Com o celular desligado na bolsa, é impossível precisar quanto tempo dura a primeira cena de “O Silêncio do Céu”, escolhido como o melhor filme do Festival de Gramado pelo júri da crítica e vencedor do prêmio especial do júri neste mês. Mas a sensação é de que, logo na abertura, Diana, personagem de Carolina Dieckmann, é estuprada por uma eternidade. Não há nenhum tipo de introdução. Se há trilha sonora, não se ouve. O filme de Marco Dutra, que estreia na próxima quinta, dia 22, começa com Diana imobilizada por dois homens, que se alternam na hora de estuprá-la, enquanto uma faca é apertada contra seu pescoço. Ela grita e chora enquanto a câmera fica bem perto de seu rosto, alternando entre mostrar sua reação e aquilo que ela está vendo. A sensação de assistir àquilo é horrível.
Como o espectador, seu marido, Mario (Leonardo Sbaraglia, de “Relatos Selvagens”), também vê a cena, como aprendemos logo na sequência. Novamente o público é obrigado a assistir a Diana sendo estuprada, dessa vez do lado de fora do quarto, acompanhando o ponto de vista de Mario, que chegou em casa mais cedo e, ao ver a cena, não faz nada para interromper. “Pra mim, a questão do ponto de vista era essencial. Por isso eu tratei a primeira cena com duas formas de encenação”, disse Marco Dutra a jornalistas depois da exibição do filme. “Isso teria que contaminar o filme todo, essas variações de ponto de vista. Pra incomunicabilidade dos dois pontos de vista ficar palpável, ficar forte”, continua. “Os dois estão vivendo uma situação de trauma, mas não é o mesmo trauma, apesar de ser o mesmo evento. A consequência não é a mesma pros dois personagens e era muito importante ter acesso a ambos. Por isso era importante cada um ter seu espaço, seu momento, e pegar as rédeas de seu ponto de vista.”
Depois que Diana é estuprada, ela toma um banho, prepara o jantar, e não conta a Mario o que aconteceu durante o dia. Ele também não conta a ela que viu o que aconteceu, e tenta arrancar dela uma confissão ao mesmo tempo em que vai atrás dos culpados. Apesar de o diretor afirmar que era uma preocupação retratar o ponto de vista dos dois, é mais uma história sobre como o estupro afeta Mario do que sobre as consequências para a Diana, um defeito comum em produções em que há violência contra a mulher, muitas vezes um acontecimento para dar o pontapé na história de um homem. “O Silêncio do Céu” começa e termina com a perspectiva de Diana, mas o verdadeiro narrador da trama é Mario, um homem cheio de medos e fobias tentando enterrar o que aconteceu e salvar o relacionamento, que já andava em crise. Até os 45 do segundo tempo só vemos Diana sob seu olhar — sempre de longe, no chuveiro, pela janela da loja onde trabalha. No terceiro ato, lá para o final do filme, ela assume a narração.
Segundo o produtor, Rodrigo Teixeira, o estupro é um assunto que “tem que ser discutido, todo o mundo é contra a violência doméstica”. Mas o que o atraiu no projeto foi a questão do silêncio entre o casal e a reação de Mario vendo a mulher sendo violada por dois homens e não fazendo nada. “Aquilo era uma premissa, independente da violência da cena, que eu não tinha visto em nenhum lugar. É tão forte que a gente tem um agente de vendas que comercializou o filme fora que fala pra mim que se esse filme feito em língua inglesa, ele teria um impacto muito grande”, afirma. Quando o filme foi feito, as conversas no Brasil sobre violência contra a mulher estavam bem mais fortes, e aí os produtores perceberam que o filme geraria ainda mais discussão por isso. “Não gosto de me aprofundar muito pra não entrar num lado político da história, mas eu sou contra a atitude feita pelo personagem da Carolina. Acho que foi extremamente bem retratado no roteiro, pelo diretor, pelos dois atores. Foi um mega desafio pra Carolina, que se entregou pra fazer essa cena.”
O SILÊNCIO
Sbaraglia conta que retratar o porquê de Mario não ter entrado no quarto quando vê Diana sendo violentada foi uma de suas maiores dificuldades. No livro “Era el Cielo”, de Sergio Bizzio, no qual o filme é baseado, está explicado que Mario tem tantas fobias que não conseguia reagir. “No romance está muito bem descrito. Contar isso no cinema, através de imagens, é muito difícil. Isso foi o mais complicado, que me preocupava. Ele queria se meter, mas não podia, afirma. Também foi complicado entender por que Mario não conversou abertamente com Diana sobre o que aconteceu. “Creio que o filme fala disso, como esse drama, essa tragédia que vivem esses personagens, é uma metáfora desse silêncio que termina sepultando uma relação. Terminei encontrando o personagem por aí, tratando de entender isso que não podia ser dito”, diz. “Encontrei o personagem de momento em momento, cena em cena. É um personagem de detalhe. Foi um trabalho muito bonito.”
Sobre filmar a cena do estupro, Carolina diz que quando vê que terá uma cena forte, a primeira coisa que sente é alegria. “Adoro uma cena difícil pra fazer, adoro um desafio.” Só queria fazê-la mais para o fim das filmagens, para se sentir confortável com a equipe — o filme foi gravado no Uruguai e é praticamente todo falado em espanhol. “[Eu queria] que eu tivesse com eles um pouco mais de intimidade pra lidar com aquilo, porque sei que é uma cena difícil, que é um desafio, que apesar de eu ser a única pelada tá todo o mundo um pouco exposto”, conta. Seu desejo não se realizou e ela gravou a cena na primeira semana de filmagem, mas diz que todos foram muito delicados com ela. “Emocionalmente a gente se conectou.”
Quando Carolina entrou no projeto, a ideia era que o filme fosse gravado no Brasil — o personagem de Sbaraglia seria um estrangeiro morando aqui. Por questões de produção a história migrou para o Uruguai e Carolina se tornou a estrangeira da produção, falando em espanhol a maior parte do tempo. “Foi um trabalho muito duro pra mim, porque eu sou uma atriz muito natural. Eu gosto de ir ficando cada vez mais natural. E você ficar natural numa língua que você não conhece exige um trabalho de mesa muito duro mesmo. Eu tive que dissecar o texto e criar uma margem praquele texto pra chegar na filmagem e não me sentir amedrontada diante do texto. Precisei criar uma intimidade maior com o que estava sendo dito”, diz.
Ela não tem muito diálogo, é verdade. Sua personagem fala pouco durante praticamente todo o filme, mas Carolina consegue transmitir bastante mesmo em seu silêncio. Sbaraglia, que tem mais tempo em cena (além dos dois, há poucos personagens de destaque), também é bom e o clima de suspense e tensão dura o filme inteiro. A última cena, como a primeira, é bem silenciosa e a sala de cinema permaneceu assim por bastante tempo — enquanto os créditos passavam, quase todo o mundo presente na sessão ficou sentado em silêncio, sem levantar ou dizer nada.
Mas mesmo que Marco Dutra reconheça que os protagonistas tiveram traumas diferentes após o estupro de Diana e que era importante ter o ponto de vista dos dois, quando o filme finalmente apresenta o lado dela é muito pouco e muito tarde. A situação foi difícil para Mario, mas foi muito mais para Diana, e no fim das contas saímos sem saber muito sobre sua experiência, não importa quão expressivo seja o olhar de Carolina Dieckmann — o silêncio dele é tratado no filme como mais importante que o silêncio dela, mais significativo. Teria sido melhor se fosse realmente uma história sobre o casal, e não só outro filme sobre um homem em crise.
Elas são fofas, amam cultura japonesa, vestem roupa de boneca, capricham na maquiagem, tiram muita foto fazendo “V” com os dedos e dão um show de confiança e auto expressão. As adeptas do universo kawaii são as pessoas mais fofas possíveis. Seja vestida de boneca ou de cosplay de Sailor Moon, todo mundo tem seu destaque na Mimi Party, evento que reuniu os adoradores da cultura kawaii japonesa em São Paulo.
Kawaii significa “fofo” em japonês e virou uma expressão para definir a cultura em torno da adoração da “fofura”. Que o Japão é apaixonado por coisas fofas todo mundo sabe. Essa fixação pela fofura surgiu há muito tempo no país, desde os anos 20, quando a maionese Kewpie, que tem um bebezinho com asas na embalagem, esgotou das prateleiras japonesas. Consequentemente, os amantes da cultura japonesa no Brasil acabaram aderindo ao movimento kawaii através dos animes, mangás e cosplay.
Sob a organização da embaixadora kawaii no Brasil, Akemi Matsuda, a Mimi Party está em sua segunda edição e além de ser um ponto de encontro para lolitas e cosplayers, também é um ambiente para celebrar o amor e a auto expressão. Vestida de rosa da cabeça aos pés, Akemi nos conta que o kawaii é uma cultura cujo objetivo é espalhar a paz pelo mundo. “Ser kawaii é expressar quem você é no interior através das roupas”, disse Medore Ruiz, umas das apaixonadas pelo estilo.
Após comermos uns sanduíches cor-de-rosa e uns sushis em formato de coração, batemos um papo com algumas das meninas mais kawaiis da Mimi Party sobre aceitação e Sailor Moon. E, no melhor estilo Harajuku, tiramos as polaroids mais fofas do evento.
Sei, 37 anos Se monta desde 1998. Seu look é a Sailor Moon com um kimono misturado com lolita.
“Eu comecei sendo cosplay, até que criei confiança suficiente pra me aceitar. Hoje sou Lolita.”
Stephanie de Paula, 20 anos Se veste kawaii há 3 anos.
“Eu me visto assim em eventos e também aos finais de semana. As pessoas ficam olhando, ou vem falar que eu pareço uma boneca e às vezes me tratam mal. Hoje mesmo o motorista do ônibus não abriu a porta pra mim.”
Jeniffer, 17 anos e Thainá, 18 anos
Akemi Matsuda, embaixadora kawaii no Brasil
Tamara, 24 anos Lolita desde 2010.
“Sempre fui apaixonada pela cultura japonesa e sempre amei bonecas. Foi aí que decidi ser Lolita. (…) Eu me visto assim apenas em eventos porque, infelizmente, ainda tem muito preconceito no Brasil, as pessoas olham feio.”
Juliana, 18 anos
“Eu comecei a me vestir assim pra me sentir bonita. Todo mundo quer se sentir como uma princesa, né.”
Miki e Kuma, 20 anos
“Eu amo maquiagem e amo anime. Por que não juntar os dois?” (Miki)
“Eu fui juntando várias referências que eu gostava e montei meu estilo. Esse, por exemplo, é um vestido que uso pra ir a faculdade. Às vezes a gente vai pra Augusta de lente de contato e brilho na cara.” (Kuma)
Zakuro (25 anos) e Haruka (23 anos)
“Me vestir assim é uma libertação. É uma maneira de expressar quem eu sou por dentro através do exterior.” (Zakuro)
“Gilmore Girls” não era um sucesso de audiência. Tampouco ganhou muitos prêmios — tem apenas um Emmy, numa categoria secundária (maquiagem), e uma indicação ao Globo de Ouro para Lauren Graham, a Lorelai. Depois de seu fim, em 2007, os principais envolvidos na série não tiveram lá trajetórias de muito destaque — Graham fez a série “Parenthood”, Alexis Bledel, a Rory, fez alguns episódios de “Mad Men” (e pouco mais do que isso), e a criadora Amy Sherman-Palladino não emplacou nenhuma outra série de sucesso. Como o casal Ryan Gosling e Rachel McAdams, “Gilmore Girls” parecia mais uma coisa do início dos anos 2000: foi bom, pena que acabou, as lembranças são carinhosas, mas parece ter acontecido em outra vida.
E então, em janeiro, o Netflix deu uma nova vida à série. Em 25 de novembro, em pleno dia de Ação de Graças nos Estados Unidos, quando as famílias se reúnem em casa, serão lançados quatro episódios de uma hora e meia de duração cada sobre a relação entre Lorelai Gilmore, sua filha, Rory, e sua mãe, Emily — o intérprete de Richard, seu pai, o ator Edward Herrmann, morreu em 2014. A estreia dos novos episódios, quase dez anos após o fim da sétima temporada, foi recebida com a festa na internet que faltou a “Fuller House”, revelando uma demanda surpreendente por “Gilmore Girls”.
Não só “Gilmore Girls” não ficou datada — surpreendente para uma série com um número tão alto de referências pop por capítulo — como rever a série dez anos depois é uma experiência quase nova, em que as percepções a respeito dos personagens mudam dramaticamente e de repente você se pega se identificando com os avós da trama. Na série, Lorelai é uma mulher que nasceu em uma família riquíssima e que fugiu de casa aos 16 anos, depois de ter um bebê e se recusar a satisfazer a vontade dos pais casando com o pai da criança. A relação com os pais é praticamente inexistente até que Rory, que sonha em estudar em Harvard e leu Proust quando criança, é aceita numa escola excelente, mas que custa os olhos da cara. Lorelai se vê obrigada a pedir um empréstimo para os pais, que impõem uma condição: para receber o dinheiro ela e Rory devem jantar com eles todas as sextas.
Lorelai e Rory são, como a série desenha pra você entender em vários momentos, mais que mãe e filha: são melhores amigas. “Gilmore Girls” pinta as duas como pessoas maravilhosas. Rory é uma gênia, leu mais livros do que é humanamente possível em seu período de vida, é paciente, educada, amada por todos os garotos que colocam os olhos nela. Melhor aluna na escola, aceita em todas as faculdades, editora do jornal universitário, contratada para cobrir as eleições presidenciais assim que ganha seu diploma. Lorelai faz monólogos como ninguém, dispara piadas e referências para todo lado, sabe costurar como uma profissional, é excelente no trabalho e querida por todos na cidadezinha em que vive. As duas comem quantidades impressionantes de hambúrguer, pizza e doces e nunca viram um vegetal na vida, mas continuam magérrimas.
Era, pelo menos, a impressão que a série me causou aos 13, 14 anos, quando comecei a assistir à série, e compartilhada pelas amigas na época – “Gilmore Girls” nunca fez muito sucesso com o público masculino. Rory, que começa a série com 16 anos de idade, representava um futuro perfeito no plano teórico: aquele em que você consegue as melhores notas, entra na melhor faculdade, mantém uma ótima vida social, tem tempo para ler e ver todos os filmes do mundo e parece destinada ao sucesso (como Rory, eu queria fazer ciência política e virar jornalista — plano que virou realidade). Lorelai, por outro lado, representava tudo o que era mais divertido naquela época. Era o futuro perfeito no plano prático, ela podia não ter a trajetória mais convencional, mas tinha personalidade e se saía de qualquer encrenca na base do humor e do carisma.
Sob esse ponto de vista, Emily e Richard são o outro lado da moeda: caretas, intransigentes, difíceis de lidar, incapazes de entender o espírito livre que é Lorelai. Julgam todas as escolhas da filha, desaprovam os namorados menos abastados de Rory, querem controlar a vida das duas a todo custo. Na adolescência, Lorelai é a mãe dos sonhos, aquela que tenta te convencer a faltar na escola e dar festas quando ela viaja. Emily é a mãe cheia de expectativas e cobranças, que não entende quem você é. Numa disputa entre Emily e Lorelai como mãe do ano não havia nem competição — Lorelai era a mocinha e Emily, a vilã.
Rever “Gilmore Girls” como uma pessoa adulta é uma experiência bem diferente e é um choque descobrir que nem Lorelai nem Rory são tão legais assim. Lorelai é o sonho dos adolescentes porque se comporta praticamente como uma. Nas suas próprias palavras, ela é flexível, mas só quando as coisas funcionam do seu jeito. Seus problemas de relacionamento com os pais são bem mais culpa dela do que deles: quando eles se oferecem para pagar a faculdade de Rory, ela se ofende; quando Rory se diverte ao passar uma tarde com o avô, ela sente ciúmes. O fato de ela passar anos tratando a hipótese de Rory estudar em Yale, onde os avós estudaram, como se fosse o pior cenário do mundo é irracional para dizer o mínimo. O mesmo vale para sua relação com o pai de Rory: ela passa a série inteira dizendo que ele é ausente, mas quando ele pede sua autorização para que a filha vá visitá-lo nas férias ela nem repassa o convite porque as férias da filha são prioridade dela.
Falemos de Rory, então: em vez de ser a criatura mais perfeita a pisar na Terra, como todos os personagens da série fazem questão de afirmar e reafirmar constantemente, ela é uma das adolescentes mais mimadas da televisão. Quando o dono do jornal em que ela faz um estágio lhe diz que ela não tem o que é preciso para ser uma grande repórter, qual sua atitude? Roubar um barco e largar a faculdade. Quando ela não consegue um emprego no New York Times logo após a formatura, ela não consegue ficar feliz pela amiga que conseguiu as vagas dos sonhos. Quando vê Jess, de quem ela gosta, com outra pessoa, ela joga ovos no seu carro mesmo que ela mesma tenha namorado. Quando ela transa com um ex-namorado que agora é casado e a mãe critica, o que ela diz? “Mas ele era meu primeiro.” Com o passar dos anos, inclusive, a voz de Rory vai ficando cada vez mais infantil e cada vez mais você pensa que, nossa, ainda bem que seu futuro não era esse.
Vendo a série numa outra idade, é mais fácil se identificar com Emily. Ela tenta criar Lorelai da maneira que acha melhor e, apesar de não entender que a filha não é como ela, tenta se aproximar o tempo todo e é constantemente recebida com quatro pedras na mão. Emily está longe de ser perfeita, mas, do jeito dela, ela tenta — é mais do que se pode dizer de Lorelai em boa parte da série.
“Gilmore Girls” envelhece bem porque é uma série sobre relacionamentos, principalmente entre mulheres (Richard, apesar de ser um dos protagonistas, é menos central que Emily). Em diferentes épocas da vida, é possível encontrar ali diversas camadas, interpretar as coisas de outra forma. Também por isso novos episódios são bem-vindos: dá vontade de saber que rumo a carreira de Rory tomou (segundo relatos iniciais, não está sendo fácil pra ela arrumar emprego como jornalista), a quantas anda sua vida amorosa, como está o relacionamento de Lorelai e Luke, o dono da lanchonete da cidade, como Emily se adaptou à vida sem Richard. É diferente de “Friends”, por exemplo, que é uma série sobre uma fase da vida — não faria sentido fazer episódios agora, com os personagens beirando os 50 anos. “Gilmore Girls” tem algo bem mais difícil de conseguir do que um prêmio no Emmy (afinal, vivemos em um mundo em que Jon Cryer ganhou um troféu por “Two and a Half Men”): longevidade.
Recomendamos a leitura acompanhada desta mixtape produzida pelo pessoal do Suppaduppa. Boa viagem:
O chão está coberto por gelo seco simulando as nuvens. Várias telas de TV reproduzem cenas do mar, uma imagem do céu é plano de fundo, e uma banda com quatro integrantes usando paletós e camisas sociais em tons azuis e beges domina o palco. O vocalista tem uma voz suave e um penteado à la Tom Cruise no filme “Negócio Arriscado”. Seus movimentos de um lado pro outro formam uma espécie de dança sincronizada e o som é uma mescla de sintetizadores com jazz, o mais puro City Pop. O ano é 1986, o local é Tóquio. 30 anos depois, sem gelo seco e com uma réplica de um castelo japonês como imagem de fundo, em Curitiba, mas com a mesma voz e um penteado mais contido, me encontrei com Carlos Toshiki, o ídolo nipo-brasileiro que abrilhantou as paradas musicais japonesas dos anos 80.
Anônimo no Brasil e ídolo no Japão, Carlos Toshiki viveu no Japão por 13 anos, onde fez sucesso com a banda 1986 OMEGA TRIBE. Foi presença frequente em centenas de programas de música e variedades, teve três álbuns no topo das paradas japonesas, além de diversos hits. Seu rosto estampou revistas e propagandas. Uma carreira pela qual ele possui muito orgulho. Meu encontro com Carlos aconteceu na Praça do Japão, em Curitiba. Assim que o encontro tento quebrar o gelo falando que todo mundo ao nosso redor estava jogando Pokemon Go ali na praça. Ele ri mas confessa não entender nada do tal jogo. Nos sentamos e Carlos começa a contar sua história, que tem início, naturalmente, na sua infância.
Nascido numa colônia japonesa em Maringá, Carlos foi criado de acordo com os costumes nipônicos. Seu pai era DJ da rádio da colônia e era conhecido por sempre tocar novidades vindas do Japão, desde músicas pops ao tradicional enka. Por este motivo, Carlos acabou criando um gosto pela música e pelo canto. Ele lembra que aos 9 anos, chegava do colégio e se trancava no quarto para cantar por horas. “O tempo voava”, fala com um sorriso saudoso. Como não sabia escrever os ideogramas japoneses, escrevia as letras das músicas da maneira que ele ouvia e as decorava. Seu pai começou então a notar o dom do filho para o canto e queria que ele se envolvesse nos concursos de canto que a colônia fazia. O pânico de Carlos, porém, era subir no palco e enfrentar uma plateia – apesar de também ser seu maior sonho. “Eu não gostava de cantar para as pessoas. Era um paradoxo. Eu gostava de cantar só para mim.” Para incentivá-lo, seu pai prometeu que o daria uma passagem para Tóquio caso ele fosse o campião brasileiro do Concurso de Canto.
Carlos me falou que a ideia de ir a Tóquio despertou nele o desejo de seguir um sonho que estava cada vez mais próximo. Primeiro, ficou em terceiro lugar no concurso municipal de Maringá. Depois tornou-se o melhor no Paraná. Ele tinha orgulho de falar para todo mundo que se ganhasse o concurso nacional, iria para o Japão estudar canto. Todos ao seu redor torciam pelo seu sucesso. “O universo conspira a teu favor, né? Quando você tem uma paixão as coisas começam a girar a teu favor, as pessoas te ajudam”, ele conta.
Gratidão é o termo que o Carlos citou inumeras vezes durante nossa conversa. E foi nessa vibe positiva que ele chegou ao concurso nacional e ganhou primeiro lugar como melhor cantor, em 1981, aos 17 anos. “Eu não sei se os jurados tiveram dó de mim, mas eu fui campeão”, diz, rindo.
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Seu pai teve que pagar a promessa e assim Carlos finalmente viajaria para o Japão. Apesar da certeza de que iria viajar, ainda era incerta a maneira como viveria lá. O Brasil passava pela ditadura militar e não tinha nenhum acordo diplomático com o Japão. Financeiramente, era impossível enviar dinheiro do Brasil para lá. O sonho parecia distante – mas ao mesmo tempo muito próximo. Mais uma vez, rodeado de positividade, Carlos se apegou às boas energias e embarcou para Tóquio. Depois de 42 horas de viagem e 3 escalas, chegou ao Japão, onde viraria uma estrela nacional. Mas não foi tão fácil assim.
Chegar em Tóquio foi uma explosão de emoções e alegrias para Carlos. Foi lá que ele descobriu novos estilos musicais e se aprofundou em artistas que antes conhecia muito pouco por conta da ditadura militar – ele era fã dos Beatles mas nem imaginava toda a grandiosidade em torno da banda, que no Brasil ficava limitada a tocar uma outra música na rádio. Não tinha mordomia ou luxo algum, se alimentava de amostras grátis de supermercado e amendoim porque “enche a barriga, né”. Sofreu com o preconceito de ser um estrangeiro dentro da sua terra mãe – os japoneses não aceitavam o fato de Carlos ser um nipo-brasileiro. A comunicação também não ajudava: seu japonês soava ultrapassado ao tentar conversar com as pessoas. A solidão assolou sua vida. Porém, a música e o sonho de ser cantor o mantinham esperançoso. Contanto que ele tivesse um microfone e uma caixinha de som, ele ficava feliz.
Foi no seu emprego como lavador de pratos – em que ele ganhava menos por ser brasileiro – que começaram a surgir as oportunidades musicais. Por pedido de seu chefe, começou a cantar no karaokê durante os intervalos. Aos poucos, Carlos começou a ficar conhecido entre os clientes. Algumas pessoas passaram a frequentar o restaurante só para ouvi-lo cantar e uma delas o convidou para gravar comerciais de rádio. Pela grana “fácil”, ele topou e gravou seus primeiros jingles. Ao ouvir sua voz na rádio, seu orgulho em cantar só aumentava.
Durante os três primeiros anos de sua estadia em Tóquio, dedicou seu tempo entre os bicos que fazia, as aulas de canto e gravação de demos e ensaios com banda. Após inúmeras tentativas de entrar em uma gravadora e desenvolver sua carreira musical, Carlos pensou em desistir – achava que tinha chegado ao seu limite e precisava dar um rumo na sua vida. Decidiu que tentaria mais um ano e, caso não conseguisse, seguiria sua vida em uma nova carreira. Três meses depois, após ouvir uma das fitas demo do Carlos, o produtor Koichi Fujita queria conhecê-lo. Fujita era o produtor da banda OMEGA TRIBE, que acabava de perder seu vocalista e estava a procura de um novo. “Timing perfeito”, segundo o Carlos. Ele fez o teste e de cara gostaram do resultado. E em pouco tempo, Carlos Toshiki tornou-se o vocalista do 1986 OMEGA TRIBE, rebatizada pela nova formação.
Carlos me contou que a banda tinha uma imagem de veraneio, resort, uma estética bem tropical. E, por isso, o produtor decidiu levá-lo ao Havaí para poderem se conhecer mais e imergir Carlos na estética do grupo. Entre uma conversa e outra, Carlos comentou que achava engraçado que em japonês o numeral 1000 se fala “sen” e no Brasil “cem” é 100. A partir daí, o produtor teve a ideia para o primeiro single de Carlos com a 1986 OMEGA TRIBE: “Kimi wa 1000%” (você é 1000%), uma brincadeira entre Brasil e Japão. Carlos então gravou a música que consolidaria sua carreira e que, mais tarde, seria eleita como uma das músicas da geração. Mesmo sem entender muito o japonês da letra, Carlos gravou “Kimi wa 1000%” focando na energia que colocava em cada melodia. O single, que marca a estreia de Carlos como vocal do grupo, foi lançado em maio de 1986 e virou o tema da novela Doyou Grand Gekijou, que passava em horário nobre da televisão japonesa.
Abertura da novela Doyou Grand Gekijou com a música Kimi Wa 1000%
1986 foi um ano importante para o Japão. Marcou o início de uma bolha econômica pós-guerra, época em que o dinheiro rolava solto e os japoneses consumiam bens de consumo como nunca antes. Musicalmente, era o auge do City Pop, gênero musical que mesclava jazz, sintetizadores, rock adulto e mais um monte de referência absorvida da cena musical americana. O City Pop e a bolha econômica estavam intimamente ligados. O gênero musical representava a imagem urbana e tecnológica pela qual a bolha econômica estava guiando o “novo Japão”. Nesta época, diversos músicos e bandas surgiram (na época chamados de idol), e a música era um negócio super rentável. Novos programas de música surgiam todos os dias, cada vez mais glamurosos.
Recentemente, a internet reviveu o City Pop. O vaporwave, gênero musical que tem como base o uso de samples de músicas oitentistas misturado a outros beats, permitiu o conhecimento de diversos artistas japoneses. Até o Ed Motta tem revivido o som através das suas mixtapes. O Youtube também é uma fonte preciosa de músicas city pop. É impressionante a quantidade de vídeos gravados dos programas de música da época. Eu mesmo conheci o Carlos Toshiki e a OMEGA TRIBE através do Youtube. E isso foi um choque pra ele! Como era possível que eu, aos meus 24 anos, recifense, sem descendência japonesa conhecia uma banda que fez sucesso 30 anos atrás?
“Kimi wa 1000%” foi lançada e atingiu o 17° lugar no Oricon, parada musical japonesa. Com isso, foram chamados para se apresentar pela primeira vez na televisão, no programa mais importante da época, The Best Ten. Como o nome indica, o programa chamava os 10 melhores artistas da parada musical e fazia um segmento chamado de Spotlight, mostrando as apostas da música. Foi nesse segmento que o 1986 OMEGA TRIBE fez sua estreia. Em poucos dias, a música pulou de 17° para 7°, até que chegou ao 2° lugar nas paradas.
Primeira apresentação na TV que Carlos fez no programa “The Best Ten”
Carlos lembra perfeitamente do dia após sua primeira apresentação na TV. “Eu saí na rua no dia seguinte e as pessoas começaram a falar meu nome, a falar: ‘Olha lá, o Carlos da ÔMEGA TRIBE’!” Da noite pro dia, Carlos tinha virado um idol. Ele brinca que sua história foi igual ao conto da Cinderela: ele dormiu como aspirante a cantor que lavava pratos em restaurante e acordou como um astro da música japonesa. Depois de três anos persistindo o sonho, finalmente conseguiu alcançá-lo. A solidão que ele sentia, entretanto, intensificou. Repentinamente, começaram a surgir inúmeros “amigos” e parentes que nunca tinham procurado o Carlos em seus quatro anos de Japão. O dinheiro não faltava, assim como as amizades por interesse. Sua essência, entretanto, continuava a mesma: contanto que pudesse cantar e expressar sua paixão, tudo estava bem.
A bolha econômica unida às tradições japonesas aumentou a pressão sobre os adolescentes da época. Eles precisavam ser os melhores na escola, na universidade e no trabalho. A concorrência era acirrada e, aqueles que ficavam na margem da excelência, se entregavam ao desespero. O suicídio era uma saída comum dessa situação. A música teve um papel importante para os jovens dessa época pois servia como válvula de escape da vida real. De alguma forma, ela ocupava a mente e evitava pensamentos perturbadores. Carlos percebia a importância que sua música e imagem tinham sobre os fãs. “Eu descobri que a musica é um instrumento que faz com que você entre no coração das pessoas na maior naturalidade”, comenta. Agradar os fãs era sua maior motivação.
Sua conexão com os fãs era o elo mais valioso para ele. Diariamente, Carlos recebia cartas das fãs comentando a paixão por ele e também relatando as dificuldades da vida adolescente nos Japão dos anos 80. O sentimento dos fãs inspiravam as composições de Carlos, que de alguma maneira queria retribuir o amor e admiração e ajudá-los a superar as dificuldades, assim como ele estava tentando superar a própria solidão. “Era uma relação de troca.”
Por 5 anos, a 1986 OMEGA TRIBE lançou 6 álbuns, 12 singles, mudou de nome para Carlos Toshiki & OMEGA TRIBE, se apresentou em centenas de programas, virou um dos hinos da geração. Álbum após álbum, os interesses da gravadora e os de Carlos iam se contrastando. Carlos queria seguir sua paixão, fazer músicas que tocassem seus fãs, mas a gravadora da banda não conseguiu acompanhar o amadurecimento dos fãs e começou a forçar Carlos – que na época já tinha seus 27 anos – a fazer músicas cada vez mais adolescentes e com temáticas que não condiziam com seu momento de vida. “Hoje eu vejo que a música é modismo. Se você não cantar de certo modo, você não vende. Música não é arte, é comércio.”. Esse foi um dos motivos do fim da banda, em 1991.
O ano também foi marcado pelo “estouro” da bolha econômica. Com isso, a economia japonesa entrou declínio, influenciando diretamente no modo de vida da população e na música ouvida. O City Pop, que representava toda a prosperidade da bolha, tornou-se obsoleto e ultrapassado. O som não representava mais o Japão contemporâneo. Este novo momento foi crucial para os artistas que marcaram os anos 80. Grande parte deles decaiu das paradas musicais até desaparecer no ostracismo. Carlos Toshiki, após o fim da banda, decidiu seguir carreira solo. Lançou três álbuns solos que mesclavam músicas em japonês e português.
Em certo momento da entrevista, Carlos decidiu mostrar seus vinis, revistas e CDs que guardava numa mala. Após folhear várias pastas com recortes de revista e nos mostrar com orgulho seus vinis, Carlos nos conta qual foi sua maior realização profissional nos seus 11 anos de Japão: entrevistar Zico e Ayrton Senna.
Assim como Carlos, Zico e Ayrton eram dois brasileiros que o Japão idolatrava. Senna, conhecido no Japão após o circuito de Suzuka em que conquistou três títulos, era símbolo de conduta e profissionalismo – princípios marcantes na cultura japonesa – e encantava pelo seu carisma e humor. Zico, por sua vez, conhecido pelos japoneses como “Deus do Futebol”, jogava no Kashima Antlers e ajudou a consolidar a paixão local pelo futebol. Ele abre o Youtube no seu celular e nos mostra a entrevista com muito orgulho.
Em 1995, após operar de hérnia de disco, Carlos decidiu voltar para o Brasil e deixar a carreira musical de lado. A paixão que sentia pela música tinha se transformado em um peso e cantar já não o satisfazia. De volta ao Brasil, tocou o restaurante que a família tinha em Curitiba e, atualmente, trabalha em uma biofábrica, onde reencontrou a paixão que sentia apenas pela música. Após ser um astro no Japão, Carlos é hoje um dos maiores especialistas em alho do Brasil. Mas sua carreira como artista não teve fim.
Neste ano, 30 anos depois do lançamento de sua primeira música, Carlos foi convidado pela sua banda de apoio para fazer uma turnê de comemoração no Japão. Nervoso com a ideia de voltar aos palcos e retomar a carreira que estava parada há mais de 15 anos, mas empolgado com a ideia de encontrar novos e antigos fãs, Carlos aceitou. Quando perguntei sobre suas expectativas ele respondeu, bem sincero: “Eu não faço ideia! A turnê surgiu do nada e foi toda organizada pela banda de apoio. Eu sei que estou empolgado por que vai ser um show com o Carlos de 52 anos mas com a energia que eu sentia no passado”. A turnê vai ter 12 shows – e dois deles, em Tóquio e Yokohama, tiveram os ingressos esgotados no primeiro dia de vendas. É um novo momento – agora misturando nostalgia, gelo seco, passado e presente – para Carlos ser um ídolo no Japão.
Foram 23 anos afastado da produção cinematográfica. Quando retornou, em 2013, com o comovente “A Dança da Realidade”, Alejandro Jodorowsky mostrou mais uma vez sua sensibilidade criativa. Recentemente em 2016, ele concretizou a segunda e derradeira parte da obra autobiográfica iniciada naquele ano. “Poesía Sin Fin”, lançado no festival de Cannes, fecha o ciclo. “Daqui dois dias faço 86 anos… é muita coisa. Porque, aos 86, eu estou lutando para fazer mais um filme? Porque nada é mais importante para mim. Mas por que alguém que pode morrer um dia ou outro quer tanto fazer um filme? Porque quando se tem 86 anos, você acorda todas as manhãs e diz ‘eu ainda estou vivo’”, declarou em seu vídeo de campanha para arrecadação de fundos no Kickstarter.
Ele já fez muita coisa para as telas, mas é sempre lembrado especialmente pelos longas “El Topo” (1970), clássico western psicotrópico, fenômeno dos “corujões”, e “A Montanha Sagrada” (1973), uma surrealista abordagem do esoterismo ocidental. Chileno filho de imigrantes judeus ucranianos, hoje morando na França, Alejandro sempre foi muito produtivo artisticamente, assim como engajado no estudo da consciência humana. Além de cineasta, ele é um estudioso em religião comparada, dramaturgo, compositor, ator, mímico, roteirista de quadrinhos, escritor, leitor e historiador de tarô e psicoterapeuta – a partir da soma de seus conhecimentos em tarô com a sua experiência teatral e influenciado pela psicanálise e o xamanismo, ele criou a chamada psicomagia.
Quase foi dele a adaptação da ficção científica épica “Duna”, de Frank Herbert, que terminou nas mãos de David Lynch e foi lançada em 1984. A história do colapso desta produção grandiloquente que contaria com a participação de Salvador Dalí, Orson Welles, Pink Floyd e Moebius está contada no documentário “Jodorowsky’s Dune”. O material criado em parceria com o ilustrador Moebius, no entanto, foi a sua porta de entrada nos quadrinhos, com a série “O Incal”.
Mas nem todas essas histórias e a paixão dedicada a cada uma delas foram capazes de dissuadi-lo da necessidade de contar a sua história, costurada por lúcidas reflexões, num filme, para sentir a alma apaziguada. Outros filmes podem vir. “Poesía Sin Fin” veio só passar a chave do legado cumprido nesta encarnação. Para o público, que busca sabedoria em suas mensagens em qualquer que seja a plataforma, resta a esperança de poder contar com o quanto possível, pelo máximo de tempo que o “todo” permitir, de sua força poética.
Em seu primeiro respiro desde abril, quando finalizou os cortes definitivos de “Poesía Sin Fin”, Alejandro Jodorowsky dedicou alguns minutos de conversa ao Risca Faca.
Risca Faca: Agora que “Poesía Sin Fin” foi concluído e selecionado para o Festival de Cannes deste ano, você se considera um cineasta plenamente realizado? Digo, restam ambições artísticas para concretizar?
Alejandro Jodorowsky: Um artista é um artista até o momento de sua morte. Não faço cinema para ser aplaudido em festivais, nem para ser célebre, nem para ganhar montes de dinheiro. Faço cinema porque é uma arte essencial para mim, faz parte de meu ser autêntico, o amo com intensa paixão. Minha única ambição é conseguir filmar mais coisas até quando conseguir, mesmo numa cadeira de rodas.
No senso comum você geralmente é citado como um autor ou diretor cult. Você acredita que essa definição é prestigiosa ou reducionista? Quem é você?
Ao longo de toda a minha vida tenho lutado para ser espiritualmente livre. No âmago de mim mesmo, não tenho idade, não tenho nacionalidade, não tenho nome, não tenho rótulos que me definem. Se me pergunta quem sou, respondo: “Sou você”.
Olhando em retrospecto para o seu legado, você é capaz de perceber os diferentes estágios de sua produção criativa e associá-los à sua evolução pessoal?
Nasci com um corpo que foi se desenvolvendo até chegar na velhice, contendo uma alma que nunca mudou. Minha alma não tem fases; é o que é, independentemente de seu estágio evolutivo ou da decadência final de meu corpo. Não creio na arte com meu ego (a personalidade artificial criada pela família, a sociedade e a cultura), crio na arte com minha alma. Cada película que já realizei não foi um produto articulado para agradar o máximo de clientes, e, sim, a expressão de meu ser real, tão real como meu coração, meu fígado ou meus testículos. Um artista não evolui, e, sim, avança despojando-se dos limites que lhe são impostos pela decadente realidade.
Sobre a experiência que você teve com a campanha de financiamento coletivo para a realização de “Poesía Sin Fin”: que lições você aprendeu com o tipo de relação empreendido com seus apoiadores e detratores?
Eu confio no valor da raça humana. Não creio que os jovens são idiotas consumidores de merda industrial. Creio que há uma multidão de jovens entediados com a futilidade de Hollywood, esperando pacientemente pelo advento de uma arte que lhes proporcione uma visão sana do mundo, que lhes revele seus valores essenciais, que lhes mostre o amor pela vida. Confiando nisto, recorri à mendicância sagrada. Os 10 mil colaboradores do crowdfunding me deram razão.
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[/imagem_full] Muitas pessoas o consideram um mestre. Mas quem são os seus mestres?
Como não me considero um Maestro, não existem Maestros do Maestro. Creio que um ser chega ao seu máximo desenvolvimento espiritual quando aprende a admirar os valores dos outros. Admiro uma infinidade de artistas, de campeões, de heróis, de gênios e de santos.
Enquanto muitos artistas geralmente decaem após um pico criativo durante certo período, você continua fazendo coisas inovadoras, como fez em cada fase anterior de sua vida. A razão disso é por que você sempre tem algo a dizer, então fica mais natural colocar a alma em suas expressões?
No século 20 você usava um aparelho que servia para só uma coisa, que se chamava telefone. Agora, no século 21, usa um aparelho móvel, que não serve apenas para conversar com seus semelhantes, mas também escutar música, assistir filmes, programas, jogar etc… Este é o segredo do múltiplo. Antes se respeitava aqueles que faziam uma só coisa, era artista, engenheiro, médico, comerciante etc… Agora o ser humano está aprendendo a ser múltiplo, não se encerrar num só ofício, ou uma só classe de expressão… Cocteau, Pasolini, Leonardo da Vinci, Gurdjieff e muitos outros mais, entre eles eu, não temos o complexo de ser uma coisa só. Livres dos rótulos praticamos aquilo que nos dá vontade.
Com todos os ataques terroristas recentes pelo mundo, você acredita que a humanidade será capaz de alcançar a consciência antes do fim da Terra?
A Terra é o planeta onde vive a humanidade. É natural que devoremos este planeta. Logo emigraremos a outro planeta que chamaremos de Terra. E isso não tem fim. O dever dos humanos que libertam sua consciência é despertar nos medíocres o desejo de libertarem as suas consciências. Se você, eu e outros seres com cérebro livre nos dedicarmos a libertar as multidões, ao invés de convertê-las em consumidores infantilóides, poderemos viver em um mundo movido por energias saudáveis, sem fronteiras, porém respeitando as diferenças, todos distintos e não competitivos, trabalhando por um objetivo em comum, o desenvolvimento feliz de um quarto cérebro com faculdades parapsicológicas.
Considerando que os continentes andam doentes, com toda a violência, guerras e mazelas políticas, que tipo de psicomagia social seria capaz de curar uma ferida tão profunda?
O problema atual é imenso, começa lá na pré-história: fazem muito poucos anos, não mais que 200 mil, quando éramos parecidos com os macacos. Somos animais em desenvolvimento genético. Por meio de guerras cada vez mais mortíferas, estamos aprendendo a desenvolver as capacidades dos milhões de neurônios que temos em nosso cérebro. Haverá uma mutação na raça humana. Os insetos, diante de suas dificuldades vitais, se defendem mudando. Por que nós não seríamos capazes de mudar, como fazem todos os demais seres viventes? Mudaremos! Aqueles que já demos um passo mais adiante, na impossibilidade de mudar o mundo, devemos começar a mudarmos a nós mesmos, para ir comunicando uma visão sana da realidade a todos os que nos rodeiam.
O que é a vida?
É isso. A vida passada já passou. A vida futura aqui não existe. Existe só o agora, o presente, um todo que está sempre em mutação.
Diz o ditado que não se deve julgar um livro pela capa, mas para Paul Buckley, diretor de arte da editora Penguin, uma boa capa é fundamental. “A capa é com frequência a maior peça publicitária que um livro terá e representa a diferença entre ‘eu quero levar isso pra casa’ e um potencial comprador nem notá-lo”, afirma. Colocar uma foto genérica com um título em cima, por exemplo, é preguiça sem inspiração. “E gente sem inspiração precisa seguir em frente e abrir espaço para gente que curte exercer essa habilidade.”
Produzir uma capa de livro é bem mais do que só escolher uma foto qualquer e uma fonte para o título e o nome do autor. É um processo que pode levar de três horas a três meses, diz Buckley. “Clássicos são uma experiência bem mais agradável do que ficção nova, que pode ser um trabalho bem dramático”, opina. “Todo o mundo envolvido pode amar o seu primeiro instinto e a primeira coisa que você cria, ou podem odiar tudo até que o cara do correio esteja batendo em sua porta.” Na Penguin Random House, um diretor de arte é responsável pela identidade visual de um só selo, enquanto o diretor criativo coordena todos os diretores de arte e designers para supervisionar as capas dos 16 selos, que incluem centenas de autores. “Bem mais do que mil capas únicas passam por esse departamento em um ano”, conta.
Entre o manuscrito e a capa — mesmo aquelas em que há uma foto do filme a que o livro deu origem — há muitas etapas a serem cumpridas. A editora pode envolver, além de seu próprio time, uma equipe externa de ilustradores, designers, responsáveis por fontes feitas à mão e pesquisadores, e outros participantes do ciclo de vida de um livro: autores, agentes e até grandes compradores, que dão opiniões sobre o resultado.
“Nenhum projeto de design é algo completamente individual. Design é essencialmente um diálogo. Numa capa, por exemplo, você precisa dialogar com o conteúdo, com a editora, com o potencial leitor, com o orçamento de impressão, com o autor… É um grupo grande de interlocutores. Algumas capas de livro, contudo, possibilitam discursos gráficos e abordagens bastante subjetivas. E, nesses casos, a individualidade de cada designer pode emergir com força Digamos, portanto, que é um trabalho em grupo que, em certas ocasiões, possibilita também uma expressão individual”, conta Gustavo Piqueira, da Casa Rex, que já fez capas para editoras como a Martins Fontes e a Lote 42. (A Casa Rex também assina a identidade visual do Risca Faca.)
Para o designer, a liberdade na hora de criar uma capa depende muito da editora. “Algumas te dão liberdade criativa completa e outras querem te dizer exatamente qual fonte usar. Só posso falar por mim, mas tenho certeza de que a maioria dos designers prefere pouca ou nenhuma direção a excesso de direção”, diz Catherine Casalino, que trabalhou em editoras como Simon & Schuster, Hachette e Random House.
Seu primeiro passo ao começar um projeto é ler o material que a editora fornece, do plano de marketing ao manuscrito completo — se houver (no caso de livros de não ficção, é menos comum que o texto esteja pronto até o momento de chegar ao capista). “Tem muita informação no texto que pode te ajudar com o design da capa e ler o livro te dá uma ideia melhor do humor do escrito — é sério? Bem humorado? Literário? Tudo isso pode te ajudar a fazer uma capa apropriada.”
James Jones, designer responsável por capas como a de “A Brief History of Seven Killings”, vencedor do prêmio Man Booker no ano passado, diz que é importante também entender por que o editor se interessou pelo livro. “Aí meu trabalho é visualizar isso para o leitor. Eu gosto de ler pelo menos uma parte do livro para sentir o ritmo da escrita. Cada livro tem um ritmo diferente, que eu tento encontrar. Enquanto leio esboço muitas ideias. Tenho sorte de nunca faltar ideia, mas melhorei na seleção de quais levar em frente. Desenvolvo algumas das ideias iniciais, antes de esperar um pouco e deixá-las descansar. Quando volto ao projeto, espero que a direção a seguir esteja mais clara”, diz Jones.
“Eu tento visualizar o design da capa como um problema visual que precisa de solução. O próximo passo é olhar exaustivamente referências visuais. É um tipo de processo aleatório, até que engatilha uma ideia”, conta David Drummond, da Salamander Hill Design. Na hora de achar referências, vale tudo. Justine Anweiler, da editora Pan Macmillan, busca inspiração na Amazon e no Pinterest. “A Amazon é boa para o pensar no marketing, enquanto o Pinterest é bom para expandir as paredes que meu cérebro criativo levantou depois de dar uma primeira olhada no projeto.”
Uma vez que a editora dá sua aprovação à capa, é a vez de o projeto ser apresentado ao autor. “Isso às vezes pode fazer o projeto começar de novo”, diz Catherine. O papel do escritor na escolha da capa que seu livro levará varia, segundo Paul Buckley. “Mas é importante lembrar que o livro é do autor, que viveu com ele por anos. Então quer você queira quer não ele terá opiniões, que podem ser muito nervosas e não muito divertidas, ou ele pode ser bem tranquilo e acreditar que você é um profissional naquilo que você faz. E pode ser qualquer coisa no meio disso”, diz Buckley. “O autor tem uma voz, porque o livro é seu bebê e meu trabalho é vesti-lo”, conta Justine.
Com os clássicos é outra história. “Eles foram feitos tantas vezes ao longo de tantos anos que isso às vezes assusta os designers. ‘Meu Deus, isso já foi feito cem vezes, como vou criar algo novo?’ Em vez de entrar pela porta da frente, entre pela de trás, pela chaminé, suba pela janela e ligue essa valsa. Traga nova música, abra as janelas e deixe o ar fresco entrar. Faça uns coquetéis e se divirta. Faça uma festa a fantasia e dê ao protagonista novas roupas. O que as pessoas se esquecem é que a beleza dos clássicos é que já conhecemos o livro. Já entendemos, então sinta-se livre pra abordá-lo de um jeito novo”, diz Buckley. “Divirta-se com ele e destaque para um público novo que os clássicos não estão presos num tempo e num lugar. Seus desafios, esperanças e sonhos são os mesmos de hoje. Só que sem smartphones.”
Ser original não é sinônimo de ser o primeiro, diz James Jones. “Significa ser diferente e melhor”, afirma. Dá como exemplo a coleção de capas vintage dos livros de James Bond na qual trabalhou. “Os livros tinham muitas capas icônicas, mas trabalhamos duro para fazer uma série que se mantivesse próxima aos fãs, mas mudasse um pouco pela abordagem tipográfica. Você tem que ter a confiança de que vai representar o conteúdo de um livro de uma forma original.” Catherine diz que é divertido ter o desafio extra de trabalhar em algo que tantos outros já trabalharam. “Isso te força a se esforçar um pouco mais. Trabalhei num projeto pessoal há cerca de um ano em que fiz cem ilustrações em cem dias para os livros da ‘Alice’, de Lewis Carrol. Amei tentar encontrar uma perspectiva fresca num livro que foi ilustrado tantas vezes.”
Faz parte do cardápio da Penguin, de Paul Buckley, uma seleção de clássicos, que a editora tenta embalar em nova roupagem. Há uma linha, por exemplo, de capas com ilustrações de tatuadores, e outra feita em bordado. Algumas delas fazem parte do livro “Classic Penguin: Cover to Cover”, lançado recentemente para comemorar os 70 anos da Penguin Classics. Entre seus maiores orgulhos, aliás, estão dois livros antigos: “Kama Sutra” e “Fear of Flying”, de Erica Jong, de 1973, que trata da sexualidade feminina. “Em geral, acho que os Estados Unidos ainda têm muito de sua velha ética puritana, e muito do que move a sociedade é ridiculamente pudico, então quando consigo fazer algo sexy de bom gosto, me sinto particularmente bem por isso. Você sabia que se eu, ou qualquer um, colocar uma obra-prima da pintura do século 15 que mostre um peito (que todos temos) numa capa de livro, muitas livrarias grandes se recusam a vendê-lo? Em toda grande editora já tiveram várias conversas estilo ‘sim, sim, eu sei que é Rembrandt, mas você tem que cobrir isso com texto ou outro recurso. A gente não pode mostrar isso ou vamos perder X% das vendas em potencial’.”
Ilustrar a obra de outra pessoa imprimindo seu próprio estilo é um dos desafios dos capistas. “Gosto de pensar que meu estilo é ditado pelas palavras do autor. Às vezes não posso fazer isso sozinho, e é aí que chamo ilustradores e designers para trabalhar comigo. Definitivamente muda de livro para livro. É algo a que sou grato. Tipografia é algo importante pra mim. Independente do estilo ou do tamanho, é algo que me deixa obcecado”, comenta James, em linha seguida por Catherine. “Tento muito resistir a um estilo. Trabalho com livros tão variados que acho que é importante ser um camaleão”, diz ela.
Para Justine, todo designer gosta de pensar que não tem um estilo, mas os bem-sucedidos foram espertos o suficiente para entender seu estilo e transformá-lo numa marca. “Embora eu não goste de usar as mesmas fontes na minhas capas, admito que há linhas em comum. Gosto de algo simples, conceitual e arrojado. De vez em quando coloco algo visualmente congestionado por aí e sou obcecada por isso, mas só se o livro pedir. Acho que no coração de cada capa precisa ter uma ideia clara.”
Se um passeio pela livraria revelar capas semelhantes, não é mera coincidência. “Estilos mudam constantemente. Às vezes por coincidência, mas principalmente porque editores querem capitalizar sobre o sucesso de outro livro”, opina James Jones. “As cores da pantone do ano sempre acabam sendo utilizadas, porque as vemos em todos os lugares — então por que não usá-las em livros. Livros que têm sucesso comercial ou são premiados ditam a maior parte das tendências”, diz Justine. “No momento, temos três tendências de design. Capas normalmente são uma das três: fria (sem vida presente), minimalista e gerada no computador (parecem polidas); expressivas, acidentais e cruas (têm algum elemento de desenho à mão); ou uma combinação dos dois estilos — algo estéril justaposto a algo muito humano”, afirma. “Na última década vi uma mudança de capas com fotos para mais capas ilustradas. Mas todas as tendências voltam…”, completa Catherine. “Design gráfico, em essência, é isso: define onde e quando estamos”, resume Gustavo Piqueira.
Se para Paul Buckley a capa é a maior peça publicitária que um livro pode ter, para designers como Gustavo não dá para analisar uma capa como “sucesso” ou “fracasso” com base nas vendas. “Busco, em meu trabalho, evitar tratar a capa como mero paratexto ou instrumento de venda de um produto. Penso que o design gráfico, como linguagem visual que reflete o mundo a nossa volta, tem um valor para além do mercadológico ou do meramente decorativo”, diz.
Ao fim do processo, o que se espera é que a capa do livro tenha personalidade. “Não sei como seria a capa ideal, mas ela geralmente me dá aquele momento de ‘ah ha’ quando eu a pego — você sabe que é uma capa boa quando vê uma”, opina Catherine Casalino. “A capa perfeita é diferente de todas as outras na prateleira e fica na sua cabeça. Isso se atinge com um conceito inteligente, brilhantemente executado em cada detalhe do design. A cor, a composição, a escolha da fonte, as imagens — tudo isso deve refletir o conceito e reiterar a voz do autor”, diz Justine Anweiler. “O maior defeito que vejo é quando uma capa de apoia no sucesso de outra. Sempre acho que é uma pena e um desserviço ao autor, que tem uma voz única e individual e merece uma capa igualmente única.”
A Colômbia de Pablo Escobar era fanática por futebol. O notório traficante, retratado na série “Narcos”, da Netflix, era um aficionado pelo esporte e fez de tudo para que o país entrasse no mapa. A relação entre o narcotráfico e o futebol no final dos anos 80 e começo dos anos 90 foi próxima e, de várias formas, extremamente perigosa. Uma história que começa nos campos de terra de Medellín e termina em tragédia em 1994, após a Copa do Mundo.
O Risca Faca apresenta “Narcofútbol”, uma história em quadrinhos contando diversos detalhes e histórias dessa época de glórias e sofrimento no futebol e na sociedade colombiana. A arte é de Amilcar Pinna, autor de “Another Planet” e que já assinou HQs da Marvel, DC, Editora Moderna e também dá aulas na Quanta Academia de Artes.
Na mesma semana, Record e Globo decidiram lançar seus dois novos talk shows: a primeira emissora foi de Fábio Porchat, e a segunda, de Marcelo Adnet. Os dois canais tentam emplacar na televisão brasileira um programa no estilo que tanto faz sucesso nos Estados Unidos e que, por aqui, não faz muito verão — tínhamos, até então, só Jô Soares e Danilo Gentilli como apresentadores, e nenhum talk show incrível. Como nesses casos convidados importam, e muito, Adnet sai com a vantagem de poder entrevistar contratados da Globo. Mas Porchat pode achar seu nicho: na TV estrangeira o que não falta são modelos de talk shows.
Entrevistas, brincadeiras, esquetes, convidados interagindo ou não, e até um pouco de álcool fazem parte do cardápio dos talk shows americanos ou britânicos. Elaboramos um pequeno guia para você saber quem é quem na noite televisiva.
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Jimmy Fallon é o bonzinho do grupo. A companhia perfeita pra uma mesa de bar ou, melhor ainda, uma noite de jogos. Se você precisa de um parceiro de mímica, vá com Jimmy Fallon. Também é o talk show mais musical do grupo. No programa dele você vai descobrir que Paul Rudd nasceu para dublar músicas, que Christina Aguilera faz uma imitação perfeita de Britney Spears e que as celebridades estão dispostas a fazer uma quantidade absurda de coisas idiotas na televisão. Se você quer uma entrevista boa e não só uma historinha engraçada, Jimmy não é o cara. Ele não consegue conversar dois minutos sem dar risada (falsa, na opinião de alguns) e só diz coisas gentis para as pessoas, inclusive para Donald Trump. Mas está sempre aberto a fazer um papel de bobo e, não à toa, é o rei dos vídeos virais e da audiência.
Durante cinco anos Seth Meyers apresentou o resumo da semana “Weekend Update” no “Saturday Night Live”, onde também fazia esquetes. Dá pra ver que essa experiência foi aproveitada em seu talk show. As entrevistas de Seth não são a melhor parte do programa. Os destaques são as cenas curtas que ele faz e seus comentários políticos satíricos feitos como se ele fosse um apresentador de telejornal. É lá que você vai ver, por exemplo, como seria se Jon Snow, de “Game of Thrones”, fosse a um jantar na casa de Seth. E é também possivelmente o melhor talk show pra se informar sobre as notícias da semana.
James Corden é um inglês fofíssimo e ainda meio novo no mundo dos talk shows — ele começou o seu no ano passado. Como Jimmy Fallon, ele não tem medo de se colocar em situações ridículas e de fazer piadas consigo mesmo (conversando com Matt Damon, disse que o maior elogio que tinha recebido era: “Você parece o Matt Damon gordo”). James ainda é menos famoso que seus concorrentes e, talvez por isso, receba menos celebridades. Em compensação, seu formato é dos mais originais: os convidados são recebidos de uma só vez e interagem entre si, como numa sala de estar. Corden também aprendeu com Fallon que sucesso na internet é tão importante quanto audiência na TV, e já tem dois quadros de sucesso: Carpool Karaoke, em que ele canta com seus convidados num carro, e Drop the Mic, uma batalha de rap em que ele insulta algumas celebridades.
Jimmy Kimmel, assim como Jimmy Fallon, sabe como fazer conteúdo bom para internet, não só para a televisão. A diferença é mais de estilo: Kimmel geralmente faz a piada com os outros, mas não se coloca nela –seu quadro mais famoso envolve celebridades lendo tweets malvados sobre si. Kimmel gosta de expor a burrice das pessoas na rua (exemplo, questionar transeuntes sobre coisas que nunca aconteceram. Spoiler: elas respondem como se soubessem do que ele está falando) e pedir a opinião de crianças sobre as coisas. É também capaz de sustentar piadas por muito tempo. Tem uma “briga” com Matt Damon que dura mais de dez anos e é uma das melhores coisas em seu programa.
Graham Norton é um irlandês cheio dos trejeitos cuja principal característica é fazer entrevistas com várias pessoas de uma só vez, sentadas num sofazão, como no programa de James Corden. Mas Norton acrescenta ainda uma dose de álcool. É lá que você verá Jake Gyllenhaal, Emilia Clarke e Cara Delevingne (por que essas três pessoas juntas?) brigando pra ver quem tem as melhores sobrancelhas. É onde Tom Hiddleston pode mostrar a Robert De Niro sua imitação de Robert De Niro. É onde Matt LeBlanc tem que explicar para Rebel Wilson e Kit Harrington a trama de “Friends” antes de cantar duas músicas de Joey na série. O cenário é hipercolorido, as pessoas bebem enquanto conversam e a experiência é às vezes bem surreal.
Stephen Colbert ainda é um enigma. Ele interpretava um cara superconservador na TV paga e migrou para a TV aberta no ano passado, ocupando o lugar de David Letterman, sem a máscara de seu personagem. Seus primeiros programas prometiam um Colbert mais afastado do entretenimento: menos atores, mais políticos e juízes. Mas sem a mordacidade de seu personagem, não engrenou muito e tem perdido para Seth Meyers no quesito “fazer humor com as notícias”. Depois que o sinal de alerta se acendeu na emissora, Colbert tem melhorado, trazendo de volta, inclusive, quadros de seu antigo programa. Tem alguns poucos quadros fixos com celebridades, como um em que debate com elas questões bizarras (do tipo: o que faz o Papai Noel quando não é Natal?).
No momento em que a presidente afastada Dilma Rousseff apresentava sua defesa ao Senado, o diretor Kleber Mendonça Filho, de “O Som ao Redor”, apresentava seu filme “Aquarius” à imprensa. Desde o dia 17 de maio, quando a equipe do filme levantou placas que diziam, entre outras coisas, “o Brasil está passando por um golpe de Estado” no Festival de Cannes, a história do filme se interligou com o impeachment. As polêmicas em torno do filme, intensificadas na última semana, culminaram numa acusação de censura prévia a “Aquarius”, que recebeu uma classificação indicativa de 18 anos.
Um pequeno resumo do entrevero: cerca de duas semanas atrás o jornalista Marcos Petruccelli anunciou em redes sociais que havia sido convidado pelo secretário do Audiovisual do governo interino de Michel Temer, Alfredo Bertini, para fazer parte da comissão que vai escolher o representante brasileiro para a disputa do Oscar. Petruccelli, porém, sem ter visto “Aquarius” já havia tecido críticas ao filme e ao diretor nas redes sociais.
“O posicionamento estridente do senhor Petruccelli em relação a esse filme parece ter como base a sua insatisfação pessoal com o protesto democrático e que terminou sendo divulgado em mídia mundial, realizado por dezenas de trabalhadores do audiovisual brasileiro e pela equipe de ‘Aquarius’ no Festival de Cannes (…) Foi naquele momento do mês de maio que, vale lembrar, o MinC passou alguns dias extinto –decisão do governo interino que, depois, voltou atrás, ressuscitando a pasta”, escreveu Mendonça Filho no jornal Folha de S.Paulo sobre a escolha do jornalista.
Depois disso, outros membros da comissão, como Ingra Lyberato e Guilherme Fiúza Zenha, desligaram-se dela e cineastas como Anna Muylaert, Aly Muritiba e Gabriel Mascaro retiraram seus filmes (respectivamente “Mãe Só Há Uma”, “Para Minha Amada Morta” e “Boi Neon”) da disputa por uma indicação ao Oscar. No dia 12, também foi determinada pelo Ministério da Justiça que a classificação de “Aquarius”, que estreia na próxima quinta, seria de 18 anos, por conter cenas de sexo explícito e drogas. A distribuidora do filme, Vitrine, recorreu da decisão, mas teve o pedido negado. Pelo Facebook, Mendonça Filho compartilhou publicação que dizia: “Esperar completar 18 anos para assistir ao filme Aquarius é muito fácil. Difícil é ter que esperar 16 anos para tentar vencer uma eleição nas urnas”.
Não à toa, a primeira resposta do diretor na coletiva de imprensa realizada num hotel em São Paulo, pouco depois de o filme ter sido exibido a jornalistas, relembrou Cannes. Falando sobre a imprensa, Mendonça Filho disse que algumas mentiras já foram contadas sobre seu filme. “O jornalismo pode existir num blog, num site, por menor que esse blog ou site seja, ou pode estar na grande mídia. Ele pode estar, inclusive, numa rede social, que tem informação compartilhável que começa a circular um pouco como um vírus e passa a ser informação. Eu diria que a [mentira] que mais me chamou a atenção foi a acusação de que fomos a Cannes pagos pelo governo”, disse. “Estávamos de férias. No chute, cada um de nós, numa equipe de 30 pessoas, estaria recebendo cerca de 500 euros por dia. É uma das coisas mais estapafúrdias, absurdas e nojentas que poderiam escrever. Isso virou assunto, e bizarramente virou informação, por mais equivocada que seja.”
“Aquarius”, que estreou em Cannes, onde participou da competição oficial, conta a história de Clara (Sonia Braga), última moradora do edifício Aquarius, em Boa Viagem, em Recife. Todos os outros apartamentos foram comprados por uma construtora, representada pelo herdeiro Diego (Humberto Carrão), que acaba de voltar dos Estados Unidos e tem como primeiro projeto demolir o velho Aquarius para construir um prédio novo. Clara, porém, não quer nem ouvir a proposta de compra, causando um problema para a construtora e as famílias que já saíram de lá. Ela não precisa ficar, mas quer ficar, lutando sozinha contra a especulação imobiliária.
“Quando recebi esse roteiro do Kleber fiquei muito impressionada, porque realmente foi o melhor roteiro que recebi na vida. Imediatamente se juntou com a minha alma, com meu corpo. Na realidade, ele me deu uma voz novamente. Todas as palavras que estavam naquele roteiro eram uma voz pra cidadã Sonia Braga. Eu estava precisando dessas palavras, desse posicionamento, que eu já estava tendo como cidadã, mas sem plataforma”, disse ela.
Sonia é o centro do filme: a câmera não desgruda enquanto ela nada no mar, passeia com o neto, vai para a balada com as amigas, transa. Os outros personagens apenas giram em torno de Clara: os filhos aparecem para discutir a venda do apartamento numa conversa tensa, o salva-vidas da praia aparece como ombro amigo, o grupo de amigas está ali para tentar estimulá-la a aproveitar a vida.
É um filme completamente de Sonia, um papel raro para uma mulher de 65 anos de idade, ressalta a atriz, hoje com 66. “Acho que a mídia ainda trata as mulheres como nos anos 1940. Nos anos 1940 uma mulher de 60 anos era uma velhinha”, diz. “Mas as coisas mudaram muito, o mundo mudou muito, o ser humano se desenvolveu. Dentro da sociedade a mulher tomou uma posição mais forte, mais presente. A indústria não acompanhou muito isso.” Maeve Jinkings, que interpreta a filha de Clara, completa: “Historicamente, o cinema é predominantemente um ambiente feito pro olhar — não só feito por — masculino, hétero, obcecado pela juventude e pela mulher objetificada. Hoje a gente está num tempo em que as mulheres, como outras minorias, estão chamando a atenção para sua representatividade”.
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É um filme crítico, atual, que tem uma temática recorrente do cinema de Mendonça Filho. “Dá muito trabalho fazer um filme em que você esterilize o Brasil ou os problemas de viver em sociedade. Filmes, que a gente vê, eles existem, parece que a casa das pessoas é um mostruário da Tok & Stok”, diz o cineasta. “Não consigo pensar que daqui pra frente vou mudar o discurso de alguma maneira. A tendência é piorar, porque se forem colocados obstáculos para a produção de filmes no Brasil…”
Humberto Carrão, dono do segundo maior papel de destaque, o do antagonista de Clara, é uma caricatura desse mercado. Recém-chegado dos Estados Unidos, onde fez um curso de “business”, pensa que vai convencer Clara a sair dali mudando o nome do novo prédio, em inglês, para Aquarius, como homenagem ao antigo edifício (Clara ressalta que o edifício, na verdade, ainda está de pé). Seu Diego representa a visão de que para que o progresso aconteça o velho deve ir abaixo, discussão também abordada na relação de Clara, jornalista e escritora, com os discos de vinil e o MP3: dá para gostar dos dois?
O filme propõe mais reflexões que respostas. Para Carrão, essa discussão sobre progresso versus destruição do passado é fundamental. “Eu venho de uma cidade em que isso acontece o tempo inteiro. Nas Olimpíadas, pessoas foram tiradas do morro da Providência pra passar um teleférico, que a organização disse que não queria. Oitocentas famílias foram retiradas. O problema é esse, quando em nome do progresso, entre muitas aspas, você ignora o espaço, o afeto, a memória. Isso continua acontecendo. Estelita, em Recife, a praça Onze, no Rio de Janeiro. É um discurso que tem que ser repensado.”
Sobre a classificação indicativa, o diretor diz que sabe o filme que fez. “Tinha em mente questões de tabu de imagem relacionada a sexo. ‘Aquarius’ não tem uma cena de violência física, sangue, facada, tiros. Tem três momentos de sexualidade que foram filmados corretamente, com a lente correta, na distância correta, costurados na narrativa. São imagens fortes da narrativa, mas não acredito que elas mereçam, no todo, uma classificação de 18 anos”, avalia.
Nenhuma das cenas de sexo é particularmente longa, mas há nudez frontal tanto de homens quanto mulheres — um pênis aparece ereto numa orgia, ainda que não em primeiro plano. Segundo um guia do Ministério da Justiça, filmes com classificação de 18 anos são aqueles com sexo explícito (“com reações realistas dos personagens participantes do ato sexual, com visualização dos órgãos sexuais”) ou com situações sexuais complexas (como incesto). Não é bem o caso de “Aquarius”, que não é um filme sobre sexo ou mesmo com muito sexo — e o diretor argumenta que um pênis ereto em segundo plano não transforma o filme em “Ninfomaníaca”.
“Se você pega uma safra recente de cinema brasileiro, ‘Boi Neon’, ‘Para Minha Amada Morta’, ‘Bruna Surfistinha’, ‘Tatuagem’, são filmes que encaram a sexualidade de uma forma franca. Não acho que ‘Aquarius’ seja mais chocante. Não acho que mereça estar na mesma prateleira de ‘Ninfomaníaca’, ‘Love’ ou ‘Calígula'”, afirma.
Pênis à parte, “Aquarius” não era pra ser um filme do tipo que polariza. É a história de uma mulher e a história da luta contra um tipo de progresso, bem contada, mas não exatamente polêmica. Segundo o cineasta, sua maior surpresa no processo foi justamente descobrir que fez um filme controverso — mas que isso não é negativo. “Isso faz parte do cinema, às vezes filmes chegam com muita expectativa, às vezes pelos motivos errados. Conversa sobre censura, possíveis perseguições políticas e coisas assim. Mas a melhor parte disso é que toda vez que ele passa ele gera energia como filme. Pelo que percebi, o filme está muito quente e é bom a gente estar estreando logo, na quinta. É bom pro filme esse debate. E a melhor coisa é que as pessoas vão poder discutir tendo visto o filme”, reflete o diretor.
“Daqui pra frente ninguém sabe. Hoje é um dia histórico, decisivo na nossa história recente, e realmente não sei como ficarão as políticas de incentivo. Não sei. O que eu sei é que momentos de tensão no país geram reações artísticas. Imagino que a gente pode ter daqui pra frente, talvez, filmes mais combativos. É uma teoria.”
São 10h30 de um sábado e já é impossível entrar no Armazém Santa Filomena, na zona cerealista, em São Paulo. O trecho entre a rua Santa Rosa e a avenida Mercúrio, a cinco minutos do Mercado Municipal, está praticamente intransitável. Há carros parados em fila dupla, manobristas instruindo motoristas a estacionar nas apertadas e raras vagas, famílias empurrando carrinhos de feira cheios de comida pela calçada, procurando espaço entre os vendedores de diferentes tipos de produtos, de ricota defumada a doces. Em duas horas, o movimento não diminui e as lojas continuam cheias. Ainda é impossível colocar o pé dentro do armazém, tamanho o número de pessoas apinhadas ali. De algum lugar não identificado na rua vem o alto som da música “Quem de Nós Dois”, de Ana Carolina, em uma versão em espanhol.
Sábado é o ponto alto do trânsito semanal de pessoas na zona cerealista, no Brás, no centro de São Paulo. Mas o movimento é constante: segunda o fluxo é maior entre quem compra no atacado — hotéis, restaurantes, outras lojas da cidade que abastecem suas prateleiras de castanhas, farinhas, frutas secas e grãos variados. Há também a reposição daquilo que se foi no sábado. Às terças e quartas as ruas são mais transitáveis e o público, menor. Na quinta já começa a preparação para o fim de semana. Sábado é o caos e domingo, a calmaria, quando a maior parte das lojas fecha. Mas mesmo nos dias que parecem tranquilos a zona cerealista não para. Para além da Santa Rosa há um mar de galpões, abastecidos constantemente por caminhões cheios de produtos desde a madrugada.
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Nas lojas da zona cerealista há uma variedade imensa de alimentos e bebidas. É possível encontrar vinhos, queijos, vários tipos de comida sem glúten ou lactose, ervas, chás, grãos e mil tipos de farinha (aparentemente é possível fazer farinha de maracujá). Para desbravar as lojas é melhor ir munido de uma lista de compras, porque as opções são muitas e o tempo geralmente é curto. Em boa parte das lojas você pega uma senha e espera para ser atendido. Você diz o que procura, fala a quantidade desejada, o vendedor embala o produto num saco, pesa e etiqueta. “Que mais?”, pergunta, e assim vai. É um pouco como ir ao Spoleto: fale agora o que quer ou cale-se para sempre.
Há também produtos industrializados ou já embalados, mas tem muita venda a granel e, nos dois casos, os preços são bem mais em conta. A goji berry seca, fruta rica em vitamina C e que virou moda poucos anos atrás, por exemplo, é vendida na Drogaria São Paulo a R$ 21,99 (100g). Na Bendito Grão, na rua Santa Rosa, o preço do quilo é R$ 69,90. No caixa da loja na Santa Rosa, a funcionária checa três vezes todos os itens da minha numerosa compra, apesar da imensa fila, para ter certeza de que o valor, de R$ 70, estava correto (“Muito alto. Você comprou algo super caro?”, ela pergunta).
O bairro do Brás, onde se localiza a zona cerealista, se desenvolveu com a cultura do café. Os imigrantes que chegavam ao Brasil em Santos iam de trem até o Brás, de onde eram encaminhados para o interior de São Paulo para trabalhar nos cafezais. Alguns imigrantes, porém, principalmente italianos, optavam por ficar na cidade e se estabeleciam no bairro, montando fábricas e pequenas lojas. Segundo a Prefeitura, em 1886 o Brás tinha 6 mil habitantes e, sete anos depois, o número era cinco vezes maior.
“As produções eram escoadas para cá e daqui eram distribuídas: café, feijão, arroz, grãos diversos. Aí começaram a montar os armazéns aqui”, conta Bruno Lopes, do Laticínios Camanducaia, que está na zona cerealista desde 1952 — jovem e vestindo uma roupa despojada, trabalha há cinco anos na loja da família de sua mulher. “Os imigrantes que ficavam aqui precisavam fazer alguma coisa. Como era aqui o centro de São Paulo eles começaram a montar os comércios pra cá. A rua Santa Rosa começou com esses empórios, não tinha supermercados. Eles vendiam pra tudo quanto é tipo de cliente, mas principalmente abasteciam os pequenos comércios que iam surgindo nos bairros.”
Bruno diz que hoje o mercado na zona cerealista está em transformação. “Ainda tem parte de atacado — você abastece muita loja por aqui –, mas tem também lojas para um público que vem buscar produtos diferentes, por estilo de vida”, afirma, num galpão em que, numa sexta de manhã, dezenas de pessoas trabalham descarregando produtos de caminhões. “Ainda mais de uns dois anos pra cá, com a crise econômica, tem um público que vem atrás de preço, que migra do mercado e vem pra cá. Porque aqui é realmente muito mais em conta.”
José Bispo, da Casa Flora, presente há mais de 40 anos na Santa Rosa, concorda que a busca por produtos saudáveis fez o fluxo aumentar nos últimos anos — ele trabalha ali há 30. Preço e qualidade de vida — a zona cerealista é ótima para quem está naquela dieta ou tem curiosidade com os super ingredientes da moda — são os dois fatores que mais levam o público para lá.
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Sobre os produtos que mais saem, Bruno faz uma lista eclética: tapioca, sal rosa, derivados de soja, leite, cacau, farinhas diversas, azeitonas, cereja para bolo. “Tem uma turma que vem atrás de proteína, sem gosto, whey, e compra cacau ou farinha de morango pra misturar e fazer shake”, diz. Também são muito procurados produtos que se acham em supermercados, mas mais baratos se comprados em grandes quantidades. Em vez de levar uma lata padrão de leite condensado, por exemplo, pode-se comprar logo um quilo, já que o preço compensa. O mesmo vale para macarrão, granola e molho de tomate, por exemplo. “Na nossa loja quase todo produto vende muito. Tem muito giro”, diz Bruno enquanto mais e mais caixas são carregadas para dentro do depósito da Camanducaia.
As lojas também precisam ficar atentas aos ingredientes do momento — como o hibisco e o sal rosa do Himalaia, presentes nas prateleiras de todas as lojas. O hibisco, por exemplo, potencializa a queima de calorias e combate o inchaço, enquanto o sal rosa tem menos sódio, um dos inimigos da vez. As lojas lá costumam ter painéis que informam as características de cada ingrediente e funcionários que sabem tirar dúvidas — e que, com sorte, te darão comida para experimentar.
De tempos em tempos, novos ingredientes ganham o cardápio de quem faz dieta ou quer levar uma vida mais saudável e a zona cerealista é o lugar ideal para quem busca reproduzir as receitas da Bela Gil. As lojas têm de ficar atentas às modas. “Quando o ‘Globo Repórter’ fala de uma castanha, por que comer, no sábado abarrota e o estoque vai embora. E hoje, com esses programas culinários em alta, na TV a cabo e o ‘Masterchef’, eles usam alguns produtos no preparo e reflete aqui também. Você vai na internet procurar onde achar cúrcuma e vai chegar na zona cerealista, vai acabar vindo pra cá”, diz Bruno, citando o ingrediente que Bela Gil usa como pasta de dente.
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Boa parte dos produtos vendidos na rua Santa Rosa e na avenida Mercúrio, vitrines da região, vem do próprio bairro, de estabelecimentos que não vendem ao público. Saindo um pouco da região mais movimentada descobre-se outra faceta da zona cerealista, por onde praticamente só circula quem trabalha ali e onde as câmeras fotográficas do Risca Faca são observadas com curiosidade.
Portas abertas revelam grandes galpões abarrotados de sacos, do chão ao teto, enquanto caminhões bloqueiam completamente as ruas. Na sexta de manhã, um pequeno grupo de homens ensaca feijão em frente a um depósito. O feijão solto é colocado em sacos, costurados ali mesmo, e uma máquina os levanta para ajudar a colocá-los nas costas dos carregadores. “O feijão fica saindo o dia inteiro e vai abastecer o atacado. Você tem o cara do milho, o cara que torra o amendoim, faz paçoca, um monte de coisa. Batata ainda é muito forte aqui. Alho. Você cansa de contar as carretas de alho que chegam: alho argentino, importado da China, nacional. Tudo quanto é tipo de alho. E tudo isso acontece pra trás”, conta Bruno.
As calçadas são cheias de grãos e cascas de alho, que vendedores compram e descascam ali mesmo para vender no farol. É mais sujo que na Santa Rosa, onde a Prefeitura pressiona por mais limpeza. “A maioria dos nossos fornecedores está por aqui. Quando você não compra de fora tem tudo aqui, o próprio fornecedor está aqui, mas não tem loja”, diz Bruno. Entramos em um desses galpões e ele mostra os sacos de 25 quilos de hibisco empilhados. “Esse é um dos maiores fornecedores nossos, muita coisa que a gente pega vem daqui. Aí a gente porciona ou vende a granel. Esse saco rosa é de hibisco, muito bom. A gente compra feijão, milho, lentilha, grão de bico, ervilha, chia… Tudo. Acho que nossa lista de compras tem mais de cem itens daqui.” O saco rosa de hibisco que ele aponta é o melhor, em sua opinião. Em outros sacos pode-se encontrar bitucas de cigarro, penas de galinha, lascas de madeira.
Mas há também coisa de fora, de vários cantos do mundo, na zona cerealista. É quase a regra na Casa Flora, onde o forte são as bebidas — a loja também é uma importadora, e por isso vende mais barato que supermercados, apesar de ter garrafas na casa dos 3 mil reais expostas. José Bispo lembra que nem sempre foi assim. A loja começou pequenininha, vendendo bacalhau, queijos e produtos enlatados. Bispo estava lá quando os primeiros vinhos começaram a chegar e fez curso para entender bem do produto — é comum que fregueses apareçam atrás de um vinho que tomaram na viagem e, caso eles não tenham aquela garrafa, lá eles sabem te indicar um produto que se aproxime.
Bispo, gerente que circula pela loja, conta que já conhece alguns clientes faz tempo e que é comum que fregueses novos venham se apresentar e peçam ajuda para conhecer a loja. Com prazer, ele mostra algumas de suas garrafas mais especiais, aquelas com rótulos mais bonitos (há uma coleção com o rosto de divas do cinema), com garrafas diferentes ou mais antigas (é comum que clientes peçam, por exemplo, um vinho do mesmo ano do nascimento de um conhecido).
Se a maioria das lojas da zona cerealista lembra armazéns do interior, a Casa Flora está mais para Empório Santa Luzia, o supermercado chique localizado nos Jardins. No meio de muitas lojas que vendem a mesma coisa, é importante se diferenciar. Ali os grãos, frutas e farinhas são vendidos em embalagens da Casa Flora e, além das bebidas, há uma boa variedade de queijos. Há produtos importados e nacionais, incluindo uma marca própria — o primeiro produto de lá foi o queijo Flora, produzido a partir de 1955 por Antônio Pereira Carvalhal, em Flora, distrito de Três Corações, em Minas Gerais. Basicamente, segundo Bispo, se o seu produto for bom as portas da Casa Flora estão abertas.
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Além das pessoas que se aglomeram na calçadas aos sábados tentando vender seus produtos na rua mesmo, há produtores batendo na porta das lojas direto querendo vender, com variados graus de qualidade. Queijos, por exemplo, devem respeitar algumas especificações para que possam ser vendidos. Produtos baratos demais também devem levantar suspeitas. O sal rosa, por exemplo, tem grandes variações de preço na própria zona cerealista. Se for muito barato, segundo Bruno, provavelmente o sal não será do Himalaia, e sim da Bolívia. “Você é obrigado a ter laudo de todo produto que você vende. Você pode pedir o laudo do hibisco. Tem que ter. Tem que ter uma garantia.”
Outra dica: ao comprar uva-passa, fique atento a grãos de açúcar ali. Se houver pontinhos brancos na fruta, é sinal de que ela recebeu um banho de groselha para ficar mais doce e com aparência mais fresca. Mas essas coisas só se aprende com a experiência. “Esse sal é bom, olhe a cor, bem rosa”, aponta Bruno numa loja concorrente. Além da Camanducaia, ele cita como lojas mais tradicionais a Casa Flora, o Empório Casmar, o Arroz Integral, o São Vito, o Filomena, o Empório Rosa — mas, basicamente, o ideal é ir ao bairro com calma e testar, se possível em dias de semana, dica unânime por ali. A cada visita é possível descobrir algo novo: diferentes tipos de lentilha, temperos, ervas, chás, grãos, e até cereal matinal de açaí ou bacon em flocos. Dá vontade de cozinhar mais.
No encontro entre a avenida Mercúrio e a Santa Rosa está sendo construído uma unidade do Sesc, que deve trazer ainda mais movimento no local — já há alguns eventos culturais no espaço. Entre os prédios baixos e mal conservados, começam a apontar também alguns edifícios altos e modernos residenciais, que parecem não pertencer ao bairro. Boa parte das lojas da zona cerealista fica no térreo de edifícios antigos, com salões pouco espaçosos nos quais é difícil circular — não é bem um local turístico, como o vizinho Mercadão. Os lojistas não ignoram o desconforto e alguns já expandiram os negócios para a internet — embora a maioria das lojas ainda não tenha aderido.
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“A gente ainda não tem a parte de internet e está desenvolvendo esse meio de venda. É muito solicitado, mas como a gente vende muito a granel tem dificuldade com transporte e embalagem. A gente não encontrou um meio bom de fazer isso ainda. Tem muito produto de geladeira, precisa dar uma encaixada melhor nisso. Tem uma empresa já vendo isso pra gente, é um passo que a gente tem que dar”, diz Bruno, sobre a Camanducaia. Outras lojas, como a Empório Rosa e o Armazém Santa Filomena, já vendem pela internet — mas é uma minoria. No caso da Casa Flora, dá pra ver os produtos que eles têm, mas para comprar é preciso ir até o local.
De lá é possível ver o Mercadão, localizado do outro lado da avenida do Estado, primo rico da zona cerealista. O que se encontra na Santa Rosa também se acha lá, mas a preços mais turísticos. Sobre a zona cerealista, apesar do forte movimento aos sábados, sabe-se menos, vai-se menos a passeio e ainda há gente com um pé atrás. “Qual é o metrô mais próximo daqui?”, pergunta uma mulher com quatro sacolas pesadas, cheias de grãos, na porta da Casa Flora. Respondo que é o Pedro II, mas que não sei o melhor caminho. “Tudo bem, chegar lá eu sei. Só que tenho medo, dizem que aqui é perigoso, né?”, diz ela às 16h, com as ruas ainda bem cheias e iluminadas. Mas Bruno é otimista. Além do movimento crescente, diz que tem aumentado também o conhecimento sobre o local. “As pessoas não sabem tanto sobre a zona cerealista. Mas agora estão conhecendo.”
Muitas organizações não governamentais de direitos humanos, nacionais e internacionais, questionaram, antes e ao longo dos Jogos Olímpicos Rio 2016 qual seria o verdadeiro legado para a cidade do Rio de Janeiro. Ao fim de 21 dias de jogos, o Brasil acumulou 19 medalhas, mas enquanto o Rio se preparava para receber o megaevento esportivo, a violência nas favelas aumentava, o Estado do Rio, em crise financeira, declarava calamidade pública, atrasando o pagamento de milhares de servidores públicos, e mais de 20 mil famílias eram removidas de suas casas e comunidades. A maioria dos cariocas não viu e nem verá melhorias.
Enquanto os turistas se sentiam seguros com a presença do Exército e da Polícia Militar nas ruas do Rio, 92 tiroteios armados foram registrados na região metropolitana do Rio de Janeiro durante as Olimpíadas, de acordo com dados da Anistia Internacional. No mesmo período, de 5 a 21 de agosto, 31 pessoas foram mortas e 51 ficaram feridas.
“Há tiroteios todos os dias, nada mudou”, diz Nana Batista, sambista e ex-moradora do Complexo do Alemão, de onde saiu para tentar viver uma vida mais tranquila. Lá, ela conta, era difícil sair de casa por medo da tão falada “bala perdida”. Mãe de três filhos, de 12, 14 e 18 anos, optou por morar em Cidade Alta, Cordovil, na Zona Norte do Rio. “Meus filhos não tinham vida. Eu tomo antidepressivo até hoje por causa disso, na época tive uma crise nervosa”, conta ela, que viu um homem ser morto pela polícia na porta de sua casa, em abril do ano passado.
Nana recorreu ao samba, que viralizou nas redes sociais, para dar sentido aos sentimentos diante do que presenciou. “Quero andar outra vez por aí, sem ter que tropeçar em PI, sem ter que evitar esse medo, onde vi tanto sangue fluir, quero andar de cabeça erguida, retomar outra vez minha vida, estampido de bala não pode ser minha canção de ninar”, diz o samba escrito por ela, entitulado “Paz no Complexo do Alemão”.
“A favela não é só o que a mídia diz, tem pessoas com talentos incríveis aqui dentro”, afirma ela que se sustenta com bicos há dois anos, desde que ficou desempregada. “Enquanto eles estão preocupados em maquiar a cidade para as olimpíadas, os problemas continuam. O Estado só maquiou, só preparou pras Olimpíadas, mas e depois? o que vai acontecer depois? Quando os projetos vão ter prosseguimento? Quando vai ter um PAC 3? A gente nem sabe… quer dizer, é complicado. Os ares da mudança têm que chegar no Complexo do Alemão.”
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De 2010 a 2015, segundo relatório da Anistia Internacional, foram registrados 3.438 homicídios por conta de intervenção policial no Rio de Janeiro. Uma dessas balas, da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Manguinhos matou o filho de Ana Paula de Oliveira, Johnatha, aos 19 anos, em janeiro de 2014. “Para nós que somos pobres, moradores de favela, o legado que fica é um legado de sofrimento, de dor, de lágrimas ainda mais com um aumento das polícias dentro e ao redor das favelas, porque o aumento de polícia pra gente significa aumento de violações dos nossos direitos, aumento do extermínio”, diz Ana Paula, que participa ativamente do movimento de mães contra a violência policial. “Eu acho que não se deve fazer Olimpíadas ou qualquer outro megaevento em cima do sofrimento de um povo.”
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Já Vitor Santigo Borges, 30 anos, morador da Maré, foi alvo de soldados do Exército – que ocupou o Complexo da Maré, conjunto de favelas da Zona Norte do Rio, de abril de 2014 até 30 de junho de 2015, em uma espécie de “preparação” do terreno para a instalação da Polícia Pacificadora, algo que não foi concretizado. O carro em que ele estava com mais quatro amigos foi alvejado na lateral pelos soldados enquanto entravam na complexo pela Vila do Pinheiro, em fevereiro de 2015. “Eles [os policiais] alegaram que a gente tentou atropelar um soldado, que a gente trocou tiros de dentro do carro com eles pra fora… tinha um soldado da aeronáutica no carro, um amigo meu que é empresário, eu sou técnico da segurança do trabalho, não tinha ninguém errado dentro do carro… 30 anos morando aqui, sei como tem que fazer, como entrar, como sair da comunidade”, conta.
“Eu tive tudo que você pode imaginar no pulmão, quase tive falência dos rins, tive insuficiência renal, tive embolia pulmonar… um tiro atravessou o pulmão e pegou na coluna, e aí o estilhaço pegou o canal medular e eu tive a paraplegia e o segundo tiro pegou na perna e eu tive que amputar”, diz ele, que agora conta com a ajuda da mãe que largou seus empregos para cuidar de Vitor.
Sua maior preocupação é com sua filha, Beatriz, hoje com 4 anos – ainda um bebê na foto que fica acima da cama de Vitor. “De tudo o que me afetou mais foi essa relação com ela… sabe o que é ficar pensando ‘como é que eu vou ensinar ela a andar de bicicleta?’.” Além disso, a sobrevivência no dia a dia não é fácil. Para se locomover Vitor precisa da ajuda de vizinhos e amigos para conseguir descer os 13 degraus que o levam de casa à rua e o Estado não providencia a ambulância necessária para levá-lo aos exames e consultas médicas. “Se fosse pelo Ministério Público (que investiga o caso) eu não teria nada do que eu tenho agora. Essa cama que eu tenho foi doada por um amigo, a cadeira de rodas que eu uso foi o irmão desse amigo, as fraldas que eu usei até hoje a comunidade que me deu… e o Estado não me deu um band-aid”, diz ele.
“Toda semana, todo dia tem um com tiro de bala perdida e quando vai comprovar, foi a polícia… o despreparo tá ali, tá no Exército que fez isso comigo, o despreparo tá na Polícia Militar”, opina ele, que não acha que a cidade estava preparada para receber os Jogos.
Irone, mãe de Vitor, que abdicou de trabalhar para cuidar do filho, diz: “Eu acho que a intenção do governo é acabar com o pobre, porque vem esse modelo de pacificação, mas junto com ele não vêm as questões sociais pra comunidade. Agora querem fazer uma coisa bonitinha pros gringos que vão deixar seus dólares aqui… mas isso vai servir pra mim e pra você? Não vai. Cidade maravilhosa não é pra mim”.
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Faltam recursos em todas as áreas. Após o decreto de Calamidade Pública, o governo federal garantiu R$ 2,9 bilhões ao Rio de Janeiro para as despesas com a segurança pública. Enquanto isso, Carina Blacutt, 31, mãe de 4 filhos, via parte de seu salário de professora de filosofia da rede estadual sendo cortado por conta de uma greve – da qual fez parte – que reivindicava melhorias na infraestrutura e nas condições de ensino. “A situação chegou num ponto em que não era possível mais trabalhar de forma segura”, por conta da demissão ou não pagamento do salário de funcionários da limpeza e da segurança.
“Quando ele [o governador em exercício Francisco Dornelles] decretou a calamidade pública foi quando a gente percebeu que a gente ia ser massacrado… porque esse decreto permite tudo, inclusive permite descontar assim e falar ‘estamos em calamidade pública’ né, e aí a revolta vai ficando maior. Para tudo pras Olimpíadas, mas pra educação mesmo não se para nada…”, diz ela, que teve 17 dias do seu salário de junho descontado, sem aviso prévio.
Carina recebe aproximada mil reais para trabalhar 16 horas semanais na rede estadual. “A realidade de um professor que realmente consegue pagar seus custos é um professor que trabalha em quatro, cinco escolas.” Ela mesma trabalha em um colégio particular para complementar a renda. Com quatro filhos, Carina faz malabarismos para viver. Ela contou com uma vaquinha feita pelos professores da sua escola, que a ajudaram com a compra de leite para as crianças, que consomem cerca de 12 litros por semana.
“Você simplesmente não consegue se sustentar numa cidade que é a Cidade Olímpica e onde fica tudo caro, mas o salário não tem esse reajuste.” A greve acabou depois de 5 meses, principalmente pela força do corte dos salários promovido em julho, mas o reajuste salarial não foi discutido pelo governo do Estado. Perguntada se ela via uma melhora após o fim das Olimpíadas, Carina respondeu: “Eu acho que vai piorar. Quando acabar, a máscara vai cair e vai se achar um rombo no nosso governo, no estado, no município… isso ainda vai aparecer”.
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Muito se fala sobre a persistência dos atletas que enfrentam todas as adversidades e chegam ao pódio nas Olimpíadas. Adoramos uma história de superação – depois que ela acontece. Mas a Rio 2016 também gerou muito desperdício. O atletismo, por exemplo, perdeu seu maior centro de referência, o estádio Célio de Barros que, localizado dentro do Maracanã, virou canteiro de obras, fechado desde 2013. Os atletas que queriam competir tiveram que ir para outras cidades e até para fora do país para treinar.
Após pressão popular, a promessa é de que o estádio seja reconstruído após os jogos pela Concessionária Maracanã S.A, mas isso ainda precisa sair do papel. “Não vamos ter legado e o que a gente tinha foi destruído”, diz Edneida Freire, 51, treinadora de atletismo. “A cidade devia ter dois, três, quatro estádios de atletismo, isso sim seria legado olímpico, não destruir nosso patrimônio público.”
Edneira era reponsável por dar aulas em um projeto social no Célio de Barros para crianças e adolescentes. Com o fim do projeto, ela mantém seu compromisso por conta própria, fazendo os treinos em parques e praças públicas da cidade, sem ganhar nada por isso. “Muitos foram treinar em São Paulo, em Miami… aqui não tem estrutura, não tem banheiro, não tem segurança… onde vamos deixar os equipamentos?”, diz. “Os que ainda não estão preparados, ou que não estão em idade [de competir]… o que eles estão fazendo se não estão no projeto?”
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Na questão da moradia, dentre tantas comunidades removidas, a história da Vila Autódromo virou referência e exemplo por ter enfrentado um processo de remoção para as construções do Parque Olímpico, na Barra da Tijuca. Das quase 600 famílias que moravam lá, hoje 20 conseguiram permanecer com a garantia de urbanização da comunidade. O percurso, no entanto, foi longo. “Eu tenho muitos projetos pra frente, mas eu preciso ter minha vida de volta, porque o poder público tirou durante todos esses anos. Eu abdiquei de muita coisa aqui, pra enfrentar isso”, diz Luiz Cláudio, professor de educação física e morador da comunidade.
“Amo esse esporte, amo esse evento [Olimpíadas], o que eu não amo é a forma com que ela é usada para desgraçar famílias e destruir histórias de vida. Eu não amo essa política hipócrita que fica falando em legado social quando sabemos que o principal legado vai pros empresários de empreiteiras”, diz Luiz.
A área onde fica o Parque Olímpico e a Vila Autódromo são de propriedade de Carlos Carvalho, único acionista da Carvalho Hosken, uma das construtoras responsáveis pela construção do Parque Olímpico e pela Vila dos Atletas, conjunto de prédios e apartamentos que após os Jogos serão vendidos como condomínios de luxo.
“A gente conseguiu ficar, que era o que a gente queria”, diz Penha, sem esconder o rosto cansado. “Esses últimos anos vivemos aqui dentro de um canteiro de obras, com muita poeira, falta de água, falta de luz… Vivemos no meio de escombros, casas descaracterizada… Vivemos sem paz, sem tranquilidade”, desabafa Luiz. “Minha perspectiva após as Olimpíadas é de que eles devolvam de fato nossas vidas.”
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Vila União de Curicica foi outra comunidade carioca que sofreu com um processo de remoção, essa para a construção do BRT Transolímpico, que passa por ali, ligando a Barra da Tijuca a Deodoro, os dois principais centros de competição das Olimpíadas. “Já faz uns 20 anos que eu moro aqui. Eles não me ofereceram nada… Nós fizemos a inscrição para pegar o apartamento [do programa Minha Casa, Minha Vida], mas depois disseram que não iam tirar mais e nós não ganhamos nada”, diz Glória Dionéia Rodrigues de Mattos, de 52 anos. A Transolímpica passa atrás da sua casa, que ganhou diversas rachaduras por conta das construções e dos carros que passam por ali.
A princípio, o projeto da Transolímpica visava remover mais de 800 famílias de Vila União, mas por resistência da comunidade o trajeto foi alterado. Mesmo assim, mais de 300 famílias foram removidas. O que mais incomoda Sônia, além do barulho, da poeira e das rachaduras, é a falta de transparência das autoridades. “Eles não vêm aqui dar uma posição pra gente. Já construí duas pontes aqui, eles vieram e tiraram. Não sei se posso construir”, diz ela, em referência à ponte que dá acesso à sua casa.
“Tantas coisas mais sérias pra serem resolvida e eles vieram fazer Olimpíadas…. eu trabalho em hospital e eu sei o que tá acontecendo. Onde eu trabalho mesmo não tem luva pra gente trabalhar, não tem medicação, não tem nada… e eles vieram fazer Olimpíadas aqui”, desabafa.
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Ja a casa de Dona Maria, 79, fica embaixo da Transolímpica. Por conta das construções e dos reparos (feitos por placas de sustentação irregulares e rachaduras que surgiram menos de uma semana após a inauguração), o barulho na casa de Dona Maria é quase insuportável. Ela mora e trabalha ali, em uma vendinha que foi crescendo ao longo dos anos. Sobre a construção, ela diz: “Eu não sei de nada. É o que eles queriam, não é o que a gente quer. Só peço a Deus que não deixem a beira da minha casa descampada, porque se deixarem aberto, pra mim vai ser horrível”.
O que antes era o quintal de sua casa, agora está fechado com uma grade, e em cima dele, passa a Transolímpica. Surpreendentemente, Dona Maria não reclama do barulho: “Não me incomodo… Sou uma pessoa muito paciente”, diz ela, um pouco tímida de ser fotografada. Moradora de Vila União há mais de 20 anos, é difícil entender por que Dona Maria não foi indenizada pelos danos à sua casa e à sua vida.
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Na área revitalizada do Porto, onde fica o Museu do Amanhã, os comerciantes informais são proibidos de circular. Com esposa e três filhos, o aposentado da construção civil Carlos Alberto Mattos, 58, precisa trabalhar nas ruas para garantir o sustento da família. “Se fosse depender só da aposentadoria, não dava”, diz ele, que recebe um salário mínimo por mês. Para complementar, vende algodão doce pelas ruas do Rio de Janeiro, vendendo cerca de 70 unidades por dia, a R$4 reais cada. Carlos, porém, não pode aproveitar o fluxo de turistas na região portuária do Rio, que em cinco meses recebeu meio milhão de visitantes. Os guardas municipais impedem a circulação por ali.
Pela lei 13.284, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, as entidades organizadoras do evento são responsáveis por autorizar o comércio de rua nas áreas oficiais de jogos, além de terem a exclusividade, junto com os patrocinadores, sobre a exploração comercial dos produtos oficiais das Olimpíadas.
“Eles mandam a gente embora e se discutir, a gente apanha, tomam nossa mercadoria e acabou”, afirma ele, circulando por ali em uma segunda-feira de baixo movimento, por conta do fechamento do museu. Apenas donos de food trucks podem estacionar e trabalhar ali. Sobre as Olimpíadas, Carlos dá uma opinião que, depois de algumas entrevistas, parece ser o sentimento geral do carioca comum: “É bom para o Estado… pra morador de baixa renda não influencia nada não. Nós só pegamos as sobras… somos barrados das coisas, ficamos isolados”.
De sua bolsa, Lena Rocha tira boa parte dos 500 cartões postais que herdou da coleção de seu pai. Agrupados por região de origem, os cartões vêm de todos os cantos do mundo e têm estilos bem diferentes: uns são coloridos, outros em preto e branco, uns com ilustrações, caricaturas, e outros com fotos, uns num papel mais fino, mole, outros mais firmes. Mas há algo um pouco esquisito em comum: todos eles têm uma espécie de código formado por duas letras, um algarismo e mais três letras. Lena explica: todos aqueles cartões foram recebidos por seu pai nos anos 1980 quando ele atuava como radioamador — alguém que se comunica com outras pessoas por hobby por meio do rádio. Cada cartão veio de alguém com quem seu pai conversou e o código é a identificação do rádio. As duas primeiras letras, por exemplo, indicam o país da pessoa com quem ele se comunicou. “É como se fosse uma placa de carro”, ela diz.
Esses cartões são chamados de QSL, uma confirmação escrita do contato entre duas estações de rádio. Geralmente, são enviados depois do primeiro contato entre elas. No verso, em vez de longos textos, como se espera num cartão postal comum, há algumas informações sobre o contato e talvez uma ou outra mensagem curta como “foi ótimo conversar com você”. Há a hora e a data do contato, a frequência de rádio, a banda utilizada… Os cartões, feitos por cada radioamador, têm um formulário atrás, preenchido depois à mão.
Os 500 cartões em posse de Lena faziam parte de uma coleção ainda maior, que seu pai, Isnard (chamado de Nard nos cartões, uma confusão dos radioamadores que ouviam “my name is Isnard”), jogou fora. Esses foram aqueles que ela conseguiu resgatar e que, agora, colocou à venda — está de mudança para a Europa e guardou apenas alguns exemplares. Do começo dos anos 1970 até metade dos anos 1980, seu pai conversava com outros radioamadores pelo mundo, primeiro em código morse e depois por voz, com microfone. Fez contato com a União Soviética — de onde vêm alguns dos mais belos cartões –, com a Alemanha Oriental e com a Ocidental, com o Japão, os Estados Unidos, a Suíça, o Vaticano, entre outros países. Lena só não sabe sobre o que eles falavam. “Eu era criança, mas possivelmente ele passava recados”, ri.
“Ele foi por dez anos radioamador e fez amizades através do rádio com gente do mundo todo. Cada pessoa com quem ele conversava mandava um cartão pra ele”, conta Lena. “Minha infância foi ouvir os negócios de rádio. Tem uns barulhinhos do código morse, das transmissões. Era no quarto do lado do meu, ele ficava a madrugada falando no rádio”, continua. “A gente sempre morou em apartamento, e em Belo Horizonte as antenas dele davam interferência nas antenas de TV do prédio. A gente levava multa.”
Lena conta a história enquanto mostra os cartões que ainda tinham sobrado, poucos dias após o início da venda, a preços baixos (no máximo de R$ 5). A coleção do Japão, por exemplo, foi vendida para uma pessoa só. Os da Alemanha Oriental foram todos enviados para Brasília — como no caso da União Soviética, havia uma variedade menor de imagens e ela tinha vários repetidos. Os do Brasil ela nem trouxe à conversa, pois são os mais simples. Em vez de fazer um cartão personalizado, como os estrangeiros, os brasileiros costumavam comprar cartões postais normais, desses que se acham em banca, e preenchiam à mão as informações do contato.
Com os endereços e informações de alguns dos radioamadores em mãos, Lena procurou alguns dos radioamadores que falaram com seu pai. Vários já haviam morrido. “Não era muito moleque quem fazia isso”, diz. Mas encontrou no Facebook, por exemplo, o bisneto de um húngaro que Isnard conhecia. “E a gente ficou amigo assim. Engraçado, né?” Também procurou na internet foto das fachadas das casas. “Fui pro Japão, levei os cartões, mas não consegui achar ninguém, acho que as pessoas tinham se mudado.” Menos de uma semana depois, Lena já encerrado a venda — mas as imagens, com as histórias de Isnard, ficaram guardadas.