tão ruim que as pessoas já vão fugir da sala, não vão nem aguentar ficar até o final’. Você sabe que tempos depois eu fiquei sabendo que o Nelson Rodrigues estava assistindo ao jornal, passou mal e quase morreu vendo o meu comentário?”, lembra. Segundo Rubens, Neville ficou com ódio dele por muitos anos até que o diretor reconheceu que o filme era ruim mesmo e não fazia sentido ficar brigado.
A transição dos comentários sobre cinema na Globo para a cobertura do Oscar veio com um episódio curioso. Quando a atriz Ingrid Bergman morreu, em 1982, Rubens foi chamado às pressas para fazer uma passagem ao vivo, algo que ele não estava acostumado. Tudo armado, a transmissão começa. “A Leda Nagle fala ‘o cinema perdeu blá blá… Rubens, o que você acha?’ aí eu começo a falar e a câmera tinha se afastado, eu não usava óculos na época e não enxergava nada, então eu fiz assim [olha para baixo em silêncio, lê um papel] e retomei. Na saída estava o chefe do jornalismo dizendo o seguinte: ‘Puxa vida, até que enfim você se emocionou com alguma coisa. Você gostava muito dela, né’. Eu falei: ‘Muito, muito’. Mal sabia o pânico, que eu tinha pensado ‘me fodi’, vou errar aqui. E eles encararam como emoção, olha que bonito! Como as pessoas se enganam!”, ri.
Das transmissões do Oscar, a fase preferida de Rubens é com Marilia Gabriela no SBT, onde fez a cobertura por oito anos. Atualmente, na TNT, ele gosta da parceria com a âncora Domingas Person e com o fato de não precisar nem traduzir nem fazer nenhuma passagem. “Ir a festival é outra coisa que me encheu o saco. Para Cannes eu fui 23 anos seguidos, e para mim era a coisa mais importante que tinha. Para conseguir ir pela primeira vez, eu fui sorteado pela Air France, ganhei a passagem, o resto o jornal pagou com toda dificuldade.” Lá ele entrevistou “quase todo mundo”: Godard, Truffaut, Kurosawa.
Hoje, no entanto, já não sabe mais que caminho Cannes quer seguir. “O que tem de porcaria em circuito de arte é um absurdo, eu não sei como as distribuidoras sobrevivem, porque aquilo não se paga.” O último vencedor do festival francês, “Dheepan”, ele considera “um filmeco”. Para ele, a entrada das celebridades nos festivais, que ocupam as atenções da imprensa e das redes sociais, tornou-se até mais importante do que os filmes exibidos. “Imagina fazer aqueles tapetes vermelhos, que só falam idiotice. O que eu mais odiaria na vida seria fazer tapete vermelho. Eu sempre me recusei a fazer. Não quero, é uma fria, um horror”, diz.
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Duas impressões são mais evidentes quando Rubens fala de Hollywood. A primeira é que nada mais – o cinema, as premiações – tem muita importância, tudo está meio diluído. A outra é que o jeito de fazer cinema é muito diferente. “Existia uma Hollywood de estúdios, que acaba na década de 1960, que eu ainda consegui ver quando era criança e, por causa das revistas, acompanhar. Que é um outro mundo, não tem nada mais a ver com Hollywood atual ou com a maneira de fazer cinema hoje. Com o digital, as pessoas estão reaprendendo cinema, e eu também estou reaprendendo a lidar”, diz. Ele chega a dizer que em alguns momentos se sente uma espécie de Indiana Jones que vai atrás de um mundo perdido. “São outros valores, outra estética, outra civilização. Não que seja melhor ou pior, mas é outra coisa.”
[olho]“O que tem de porcaria em circuito de arte é um absurdo, eu não sei como as distribuidoras sobrevivem, porque aquilo não se paga”[/olho]
O cinema digital, diz Rubens, trouxe outros cacoetes. Um deles é o “pseudo” plano-sequência. Sem precisar trocar o rolo de filme a cada intervalo de tempo, o diretor hoje pode criar cenas longas aparentemente sem cortes e “ir na nuca” dos personagens. “Quantos filmes você vê hoje que acompanham a pessoa andando, ou entrando em casa ou saindo de casa? Antes, em Hollywood, a pessoa estava em casa e a situação estava resolvida”, compara.
Naquela semana, Rubens havia assistido à versão mais recente de “Macbeth”, com o ator Michael Fassbender. “Macbeth é filmado com digital. Você não vê porrrra nenhuma, porque não tem iluminação, tem velas! Você vê sombras na cara deles. Como você quer que tenha interpretação – de Shakespeare! – sem a cara da pessoa? É uma escuridão, é o Macbeth das trevas… ou seja, estamos vivendo um momento de mudança e de ajuste. As pessoas acham lindo a escuridão. É insuportável! Kubrick em Barry Lyndon usava velas, mas você conseguia ver a luminosidade, e não as trevas”, observa.
Muito por conta da cobertura do Globo de Ouro, ele se obriga a ver “todas” as séries de TV e do Netflix, plataforma da qual ele gosta muito. “Eu adorei ter acesso hoje a um filme que eles colocaram ontem. A crítica do Hollywood Reporter está no ar hoje e eu já vi o filme”, diz. Das séries, sua preferida é Fargo. “É uma obra-prima, tem humor negro e fiel ao filme dos irmãos Coen. A violência muito bem resolvida, atores ótimos. A minha paixão agora é o Fargo, eu fico esperando os capítulos”, conta.
Falar das séries do Netflix leva o assunto a “Narcos” e a Wagner Moura, a quem considera um amigo. Ele se exalta ao falar das críticas ao sotaque do ator brasileiro na série, em que interpreta o colombiano Pablo Escobar. “Brasileiro não gosta de brasileiro, tem raiva, tem inveja, tem ciúme. Acha que entende de tudo. Ninguém pode fazer sucesso no Brasil que as pessoas querem destruir”. Para ele, Moura é o grande ator brasileiro hoje, alguém que nem precisa ser dirigido porque já “vem pronto”. Ele só acha uma “ideia de jerico” o projeto de Moura dirigir o filme sobre a vida de Marighella no cinema. “O que o Marighella fez? É uma tragédia.”
Além de Wagner Moura, Rubens enxerga um momento único para os atores masculinos no Brasil. “Lázaro Ramos, Caio Blat, Daniel de Oliveira, Mateus Nachtergaele, que é maravilhoso. Temos uns sete ou oito atores (de alto nível), nós nunca tivemos isso. A gente sempre teve mulheres”, diz. Entre as atrizes atuais, ele cita Deborah Secco – “muito interessante, até como pessoa” – e Glória Pires – “uma estrela”. “Se há uma coisa que eu tenho prazer é que os atores gostam de mim. Primeiro que eu os trato com muito respeito – se é muito ruim (a atuação) eu dou um conselho produtivo, eu evito detonar ator. Porque eu sei que no cinema brasileiro a culpa não é do ator. Os diretores não sabem dirigir ator, têm medo de falar com eles”, comenta.
Mesmo com as críticas, ele vê uma safra interessante de novos diretores brasileiros surgindo nos festivais, gente produzindo filmes bons, mas que não conseguem chegar ao público. “Esse filme ‘Ausência’, que ganhou Gramado, é muuuito bom. Agora, você, leigo, iria ao cinema ver um filme chamado ‘Ausência’? Não é verdade? Gente, as pessoas não têm noção, não sabem vender nada. Tem cada título brasileiro que dá terror”.
O cinema brasileiro é um terreno delicado para Rubens. Tanto que ele costuma dizer que seu filme preferido é “Limite”, do Mario Peixoto, filme experimental dos anos 1930 pouco conhecido fora dos círculos cinéfilos. “Eu acho um filme excepcional, e também é uma forma de não brigar com ninguém.” Sua abordagem em relação a filmes brasileiros que ele considera muito ruins também mudou: hoje ele simplesmente não faz mais a crítica. “Eu ligo para a assessoria e falo: ‘Olha, querida, obrigado, mas eu já tenho inimigo o suficiente…’”, explica.
Rubens não se considera um crítico maldoso ou que tem prazer em destruir um filme – o que poderia ser um bom atalho para ganhar audiência nos dias atuais, caso ele se interessasse pelo que rola no Facebook, por exemplo. De fato, a crítica dele não costuma ter esse tom. O problema, segundo o próprio, é ele ser sincero demais. “Por que cazzo eu tenho que falar a verdade? Ninguém fala a verdade nesse país!”
Se a experiência em frente às câmeras foi breve, se resumindo à meia dúzia de pequenas aparições, a carreira de Rubens como roteirista é considerável. Em parceria com o diretor Silvio de Abreu, que conheceu em meados da década de 1970, escreveu pornochanchadas como “A Árvore dos Sexos” e “Elas São do Baralho”, esta última considerada um dos grandes expoentes do gênero. Mas o seu trabalho clássico é a novela “Éramos Seis”, que teve duas versões: a primeira na TV Tupi, em 1977, e a segunda em 1994, no SBT, até hoje lembrada como uma das melhores produções de dramaturgia da TV brasileira.
Coube a Rubens vender para Silvio Santos o projeto da novela no SBT. “Eu, do jeito tímido que eu era, vender para o Silvio, o maior vendedor! E ele comprou e pagou bem pela novela, deu todas as condições para trabalhar. O Silvio (de Abreu) não podia trabalhar porque estava na Globo. Eu pus o elenco que eu queria, acompanhei a novela o tempo inteiro”, conta. Não só pôs o elenco como aproveitou para exorcizar algumas questões. “Eu tinha colocado minha avó, uma série de coisas que eu queria falar para o meu pai, coisas que eu queria falar para a minha mãe. Um diretor geralmente começa com um filme autobiográfico. Então ‘Éramos Seis’ é meu filme autobiográfico”, diz.
Mesmo em ritmo mais lento, Rubens ainda tem muito o que fazer. Ele está preparando uma nova versão do “Dicionário de Cineastas”. “Era um absurdo não ter um livro sobre cineastas no Brasil, então durante dois anos eu fui nos arquivos do Estado de S.Paulo, eu trabalhava lá, mexendo, sozinho”, recorda-se. À época, o “Dicionário” era uma obra revolucionária e trazia, dentro de um oceano de informações, o título dos filmes originais em português – algo que o iMDB, a maior base de dados de cinema da internet, só foi fazer recentemente. A ideia agora é que o livro também tenha uma extensão online. Rubens também está preparando uma nova versão de “O Cinema vai à mesa” livro que mistura filmes e culinária.
O interesse em voltar a ser roteirista é quase nenhum, e não parece haver arrependimentos em não ter seguido uma carreira diferente – como ator, talvez. “Eu nunca quis ser ator, minha timidez é muito grande. E as propostas também não eram nenhuma maravilha”, diz. “Eu construí um personagem, que é esse aqui, com essa barbicha, com essa cara aqui, que é muito forte. E é marcado por 40 anos de carreira. Porra, eu não posso fazer outra coisa”.
No ambiente das redes sociais, pautado pelas opiniões definitivas, Rubens Ewald Filho tem pouco a falar. Sua página no Facebook – alimentada por um amigo – reproduz as críticas que ele posta em um blog escondido, e chega a uma audiência mínima. Ele não joga esse jogo, essa não é a praia dele. Mesmo assim, diz que se relaciona bem com as novas gerações que encontra nas cabines de imprensa. “As pessoas têm um pouco de medo de mim. Mas eu vejo toda essa geração nova nas cabines. Respeito a opinião deles, acho interessante. Essa turma de quadrinhos, que gosta de livros ‘young adults’, eu procuro ouvi-los falar”, conta.
A tentação de se sentir um “pastor de almas” em relação às novas gerações pode até ser grande, mas não parece ser o que lhe move. O que o anima é perceber que despertou o interesse sobre cinema em alguém. “Minha maior alegria é ir num festival e o cara que ganhou o prêmio depois chegar para mim e falar: ‘Olha, queria te agradecer, foi você que me fez gostar de cinema, vendo a Globo em tal ano’. Eu penso que não foi tudo em vão”, diz. A impressão é que, enquanto for possível, Rubens Ewald Filho continuará fazendo o papel de Rubens Ewald Filho, o crítico de cinema mais conhecido do país. “Katherine Hepburn dizia: se você sobreviver, você vira um monumento da história. E eu acabei virando um pouquinho isso. Eu não posso me elogiar, mas virei o crítico do Oscar, que tá até hoje aí trabalhando… Enfim…”
Para quem entrou na adolescência vendo “Dawson’s Creek” ou “The O.C”, do fim dos anos 1990 ao meio dos anos 2000, o futuro parecia relativamente simples: namorar na escola, fazer a faculdade dos sonhos, arrumar um bom emprego e um apartamento grande, casar com o amor da adolescência, ter filhos e pronto. Mas a vida não costuma ser assim tão simples, e as séries que retratam o período dos 20 e poucos aos 30 e tantos anos dessa mesma geração mostram um desfecho um pouco diferente. Entre “Girls” e “You’re the Worst” o que povoa a televisão hoje são os relacionamentos tóxicos, a falta de dinheiro, os sub-empregos ou o desemprego, as noites cheias de álcool e péssimas decisões.
“Love”, série produzida por Judd Apatow que estreou no Netflix na última sexta, é mais uma história nessa linha. Não se trata de nenhuma grande novidade, e sim de um filhote de “Girls”, que também tem Apatow como produtor-executivo. É uma série feita para um público bem específico, nascido entre os anos 1980 e 1990, sobre um grupo que está melhor de vida que muita gente, mas se sente completamente perdido. Como “Girls”, é cheia de personagens que beiram o detestável e situações constrangedoras, mas que, de alguma forma, dão um alento a quem também tem encontros micados, um emprego mais ou menos, e não está onde pensou que estaria por volta dos 30 anos. Por que eles são (provavelmente) mais problemáticos que você.
Na série, Mickey (Gillian Jacobs, a Mimi-Rose de “Girls”) tem um namoro que vai mal com um homem que precisa que a mãe o leve ao shopping para comprar roupas. No trabalho, num programa de rádio, é assediada pelo chefe e acha que vai ser demitida se não sair com ele. Gus (Paul Rust) não tem um relacionamento muito melhor: a namorada, que não o deixa nem escolher a cor do tapete da casa, reclama que ele fala “eu te amo” demais e diz que o traiu. Ele sonha em ser roteirista, mas trabalha num programa de TV como tutor de sua estrela-mirim, uma pequena diva que tem que passar numa prova para que ele mantenha o emprego. Os dois se encontram numa loja de conveniência, quando ela, sem carteira, entra numa briga com um funcionário por um copo de café e ele paga a bebida (e um cigarro) para ela.
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Diferente dos anos 1990 e 2000, quando as comédias românticas eram doces e idealizadas, as séries do gênero hoje em dia costumam optar pela abordagem “real”. Seus personagens têm vícios e defeitos, os relacionamentos demoram para se desenvolver, são cheios de idas e vindas, ciladas e momentos tão constrangedores que é difícil de olhar. Em “Love”, no primeiro capítulo, depois de uma discussão com a ex-namorada, Gus joga pela janela do carro todos os seus blu-rays enquanto culpa comédias românticas como “Uma Linda Mulher” por fazê-lo acreditar que o amor podia ser assim fácil. Uma prostituta e um homem rico nunca dariam certo, ele diz.
Essas comédias românticas que Gus despreza, como “Um Lugar Chamado Notting Hill” ou “Mensagem para Você”, são um retrato do que a sua vida provavelmente nunca será, mas seria legal se fosse. É reconfortante ver aquelas pessoas se apaixonando, o livreiro conquistando a estrela de cinema ou os dois inimigos unidos pela internet. A vida poderia ser assim. Com “Girls” ou “Love” — menos “reais” do que almejam ser, nem todo o mundo é narcisista e destrutivo desse jeito –, é o contrário, a sensação de assistir àquilo só conforta como antiexemplo. Pelo menos sua vida é melhor que isso, não?
No caso de “Girls”, é melhor que a protagonista Hannah (Lena Dunham) termine sem Adam (Adam Driver), já que eles não fazem bem um para o outro. Em “Love” é a mesma coisa e seria mais saudável que Mickey e Gus fossem só amigos. É ele quem se interessa primeiro por ela, que só resolve dar uma chance porque sua vida está péssima e ela acha que um “cara legal” é a solução para os seus problemas, o que não é o caso — até porque Gus está longe de ser perfeito. Juntos, é difícil de darem certo. E são as partes em que os dois estão separados, em que eles têm de lidar com seus próprios problemas, que são mais interessantes.
Mesmo sem grandes novidades, “Love” tem seus bons momentos. A amiga australiana de Mickey, Bertie (Claudia O’Doherty), é genuinamente uma boa pessoa e bastante engraçada, uma das poucas personagens ali por quem dá pra torcer. Seu jantar com Gus, arranjado por Mickey antes de ela aceitar o fato de que Gus gosta dela, é exibido quase em tempo real e é desastroso na medida certa, sem que a vergonha alheia tome conta do espectador. Quem gosta de “Girls” provavelmente vai se sentir acolhido com “Love”. Mas para ver uma comédia romântica mais original e mais real o próprio Netflix tem uma opção melhor: “Master of None”, que estreou em novembro do ano passado. Ali a vida amorosa do protagonista é mais próxima da realidade: nem perfeita, nem tão tóxica. E mostra que nem todo final precisa de um “felizes para sempre” para ser feliz.