Existe uma diferença entre filmes ruins e filmes chatos. Dá para se divertir num domingo à noite vendo uma comédia ruim na televisão, por exemplo. Talvez você não recomende pra ninguém ou prefira dizer que passou o fim de semana vendo “O Poderoso Chefão” caso te perguntem, mas não quer dizer que tenha sido chato. E existem filmes que são bons, mas não muito legais. Você pode dizer orgulhoso numa roda de amigos que viu, gostou, mas no fundo sabe que não veria de novo. “Tudo Vai Ficar Bem”, de Wim Wenders, é um dos infelizes filmes que combinam as duas características.
É mais uma história de um homem jovem, branco, em crise. No filme, que estreou na quinta (10), James Franco é Tomas, um escritor com bloqueio criativo, sofrendo para escrever duas páginas depois de ter lançado dois romances. O relacionamento com Sara (Rachel McAdams) também vai mal, mas não sabemos muito bem o porquê. A questão, diz ele, é que eles têm planos incompatíveis: ela quer ter filhos e ele quer escrever. A verdade é que ele é, vamos usar um eufemismo, difícil. Enquanto ela quer investir no relacionamento ele ignora seus telefonemas e qualquer tentativa de aproximação. Quando ela o pressiona, ele diz platitudes (como seu pai, mais tarde, aponta sabiamente) do estilo “não é você, sou eu”.
Voltando para casa um dia num dia com neve, Tomas não vê duas crianças que cruzam a estrada num trenó e atropela uma delas. A mãe dos meninos (Charlotte Gainsbourg) não o culpa: trata-se de um acidente, ela diz, a culpa foi dela que não colocou as crianças para dentro de casa porque não conseguia largar um livro. Depois disso, não há grandes acontecimentos. Tomas não consegue se esquecer do acidente, ele entra numa espiral rumo ao fundo do poço, termina o namoro, mas sua carreira decola (em um momento, o acusam de ter usado os acontecimentos daquele dia fatídico como inspiração).
Rachel McAdams, coitada, não tem muito com o que trabalhar e faz o melhor possível com o papel, apesar de ter um sotaque esquisitíssimo. James Franco mal consegue manter os olhos abertos, parecendo estar eternamente chapado. Charlotte Gainsbourg chora, reza ou murmura o tempo todo. Mas o pior é a edição: depois de uma cena (que acrescenta pouco, diga-se de passagem) de conversa entre Tomas e o pai, por exemplo, pode vir uma da personagem de Charlotte (tão mal desenvolvida que tive que olhar no IMDb seu nome: Kate) passeando com seu cachorro. Por que motivo? Não sabemos. É uma sucessão de cenas aleatórias e as transições são tão bruscas, com tanto fade-out, que em diversos momentos você acha que o filme acabou.
Vários saltos de tempo são dados, também sem sutileza. Um letreiro avisa que passaram-se dois anos, depois quatro, depois mais quatro. Mas em mais de uma década de história nada de interessante acontece, Tomas continua o mesmo, só ganha uma nova namorada — mais uma personagem fraca, que pelo menos tem uma filha interessante. Mais para o final parece que a história vai virar um suspense (a trilha sonora sinistra ajuda a passar essa impressão), mas isso também não evolui muito. Embora o filme tenha uma cara própria, o que é bom, e uma premissa que poderia ser interessante, ele nunca deslancha. Nem toda história de homem em crise é boa. Nem todo homem “difícil” é interessante ou profundo. Às vezes ele é só chato mesmo.
Bem antes de “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu, ser indicado ao Oscar, uma animação brasileira disputava outro importante título internacional. Pouco mais de vinte anos atrás, “Cassiopéia”, de Clóvis Vieira, brigava com “Toy Story” pelo reconhecimento de primeira animação 100% digital. O filme começou a ser produzido antes e com bem menos recursos, mas foi lançado alguns meses depois do longa da Disney. Mesmo assim, há uma controvérsia em torno da primazia de “Toy Story”, já que o longa usou escaneamento de bonecos modelados em argila, enquanto o filme brasileiro foi feito completamente no computador, sem usar imagens ou modelos feito fora dele.
Depois do lançamento, os dois filmes seguiram trajetórias completamente diferentes: enquanto “Toy Story”, lançado em dezembro de 1995, virou uma franquia de sucesso pelo mundo, com um quarto filme em fase de pré-produção, “Cassiopéia”, que saiu em 1996, encontrou dificuldades na distribuição, não conseguiu ser exibido no exterior e teve sua continuação cancelada por falta de dinheiro. Hoje em dia pouco se fala do filme brasileiro pioneiro, que pode ser visto inteiramente no YouTube, com a aprovação do diretor, que trabalha agora no filme espírita “Deixe-me Viver”. Até imagens do filme são escassas.
Mas um lugar não se esqueceu de “Cassiopéia”. Duas décadas depois de seu lançamento, um cartaz de “Cassiopéia” ainda enfeita um dos salões do restaurante Nello’s, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Foi por ali que o filme começou a tomar forma, quando Clóvis Vieira conheceu Nello De Rossi, dono do restaurante e, na época, também da produtora NDR. Nello era um ator italiano que havia se mudado para o Brasil em 1973 e que, mesmo com um restaurante de sucesso, não conseguia se afastar do cinema, sua grande paixão. “Quando papai abriu a produtora, foi um êxodo do restaurante. Todo mundo foi trabalhar lá”, lembra Patricia De Rossi, filha de Nello, numa conversa no restaurante. “Minha mãe dizia que aqui era o pão de cada dia. A gente trabalhava de dia lá e de noite ajudava aqui. Todo o mundo preferia trabalhar na produtora.”
Clóvis, que animava filmes de publicidade e fazia vinhetas desde os anos 1970, conheceu Nello nos anos 1980, quando o italiano produzia o filme “Jeitosa, um Assunto Muito Particular”, com Lúcia Veríssimo e John Herbert, cujo cartaz também enfeita o restaurante. “Meu estúdio também prestava serviços para longas, fazia coisas como efeitos especiais e letreiros de apresentação. O Nello gostou do meu projeto do ‘Pifft’ e queria produzir, mas naquela época era muito caro e não foi para frente”, conta Clóvis, referindo-se ao seu projeto de animação sobre um morcego chamado Pifft, que acabou não virando filme. “Em 1991 sugeri substituir o projeto do ‘Pifft’ pelo ‘Cassiopéia’, devido à diminuição dos custos. A introdução da imagem digital viria a nos beneficiar.”
Segundo Patricia, que foi assistente de montagem de “Cassiopéia”, Nello se apaixonou pela nova história de Clóvis — ambientada num planeta na constelação de Cassiopéia, que vive em paz até a chegada de invasores que sugam sua energia vital — apesar de não entender nada de animação ou computadores. “Durante a produção ele dizia: ‘Nossa senhora, eu gostei da ideia, apostei no Clóvis, mas nunca mais vou me envolver numa coisa que eu não sei’.” Era uma tecnologia nova e que Nello, morto em 2013, não entendia. Mas esse nem foi o maior dos problemas. No making of do filme, também disponível no YouTube, ele diz ter feito uma coisa que nunca se deve fazer no cinema: começar um filme sem saber como financiar o filme até o último fotograma.
Quando Nello entrou no projeto, “Cassiopéia” era só um embrião, ainda sem roteiro. Foi ele quem apresentou a Clóvis a roteirista Robin Geld, que se juntou a uma equipe formada por Aloisio de Castro e José Feliciano. “Trocávamos ideias. O filme foi sendo feito sem roteiro. Na medida que avançávamos, criávamos as situações, como nas novelas. Um dia a Robin me disse: ‘Sonhei com uma lua, o filme precisa ter uma lua’. Então criei a cena da Lua que foi o desfecho do filme”, diz o diretor.
INVESTIMENTO E ROUBO
A produção começou com um investimento do próprio Nello em 1992. No ano seguinte, foi aprovada a Lei do Audiovisual, que dá incentivos fiscais para quem direciona recursos a projetos audiovisuais, e com ela, conta Clóvis, a equipe conseguiu captar por volta de R$ 700 mil. O filme todo foi feito no Brasil, enviado para os Estados Unidos apenas para ser transposto para película cinematográfica no laboratório DuArt, em Nova York. Por volta de seis meses antes da finalização do filme, houve uma invasão na produtora e alguns CDs com o trabalho de “Cassiopéia” foram roubados. “Isso atrasou o lançamento”, lembra Patrícia. Até hoje não se sabe direito o que aconteceu. “Foi proposital pra Disney dizer que lançou [um filme 100% digital] antes. Os americanos gostam de fazer primeiro. A gente acredita que foi uma sabotagem intencional”, diz ela.
[olho]”A gente acredita que foi uma sabotagem intencional”[/olho]
As dificuldades não acabaram por aí. Depois de pronto, conta Patricia, foi complicado arrumar uma distribuidora para levar o filme às salas de cinema. “É a segunda parte do drama. ‘Cassiopéia’ foi lançado pela PlayArte na época da Olimpíada. Queimou nossa primeira semana, porque o foco era totalmente a Olimpíada. O filme morre”, afirma. “E era um filme importante, o primeiro todo digitalizado no Brasil, e não deram a atenção necessária. A distribuição foi ruim e, por consequência, a repercussão foi morosa, triste.” Clóvis concorda: “O filme foi mal lançado, no dia da abertura da Olimpíada de Atlanta. Os distribuidores queimaram o filme. Mas em vídeo foi bem lançado, havia lista de espera nas locadoras”, diz. Por causa da distribuidora, diz, “Toy Story” chegou aos cinemas antes mesmo tendo começado a ser produzido depois.
Ainda que tenha sido lançado depois de “Toy Story”, há quem diga que “Cassiopéia” é o primeiro filme totalmente digital por não ter feito o escaneamento dos bonecos. Clóvis não liga muito para o título ou para a polêmica. “Isso não tem muita importância. O que vale no mundo é o marketing e a data do lançamento nos cinemas”, diz o diretor. “Contudo, nós saímos na frente. A Disney soube que estávamos fazendo um filme totalmente digital. Quando perceberam que estávamos na frente, correram para a Pixar, de Steve Jobs, que tinha projetos na área. Então a Disney jogou US$ 30 milhões no colo de Jobs para terminar antes que nós. Pessoalmente, fico feliz em fazer a Disney e Jobs terem corrido atrás de nós por algum tempo. Hoje perdemos de mil a zero. Mas essa disputa fez bem a ambas as partes.”
NO EXTERIOR
Fora do Brasil, “Cassiopéia” também não emplacou. “Conseguimos distribuição nos Estados Unidos, mas precisaríamos investir na dublagem em inglês. Fomos à Ancine pedir autorização para captar R$ 400 mil. Negaram dizendo que o Nello não era naturalizado brasileiro, só residente. Ele ficou desgostoso depois de tanto fazer pelo cinema brasileiro. Então desistimos do projeto”, diz Clóvis.
[olho]”Durmo feliz sabendo que um dia rivalizei com Steve Jobs e a Disney”[/olho]
Patricia diz que Nello esperava ganhar dinheiro com produtos relacionados a “Cassiopéia” — brinquedos, roupas, mochilas e outras mercadorias com a imagem de seus personagens — e que não quis que ceder esse lucro de licenciamento a distribuidoras estrangeiras que manifestaram interesse no filme. “Se alguém investe no filme, tem que ter a certeza de que pode fazer o merchandising e ganhar pela venda”, diz ela. “Todo mundo conversava com o pai pra ele ser mais flexível, mas ele não queria abrir mão da possibilidade do lucro do merchandising. Ele não entendia que no primeiro filme ele tinha que ceder. No segundo filme, se o primeiro for um sucesso, você pode ditar regras. Isso papai não entendeu.”
Uma continuação de “Cassiopéia” chegou a ser anunciada, mas por falta de financiamento o projeto foi engavetado. Depois disso, a NDR fechou as portas. “Foi nossa última produção. Mas papai viveu com o cinema dentro dele a vida toda”, diz Patricia. Apesar dos pesares, ela conta que Nello ficou feliz com o resultado. Clóvis segue a mesma linha: diz que sempre assiste ao filme e que não mudaria nada em toda sua trajetória. “Tínhamos limitações técnicas, pois a tecnologia de hardware e software estava nos primórdios. Tiramos leite de pedra. Fizemos o máximo que alguém no Brasil faria nas mesmas condições”, afirma. “Não rendeu dinheiro, mas durmo feliz sabendo que um dia rivalizei com Steve Jobs e a Disney.”
Em tempos em que Donald Trump é o favorito a disputar a presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano, “House of Cards” não parece tão novelona assim. Sim, Frank Underwood, presidente na série, já matou duas pessoas, colocou um jornalista na cadeia por cyberterrrorismo e derrubou um presidente com uma facilidade impressionante. Pelo menos nas primárias disputadas por Frank, diferente da realidade, ninguém mencionou o tamanho do seu pênis e pregar a supremacia branca é algo que pode destruir uma candidatura. Mas “House of Cards” abraça cada vez mais a ideia de que é sim uma novelona, com diálogos cheios de frases de efeito, vilões maquiavélicos e reviravoltas. Se você tem uma boa história e bons personagens, como é o caso desta quarta temporada, isso não é um problema.
Na terceira temporada, “House of Cards” deu uma cambaleada. Nos dois primeiros anos, a trama girava em torno da escalada de Frank Underwood — preterido no cargo de Secretário de Estado e com sangue nos olhos –, que passou de deputado a presidente. Na terceira, com o objetivo inicial atingido, o panorama mudou um pouco. Frank tentou emplacar um projeto pouco popular para aumentar os empregos reduzindo programas de governo e se envolveu em questões diplomáticas com a Rússia, governada por um presidente que lembra bastante Putin. Enquanto isso, o braço-direito de Frank, Doug, passou a temporada no fundo do poço, recuperando-se lentamente de uma tentativa de assassinato. As histórias novas não engrenaram, a série só esquentou no final e deu saudades das primeiras temporadas.
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Não é o caso dos episódios novos, que estrearam na sexta (4). As primárias são bem mais interessantes que o dia a dia de Frank como presidente e ele é muito melhor quando colocado contra a parede. Na quarta temporada, os desafios vêm de vários lados: Lucas, o repórter que Frank colocou na cadeia, é libertado depois de ajudar o governo numa investigação; seu ex-chefe, Tom Hammerschmidt, começa a investigar Frank por conta própria; Claire, mulher de Frank, impõe condições difíceis para ajudá-lo nas eleições; Heather Dunbar continua no páreo para disputar a presidência e o candidato republicano e Will Conway faz bastante pressão sobre os Underwood.
Ajuda o fato de vermos mais da vida dos Conway fora da relação com Frank — Tom Yates, escritor contratado para contar a história do casal na terceira temporada, por exemplo, foi mal construído desde o início e é difícil ligar pra ele até hoje. Os novos episódios deixam de lado alguns velhos conhecidos, como Jackie e Remy, mas os novos personagens — como a complicada mãe de Claire — são melhores que os que apareceram no ano passado.
SURREALISMO
Desde que Frank cometeu o primeiro assassinato com as próprias mãos, lá no primeiro ano, caiu um pouco a aura de “realidade” da série. Quando ele matou uma jornalista em público, numa estação de metrô lotada, a história ficou mais inverossímil ainda. Mas é justamente nesses momentos que a série tem seus pontos altos: não quando tenta ser séria e falar de política externa, não quando quer ser um retrato dos bastidores da política americana, mas quando encurrala Frank e Claire (Kevin Spacey e Robin Wright, que seguraram as pontas mesmo na terceira temporada) e os força a buscar uma saída, por mais louca ou improvável que seja — até porque está difícil competir com a realidade das primárias americanas.
Quando os desafios que eles enfrentam parecem intransponíveis e os adversários dos Underwood estão à altura (a ética Heather Dunbar, que apareceu na temporada anterior, não é), é difícil parar de assistir a “House of Cards”. Não porque é um grande drama político, mas porque é uma novela das boas. E isso a quarta temporada — com menos tramas paralelas, mais focada na busca do casal pela indicação à presidência, mas ainda totalmente maluca — entrega.
Fernando Cavalcanti era o fotógrafo plantonista da madrugada no jornal Notícias Populares na noite de 2 de março de 1996, um sábado. Parte do trabalho envolvia ouvir a frequência da polícia num rádio e monitorar os crimes que aconteciam no período, para ir atrás daquilo que o jornal queria documentar. Ao ouvir um trecho de uma conversa, Fernando ligou para a delegacia em busca de informações sobre uma ocorrência e ficou sabendo pelo policial de um outro caso que desconhecia: um avião havia caído na serra da Cantareira. As informações eram poucas, mas com um repórter e um motorista, Fernando foi até o local. No caminho, ouviu o primeiro rumor de que os passageiros eram os membros da banda Mamonas Assassinas.
Naquela noite, 20 anos atrás, Fernando foi o primeiro fotógrafo a chegar aos destroços e a fazer imagens dos corpos dos integrantes da banda, que estamparam a capa do NP, que circulou entre 1963 e 2001. Com fama de jornal “espreme que sai sangue” e manchetes surreais, o NP já tinha publicado imagens de mortos, mais sangrentas que a dos Mamonas, em sua capa. Em 1992, por exemplo, colocou na primeira página a primeira foto dos mortos no Carandiru, com uma foto de corpos enfileirados ocupando toda a metade superior da capa. No caso dos Mamonas, porém, o interesse do público foi maior. A tiragem do jornal naquele dia foi recorde, lembra Fernando: 250 mil exemplares foram às bancas com a manchete “queda de avião mata a banda mais famosa do Brasil”.
Com letras bem-humoradas e figurinos variados, cheios de fantasias, a banda tinha estourado no ano anterior e lançado apenas um disco, com o nome da banda e músicas como “Robocop Gay”, “Vira-Vira” e “Pelados em Santos”. À época, o álbum tinha vendido mais de 1,75 milhão de cópias — o recordista do ano — e era sucesso principalmente entre as crianças. No auge, o grupo formado por músicos de 20 e poucos anos começava a ficar conhecido fora do Brasil e tinha viagem marcada para Portugal.
A banda, formada por Dinho, 24, Bento Hinoto, 25, Júlio Rasec, 28, Samuel Reoli, 22, e Sérgio Reoli, 26, voltava para São Paulo de um show no estádio Mané Garrincha, em Brasília. O avião fez o último contato com o aeroporto de Guarulhos às 23h20 e, depois de receber autorização para pousar, arremeteu. Segundo investigação, uma manobra arriscada do piloto e o desrespeito às normas de segurança da aviação causaram o acidente, que matou nove pessoas. O enterro, realizado em Guarulhos no dia 5 de março, reuniu 100 mil pessoas.
[olho]A tiragem do jornal naquele dia foi recorde: 250 mil exemplares foram às bancas[/olho]
Hoje com 43 anos, Fernando relembra em seu apartamento, com quadros de algumas de suas principais fotos e capas de jornal penduradas na parede, a noite do acidente. As imagens dos Mamonas estão numa caixa cheia de negativos, fotos soltas e álbuns com outras imagens impressionantes — mães reconhecendo corpos de filhos, famílias passando ao lado de cadáveres sem olhar para eles, crianças queimadas, cabeças cravejadas de balas. No NP, onde trabalhou por cerca de oito meses, fazia todo o tipo de pauta e já tinha visto muitos cadáveres, de todos os tipos, antes de ver os Mamonas. “Vi mais mortos naqueles oito meses do que as pessoas veem numa vida. Quantos corpos você já viu? Uns dez?”, pergunta.
Chegando ao local do acidente, um grupo de repórteres já estava a postos, sem acesso à área onde seriam feitas as buscas por corpos. Ainda era noite e o avião no qual os Mamonas estavam tinha caído no meio da mata. Todos esperavam até que, já com a luz do dia, chegou um helicóptero da Globo, cuja equipe fez um acordo com a equipe de busca: a emissora emprestaria o helicóptero se pudesse ter acesso às imagens do acidente em primeira mão. Formou-se um grupo para acessar o local e Fernando, que estava escondido no mato, tirou o colete que o identificava como fotógrafo e se infiltrou na equipe de resgate, seguindo atrás deles, com apenas uma lente e — o que descobriu chegando lá — um filme só, com 36 poses.
Depois de um tempo vendo cadáveres, diz ele, o choque com esse tipo de imagem diminui. No início tudo tem mais impacto, mas com o passar do tempo você se habitua a ver o sangue e consegue se desligar. E é diferente ver uma imagem através da câmera, que media a realidade, ressalta. “Se me perguntam qual a cor da camiseta do morto depois eu não me lembro, tenho que ver a foto”, exemplifica. O que dói de verdade é ver o sofrimento dos familiares. O corpo, no fim das contas, é só um corpo, de alguém que já se foi.
[olho]A Globo fez um acordo com a equipe de busca: a emissora emprestaria o helicóptero se pudesse ter acesso às imagens do acidente em primeira mão[/olho]
O que viu ali foram destroços do avião, equipamentos com o logo dos Mamonas e os corpos — encontrados a partir das 5h45 — em diferentes estados. Não dava, por exemplo, para reconhecer o vocalista, Dinho, pelo rosto — só um pedaço do seu maxilar permaneceu ligado ao tronco. Uma das imagens de que Fernando se lembra até hoje é a dos corpos embalados sendo içados por helicópteros da polícia, já que era impossível pousar no local.
Assim que a Globo concluiu sua matéria, todos os jornalistas foram liberados para chegar ao local e então Fernando teve acesso a mais filme — um motoboy do jornal veio pegar as primeiras imagens para levá-las ao jornal, já que na época não era possível mandá-las do local. Na hora, conta ele, você não sente que está fazendo uma cobertura importante, não pensa na importâncias das fotografias ou na relevância do acontecimento. Você simplesmente faz as fotos.
A ficha de que todos os integrantes de um dos grupos mais populares do momento tinham morrido num acidente de avião caiu quando ele chegou em casa para um almoço de domingo com a família, em que seus primos estavam chorando. Chegando lá, também se tocou de algo que tinha passado despercebido. Para o trabalho, os fotógrafos do NP usavam roupas escuras, já que frequentavam favelas e cenas de crimes e era melhor ser o mais discreto possível. Umas duas semanas antes do acidente, Fernando tinha fotografado os Mamonas num show e tinha ganhado uma camiseta dos integrantes, toda preta com um escrito que dizia “Mamonas”. Naquela noite, ele estava vestindo aquela camiseta, com outra blusa por cima, e não tinha notado. A sessão de fotos com a banda foi rápida, diz, mas ele se lembra que os músicos eram bem disponíveis e topavam fazer de tudo — estilo “jogar o Dinho pra cima”.
[olho]Uma vez que você entrega as fotos para os editores do jornal, você não tem noção do que vai acontecer com elas[/olho]
Uma vez que você entrega as fotos para os editores do jornal, você não tem noção do que vai acontecer com elas, diz ele. Não sabia, então, que as fotos dos corpos dos Mamonas iriam parar na capa, nem a dimensão que isso teria. A curiosidade do público foi tão grande que mesmo com a tiragem recorde do NP houve gente que não conseguiu ver as fotos, que mais tarde iriam parar na internet. O jornal organizou em sua redação uma exposição com as imagens, tão popular que os seguranças tiveram de colocar um fim na fila e impedir mais pessoas de entrar. Fernando recebeu propostas para vender as fotos originais para pessoas interessadas em revendê-las, mas negou.
Alguns meses depois de tirar as fotos dos Mamonas, Fernando, jornalista de formação, foi para a Inglaterra, onde passou quase sete anos. Lá conseguiu seu primeiro emprego no jornal semanal Sunday Times também trabalhando numa cobertura de uma morte de uma figura pública. Quando chegou em Londres para fazer um curso, ligou para o jornal atrás de uma oportunidade e, depois de mostrar o portfólio cheio de imagens de impacto, foi chamado para uma equipe de 30 fotógrafos que trabalhariam para o jornal cobrindo o funeral da princesa Diana, morta num acidente de carro. A foto que publicou no dia hoje ocupa uma das caixas em seu apartamento, assim como as fotos dos destroços do acidente dos Mamonas.
Para quem entrou na adolescência vendo “Dawson’s Creek” ou “The O.C”, do fim dos anos 1990 ao meio dos anos 2000, o futuro parecia relativamente simples: namorar na escola, fazer a faculdade dos sonhos, arrumar um bom emprego e um apartamento grande, casar com o amor da adolescência, ter filhos e pronto. Mas a vida não costuma ser assim tão simples, e as séries que retratam o período dos 20 e poucos aos 30 e tantos anos dessa mesma geração mostram um desfecho um pouco diferente. Entre “Girls” e “You’re the Worst” o que povoa a televisão hoje são os relacionamentos tóxicos, a falta de dinheiro, os sub-empregos ou o desemprego, as noites cheias de álcool e péssimas decisões.
“Love”, série produzida por Judd Apatow que estreou no Netflix na última sexta, é mais uma história nessa linha. Não se trata de nenhuma grande novidade, e sim de um filhote de “Girls”, que também tem Apatow como produtor-executivo. É uma série feita para um público bem específico, nascido entre os anos 1980 e 1990, sobre um grupo que está melhor de vida que muita gente, mas se sente completamente perdido. Como “Girls”, é cheia de personagens que beiram o detestável e situações constrangedoras, mas que, de alguma forma, dão um alento a quem também tem encontros micados, um emprego mais ou menos, e não está onde pensou que estaria por volta dos 30 anos. Por que eles são (provavelmente) mais problemáticos que você.
Na série, Mickey (Gillian Jacobs, a Mimi-Rose de “Girls”) tem um namoro que vai mal com um homem que precisa que a mãe o leve ao shopping para comprar roupas. No trabalho, num programa de rádio, é assediada pelo chefe e acha que vai ser demitida se não sair com ele. Gus (Paul Rust) não tem um relacionamento muito melhor: a namorada, que não o deixa nem escolher a cor do tapete da casa, reclama que ele fala “eu te amo” demais e diz que o traiu. Ele sonha em ser roteirista, mas trabalha num programa de TV como tutor de sua estrela-mirim, uma pequena diva que tem que passar numa prova para que ele mantenha o emprego. Os dois se encontram numa loja de conveniência, quando ela, sem carteira, entra numa briga com um funcionário por um copo de café e ele paga a bebida (e um cigarro) para ela.
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Diferente dos anos 1990 e 2000, quando as comédias românticas eram doces e idealizadas, as séries do gênero hoje em dia costumam optar pela abordagem “real”. Seus personagens têm vícios e defeitos, os relacionamentos demoram para se desenvolver, são cheios de idas e vindas, ciladas e momentos tão constrangedores que é difícil de olhar. Em “Love”, no primeiro capítulo, depois de uma discussão com a ex-namorada, Gus joga pela janela do carro todos os seus blu-rays enquanto culpa comédias românticas como “Uma Linda Mulher” por fazê-lo acreditar que o amor podia ser assim fácil. Uma prostituta e um homem rico nunca dariam certo, ele diz.
Essas comédias românticas que Gus despreza, como “Um Lugar Chamado Notting Hill” ou “Mensagem para Você”, são um retrato do que a sua vida provavelmente nunca será, mas seria legal se fosse. É reconfortante ver aquelas pessoas se apaixonando, o livreiro conquistando a estrela de cinema ou os dois inimigos unidos pela internet. A vida poderia ser assim. Com “Girls” ou “Love” — menos “reais” do que almejam ser, nem todo o mundo é narcisista e destrutivo desse jeito –, é o contrário, a sensação de assistir àquilo só conforta como antiexemplo. Pelo menos sua vida é melhor que isso, não?
No caso de “Girls”, é melhor que a protagonista Hannah (Lena Dunham) termine sem Adam (Adam Driver), já que eles não fazem bem um para o outro. Em “Love” é a mesma coisa e seria mais saudável que Mickey e Gus fossem só amigos. É ele quem se interessa primeiro por ela, que só resolve dar uma chance porque sua vida está péssima e ela acha que um “cara legal” é a solução para os seus problemas, o que não é o caso — até porque Gus está longe de ser perfeito. Juntos, é difícil de darem certo. E são as partes em que os dois estão separados, em que eles têm de lidar com seus próprios problemas, que são mais interessantes.
Mesmo sem grandes novidades, “Love” tem seus bons momentos. A amiga australiana de Mickey, Bertie (Claudia O’Doherty), é genuinamente uma boa pessoa e bastante engraçada, uma das poucas personagens ali por quem dá pra torcer. Seu jantar com Gus, arranjado por Mickey antes de ela aceitar o fato de que Gus gosta dela, é exibido quase em tempo real e é desastroso na medida certa, sem que a vergonha alheia tome conta do espectador. Quem gosta de “Girls” provavelmente vai se sentir acolhido com “Love”. Mas para ver uma comédia romântica mais original e mais real o próprio Netflix tem uma opção melhor: “Master of None”, que estreou em novembro do ano passado. Ali a vida amorosa do protagonista é mais próxima da realidade: nem perfeita, nem tão tóxica. E mostra que nem todo final precisa de um “felizes para sempre” para ser feliz.
Leonardo DiCaprio ainda não era o rei do mundo quando interpretou um jovem misógino, agressivo e bocudo que se reunia com um grupo de amigos num bar para discutir de tudo. Era antes de “Titanic”, antes de suas parcerias com Martin Scorsese, antes da comoção na internet para que ele ganhasse o Oscar. Mas é normal não conhecer esse papel. Vinte anos depois, o filme, chamado “Don’s Plum” e gravado totalmente no improviso com um grupo de amigos, não viu a luz do dia na América do Norte. Antes que o filme fosse lançado, DiCaprio e Tobey Maguire — seu amigo de infância, que também está no filme — conseguiram barrar na Justiça sua exibição nos Estados Unidos e no Canadá.
Há muito mistério sobre o que aconteceu de fato, já que o acordo jurídico impede os envolvidos de falarem a respeito. Pouca coisa foi publicada, pouquíssimas vezes o filme foi mencionado em entrevistas. O que já se sabia há algum tempo é o seguinte: o filme foi dirigido por R.D. Robb, que na época fazia parte do grupo apelidado pela revista New York de “pussy posse” — que vivia intensamente a noite dos Estados Unidos –, e tinha no elenco boa parte de seus outros integrantes: DiCaprio, Maguire e Kevin Connolly (de “Entourage”).
Mas depois da gravação, algo aconteceu. Um dos produtores, David Stutman, entrou com uma ação contra DiCaprio e Maguire dizendo que foi convencido pelos dois a financiar o filme e a contratar R.D. como diretor, que DiCaprio tinha ficado muito satisfeito com o resultado, e que depois tinha se voltado contra ele por um motivo “egomaníaco”. Ainda segundo Stutman, Maguire não gostou de como foi retratado no filme e se incomodou por ter revelado tendências pessoais nas suas falas improvisadas. DiCaprio teria, então, apoiado o amigo e se aproveitado do poder conquistado pelo sucesso de “Titanic” para censurar o filme.
Em uma entrevista à revista Detour, DiCaprio mencionou o filme, dizendo que tinha feito um favor a R.D. topando participar de um curta-metragem seu, que o diretor quis transformar o projeto num longa e ameaçou jogar a mídia contra ele caso ele não aceitasse lançar “Don’s Plum” como um longa-metragem. Depois disso houve um acordo entre os envolvidos, que determinou que o filme não seria lançado nos Estados Unidos e no Canadá. Em outros países, foi liberado, e o filme chegou a ser exibido no Festival de Berlim e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2001.
O assunto esfriou depois disso. Mas em 2014, um dos produtores de “Don’s Plum”, Dale Wheatley, cansou de ficar quieto. Criou o site Free Don’s Plum, escreveu uma carta pública a DiCaprio e publicou o vídeo, hospedado no Vimeo, para quem quisesse ver. Quando uma conversa sobre o site foi parar no Reddit, já em 2016, as matérias avisando que quem quisesse ver o filme perdido de Leonardo DiCaprio poderia finalmente fazê-lo começaram a sair. E o vídeo foi tirado do ar.
Agora, Dale envia os links por e-mail para quem quiser assistir ao filme e está fazendo um documentário sobre o caso com a brasileira Angela Carvalho. O filme deve incluir vídeos de depoimentos de Tobey Maguire e Leonardo DiCaprio, que Dale tem desde a época do processo e hoje estão com a cineasta, que mostram o lado deles do embate. Sua versão da história ele conta agora. O depoimento abaixo é resultado de entrevistas do Risca Faca com Dale por telefone e e-mail.
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Em 1995, eu, R.D. Robb, Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire, Kevin Connolly e Scott Bloom éramos amigos muito próximos e resolvemos fazer um filme juntos. Na época ele era chamado “Saturday Night Club”, e hoje é conhecido como “Don’s Plum”. O projeto partiu de David Stutman, que nos vendeu a ideia uma noite na casa do Leo. Todos concordamos que era um projeto ótimo. Naquela época, Leo já tinha sido indicado ao Oscar [em 1994, por “Gilbert Grape: Aprendiz de Sonhador”] e certamente não precisava ter feito o filme. Talvez ele tenha visto como um favor pra gente, como disse numa entrevista, mas acho que, na verdade, ele estava tão animado quanto o resto de nós por trabalhar com seus amigos e estava envolvido desde o começo.
Nos reunimos para fazer um filme experimental e decidimos fazê-lo totalmente por improviso. Fizemos cartões para cada personagem, delineando seus arcos e histórias. Depois de uma série de ensaios os personagens ficaram prontos e no ponto para serem filmados. Filmamos por três dias em 1995 — Leonardo DiCaprio participou de dois desses dias. Mais ou menos oito meses depois gravamos algumas cenas a mais pra terminar o filme, durante mais três dias. Leonardo não gravou dessa vez, mas Tobey Maguire, Kevin Connolly e Scott Bloom voltaram. Todos assinaram contratos concordando em aparecer no filme, sem restrição geográfica para a exibição. Verbalmente, eles também concordaram em receber o valor do sindicato pelo seu trabalho mais 1% dos lucros.
Gravamos as cenas novas em março de 1996 e achamos que dava pra ter uma versão pronta uns meses depois disso. Então planejamos para o verão de 1996 uma exibição para Leonardo DiCaprio e os outros caras — todos os nossos amigos e potenciais distribuidores –, pra ver se alguém estaria interessado em comprar o filme. Naquela data Tobey Maguire não ia estar na cidade para ir à exibição, porque ia gravar outro filme. Então R.D. e eu decidimos fazer uma versão de 72 minutos, sem nenhuma das imagens da segunda gravação, pra ele assistir.
Soube recentemente que o Tobey achou, depois de ver aquela versão, que o filme era um pouco “real” demais. Quero deixar claro: todos aqueles caras interpretaram personagens. Ian [personagem de Maguire] e Tobey são pessoas completamente diferentes. Mas acredite: Tobey é muito pior que Ian. Muito. Aparentemente, depois de ver o filme Tobey começou a falar mal dele pra todos os nossos amigos. Enquanto isso eu e R.D. estávamos trabalhando, não sabíamos o que estava acontecendo. Ele não disse pra gente que não tinha gostado.
[olho]”Quero deixar claro: todos aqueles caras interpretaram personagens. Ian e Tobey são pessoas completamente diferentes. Mas acredite: Tobey é muito pior que Ian” [/olho]
Havia uma tensão naquela época porque Leonardo DiCaprio já era um ator indicado ao Oscar, e a última coisa que ele queria era fazer um filme que o envergonhasse ou tirasse seu crédito como ator. Mas R.D. e eu nunca, nunca, lançaríamos um filme que prejudicasse sua reputação. R.D., que foi meu parceiro em toda essa história épica de “Don’s Plum”, começou sua carreira como ator fazendo propaganda de fralda. Ele fez peças na Broadway, em Nova York, aos 13 anos, fez o filme “Uma História de Natal”, um clássico americano, na adolescência. Ele estava na indústria desde sempre, é um artista extraordinário.
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Alguns meses depois disso fizemos uma exibição nos estúdios da MGM em Hollywood. Nesse dia estávamos eu, Leonardo DiCaprio, R.D. Robb, Kevin Connolly, a maioria do elenco, com exceção do Tobey Maguire. Também estavam alguns distribuidores para nos dar uma opinião e dizer se aquilo que era algo que eles comprariam. Leonardo DiCaprio estava muito animado durante a exibição: levantava da cadeira, batia o pé no chão, dava risada. Foi uma noite muito boa. Depois saímos para a boate HMS Bounty, na avenida Wilshire, em Hollywood. Kevin Connolly deu a R.D. um cartão lindo, dizendo “parabéns, você conseguiu!”, com flores dele e da namorada, Nikki Cox, que contracenava com ele na série “Unhappily Ever After”. Foi maravilhoso, todo o mundo estava animado, as preocupações do Leo tinham desaparecido. Kevin Connolly me disse que o Leo tinha dado um giro de 180º em relação aos seus medos sobre “Don’s Plum”. Tanto que o Leo disse pra mim e pro R.D. que queria que seus agentes vissem o filme.
Uma semana depois, mais ou menos, fomos à Creative Arts Agency e exibimos o filme para o agente do Leo, Adam Venit, seu empresário, Rich Yorn, seu advogado, Steve Warren, para a agente Beth Swafford e outras pessoas da CAA. Foi um sucesso. Tanto que o pessoal da CAA — os agentes do Leo — assinou um contrato para representar não só o filme como o R.D. Robb como um de seus talentos. Foi uma época muito excitante e depois disso Leo nos deu seu consentimento para seguirmos em frente com a distribuição.
Logo estávamos negociando com Harvey Weinstein e a Miramax, e tínhamos outros compradores interessados. Esse processo de venda do filme estava acontecendo quando Tobey Maguire apareceu na nossa casa — eu e R.D. morávamos juntos naquela época — com uma caixa de macarrão e salsichas de tofu, dizendo que queria conversar sobre “Don’s Plum”. Acho que ele nem tinha assistido ao filme todo, só àquela versão de 72 minutos. De qualquer forma, ele pirou. Começou a gritar, dizendo que queria destruir o filme, e a fazer acusações contra a gente, falando que tínhamos sido anti-éticos. Nenhuma das acusações fazia sentido. Ele dizia que queríamos alcançar as estrelas, que estávamos usando o Leonardo DiCaprio pra ganhar fama e dinheiro. Tinha muita paixão e nonsense por trás do discurso dele. Uma hora ele começou a gritar histericamente centímetros da minha cara dizendo que queria acabar com “Don’s Plum”. Foi muito perturbador e até hoje não sei explicar o porquê. Tentei acalmá-lo, ficamos até de manhã tentando acabar com as preocupações dele, que até hoje não compreendo de verdade.
Em um momento, do nada, ele disse: “O que aconteceria se Leonardo DiCaprio dissesse que queria acabar com o filme?”. Naquela hora a gente já tinha passado o filme pros agentes e pro empresário do Leo, estava tudo certo. Mas Tobey pirou. Eu disse pra ele que pegaria muito mal pro Leo tentar parar um filme independente. Ainda acho isso. E ele usou essa frase pra pilhar o Leo. Fomos chamados pra uma reunião na casa do Kevin Connolly, com Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire, Scott Bloom. Eu e R.D. sentamos e ouvimos abusos verbais por horas de cada um deles.
[olho]”Eu disse pro Tobey que pegaria muito mal pro Leo tentar parar um filme independente. Ainda acho isso. E ele usou essa frase pra pilhar o Leo”[/olho]
Antes da reunião o Tobey disse pra todo mundo que eu tinha confessado que ia colocar a mídia contra o Leonardo DiCaprio se ele não concordasse em lançar Don’s Plum como um longa. E ele já tinha concordado em lançar como um longa. Tenho um vídeo do Tobey falando, sob juramento, que voltou pra gravar mais cenas sabendo que “Don’s Plum” seria um longa. E tenho o vídeo do Leo falando, também sob juramento, que não sabia que tínhamos gravado aquelas cenas a mais. Um deles está mentindo, porque se você acreditar no Leo e no Tobey significa que o Tobey também estava enganando o Leo fazendo um longa pelas costas dele. Tobey estava falando a verdade nesse depoimento. Leo e todo o mundo envolvido com o filme sabiam o que estávamos fazendo desde o começo. Fomos transparentes.
Mas tudo estava correndo bem, por que eu teria dito aquilo pro Tobey? Eu tinha 26 anos, nem sabia como fazer para colocar a imprensa contra alguém. E isso não é algo que esteja de acordo com a minha bússola moral, sabe. Mas Tobey fez todo o mundo acreditar que eu, R.D. e outro dos nossos produtores iríamos difamar o Leonardo DiCaprio se ele não quisesse lançar o filme como um longa. Pelo que eu sei, o Kevin Connolly filmou essa reunião, ele gravava um monte de coisas na época e nem sei por que ele fez isso. Mas quando pedimos uma cópia da fita ele disse que ela tinha sido roubada.
Aquilo enfureceu o Leonardo DiCaprio. Ele ficou completamente maluco. Era uma época sensível pra ele, nos Estados Unidos o Leo estava começando a virar uma estrela e a imprensa pegava no pé dele. Havia muitas questões sobre sua sexualidade. Então quando Tobey fez essa acusação contra a gente, encheu Leo com uma fúria incontrolável. Chegou a um ponto em que ele gritou: “Você vai colocar a mídia contra mim? Eu sou o Coração Valente, seu filho da puta!”. Ele disse: “Minha equipe falou que estava tudo bem, que esse filme não ia ser um problema”. E uma das últimas coisas que ele disse me deu alguma esperança: “Se eu seguir em frente com o filme, vai ser por causa deles”. E apontou pro Kevin e pro Scott. Disse: “Estou pouco me fodendo pra vocês. Nem aguento olhar pra cara de vocês. Deem o fora daqui”.
[olho]”Chegou a um ponto em que o Leo gritou: ‘Você vai colocar a mídia contra mim? Eu sou o Coração Valente, seu filho da puta!’”[/olho]
Quando R.D. e eu fomos embora, lembro de ter dito que o Leo reconhecia que o filme precisava sair pra que as pessoas vissem as performances dos amigos dele. Apesar dos problemas, achei que daria certo, que o Leo faria a coisa certa e deixaria o mundo ver a atuação dos seus amigos. Como sabemos agora, não foi o caso. A partir dali nunca mais conversamos como amigos.
Era 1996 e estávamos com uma estrela em ascensão falando mal publicamente do nosso filme e do nosso trabalho. Ele dizia coisas horríveis sobre a gente pela cidade toda. A CAA abandonou nosso filme, cancelou o acordo com R.D. Robb. Tínhamos um acordo verbal para produzir três filmes com a produtora do Danny DeVito, a Jersey Films. Também abandonaram. Entramos numa lista negra depois daquela noite. E não tínhamos o dinheiro do Leonardo DiCaprio. Tentamos contratar um advogado, mas ninguém aceitava o caso. Naquela época o Leo não era um astro. Já era rico, mas ainda fazia comerciais para empresas de carro. Ganhava bem, mas ainda não renderia tanto dinheiro pra um advogado que o processasse.
Aí veio “Titanic” e contratamos um dos maiores advogados de Hollywood, Bert Fields. Ele seria pago com uma porcentagem do lucro do processo, não de cara. Em 1999 David Stutman entrou com um processo contra Leonardo DiCaprio e Tobey Maguire por calúnia, difamação e impedimento de um lucro futuro — algo assim. Bert Fields achava que eles fariam um acordo com a gente, que seguir em frente não traria nada de bom pra eles. Ele achava que ganharia um bom dinheiro. Naquela época, por causa de “Titanic”, tínhamos uma proposta de US$ 20 milhões pelos direitos do filme. Estávamos tentando vender o filme desde 1996, ninguém sabia que “Titanic” seria aquele sucesso. Mas o Leonardo DiCaprio não quis acordo, Bert Fields largou o caso e ficamos sem advogado.
Conseguimos outro advogado, que também só receberia uma porcentagem dos lucros. Durante meses ele ficou com nosso caso, gastando milhares de dólares. Então finalmente marcamos uma reunião para um acordo. Mas o advogado disse que se não assinássemos um acordo naquele dia ele largaria o caso. A gente não queria que o filme fosse proibido de passar nos Estados Unidos e no Canadá, mas se perdêssemos o segundo advogado havia um risco grande de o filme não passar em nenhum lugar do mundo. Seria difícil encontrar outro advogado disposto a enfrentar o time jurídico de Leonardo DiCaprio e Tobey Maguire, que era bem financiado.
[olho]”A gente não queria que o filme fosse proibido nos Estados Unidos e no Canadá, mas se perdêssemos o segundo advogado havia um risco grande de o filme não passar em nenhum lugar do mundo”[/olho]
Nos contratos que eles assinaram não dizia se o filme seria um curta ou um longa. Foi isso que eles argumentaram, mas a ideia de que eles não sabiam que seria um longa é ridícula, o Tobey Maguire admitiu que sabia. É uma mentira. Seria muito difícil transformar um curta em longa. E mesmo que você acredite nisso, o Leonardo DiCaprio viu o filme como longa numa sessão com seus agentes e eles contrataram o diretor e iam representar o filme. Então você tem que acreditar que o Leonardo DiCaprio estava OK com o fato de que “Don’s Plum” tinha virado um longa.
Os dois não queriam de jeito nenhum que o filme fosse lançado no Canadá ou nos Estados Unidos. Então as atenções se voltaram para o Japão. Leo também não queria que o filme fosse lançado lá, mas não íamos fazer um acordo a não ser que ganhássemos um país grande. Sem isso não receberíamos dinheiro suficiente pra poder fazer outro filme. Ninguém queria trabalhar com a gente, então o único jeito de trabalharmos de novo seria financiando nosso próprio filme. Por isso brigamos pelo Japão. Eles consentiram e ficou acordado que os dois não iriam interferir no lançamento de “Don’s Plum” em outros países nem difamar o filme ou seus produtores, e nós concordamos em não lançar o filme nos Estados Unidos e no Canadá.
Brigamos pelo Japão porque tínhamos uma oferta de uma distribuidora local de US$ 1,2 milhão. Nas nossas projeções, conseguíriamos ganhar US$ 9 milhões no mundo. Pagaríamos US$ 3 milhões pros advogados, pagaríamos o elenco e a equipe de filmagem — que não tinham recebido nada até então — e ainda sobraria uns US$ 2 milhões pra gente, o suficiente para continuarmos fazendo filmes. Mas não sabíamos que o David Stutman, que tinha a maior parte dos direitos do filme, tinha assinado um contrato de US$ 170 mil com outra distribuidora japonesa. Só soubemos disso depois, quando estávamos na Dinamarca terminando o filme nos estúdios Zentropa, do Lars von Trier.
Aí teve uma briga na justiça, porque essa distribuidora dizia que era dona do filme no Japão, apesar de o contrato só ter assinado pelo David Stutman. E ele prometia, no contrato, entregar o filme para a distribuidora em 1997. Mas ele não conseguiu cumprir o prazo porque o Leonardo DiCaprio tinha bloqueado a produção. Por causa disso tivemos de pagar US$ 1 milhão para a distribuidora japonesa. Em vez dos US$ 9 milhões, o filme acabou rendendo US$ 3 milhões. Pagamos os advogados e a equipe e não ficamos com nada. Não processamos o David Stutman porque não tínhamos dinheiro.
Se o filme fosse liberado hoje a carreira dos dois não sofreria nada. Acho que eles só o impedem de ser lançado hoje porque têm uma questão pessoal com a gente. Você pode ir no YouTube agora e achar o filme dublado em russo. O único motivo pelo qual eles proíbem o filme de passar nos Estados Unidos e no Canadá é para punir o diretor e o produtor. Eles deveriam ter vergonha disso. Leonardo DiCaprio proíbe um filme nos Estados Unidos. O diretor com quem ele mais trabalhou é o Martin Scorsese, que dedicou boa parte de sua vida à preservação de filmes americanos. Pense nisso.
Acredito que um dia o Leonardo DiCaprio, mais maduro, vai perceber que impediu o trabalho de muita gente de ver a luz e vai consertar as coisas. Mas o prazo já se esgotou e por isso fiz o site Free Don’s Plum, que vou manter no ar. Os advogados do Leo falaram com o Vimeo, que tirou o vídeo do ar, mas vou colocá-lo de novo, só preciso descobrir como e quando. Passo várias horas por dia mandando o link pra pessoas que me escrevem dizendo que querem assistir ao filme. Vou continuar lutando. Antes da minha carta, publicada em 2014, estourar no Reddit, 16 pessoas tinham visto o filme. Só 24 horas depois do Reddit o número de visualizações chegou a 35 mil. Depois mais 15 mil pessoas viram, até o vídeo sair do ar. Estou fazendo um documentário agora sobre essa história e acho que é um passo importante. A diretora do documentário, Angela Carvalho, está agora com as minhas fitas dos depoimentos do Leo e do Tobey.
Falo com R.D. Robb bastante [fica com a voz embargada]. Fico muito triste falando dele, porque ele continua respeitando o acordo judicial e não fala sobre o filme. É um homem melhor que eu. Fico emotivo porque sei que foi muito difícil pra ele, ele ama “Don’s Plum” e isso acabou com ele. É um diretor que tem o filme censurado. R.D. Robb fica muito triste com o que aconteceu. Mas agora o filme está sendo visto, comentado, e acho que as tentativas de censura estão começando a falhar.
Logo de cara, na abertura, “Deadpool” mostra que, sim, você vai ver um filme de super-herói — apesar da insistência do protagonista em dizer que não é herói coisa nenhuma –, mas um filme que não se leva a sério e está ciente de todos os clichês por trás do gênero. “Deadpool” não tem músicas épicas, olhares dramáticos para o vazio, lágrimas ou a mensagem de que com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Nos créditos iniciais, o filme anuncia “uma garota gostosa”, “uma adolescente geniosa”, “um personagem feito digitalmente”, “um vilão britânico”, “uma participação especial gratuita”. Sim, está tudo lá, mas pelo menos o filme tira um sarro.
Do ponto de vista de alguém que nunca tinha ouvido falar em Deadpool até ver o trailer, é refrescante poder ver um filme da Marvel sem precisar estar em dia com uma penca de outros longas (é bom ver o primeiro “Capitão América” antes do primeiro “Vingadores” e ver o segundo “Vingadores” antes do terceiro “Capitão América” e por aí vai num grande loop). Os X-Men aparecem de leve, mas dá para entender a história toda sem saber quem é Mística ou Ciclope — apesar de que uma boa piada com as diferentes versões do Professor Xavier se perde se você não souber absolutamente nada sobre os mutantes no cinema.
Em tempos em que o Homem-Aranha ganha uma terceira cara em menos de 15 anos, qualquer novidade é bem-vinda. E “Deadpool” é cheio de pequenas novidades. Para começar, como em todo filme que apresenta um herói, há uma história de origem (a aranha radioativa, a chegada de Clark Kent à Terra… Wolverine ganhou um filme inteiro sobre seu passado), mas que só vem depois de já termos conhecido Deadpool e ligarmos minimamente para ele. Já sabemos que Deadpool, interpretado por Ryan Reynolds, é bocudo, convencido e vingativo quando conhecemos Wade Wilson, um mercernário que passa por um tratamento experimental para curar um câncer e ganha uma habilidade de cura rápida e uma aparência pouco atraente.
Wilson não tem intenções honradas nem a menor vontade de se juntar aos X-Men para combater o mal e salvar o mundo. Sua motivação é encontrar o homem que o deixou assim (o tal vilão britânico, papel meio canastrão de Ed Skrein) para que ele recupere sua cara normal e possa voltar para a namorada, a prostituta Vanessa (Morena Baccarin, que nos faz esquecer de que um dia já foi a chatíssima Jessica Brody de “Homeland”).
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Vanessa, aliás, é um capítulo à parte. Deadpool, que também narra o filme e conversa o tempo todo com o espectador, diz em certo ponto algo como “os homens no cinema devem ter convencido as namoradas a ver o filme falando que era uma história de amor”. Uma história de amor é completamente desnecessária para levar uma mulher ao cinema. Mulheres também gostam de quadrinhos, filmes de ação e super-heróis. O problema é a ausência de boas personagens femininas nos filmes do gênero (cadê o filme da Viúva Negra? É capaz de o Gavião Arqueiro ter um longa solo antes dela).
Ao lado de outras personagens femininas menores Vanessa cumpre esse papel em “Deadpool”. Mesmo quando é colocada na posição de vítima ela parte para a ação e não deixa Deadpool resgatá-la sozinha. Ela não é a mocinha perfeita e inatingível, não é a Mary Jane do “Homem Aranha”, nem a Rachel de “Batman Begins” (um Google foi necessário para lembrar o nome da personagem de Katie Holmes no filme, de tão pouco memorável), e sim alguém que poderia perfeitamente existir no mundo real, com seus defeitos e qualidades.
“Deadpool” não é perfeito porque é tão piadista que às vezes exagera na dose. Ryan Reynolds já tinha feito uma piada consigo mesmo, citando seu fracasso em “Lanterna Verde”, quando faz um comentário sobre o fato de que o ator é mais conhecido pelo rostinho bonito do que pela atuação. Ok, já entendemos que vocé capaz de rir da própria cara. Mas às vezes o filme parece querer ser engraçado demais, fazendo uma piada atrás da outra só para mostrar que consegue. “Deadpool” é tão pop e tão frenético que parece saído de um fórum na internet.
É uma referência atrás da outra, do começo ao fim — na última cena, depois dos créditos, “Deadpool” remete a “Curtindo a Vida Adoidado”, de 1986, um filme “muito, muito velho”, segundo um adolescente que saía da sala de cinema impressionando o amigo por ter captado uma referência tão cult (já eu, por outro lado, não reconheci Stan Lee — a participação especial gratuita anunciada no início. Tem citações para todos os gostos).
O filme era um projeto caro a Ryan Reynolds, que batalhou por anos para conseguir fazê-lo. Foi só quando uma cena teste vazou na internet e empolgou os fãs que o estúdio resolveu de fato fazer o filme, com um orçamento menor do que produções como “Os Vingadores”. E a aposta deu tão certo que o filme bateu o recorde de bilheteria nos Estados Unidos para a estreia de um filme em que menores de 17 anos devem entrar acompanhados, arrecadando 132,7 milhões de dólares de sexta a domingo. É uma prova de que dá para fazer filmes de heróis diferentes do molde tradicional. Dá para fazer humor, dá para inovar na trilha sonora (que tem de George Michael a Salt-N-Pepa), dá para ter bons personagens femininos, dá para ter um herói que não seja um machão, dá para fazer com menos dinheiro e mesmo assim ser um sucesso.
Transformar o livro “Quarto” em filme não era uma tarefa simples. Publicada em 2010, a obra da irlandesa Emma Donoghue, 46, é narrada por um menino de cinco anos, preso num pequeno quarto com sua mãe desde o nascimento. Conduzido por Jack, o leitor desvenda aos poucos a situação em que os dois se encontram, colecionando os pedaços de informação que a criança dá e que ela própria não sabe interpretar. O quebra-cabeças formado não é bonito: a mãe de Jack foi raptada quando adolescente por um estranho que a prendeu naquele quarto à prova de som e hermeticamente fechado. Estuprada ao longo de anos, ela engravidou, e a chegada de Jack a manteve sã. Para proteger o filho, disse a ele que aquele quarto era o mundo todo e que tudo o que ele via na televisão não era real.
A história fica menos sombria contada por Jack, com sua inocência, sua visão peculiar de mundo (o sol, que via pela claraboia, era chamado por ele de Deus) e seus erros de inglês, e foi justamente esse olhar que serviu de ponto de partida para o livro. “Minha ideia, na verdade, era ter o ponto de vista da criança nesse cenário particular, como ele poderia oferecer uma visão fresca desse horror todo e essa mistura comovente entre alegria e dor que uma infância dessas pode envolver”, conta Emma por e-mail. Mas encontrar luz nesse horror em um filme — que em português ganhou o nome “O Quarto de Jack” e estreia no dia 18 — tinha duas grandes dificuldades: como levar para a tela esse ponto de vista infantil e como encontrar um ator dessa idade capaz de sustentar o drama.
A tarefa de resolver a primeira questão ficou nas mãos da própria Emma, que foi responsável pela adaptação — foi seu primeiro longa, que já lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Ela já havia recebido vários pedidos para transformar “Quarto” em filme, mas sentiu algo de diferente na oferta do diretor Lenny Abrahamson, que até então tinha um currículo pequeno, que inclui “Frank”, com Michael Fassbender. “A maioria das pessoas faz propostas vagas, focando nos nomes de grandes atores que podem escalar. Lenny escreveu uma descrição de dez páginas sobre sua compreensão do livro e sua visão detalhada de como recontar essa história na tela”, lembra Emma. “Tão inteligente, tão sensível, tão amável.”
Passar a adaptação para outra pessoa foi uma hipótese que nem cruzou sua cabeça. “Acho que foi mais difícil que escrever o livro, porque envolveu aprender novas habilidades (não só de fazer um roteiro, mas o processo de colaboração. Na verdade, de subordinação, porque você sempre tem de se lembrar que o filme pertence ao diretor!). Mas foi um desafio agradável, não sofrido”, diz. “Não considerei deixar outra pessoa adaptar o livro não porque eu fosse a única pessoa que pudesse conseguir, mas porque eu realmente queria o trabalho. Não diria que fui calma e objetiva, mas acho que isso seria verdade caso fosse um roteiro original, já que eu ficaria apegada a ele também. Os cortes são sempre doloridos!”
Vez ou outra, Emma usou o recurso da narração, na voz de Jacob Tremblay, 9, escolhido para o papel de Jack. São poucos trechos, que remetem ao livro e ajudam a entrar na mente do menino e nunca servem de muleta narrativa — sem as narrações do menino, o filme ainda se sustentaria. Como no livro, o espectador não sabe mais do que Jack. Na verdade, talvez saiba um pouco mais se tiver visto o trailer, que revela boa parte da trama (no caso, é mais importante ver como acontece do que o que acontece). Quando o sequestrador aparece para ver sua mãe, papel de Brie Larson, Jack se esconde no armário. Vemos a interação dos dois pelas frestas e ouvimos o que acontece enquanto a câmera fica no rosto do menino. O espírito do livro se mantém, embora alguns detalhes mudem: no filme, por exemplo, descobrimos que a mãe se chama Joy (nome não revelado no livro), que amamenta o filho bem menos em cena do que na versão por escrito.
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Jacob Tremblay merece um parágrafo à parte: sem ele, o filme perderia muito do impacto. Indicado como ator coadjuvante ao prêmio do sindicato dos atores, que perdeu para Idris Elba, Jacob carrega pelo menos metade do filme nas costas. Brie Larson é a favorita ao Oscar de melhor atriz e é merecido, mas num mundo ideal os dois seriam indicados juntos, num combo — a química ali é impressionante e num filme em que personagens importam mais que enredo a performance é ainda mais essencial.
O diretor afirmou num evento em outubro que “suava à noite” aterrorizado com a perspectiva de achar uma criança que desse conta do recado. “Vimos centenas de crianças. Muitas extraordinárias, que você podia ver pra sempre, mas dava pra saber que com certeza elas não conseguiriam lidar com o drama desse filme”, disse o cineasta. E então Jacob Tremblay apareceu. “Foi o maior desafio e a maior recompensa que tive como cineasta. Encontrá-lo foi a maior sorte.”
Apesar de ter sido inspirado no caso real de Elizabeth Fritzl, mantida em cativeiro durante anos na Áustria, período no qual teve vários filhos do captor, “Quarto” não gira em torno do crime. Não é uma trama policial (embora tenha polícia), não é uma história particularmente triste (embora tenha vários momentos assim). Tem um quê do mito da caverna de Platão, com Jack no papel dos presos que só conheciam o mundo pelas suas sombras na parede. Mas é principalmente uma história sobre a relação de mãe e filho. Uma história bem pessoal, que carrega muito da autora. Nas palavras de Emma: “Gosto de contar histórias esquisitas — ou, na verdade, histórias únicas que iluminem nossa condição universal e cotidiana. Então, por exemplo, nunca vivi num quarto fechado, mas fui mãe de crianças pequenas e coloquei tudo o que conhecia em ‘Quarto’”.
Eddie Redmayne tem uma capacidade incrível de imitar pessoas em seus mínimos trejeitos, e isso ficou claro em “A Teoria de Tudo”, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator no ano passado por sua interpretação de Stephen Hawking. Seu rosto também se transforma com facilidade — a cada filme ele parece uma pessoa diferente. E em “A Garota Dinamarquesa”, que estreia hoje (11), não é diferente. Redmayne mostra de novo que, fisicamente, é um camaleão. Pelo papel de Lili Elbe, pintora dinamarquesa que fez uma das primeiras cirurgias de mudança de sexo de que se tem notícia, Redmayne concorre pela segunda vez seguida ao Oscar.
Seus dois filmes, aliás, têm bastante em comum. Como em “A Teoria de Tudo”, Redmayne interpreta uma personagem num casamento feliz, que vai se deteriorando à medida em que o marido passa por uma grande transformação. Nos dois filmes, seu personagem tem uma mulher que dá apoio o tempo inteiro mesmo às custas de um sofrimento pessoal (um papel clássico de mulheres no cinema, aliás). A diferença é que, enquanto em “A Teoria de Tudo” Felicity Jones era bem coadjuvante, em “A Garota Dinamarquesa” a mulher rouba a cena de Redmayne.
Alicia Vikander disputa o Oscar de melhor atriz coadjuvante neste ano pelo papel de Gerda Wegener, o que faz pouco sentido. Está certo que se ela concorresse ao prêmio de atriz a briga seria mais acirrada — Brie Larson é a favorita, mas Saiorse Ronan e Cate Blanchett também estão no páreo –, mas é ela quem carrega o filme. Não que Redmayne esteja mal. Mas sua atuação é muito mais física que emocional. Lili estuda os gestos de mulheres na rua, paga uma prostituta para poder observá-la, estuda o próprio corpo no espelho e faz dieta para ficar magérrima. Redmayne, que imita como poucos, capta bem a parte corporal da transformação, mas é Vikander quem faz chorar.
Quando o filme começa, Gerda e o marido, Einar, têm um casamento de causar inveja. Eles não se desgrudam, passam os fins de semana na cama, conseguem se comunicar com um olhar numa multidão, têm uma bela vida social e tentam ter um filho. Um dia, a modelo que Gerda estava pintando se atrasa para uma sessão e ela pede para o marido vestir meias e sapatos femininos para que ela possa adiantar o trabalho. Ali, algo muda em Einar. Nos dias seguintes ele pede primeiro para que a mulher não tire a camisola nova na cama e, logo depois, veste a mesma camisola por baixo das roupas.
Gerda não faz muitas perguntas e inclusive sugere que ele vá vestido de mulher a uma festa e se apresente a todos como Lili, uma prima de Einar do interior. Ela o ensina a se maquiar, a andar de salto, a escolher as roupas. Para Gerda, aquilo não passa de uma brincadeira, até que ela vê Lili beijar um homem na festa. Mas a essa altura seu casamento nunca mais seria o mesmo. Einar começa a se portar como Lili com mais e mais frequência, até que ele começa a sonhar os sonhos de Lili e Einar desaparece completamente.
A trajetória de Lili não é nada fácil. Quase ninguém, ali no começo do século 20, entendia o que ela estava passando. Foi vítima de transfobia, médicos tentaram interná-la e a fizeram passar por sessões de radiação, dizendo que ela era esquizofrênica entre vários outros diagnósticos terríveis. Mas, por causa da performance de Vikander, é o sofrimento de Gerda que se sente mais na pele. Em certo momento, quando sua carreira começa a deslanchar e ela vai sozinha a uma festa de abertura de sua exposição em Paris, ela volta para casa aos prantos, diz que o marido deveria ter ido com ela e pede para que Einar apareça só um pouco, ao que Lili responde que isso não é mais possível.
Einar já não existe mais. Lili e Einar são pessoas completamente diferentes, que não têm nem paixões em comum. Quando Gerda sugere que Lili pinte, ela responde: “Eu quero ser uma mulher, não uma pintora”, ao que ela responde: “Existem pessoas que são as duas coisas”. A transformação física de Redmayne é impressionante, mas o filme se preocupa mais com a parte estética do que com o que se passa na cabeça de Lili.
Enquanto isso, embora Gerda continue ao lado de Lili até o fim, ajudando-a se recuperar das cirurgias para a mudança de sexo — mesmo achando que elas eram perigosas –, ela é bem mais que “a mulher sofredora que dá apoio”. Sua jornada como personagem é tão ou mais importante quanto a de Lili: vemos claramente seu conflito interno, seu amargor, suas decepções, seus momentos de fraqueza. Em um momento, inclusive, Gerda é chamada por alguém de “a garota dinamarquesa” do título. Faz sentido. O filme é 100% de Vikander.
Quando “O Filho de Saul” começa, as imagens que se vê são bem desfocadas. O espectador desavisado logo percebe que não é um problema do projetor, e sim uma escolha do diretor estreante László Nemes. Só vemos com clareza o rosto do protagonista, Saul (Géza Röhrig), e aquilo que ele enxerga próximo a ele. Os horrores do campo de concentração em que ele vive ficam nublados, não vemos rostos dos mortos, só um grande borrão de corpos misturados. Houve quem dissesse que, assim, só a dor do protagonista importasse. Houve quem achasse a falta de identidade dos mortos ainda mais incômoda do que conhecê-los. Mas mesmo que não se veja muito, dá para ouvir tudo que se passa, sentir o desespero de Saul e o horror da situação.
No filme que estreia hoje (4), Saul faz parte de um grupo de judeus que ganha alguns meses de vida a mais ao trabalhar para os nazistas nos campos de concentração. Em Auschwitz ele é responsável por tarefas como limpar câmaras de gás, recolher os pertences das roupas dos mortos, cremá-los e jogar suas cinzas no rio. Ver os corpos como uma massa anônima e borrar o cenário que o rodeia parecem ser formas que Saul encontra para desempenhar seu trabalho.
Sua rotina muda, porém, quando um menino sobrevive ao gás e, asfixiado por um médico, é encaminhado para uma autópsia para que se descubra como ele não morreu na câmara. Saul reconhece naquele menino seu filho e ele resolve roubar o corpo para enterrá-lo de acordo com os preceitos da religião. Pegar o corpo não é fácil, achar um rabino é menos ainda e encontrar um rabino disposto a ajudá-lo é quase impossível. Mas Saul não desiste da missão e no curto período de tempo em que o filme se passa ele atravessa o campo inteiro — mostrando seu funcionamento como uma fábrica, pouco visto em outros filmes — em busca de uma saída.
Enquanto Saul procura um rabino, seus colegas preparam uma fuga, com a ajuda de um grupo de mulheres que trabalham nos campos e lhes fornecem pólvora — evento que aconteceu na vida real em 1944. O problema é que Saul está mais preocupado com o corpo do filho, já morto, do que com a possibilidade de um grande grupo de homens escapar com vida dali. Nenhum deles é tratado como herói, nenhuma missão é apresentada como superior.
Favorito ao Oscar de filme estrangeiro, “O Filho de Saul” pode se juntar a tantos outros vencedores de prêmios da Academia que falam sobre a Segunda Guerra (“O Pianista”, “O Leitor”, etc. etc.). Porém, como “Phoenix”, um dos melhores filmes do ano passado, seu olhar sobre a época é mais original do que se espera de um filme sobre o Holocausto. Não só a câmera fica próxima do protagonista o tempo todo como a proporção da imagem é pouco usual, praticamente quadrada, o que deixa tudo mais claustrofóbico e incômodo de ver. O filme se concentra no drama de uma pessoa só, mas ganha força em vez de perder. O espectador se sente na pele de Saul e, apesar de o horror ser menos gráfico que em outros filmes, poucas vezes ele foi tão palpável.
Leonardo DiCaprio sofre menos em “Titanic”, em que morre de frio num mar gelado após um naufrágio, que em “O Regresso”. Sofre menos em “O Homem da Máscara de Ferro”, em que passa anos preso com uma máscara na cara a mando de seu próprio irmão, que em “O Regresso”. Sofre menos em “Romeu + Julieta”, em que se mata ao achar que sua mulher morreu, que em “O Regresso”. DiCaprio quase sempre sofre nos filmes, mas nada se compara a “O Regresso”, que estreia nesta quinta (4). Em mais de duas horas e meia, seu personagem, Hugh Glass é atacado por um urso, abandonado pelos companheiros, quase morre sufocado, afogado, esfaqueado, alvejado por flechas e a lista só cresce.
Fica difícil saber o quanto do que se vê é atuação e o quanto é sofrimento real — o ator disse em entrevistas que realmente comeu fígado cru de bisão, dormiu em carcaças de animal, entrou em rios congelados e quase teve hipotermia mais de uma vez. Com meia dúzia de falas no filme todo, DiCaprio não demonstra tantas nuances quanto em outros trabalhos. Hugh Glass não tem o charme de Jack, de “Titanic”, ou o humor de Jordan Belfort, de “O Lobo de Wall Street”. É só dor e sofrimento, dor e sofrimento. Como o Oscar tende a recompensar os atores por esforço e comprometimento, DiCaprio finalmente deve levar o prêmio e acabar com as piadas, apesar de ter tido outras performances mais, digamos, interessantes no passado.
Mas, como história, “O Regresso” não é nada demais. Tanto que tem o maior número de indicações ao Oscar, disputando 12 categorias, mas roteiro não é uma delas. Hugh Glass faz parte de um grupo de americanos caçadores e vendedores de peles, até ser atacado por um urso que o vê como ameaça a seus filhotes. Todo machucado e sem poder falar, Glass é abandonado pelos companheiros, que deixam um pequeno grupo encabeçado por Fitzgerald (Tom Hardy) com ele para que seja enterrado quando finalmente morrer. Só que Fitzgerald não está a fim de esperar: ele enterra o companheiro vivo e parte sem olhar para trás.
Durante o resto do filme, Leonardo DiCaprio grunhe, cambaleia e se arrasta pela neve para se vingar de Fitzgerald. No caminho, enfrenta tempestades, pesca com as próprias mãos e come o peixe cru (parece até bom comparado ao fígado que vem depois), cauteriza as próprias feridas e foge de diferentes inimigos — de índios a outros grupos de caçadores. Sozinho em outro planeta, Matt Damon tem a vida mais fácil que DiCaprio em seu “Perdido em Marte”, também uma história de sobrevivência, mas bem mais otimista.
“O Regresso” é bruto: em um momento, a lente da câmera fica manchada de sangue. Hugh Glass não chega a ser estuprado por um urso, como dizia um boato bizarro que circulou meses atrás, mas o ataque é violentíssimo. Quando você acha que acabou e respira aliviado, o urso volta para um repeteco e joga DiCaprio pra lá e pra cá.
O filme impressiona pelo aspecto técnico. Foi feito para ser visto no cinema, como “Gravidade”, que tem o mesmo diretor de fotografia, atual bicampeão do Oscar, Emmanuel Lubezki. As imagens são maravilhosas e foi tudo filmado com luz natural, em condições climáticas bem difíceis. Valeu a pena, dá vontade de viver num mundo em que ele seja diretor de fotografia. Em alguns momentos, o filme lembra “A Árvore da Vida”, de Terrence Malik, e não é gratuito: Lubezki também foi responsável pela fotografia. É um filme lindíssimo, mas como história bate numa tecla só e são horas de pura tortura. Quem diria que algum personagem de DiCaprio conseguiria ter uma experiência mais infeliz com gelo que o Jack, de “Titanic”.
No filme “Tangerine”, Sin-Dee acabou de sair de uma curta temporada na prisão quando a amiga Alexandra conta, no banco da loja de donuts que frequentam, que seu namorado a traiu. Ao longo de um dia, as duas percorrem Los Angeles em busca de retaliação contra o namorado e a tal mulher, sobre quem a única coisa que elas sabem é que o nome começa com D. É uma história clássica de vingança e amizade. O fato de Sin-Dee e Alexandra serem mulheres trans é mais uma de suas características, não aquilo que as define. Diferente de outras produções com personagens trans, como “A Garota Dinamarquesa”, “Transparent” ou “Meu Nome É Ray”, não vemos a transição e sim um dia na vida que elas levam depois disso, com vários problemas, mas também muito humor, a pedido das próprias atrizes, que participaram do projeto desde o início.
Sean Baker, diretor do filme que estreou no Festival Sundance no ano passado e que tem estreia prevista para dia 4 de fevereiro no Brasil, não tinha roteiro ou ideia definida até conhecer Mya Taylor, que interpreta Alexandra, perto de sua casa. Seu último filme, “Starlet”, lançado em 2012, também era sobre uma amizade entre duas mulheres: a idosa Sadie e a jovem atriz pornô Jane, e foi a primeira inspiração para “Tangerine”. “Talvez o interesse pelo trabalho sexual não tenha deixado meu organismo, porque me senti atraído por um cruzamento famoso perto de minha casa em Los Angeles, na esquina de Santa Monica e Highland, conhecida por ser um distrito da luz vermelha para trans que trabalham com sexo”, me contou Baker.
Ali no cruzamento ele e seu corroteirista, Chris Bergoch, viram Mya pela primeira vez. “Ela nos impressionou de cara. Eu a vi do outro lado da rua e sabia que tínhamos que falar com ela”, lembra. Baker disse a Mya que pretendia fazer um filme e ela o ajudou apresentando várias de suas amigas, que foram entrevistadas pelo cineasta para ajudar a construir o projeto. Mas o filme só ganhou forma mesmo quando Kitana Kiki Rodriguez, a Sin-Dee, apareceu por lá. “No momento em que vi Mya e Kiki juntas sabia que tínhamos uma dupla dinâmica nas nossas mãos. Elas se complementavam, mas tinham um contraste. Chris e eu sabíamos que devíamos construir uma história com duas protagonistas para Mya e Kiki.”
Em cena, a Sin-Dee de Kiki é a mais exuberante. Com cabelo loiro tipo Beyoncé e uma roupa curta, desfila com confiança pela cidade em busca da tal garota — que não é trans, ainda por cima — que estava com seu namorado (e cafetão), chamando a atenção por onde passa. Alexandra é a voz da razão, que tenta conter a amiga enquanto se prepara para cantar num bar à noite, uma grande oportunidade. As diferenças de personalidade entre as duas são tão grandes quanto sua amizade. O tempo todo uma apoia a outra: Sin-Dee interrompe seu plano de vingança para ver o show de Alexandra, que retribui ao lhe oferecer a própria peruca quando a amiga é atingida por um copo de urina na rua.
O caso da urina, como outros eventos do filme, é inspirado numa história real. “Mya contou que isso aconteceu com algumas de suas amigas ou conhecidas”, diz Baker. A traição do namorado também tem um pé na realidade e veio de uma suspeita real de Kiki sobre seu relacionamento. “Pegamos isso e ficcionalizamos, vimos o que aconteceria se ela fosse atrás da mulher cisgênero envolvida no caso”, diz o diretor. “O processo de pesquisa nos ajudou a chegar num ponto em que nos sentíamos confiantes com o fato de que a ficção seria verdadeira e honesta.”
[olho]”Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades”[/olho]
Mas mesmo com o roteiro pronto, Mya e Kiki, ambas estreando no cinema, ficaram à vontade para improvisar, incentivadas pelo diretor. “Muitas vezes acho que o frescor de uma fala improvisada tem uma autenticidade que nenhuma palavra escrita pode ter. E em casos como ‘Tangerine’ existem gírias das ruas pras quais eu e Chris precisávamos de consultoria. Mya e Kiki nos falavam se o que tínhamos escrito era preciso ou não.”
Baker não considerou contratar atores que não fossem trans, ainda que fossem mais conhecidos, para participar do filme — caso de produções como “A Garota Dinamarquesa”. Num mundo ideal, um bom ator, diz, deveria ter a oportunidade de fazer qualquer tipo de papel. Um ator cisgênero poderia viver um papel trans e vice-versa. Mas o momento não é esse. “A situação triste é que pessoas trans têm uma taxa de desemprego que é o dobro da população em geral, e para pessoas de cor o desemprego chega a ser quatro vezes maior que a média nacional [dos EUA]”, diz. “Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades. Espero que no futuro, quando a igualdade for alcançada (pensamento positivo), cisgêneros e transgêneros poderão competir por esses papéis. Mas em 2016 acho que temos de fazer o que podemos para ajudar aqueles que a sociedade ignorou por tanto tempo.”
COM HUMOR
Além de emprestar suas histórias e suas palavras para Baker, Mya fez logo de cara dois pedidos importantes, que deram um norte para o filme. Primeiro, queria que a história fosse realista. “Ela disse que faria o filme se eu não segurasse a mão no realismo. Queria que eu capturasse a realidade brutal que as trabalhadoras do sexo trans enfrentam. Mesmo que fosse difícil de ver ou que não fosse politicamente correto”, conta.
A segunda demanda foi que o filme fosse engraçado. “Ela queria que ele apreendesse o humor que as garotas usam para lidar com as coisas. Fiquei abalado, porque ela me pediu para tentar um equilíbrio muito difícil, que podia dar muito errado. Mas quando avançamos percebi que fazer um filme abertamente político que só tratasse nossos personagens como vítimas seria condescendente”, diz. “Foi um momento importante na construção do filme e devo muito a Mya por me colocar na direção certa.”
“Tangerine” não esconde as dificuldades nas vidas de suas personagens. Alexandra leva um calote de um cliente e é chamada pelo nome masculino pela polícia, que se recusa a tratá-la como mulher, enquanto Sin-Dee é agredida na rua e começa a história saindo da prisão. Mas não é um filme triste. A fotografia, bem solar, com cores quentes e saturadas, ajuda a dar esse clima. No início, Baker tinha optado pelo contrário: tirou a saturação de todas as cores para deixar o filme com uma cara mais realista. “Mas assim que vi as imagens senti que algo estava errado. O estilo contrastava com as personalidades coloridas delas. Então fui pro outro lado e joguei as cores lá em cima. De repente pareceu certo.”
Vendo o filme não se percebe, mas “Tangerine” é uma produção que começou tão modestamente que teve de ser filmada inteiramente num iPhone. Baker não tenta disfarçar dizendo que foi uma escolha puramente estética, e sim orçamentária, pelo menos no início. “Mas tinha um instinto de que seria o jeito perfeito de fazer o tipo de filme de que eu gosto — gravado clandestinamente, socialmente realista, que mistura atores não profissionais, gente atuando pela primeira vez e gente experiente”, afirma. “O iPhone diminuiu as inibições e aumentou a confiança de quem normalmente ficaria intimidado com uma câmera tradicional. Acho que isso afetou tudo de uma maneira muito boa. Captei alguns momentos espontâneos que não teria conseguido com nenhuma outra câmera.”
A cara de filme profissional, e não amador, ficou por conta de uma lente que ainda estava em fase de protótipo de um grupo que arrecadava dinheiro em campanha de financiamento coletivo, acoplada ao telefone. Com essa lente, Baker conseguiu fazer com que a proporção entre altura e largura do vídeo fosse aquela que desejava para o filme.
O filme que começou pequeno, logo ficou grande. Foi um hit em Sundance no ano passado e as críticas foram bem positivas (o filme tem nota 96% no Rotten Tomatoes) e concorre agora a um dos principais prêmios da organização GLAAD (aliança de gays e lésbicas contra a difamação, na sigla em inglês). O desempenho de “Tangerine” deixou Baker contente. Agora, para seu próximo projeto — uma história para crianças ambientada na Flórida — diz que vai manter a mesma equipe, mas espera ter uma verba “bem maior”.