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Olimpíadas

O legado olímpico

Nove histórias cotidianas de quem enxergou as Olimpíadas com outros olhos

Muitas organizações não governamentais de direitos humanos, nacionais e internacionais, questionaram, antes e ao longo dos Jogos Olímpicos Rio 2016 qual seria o verdadeiro legado para a cidade do Rio de Janeiro. Ao fim de 21 dias de jogos, o Brasil acumulou 19 medalhas, mas enquanto o Rio se preparava para receber o megaevento esportivo, a violência nas favelas aumentava, o Estado do Rio, em crise financeira, declarava calamidade pública, atrasando o pagamento de milhares de servidores públicos, e mais de 20 mil famílias eram removidas de suas casas e comunidades. A maioria dos cariocas não viu e nem verá melhorias.

Enquanto os turistas se sentiam seguros com a presença do Exército e da Polícia Militar nas ruas do Rio, 92 tiroteios armados foram registrados na região metropolitana do Rio de Janeiro durante as Olimpíadas, de acordo com dados da Anistia Internacional. No mesmo período, de 5 a 21 de agosto, 31 pessoas foram mortas e 51 ficaram feridas.

“Há tiroteios todos os dias, nada mudou”, diz Nana Batista, sambista e ex-moradora do Complexo do Alemão, de onde saiu para tentar viver uma vida mais tranquila. Lá, ela conta, era difícil sair de casa por medo da tão falada “bala perdida”. Mãe de três filhos, de 12, 14 e 18 anos, optou por morar em Cidade Alta, Cordovil, na Zona Norte do Rio. “Meus filhos não tinham vida. Eu tomo antidepressivo até hoje por causa disso, na época tive uma crise nervosa”, conta ela, que viu um homem ser morto pela polícia na porta de sua casa, em abril do ano passado.

Nana recorreu ao samba, que viralizou nas redes sociais, para dar sentido aos sentimentos diante do que presenciou. “Quero andar outra vez por aí, sem ter que tropeçar em PI, sem ter que evitar esse medo, onde vi tanto sangue fluir, quero andar de cabeça erguida, retomar outra vez minha vida, estampido de bala não pode ser minha canção de ninar”, diz o samba escrito por ela, entitulado “Paz no Complexo do Alemão”.

“A favela não é só o que a mídia diz, tem pessoas com talentos incríveis aqui dentro”, afirma ela que se sustenta com bicos há dois anos, desde que ficou desempregada. “Enquanto eles estão preocupados em maquiar a cidade para as olimpíadas, os problemas continuam. O Estado só maquiou, só preparou pras Olimpíadas, mas e depois? o que vai acontecer depois? Quando os projetos vão ter prosseguimento? Quando vai ter um PAC 3? A gente nem sabe… quer dizer, é complicado. Os ares da mudança têm que chegar no Complexo do Alemão.”

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A sambista Nana Batista, observa o Complexo do Alemão do alto do teleférico.
A sambista Nana Batista, observa o Complexo do Alemão do alto do teleférico.

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De 2010 a 2015, segundo relatório da Anistia Internacional, foram registrados 3.438 homicídios por conta de intervenção policial no Rio de Janeiro. Uma dessas balas, da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Manguinhos matou o filho de Ana Paula de Oliveira, Johnatha, aos 19 anos, em janeiro de 2014. “Para nós que somos pobres, moradores de favela, o legado que fica é um legado de sofrimento, de dor, de lágrimas ainda mais com um aumento das polícias dentro e ao redor das favelas, porque o aumento de polícia pra gente significa aumento de violações dos nossos direitos, aumento do extermínio”, diz Ana Paula, que participa ativamente do movimento de mães contra a violência policial. “Eu acho que não se deve fazer Olimpíadas ou qualquer outro megaevento em cima do sofrimento de um povo.”

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Ana Paula Oliveira participa, entre mães e apoiadores, da Vigília da Candelária, em memória da chacina cometida por policiais militares que mataram 8 jovens, em 23 de julho de 1993.
Ana Paula Oliveira participa, entre mães e apoiadores, da Vigília da Candelária, em memória da chacina cometida por policiais militares que mataram 8 jovens, em 23 de julho de 1993.

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Já Vitor Santigo Borges, 30 anos, morador da Maré, foi alvo de soldados do Exército – que ocupou o Complexo da Maré, conjunto de favelas da Zona Norte do Rio, de abril de 2014 até 30 de junho de 2015, em uma espécie de “preparação” do terreno para a instalação da Polícia Pacificadora, algo que não foi concretizado. O carro em que ele estava com mais quatro amigos foi alvejado na lateral pelos soldados enquanto entravam na complexo pela Vila do Pinheiro, em fevereiro de 2015. “Eles [os policiais] alegaram que a gente tentou atropelar um soldado, que a gente trocou tiros de dentro do carro com eles pra fora… tinha um soldado da aeronáutica no carro, um amigo meu que é empresário, eu sou técnico da segurança do trabalho, não tinha ninguém errado dentro do carro… 30 anos morando aqui, sei como tem que fazer, como entrar, como sair da comunidade”, conta.

“Eu tive tudo que você pode imaginar no pulmão, quase tive falência dos rins, tive insuficiência renal, tive embolia pulmonar… um tiro atravessou o pulmão e pegou na coluna, e aí o estilhaço pegou o canal medular e eu tive a paraplegia e o segundo tiro pegou na perna e eu tive que amputar”, diz ele, que agora conta com a ajuda da mãe que largou seus empregos para cuidar de Vitor.

Sua maior preocupação é com sua filha, Beatriz, hoje com 4 anos – ainda um bebê na foto que fica acima da cama de Vitor. “De tudo o que me afetou mais foi essa relação com ela… sabe o que é ficar pensando ‘como é que eu vou ensinar ela a andar de bicicleta?’.” Além disso, a sobrevivência no dia a dia não é fácil. Para se locomover Vitor precisa da ajuda de vizinhos e amigos para conseguir descer os 13 degraus que o levam de casa à rua e o Estado não providencia a ambulância necessária para levá-lo aos exames e consultas médicas. “Se fosse pelo Ministério Público (que investiga o caso) eu não teria nada do que eu tenho agora. Essa cama que eu tenho foi doada por um amigo, a cadeira de rodas que eu uso foi o irmão desse amigo, as fraldas que eu usei até hoje a comunidade que me deu… e o Estado não me deu um band-aid”, diz ele.

“Toda semana, todo dia tem um com tiro de bala perdida e quando vai comprovar, foi a polícia… o despreparo tá ali, tá no Exército que fez isso comigo, o despreparo tá na Polícia Militar”, opina ele, que não acha que a cidade estava preparada para receber os Jogos.

Irone, mãe de Vitor, que abdicou de trabalhar para cuidar do filho, diz: “Eu acho que a intenção do governo é acabar com o pobre, porque vem esse modelo de pacificação, mas junto com ele não vêm as questões sociais pra comunidade. Agora querem fazer uma coisa bonitinha pros gringos que vão deixar seus dólares aqui… mas isso vai servir pra mim e pra você? Não vai. Cidade maravilhosa não é pra mim”.

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Vitor Santiago Borges, 30, ao lado de sua mãe Irone, que abandonou seu trabalho para cuidar dele.
Vitor Santiago Borges, 30, ao lado de sua mãe Irone, que abandonou seu trabalho para cuidar do filho.

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Faltam recursos em todas as áreas. Após o decreto de Calamidade Pública, o governo federal garantiu R$ 2,9 bilhões ao Rio de Janeiro para as despesas com a segurança pública. Enquanto isso, Carina Blacutt, 31, mãe de 4 filhos, via parte de seu salário de professora de filosofia da rede estadual sendo cortado por conta de uma greve – da qual fez parte – que reivindicava melhorias na infraestrutura e nas condições de ensino. “A situação chegou num ponto em que não era possível mais trabalhar de forma segura”, por conta da demissão ou não pagamento do salário de funcionários da limpeza e da segurança.

“Quando ele [o governador em exercício Francisco Dornelles] decretou a calamidade pública foi quando a gente percebeu que a gente ia ser massacrado… porque esse decreto permite tudo, inclusive permite descontar assim e falar ‘estamos em calamidade pública’ né, e aí a revolta vai ficando maior. Para tudo pras Olimpíadas, mas pra educação mesmo não se para nada…”, diz ela, que teve 17 dias do seu salário de junho descontado, sem aviso prévio.

Carina recebe aproximada mil reais para trabalhar 16 horas semanais na rede estadual. “A realidade de um professor que realmente consegue pagar seus custos é um professor que trabalha em quatro, cinco escolas.” Ela mesma trabalha em um colégio particular para complementar a renda. Com quatro filhos, Carina faz malabarismos para viver. Ela contou com uma vaquinha feita pelos professores da sua escola, que a ajudaram com a compra de leite para as crianças, que consomem cerca de 12 litros por semana.

“Você simplesmente não consegue se sustentar numa cidade que é a Cidade Olímpica e onde fica tudo caro, mas o salário não tem esse reajuste.” A greve acabou depois de 5 meses, principalmente pela força do corte dos salários promovido em julho, mas o reajuste salarial não foi discutido pelo governo do Estado. Perguntada se ela via uma melhora após o fim das Olimpíadas, Carina respondeu: “Eu acho que vai piorar. Quando acabar, a máscara vai cair e vai se achar um rombo no nosso governo, no estado, no município… isso ainda vai aparecer”.

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Muito se fala sobre a persistência dos atletas que enfrentam todas as adversidades e chegam ao pódio nas Olimpíadas. Adoramos uma história de superação – depois que ela acontece. Mas a Rio 2016 também gerou muito desperdício. O atletismo, por exemplo, perdeu seu maior centro de referência, o estádio Célio de Barros que, localizado dentro do Maracanã, virou canteiro de obras, fechado desde 2013. Os atletas que queriam competir tiveram que ir para outras cidades e até para fora do país para treinar.

Após pressão popular, a promessa é de que o estádio seja reconstruído após os jogos pela Concessionária Maracanã S.A, mas isso ainda precisa sair do papel. “Não vamos ter legado e o que a gente tinha foi destruído”, diz Edneida Freire, 51, treinadora de atletismo. “A cidade devia ter dois, três, quatro estádios de atletismo, isso sim seria legado olímpico, não destruir nosso patrimônio público.”

Edneira era reponsável por dar aulas em um projeto social no Célio de Barros para crianças e adolescentes. Com o fim do projeto, ela mantém seu compromisso por conta própria, fazendo os treinos em parques e praças públicas da cidade, sem ganhar nada por isso. “Muitos foram treinar em São Paulo, em Miami… aqui não tem estrutura, não tem banheiro, não tem segurança… onde vamos deixar os equipamentos?”, diz. “Os que ainda não estão preparados, ou que não estão em idade [de competir]… o que eles estão fazendo se não estão no projeto?”

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Edneida Freire, 51, treinadora de atletismo, dando aula no Parque Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro.
Edneida Freire, 51, treinadora de atletismo, dando aula no Parque Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro.

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Na questão da moradia, dentre tantas comunidades removidas, a história da Vila Autódromo virou referência e exemplo por ter enfrentado um processo de remoção para as construções do Parque Olímpico, na Barra da Tijuca. Das quase 600 famílias que moravam lá, hoje 20 conseguiram permanecer com a garantia de urbanização da comunidade. O percurso, no entanto, foi longo. “Eu tenho muitos projetos pra frente, mas eu preciso ter minha vida de volta, porque o poder público tirou durante todos esses anos. Eu abdiquei de muita coisa aqui, pra enfrentar isso”, diz Luiz Cláudio, professor de educação física e morador da comunidade.

“Amo esse esporte, amo esse evento [Olimpíadas], o que eu não amo é a forma com que ela é usada para desgraçar famílias e destruir histórias de vida. Eu não amo essa política hipócrita que fica falando em legado social quando sabemos que o principal legado vai pros empresários de empreiteiras”, diz Luiz.

A área onde fica o Parque Olímpico e a Vila Autódromo são de propriedade de Carlos Carvalho, único acionista da Carvalho Hosken, uma das construtoras responsáveis pela construção do Parque Olímpico e pela Vila dos Atletas, conjunto de prédios e apartamentos que após os Jogos serão vendidos como condomínios de luxo.

“A gente conseguiu ficar, que era o que a gente queria”, diz Penha, sem esconder o rosto cansado. “Esses últimos anos vivemos aqui dentro de um canteiro de obras, com muita poeira, falta de água, falta de luz… Vivemos no meio de escombros, casas descaracterizada… Vivemos sem paz, sem tranquilidade”, desabafa Luiz. “Minha perspectiva após as Olimpíadas é de que eles devolvam de fato nossas vidas.”

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Luiz Cláudio e Maria da Penha, no contêiner colocado temporariamente pela prefeitura na Vila Autódromo, comunidade vizinha do Parque Olímpico.
Luiz Cláudio e Maria da Penha, no contêiner colocado temporariamente pela prefeitura na Vila Autódromo, comunidade vizinha do Parque Olímpico.

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Vila União de Curicica foi outra comunidade carioca que sofreu com um processo de remoção, essa para a construção do BRT Transolímpico, que passa por ali, ligando a Barra da Tijuca a Deodoro, os dois principais centros de competição das Olimpíadas. “Já faz uns 20 anos que eu moro aqui. Eles não me ofereceram nada… Nós fizemos a inscrição para pegar o apartamento [do programa Minha Casa, Minha Vida], mas depois disseram que não iam tirar mais e nós não ganhamos nada”, diz Glória Dionéia Rodrigues de Mattos, de 52 anos. A Transolímpica passa atrás da sua casa, que ganhou diversas rachaduras por conta das construções e dos carros que passam por ali.

A princípio, o projeto da Transolímpica visava remover mais de 800 famílias de Vila União, mas por resistência da comunidade o trajeto foi alterado. Mesmo assim, mais de 300 famílias foram removidas. O que mais incomoda Sônia, além do barulho, da poeira e das rachaduras, é a falta de transparência das autoridades. “Eles não vêm aqui dar uma posição pra gente. Já construí duas pontes aqui, eles vieram e tiraram. Não sei se posso construir”, diz ela, em referência à ponte que dá acesso à sua casa.

“Tantas coisas mais sérias pra serem resolvida e eles vieram fazer Olimpíadas…. eu trabalho em hospital e eu sei o que tá acontecendo. Onde eu trabalho mesmo não tem luva pra gente trabalhar, não tem medicação, não tem nada… e eles vieram fazer Olimpíadas aqui”, desabafa.

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Glória Dionéia Rodrigues de Mattos, de 52 anos, em frente à sua casa, com a Transolímpica ao fundo.
Glória Dionéia Rodrigues de Mattos, de 52 anos, em frente à sua casa, com a Transolímpica ao fundo.

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Ja a casa de Dona Maria, 79, fica embaixo da Transolímpica. Por conta das construções e dos reparos (feitos por placas de sustentação irregulares e rachaduras que surgiram menos de uma semana após a inauguração), o barulho na casa de Dona Maria é quase insuportável. Ela mora e trabalha ali, em uma vendinha que foi crescendo ao longo dos anos. Sobre a construção, ela diz: “Eu não sei de nada. É o que eles queriam, não é o que a gente quer. Só peço a Deus que não deixem a beira da minha casa descampada, porque se deixarem aberto, pra mim vai ser horrível”.

O que antes era o quintal de sua casa, agora está fechado com uma grade, e em cima dele, passa a Transolímpica. Surpreendentemente, Dona Maria não reclama do barulho: “Não me incomodo… Sou uma pessoa muito paciente”, diz ela, um pouco tímida de ser fotografada. Moradora de Vila União há mais de 20 anos, é difícil entender por que Dona Maria não foi indenizada pelos danos à sua casa e à sua vida.

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Na área revitalizada do Porto, onde fica o Museu do Amanhã, os comerciantes informais são proibidos de circular. Com esposa e três filhos, o aposentado da construção civil Carlos Alberto Mattos, 58, precisa trabalhar nas ruas para garantir o sustento da família. “Se fosse depender só da aposentadoria, não dava”, diz ele, que recebe um salário mínimo por mês. Para complementar, vende algodão doce pelas ruas do Rio de Janeiro, vendendo cerca de 70 unidades por dia, a R$4 reais cada. Carlos, porém, não pode aproveitar o fluxo de turistas na região portuária do Rio, que em cinco meses recebeu meio milhão de visitantes. Os guardas municipais impedem a circulação por ali.

Pela lei 13.284, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, as entidades organizadoras do evento são responsáveis por autorizar o comércio de rua nas áreas oficiais de jogos, além de terem a exclusividade, junto com os patrocinadores, sobre a exploração comercial dos produtos oficiais das Olimpíadas.

“Eles mandam a gente embora e se discutir, a gente apanha, tomam nossa mercadoria e acabou”, afirma ele, circulando por ali em uma segunda-feira de baixo movimento, por conta do fechamento do museu. Apenas donos de food trucks podem estacionar e trabalhar ali. Sobre as Olimpíadas, Carlos dá uma opinião que, depois de algumas entrevistas, parece ser o sentimento geral do carioca comum: “É bom para o Estado… pra morador de baixa renda não influencia nada não. Nós só pegamos as sobras… somos barrados das coisas, ficamos isolados”.

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Carlos Alberto Mattos Carneiro, 58, em frente ao Museu do Amanhã em uma segunda-feira de pouco movimento na região.
Carlos Alberto Mattos Carneiro, 58, em frente ao Museu do Amanhã em uma segunda-feira de pouco movimento na região.

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