Como um complexo livro escrito nos anos 60 levou dois dos diretores de cinema mais excêntricos a embarcarem em projetos mirabolantes, influenciou uma das maiores sagas cinematográficas já criadas e mesmo assim demorou anos, até décadas, para ser reconhecido como um dos marcos da literatura de ficção científica? Não é uma pergunta fácil de responder, mas tudo começou com uma obsessão por montanhas feitas de areia e vento.
Enquanto estava se preparando para uma reportagem que nunca escreveu, Frank Herbert se viu fascinado por dunas. A paixão tinha um quê de poesia: Herbert gostava do fato de que ninguém percebia que as massas de areia eram primas das ondas do mar, movendo-se da mesma forma, mas num ritmo mais lento. Estudando um monte de arquivos sobre areia, ele acabou pensando: “E se existisse um planeta que fosse todo deserto?”. E foi além: “Nos meus estudos sobre desertos e em estudos anteriores sobre religião, vi que muitas religiões nasceram no deserto. Então resolvi juntar as duas coisas, pois não acho que uma história deva ter uma linha só”.
Foi assim, de uma singela observação sobre a areia, que nasceu o livro “Duna”, publicado 50 anos atrás. Às duas linhas — deserto e religião — somaram-se tantas outras que a história pensada como um conto terminou por se desdobrar em seis volumes escritos por Herbert e mais de dez feitos por seu filho, Brian, em parceria com Kevin J. Anderson, como continuação de seu legado. Sozinho, o primeiro livro tem tantas tramas que fazer uma sinopse, ainda que em alguns parágrafos, é uma tarefa complicada.
Mas aqui vai uma tentativa: num futuro distante vive o garoto Paul, herdeiro da nobre família Atreides, designada para governar o planeta desértico Arrakis. É somente lá que se produz a substância mais valiosa do universo, que dá vitalidade e uma clareza incrível a quem a toma, possibilitando longas viagens entre planetas, essenciais para a manutenção da ordem do universo. Tirar essa substância das dunas, no entanto, é um problema, já que qualquer atividade na areia atrai vermes gigantes devoradores de pessoas.
Por causa da escassez desse recurso natural fundamental, Arrakis é um território cobiçado por outras famílias que querem dominá-lo. Na disputa, Paul acaba por se perder no deserto com a mãe, iniciada em uma ordem político-religiosa de mulheres com poderes como controlar a mente alheia. Ah, e Paul é também uma espécie de messias, aguardado ansiosamente pela ordem há gerações e dotado de poderes incríveis.
Não é fácil de explicar, muito menos de ler. Herbert não introduz seus leitores lentamente a seu universo — que é complicado e detalhado como a Terra Média de J.R.R. Tolkien. Algumas (muitas) consultas na internet ajudam a situar o leitor em meio às tramas e termos como Bene Gesserit e gom jabbar, citados sem cerimônia ou explicações logo nas primeiras páginas.
Essa complexidade não assusta, porém, a legião de fãs de ficção científica. Em 2011, uma enquete da americana NPR (Rádio Pública Nacional) com mais de 60 mil votos elegeu “Duna” como a quarta melhor publicação de ficção científica da história. Mas como acontece com muitas obras do gênero, o livro não foi um sucesso imediato.
Segundo James E. Gunn, autor da antologia em seis volumes “The Road to Science Fiction” e criador do Centro para o Estudo da Ficção Científica da Universidade do Kansas, “Duna” nasceu muito à frente de seu tempo. “‘A Sociedade do Anel’ [de Tolkien] veio em um período em que as pessoas estavam prontas. Independente de seus méritos, é isso que é fundamental para que um trabalho adquira esse nível de popularidade”, diz.
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“‘Duna’ era um livro mais complexo e difícil. Foi um sucesso fora do comum como uma história publicada em revistas, mas teve dificuldades em sair como livro porque estava à frente de sua época tanto em relação aos temas quanto à abordagem”, diz. “É um livro significativo por causa desses temas e do tratamento compreensivo dado a eles, por causa dos personagens e pela capacidade de criar um universo futuro crível com uma história que o sustente.”
Rejeitado por dezenas de editoras até conseguir ser publicado, o livro deslanchou, segundo Gunn, surfando na onda do movimento ambientalista fortalecido nos Estados Unidos após a publicação de “Primavera Silenciosa”, de Rachel Carson, sobre os danos causados por pesticidas no ambiente. Foi aí que “Duna” e seu coquetel de assuntos, que falavam de danos à natureza e escassez de recursos naturais valiosos, deu certo. O livro conquistou os prêmios Hugo e Nebula, os mais importantes do gênero, e ultrapassou a marca de 1 milhão de exemplares vendidos.
O MAIOR FILME JAMAIS FEITO
Uma história como “Duna” merecia uma versão cinematográfica digna de sua grandiosidade. E se isso não aconteceu nas telas, acabou rolando nos bastidores. A mais curiosa tentativa de adaptação da história foi do diretor, escritor, poeta e cartomante Alejandro Jodorowsky, em 1975. Com o objetivo de proporcionar ao espectador a sensação de uma viagem de ácido, o diretor escolheu para o elenco nomes tão exóticos como Orson Welles, Mick Jagger e Salvador Dalí. A trilha sonora ficaria a cargo do Pink Floyd. Uma experiência lisérgica completa.
Mas, como na literatura, o filme “Duna” era moderno demais para aquele momento. Se no papel a saga de Herbert deu certo apesar das dificuldades, no cinema o projeto naufragou por causa de sua megalomania, ficando conhecido como um dos melhores filmes que nunca existiram. A história está documentada no filme “Jodorowsky’s Dune”, de Frank Pavich, lançado em 2013.
Jodorowsky nem havia lido a obra quando um produtor perguntou para ele qual seria seu filme dos sonhos. Poderia ter dito “Dom Quixote”, por exemplo, mas disse “Duna”, o livro de ficção científica mais popular daquele momento. Depois de lê-lo, finalmente, o cineasta teve certeza: precisou de cem páginas para entender o que se passava na trama.
Seu projeto era ambicioso. Só o storyboard, desenhado pelo consagrado artista francês Moebius, tinha mais de 3.000 imagens. O elenco estelar foi escolhido a dedo. Para aceitar um pequeno papel, Dalí exigiu ser o ator mais bem pago da história, pedindo de cara US$ 100 mil por hora trabalhada. Inviável. Mas Jodorowsky deu um jeito de driblá-lo. Como ele apareceria em cena por no máximo cinco minutos, ofereceu-lhe US$ 100 mil por minuto na tela.
Convencer um estúdio foi mais difícil. A resposta de todos era a mesma: a história era boa, o custo estimado, de US$ 15 milhões, era aceitável, mas os executivos não confiavam no diretor maluco nem acreditavam que alguém toparia ir ao cinema para assistir aquilo — como numa viagem de LSD, a jornada era longa, e estimada em mais de dez horas. Jodorowsky não cedeu: “Esse é meu sonho, não desistirei dele”. E ficou por isso mesmo.
Mas a história não terminou por aí. Quase dez anos após a tentativa de Jodorowsky, o filme “Duna” tornou-se realidade pelas mãos de ninguém menos que David Lynch, em 1984. Nele, o papel de Paul ficou com Kyle MacLachlan, que, anos mais tarde, reprisaria a parceria com o diretor na série “Twin Peaks”. O elenco tem ainda nomes como Patrick Stewart, Virginia Madsen e Sting — sim, o ex-vocalista da banda The Police.
No fim das contas, o filme não agradou nem mesmo a Lynch, que, sem poder fazer o corte final, não reconheceu aquele trabalho como seu. Anos depois, declarou que não seria justo dizer que a produção foi um pesadelo total. “Mas acho que foi 75% de um pesadelo”, afirmou, sincero. A ausência de controle criativo, disse, é a morte para um cineasta. “E eu morri.”
Sem o respaldo de seu diretor, o filme foi detonado pela crítica. No New York Times, Janet Maslin escreveu: “Muitos personagens de ‘Duna’ têm poderes psíquicos, o que os coloca na posição única de serem capazes de compreender o que está acontecendo no filme”. Richard Corliss, da revista Time, não deixou por menos: “A maioria dos filmes de ficção científica oferece um escape, como uma folga da lição de casa. Mas ‘Duna’ é tão difícil quanto uma prova. Você tem que se esforçar”.
GUERRA NAS DUNAS
Apesar do filme que nunca saiu do papel de Jodorowsky e da decepcionante versão de Lynch que foi às telas, o Guardian afirmou, em julho, que “Duna” tornou-se, sim, um grande filme: “Star Wars”.
“Dos poderes mentais dos jedis similares aos das Bene Gesserit à mineração em Tatooine”, há muito no universo de George Lucas que remete a “Duna”, segundo a publicação. “Herbert sabia que tinha sido copiado”, diz o texto. “Ele e alguns colegas formaram, como piada, uma organização chamada Sociedade Somos Muito Grandes para Processar George Lucas.”
Fãs na internet compartilham o sentimento. “‘Star Wars’ é ‘Duna’”, diz, categórico, um site que compila semelhanças entre a saga de Frank Herbert e a criada por Lucas. Alguns dos pontos que sustentam essa tese são bem simples: Tatooine (“Star Wars”) é um planeta deserto. Arrakis (“Duna”) também. “Star Wars” tem uma princesa Leia, enquanto “Duna” tem uma princesa Alia (se você não se convenceu, diga os nomes em voz alta. A pronúncia é bem parecida, argumentam).
Mas há também teorias mais bem desenvolvidas. Nas duas histórias, por exemplo, há um grupo de rebeldes lutando contra um império. Tanto Luke Skywalker quanto Paul Atreides, protagonistas das duas histórias, são jovens rapazes com destinos ligados a planetas desérticos, com poderes com os quais devem aprender a lidar. E (pequeno spoiler) são descendentes dos vilões da trama.
Cópia ou não, é inegável que há em “Star Wars” uma influência de Herbet, diz James E. Gunn. Segundo ele, “George Lucas foi atrás da literatura de ficção científica para se inspirar e fez homenagem a muita coisa que leu”. Como exemplo, Gunn diz que a forma como os Wookie, espécie do personagem Chewbacca, são retratados é inspirada em um desenho de capa da revista “Analog”, que publicou os primeiros trechos de “Duna”. “E há o esqueleto de um verme de areia [de ‘Duna’] que aparece em um dos filmes [de ‘Star Wars’]”, cita.
VERSÃO BRASILEIRA
No Brasil, a saga ganhou uma nova versão em 2010 motivada pela paixão de um fã. O editor Marcos Fernando trabalhava em uma livraria paulistana quando conheceu Adriano Fromer, publisher da editora Aleph, que tem como foco livros de ficção científica. Conversando sobre o gênero e os pedidos mais frequentes de leitores, Marcos comentou que um dos mais procurados era “Duna”, que estava esgotado.
Havia descoberto o livro tempos antes por indicação de um colega, que sabia de seu gosto pela ficção. “Ele percebeu que eu acabara de ler mais um livro de H. G. Wells, então me indicou ‘Duna’. Acabei devorando o livro, com mais de 500 páginas, em menos de uma semana. De lá para cá, reli esse volume da série pelo menos três vezes”, conta.
Com a indicação em mãos, a Aleph o contratou para fazer a revisão do texto traduzido, cotejando-o com o original do primeiro volume de “Duna” — tarefa que ele repetiu para todos os outros livros da série lançados pela editora até hoje — e para participar de coordenação editorial. Marcos deixou, então, a livraria e mergulhou no universo de Frank Herbert.
“Uma das maiores dificuldades que encontramos de imediato foi realizar uma nova tradução de um livro já consagrado, com seus fãs acostumados com a versão lançada nos anos 1980”, explica ele. “As escolhas da tradução da Aleph sempre se pautaram em um paralelismo com o original, dando espaço para os neologismos e aglutinações, muito empregados por Frank Herbert.”
“Duna” continua rendendo frutos. Da nova edição brasileira a volumes inéditos da saga, passando pelo documentário sobre o filme de Jodorowsky e pelas obras influenciadas pelo livro, há constantemente algo novo com a marca de Herbert circulando. “A prova cabal é a contemporaneidade das questões suscitadas pelo autor: disputas políticas, uso consciente da água, monopólio de combustíveis, a importância social das religiões”, diz Marcos. É sempre complicado explicar os motivos do sucesso de algo, mas, a mesma modernidade que atrapalhou “Duna” no começo está ajudando a trazer novos leitores 50 anos depois.