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O Evangelho segundo ‘A Bruxa’

A estreia do diretor Robert Eggers é uma batalha entre o Bem e o Mal.

 

E num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles.
Jó 1:6

A primeira cena de “A Bruxa” mostra um pai de família discutindo, de forma ríspida, com os sacerdotes de uma vila do século 17. William (Ralph Ineson) acredita que todos aqueles presentes na vila não temem e oram a Deus o suficiente. É preciso mais. Para William, há algo muito latente: o Bem e o Mal existem em sua forma mais pura. E, mesmo com séculos de distância, o filme de estreia do diretor Robert Eggers é capaz de causar a mesma crença no espectador.

Após o debate, a família deixa a vila e decide criar sua própria fazenda – e seu próprio mundo – próxima a uma floresta. William e sua esposa, Katherine (Kate Dickie), levam os cinco filhos para uma nova vida, uma vida calvinista. A filha mais velha, Thomasin (Anya Taylor-Joy), com feições angelicais, fica encarregada de cuidar do irmão mais novo, um bebê que, durante uma brincadeira boba, some de forma repentina. Daí em diante, a vida da família em sua pequenina fazenda se transforma. William e todos passam a ser uma espécie de Jó, da Bíblia, mas em uma versão em que todos pecam e, por consequência, perdem a batalha para Satanás.

Se hoje vivemos em tempos em que tudo é racionalizado e cientificamente esmiuçado, como entender e ter empatia com os sentimentos e reações que um povo sentia perante ameaças externas e, possivelmente, espirituais? Se hoje há teorias de que comidas estragadas causaram delírios em Salem na época das famosas queimas das bruxas, e se não damos mais espaço ao que pode não ser terreno, como mostrar o medo e o terror de quem acreditava, sem sombra de dúvida, que o Bem e o Mal disputavam o espaço na Terra?

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"O Grande Bode", de Francisco de Goya
“O Grande Bode”, de Francisco de Goya

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O esforço de Eggers e da produção do filme em nos transportar para a região da Nova Inglaterra, nos EUA, no século 17 é impressionante. O diretor diz ter estudado diversas publicações da época e criado uma gigantesca paranoia para conseguir criar uma pequena fazenda de época em seus mínimos detalhes – do figurino ao jeito em que as plantações eram feitas, passando pela linguagem da época e a iluminação à base de luz de velas. Tal esforço poderia ser apenas um TOC desenfreado de toda a produção, mas é extremamente necessário para acreditarmos e nos conectarmos com o que acontece durante todo o filme. Com uma paleta de cores escura e fria e bom uso da iluminação natural, Eggers criou a sensação de estarmos dentro de um quadro de Goya – fascinante, mas ao mesmo tempo assustador.

Além do trabalho de figurino e cenário, “A Bruxa” atinge isso com sua trilha sonora. Composta por Mark Kovern e executada com instrumentos incomuns, como a Nyckelharpa e o Waterphone, a música do filme cria a tensão necessária, com seus crescendos acompanhados de bons cortes, e é tão poderosa que faz com que o close em animais, como um coelho e uma cabra, crie um medo e uma tensão palpável, real, temerosa.

A construção desse cenário faz com que “A Bruxa” não seja um filme de terror da escola mais popular nos tempos atuais. Ele não irá lhe dar sustos repentinos, nem abusar de cortes frenéticos para causa confusão. O filme mora mais próximo de filmes como “O Iluminado”, mexendo com o imaginário do espectador de uma forma cruel e bem alimentada. Isso faz com que, ao aproximar-se da conclusão, em que o Mal toma forma e mostra seu verdadeiro plano, mesmo nós, racionais e céticos seres do século 21, consigamos acreditar que, sim, o mundo nada mais do que uma eterna batalha entre a luz e a escuridão.

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