Categorias
Cultura

A noite da morte dos Mamonas

Fernando Cavalcanti era o fotógrafo plantonista da madrugada no jornal Notícias Populares na noite de 2 de março de 1996, um sábado. Parte do trabalho envolvia ouvir a frequência da polícia num rádio e monitorar os crimes que aconteciam no período, para ir atrás daquilo que o jornal queria documentar. Ao ouvir um trecho de uma conversa, Fernando ligou para a delegacia em busca de informações sobre uma ocorrência e ficou sabendo pelo policial de um outro caso que desconhecia: um avião havia caído na serra da Cantareira. As informações eram poucas, mas com um repórter e um motorista, Fernando foi até o local. No caminho, ouviu o primeiro rumor de que os passageiros eram os membros da banda Mamonas Assassinas.

Naquela noite, 20 anos atrás, Fernando foi o primeiro fotógrafo a chegar aos destroços e a fazer imagens dos corpos dos integrantes da banda, que estamparam a capa do NP, que circulou entre 1963 e 2001. Com fama de jornal “espreme que sai sangue” e manchetes surreais, o NP já tinha publicado imagens de mortos, mais sangrentas que a dos Mamonas, em sua capa. Em 1992, por exemplo, colocou na primeira página a primeira foto dos mortos no Carandiru, com uma foto de corpos enfileirados ocupando toda a metade superior da capa. No caso dos Mamonas, porém, o interesse do público foi maior. A tiragem do jornal naquele dia foi recorde, lembra Fernando: 250 mil exemplares foram às bancas com a manchete “queda de avião mata a banda mais famosa do Brasil”.

Com letras bem-humoradas e figurinos variados, cheios de fantasias, a banda tinha estourado no ano anterior e lançado apenas um disco, com o nome da banda e músicas como “Robocop Gay”, “Vira-Vira” e “Pelados em Santos”. À época, o álbum tinha vendido mais de 1,75 milhão de cópias — o recordista do ano — e era sucesso principalmente entre as crianças. No auge, o grupo formado por músicos de 20 e poucos anos começava a ficar conhecido fora do Brasil e tinha viagem marcada para Portugal.

A banda, formada por Dinho, 24, Bento Hinoto, 25, Júlio Rasec, 28, Samuel Reoli, 22, e Sérgio Reoli, 26, voltava para São Paulo de um show no estádio Mané Garrincha, em Brasília. O avião fez o último contato com o aeroporto de Guarulhos às 23h20 e, depois de receber autorização para pousar, arremeteu. Segundo investigação, uma manobra arriscada do piloto e o desrespeito às normas de segurança da aviação causaram o acidente, que matou nove pessoas. O enterro, realizado em Guarulhos no dia 5 de março, reuniu 100 mil pessoas.

[olho]A tiragem do jornal naquele dia foi recorde: 250 mil exemplares foram às bancas[/olho]

Hoje com 43 anos, Fernando relembra em seu apartamento, com quadros de algumas de suas principais fotos e capas de jornal penduradas na parede, a noite do acidente. As imagens dos Mamonas estão numa caixa cheia de negativos, fotos soltas e álbuns com outras imagens impressionantes — mães reconhecendo corpos de filhos, famílias passando ao lado de cadáveres sem olhar para eles, crianças queimadas, cabeças cravejadas de balas. No NP, onde trabalhou por cerca de oito meses, fazia todo o tipo de pauta e já tinha visto muitos cadáveres, de todos os tipos, antes de ver os Mamonas. “Vi mais mortos naqueles oito meses do que as pessoas veem numa vida. Quantos corpos você já viu? Uns dez?”, pergunta.

O fotojornalista Fernando Cavalcanti. Crédito: Acervo pessoal
O fotojornalista Fernando Cavalcanti. Crédito: Acervo pessoal

Chegando ao local do acidente, um grupo de repórteres já estava a postos, sem acesso à área onde seriam feitas as buscas por corpos. Ainda era noite e o avião no qual os Mamonas estavam tinha caído no meio da mata. Todos esperavam até que, já com a luz do dia, chegou um helicóptero da Globo, cuja equipe fez um acordo com a equipe de busca: a emissora emprestaria o helicóptero se pudesse ter acesso às imagens do acidente em primeira mão. Formou-se um grupo para acessar o local e Fernando, que estava escondido no mato, tirou o colete que o identificava como fotógrafo e se infiltrou na equipe de resgate, seguindo atrás deles, com apenas uma lente e — o que descobriu chegando lá — um filme só, com 36 poses.

Depois de um tempo vendo cadáveres, diz ele, o choque com esse tipo de imagem diminui. No início tudo tem mais impacto, mas com o passar do tempo você se habitua a ver o sangue e consegue se desligar. E é diferente ver uma imagem através da câmera, que media a realidade, ressalta. “Se me perguntam qual a cor da camiseta do morto depois eu não me lembro, tenho que ver a foto”, exemplifica. O que dói de verdade é ver o sofrimento dos familiares. O corpo, no fim das contas, é só um corpo, de alguém que já se foi.

[olho]A Globo fez um acordo com a equipe de busca: a emissora emprestaria o helicóptero se pudesse ter acesso às imagens do acidente em primeira mão[/olho]

O que viu ali foram destroços do avião, equipamentos com o logo dos Mamonas e os corpos — encontrados a partir das 5h45 — em diferentes estados. Não dava, por exemplo, para reconhecer o vocalista, Dinho, pelo rosto — só um pedaço do seu maxilar permaneceu ligado ao tronco. Uma das imagens de que Fernando se lembra até hoje é a dos corpos embalados sendo içados por helicópteros da polícia, já que era impossível pousar no local.

Assim que a Globo concluiu sua matéria, todos os jornalistas foram liberados para chegar ao local e então Fernando teve acesso a mais filme — um motoboy do jornal veio pegar as primeiras imagens para levá-las ao jornal, já que na época não era possível mandá-las do local. Na hora, conta ele, você não sente que está fazendo uma cobertura importante, não pensa na importâncias das fotografias ou na relevância do acontecimento. Você simplesmente faz as fotos.

A ficha de que todos os integrantes de um dos grupos mais populares do momento tinham morrido num acidente de avião caiu quando ele chegou em casa para um almoço de domingo com a família, em que seus primos estavam chorando. Chegando lá, também se tocou de algo que tinha passado despercebido. Para o trabalho, os fotógrafos do NP usavam roupas escuras, já que frequentavam favelas e cenas de crimes e era melhor ser o mais discreto possível. Umas duas semanas antes do acidente, Fernando tinha fotografado os Mamonas num show e tinha ganhado uma camiseta dos integrantes, toda preta com um escrito que dizia “Mamonas”. Naquela noite, ele estava vestindo aquela camiseta, com outra blusa por cima, e não tinha notado. A sessão de fotos com a banda foi rápida, diz, mas ele se lembra que os músicos eram bem disponíveis e topavam fazer de tudo — estilo “jogar o Dinho pra cima”.

[olho]Uma vez que você entrega as fotos para os editores do jornal, você não tem noção do que vai acontecer com elas[/olho]

Uma vez que você entrega as fotos para os editores do jornal, você não tem noção do que vai acontecer com elas, diz ele. Não sabia, então, que as fotos dos corpos dos Mamonas iriam parar na capa, nem a dimensão que isso teria. A curiosidade do público foi tão grande que mesmo com a tiragem recorde do NP houve gente que não conseguiu ver as fotos, que mais tarde iriam parar na internet. O jornal organizou em sua redação uma exposição com as imagens, tão popular que os seguranças tiveram de colocar um fim na fila e impedir mais pessoas de entrar. Fernando recebeu propostas para vender as fotos originais para pessoas interessadas em revendê-las, mas negou.

Alguns meses depois de tirar as fotos dos Mamonas, Fernando, jornalista de formação, foi para a Inglaterra, onde passou quase sete anos. Lá conseguiu seu primeiro emprego no jornal semanal Sunday Times também trabalhando numa cobertura de uma morte de uma figura pública. Quando chegou em Londres para fazer um curso, ligou para o jornal atrás de uma oportunidade e, depois de mostrar o portfólio cheio de imagens de impacto, foi chamado para uma equipe de 30 fotógrafos que trabalhariam para o jornal cobrindo o funeral da princesa Diana, morta num acidente de carro. A foto que publicou no dia hoje ocupa uma das caixas em seu apartamento, assim como as fotos dos destroços do acidente dos Mamonas.