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A era dos desenhos
brasileiros na TV

Como as animações brasileiras deixaram a “Peppa Pig” para trás.

As crianças dos anos 90 não podem reclamar da falta de desenhos animados para preencher seus dias. Dos clássicos como “Scooby Doo”, de 1969, aos contemporâneos “Doug” e “Pokémon” tinha um pouco de tudo — comédia, ação, fantasia, produções americanas, japonesas. Só faltava uma animação brasileira — ainda mais uma de sucesso. Cenário bem diferente do de hoje, na melhor fase da animação nacional brasileira na televisão, com bastante oferta e retorno de audiência: atualmente, tanto no Discovery Kids quanto no Cartoon Network, os maiores canais infantis da TV paga, animações nacionais estão entre os líderes de popularidade.

A história do primeiro sucesso brasileiro no gênero, “Peixonauta”, começa lá atrás, 20 anos antes de sua estreia, em 2009. Foi quando Celia Catunda e Kiko Mistrorigo resolveram abrir uma produtora de animação quando quase ninguém produzia séries aqui e a animação nacional era mais voltada a publicidade ou vinhetas. A TV Pinguim, uma das produtoras de animação pioneiras no país, começou produzindo programas curtos para a TV Cultura — como “Rita”, em 1990 — e para o canal Futura. Naquele período, com pouco espaço na TV brasileira para produtoras independentes, os dois viajavam pelos mercados de televisão mundo afora com seus projetos debaixo do braço em busca de parceiros para produzir suas animações.

Em uma dessas viagens, fundamentais para o estabelecimento de uma rede de contatos, “Peixonauta” caiu nas graças e, produzido em associação com a Discovery, estreou no Discovery Kids em 2009 — antes da Lei da TV Paga, que estabeleceu cotas para exibição de programação nacional nos diferentes canais da TV fechada e estimulou o mercado de produtores. O programa sobre um peixe detetive em trajes de astronauta logo se tornou um dos campeões de audiência do canal. Na semana de estreia, surpreendeu o canal e foi a atração mais vista por crianças de quatro a 11 anos no horário. No ano seguinte, já era o líder na emissora, ganhou o prêmio de melhor programa infantil de televisão pela Associação Paulista de Críticos de Arte e passava em cerca de 60 países. Hoje, vai ao ar em mais de 80 países e tem um novo longa-metragem em vista para o futuro.

“Peixonauta” colocou a TV Pinguim no mapa do mercado audiovisual internacional. Tanto que a segunda série de sucesso da produtora, “O Show da Luna”, foi ao ar primeiro nos Estados Unidos, alguns meses antes de chegar ao Brasil em 2014. Na série, voltada para crianças em idade pré-escolar, Luna é uma menina curiosa e interessada por ciência que a cada episódio sai com um bloco de notas em busca de respostas para “tudo que é pergunta”, como diz sua canção de abertura. Tanto “Luna” quanto “Peixonauta” foram pensados para poderem ser entendidos e apreciados em qualquer canto do mundo — apesar de um país asiático ter pedido para que Luna não mostrasse as pernas descobertas por uma saia, o que foi negado pela produtora.

Coproduzido pela Discovery, o desenho ultrapassou o britânico “Peppa Pig” em popularidade e terminou o ano passado como líder de audiência no canal, garantindo uma segunda temporada de 26 episódios para este ano. A menina também ganhou as prateleiras e está em roupas, brinquedos, bonecos, artigos de papelaria, ovo de Páscoa, entre outros objetos.

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Cena de "O Show da Luna", do Discovery Kids
Cena de “O Show da Luna”, do Discovery Kids

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DO LADO DE LÁ

No mesmo ano em que “Peixonauta” estreava no Discovery Kids, começava o hit nacional do concorrente Cartoon Network, “O Irmão do Jorel”. Lançada em setembro de 2014, já era a animação mais vista do canal entre crianças 4 a 11 anos já no mês seguinte e teve novos episódios anunciados no fim do ano. O desenho começou a ser esboçado em 2003, época em que o criador Juliano Enrico compartilhava fotos constrangedoras de sua família na internet. “Sem exagero. Existe uma tonelada de fotos lindamente constrangedoras de família na minha casa. Tem foto até da família dos outros”, lembra Juliano.

“Com o tempo fui adaptando memórias e transformando aquelas pessoas das fotos (a maioria da minha família) e aquela atmosfera bizarra brasileira dos anos 70, 80 e 90 em personagens e cenários pra quadrinhos e depois série animada de TV.” O desenho mostra o cotidiano de uma família excêntrica, em que o filho mais novo é conhecido apenas como “o irmão do Jorel”, tamanha a popularidade de seu irmão, Jorel.

Em 2009, o Cartoon Network, que já mapeava o mercado nacional de animação, começou a buscar novos criadores e produtores para fazer novas séries. No Fórum Brasil de Televisão, o canal fez um pitching para que pessoas apresentassem suas ideias, vencido por Juliano. “A ideia do pitching era investir num piloto [primeiro episódio de uma série e espécie de teste], e se ficasse bacana, satisfatório, a gente transformaria em série”, conta Daniela Vieira, diretora de conteúdo do Cartoon Network no Brasil. “Juliano era um criador, não tinha produtora nem é sócio de nenhuma até hoje. A gente demorou anos pra desenvolver o piloto. Porque o que ele fez, com a nossa ajuda, foi literalmente viajar o Brasil procurando produtores ideias de animação, voz original — que é um setor bastante novo no Brasil, o de dublagem já existe há muito tempo, mas o de voz original é bem prematuro ainda.”

Juliano acabou escolhendo o Copa Studio para produzir o piloto. Durante a produção, conheceu Andrei Duarte, ilustrador que criou o conceito visual dos cenários (e que dá a voz para o protagonista, o irmão do Jorel), e Vini Wolf, diretor de animação da primeira temporada. “Esse tempo foi muito valioso pra encontrarmos as equipes certa pra transformar aquelas folhas grampeadas com grampeadores enferrujados em uma série de animação pra TV de humor engraçado.” Quando o piloto ficou pronto, Daniela conta que o canal gostou “muito, muito, muito” e deu sinal verde para a produção da série, que começou em 2011.

"Peixonauta", do Discovery Kids
“Peixonauta”, do Discovery Kids

Segundo Daniela, ter desenhos nacionais sempre foi muito importante para o canal, mesmo antes da Lei da TV Paga. Mas foi só em 2010 que o canal passou a ter uma equipe responsável por conteúdo no Brasil. Hoje, há uma equipe “robusta”: gente para produzir, promover e divulgar as animações, num cardápio bem variado. “A gente tem um misto de personagens que estão enraizados na cultura brasileira, então o Cartoon Network é a casa de ‘Turma da Mônica’ e ‘Sítio do Picapau Amarelo’, e personagens originais, como ‘O Irmão do Jorel’, que tem total aderência ao DNA do Cartoon, mas que tem um saborzinho nacional”, diz Daniela.

Antes da Lei, de 2011, eram quatro as séries nacionais do canal. Hoje são oito, numa lista que inclui ainda “Historietas Assombradas (para Crianças Malcriadas)”, “Gui e Estopa”, “Tromba Trem” e “Carrapato e Catapultas”. Todas, para Daniela, têm uma temática universal e uma veia cômica — fundamental para o canal –, mas elementos com os quais as crianças brasileiras conseguem se identificar. As séries são todas dubladas em espanhol e exibidas no Cartoon em toda América Latina.

MELHORA EXPONENCIAL

Na avaliação de Daniela, nos últimos anos a qualidade dos desenhos brasileiros teve uma melhora exponencial. “Falta muito ainda. Não vou dizer que a gente tem um nível de produção comparado a Estados Unidos, Europa e Ásia, porque a gente não tem. Mas tem um nível excelente”, afirma. Há oito anos, havia uma oferta grande de programas pré-escolares educativos, mas pouca variedade de gêneros, diz ela. “Não tinha série de humor, de ação, que mistura live action com animação. Era muito um gênero só e um público-alvo só. Hoje você encontra uma gama muito variada de projetos.”

O Cartoon Network recebe projetos de muitos criadores com ideias brilhantes, mas com pouca capacitação técnica para desenvolvê-los. É um problema que tanto Celia Catunda quanto Daniela Vieira apontam: não há escolas de animação no Brasil. “Tem muita ideia que precisa ser polida”, diz Daniela. Hoje, inclusive, conta que há aumento de demanda por animações brasileiras e não há produtores que atendam. “Com capacidade de produção e nível de qualidade excelente tem algumas casas que fazem isso. Muito concentradas no eixo São Paulo e Rio, a gente está tentando descobrir casas em outros Estados do país pra trazê-los pro Cartoon. A gente entra em fila indiana. Muitos projetos não estream quando a gente quer porque não dá tempo de produzir.” Mas em sua opinião, nos últimos dez anos o Brasil “fez um avanço absurdo” e no últimos cinco ainda mais. “Deu pra começar a brincar de animação.”

Brincadeira que, segundo Juliano Enrico, é bem trabalhosa. “As maiores dificuldades de se fazer uma série de animação são as inúmeras etapas que precisam começar e acabar com precisão cirúrgica pra não gerar um engavetamento entre os envolvidos e atrasos e tristeza no coração da equipe e de todo o Brasil. Isso tudo até que é divertido. Quando dá certo. Até agora deu certo. Mas é difícil”, diz ele. “É quase uma maratona com umas 50 pessoas correndo juntas acorrentadas umas as outras durante 18 meses. O equilíbrio entre produção e criação mantém essas 50 pessoas correndo loucamente com um propósito.”

Pelo fato de fazer uma série de animação ser um processo demorado — chegando a 24 meses, segundo Daniela –, não haverá produções novas neste ano no Cartoon. “Uma série que receba uma aprovação agora vai pro ar no fim de 2017, comecinho de 2018”, diz. Neste ano, o canal não abriu oportunidades para novos produtores, mas pediu novas temporadas de tudo o que já está no ar, com exceção de “Carrapato e Catapultas”. “A gente prefere criar uma relação longeva, saudável, com produtores que já estão na casa — o que já é bastante, é um volume expressivo de séries”, diz.

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