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Entrevista

Uma hora com Joshua Oppenheimer

Joshua Oppenheimer era um jovem cineasta formado em Harvard quando foi à Indonésia ensinar um grupo de trabalhadores de plantação a fazer seu próprio documentário. Descobriu por lá uma história pouco conhecida, sobre um massacre de pelo menos 500 mil pessoas (o número pode chegar a 1 milhão) acusadas de serem comunistas em 1965 – quando começou no país uma ditadura militar.

O cineasta, hoje com 41 anos, voltou ao país em 2003 e dedicou-se desde então à produção de dois documentários, ambos indicados ao Oscar, que se complementam. “The Act of Killing” joga luz sobre os assassinos, que em vez de esconder aquilo que haviam feito, vangloriavam-se do passado. É um filme pouco convencional, pois Joshua dá aos autointitulados gângsteres a oportunidade de dramatizar os assassinatos da forma que quisessem, resultando em cenas tão bizarras quanto assustadoras.

“The Look of Silence”, que disputa o Oscar deste ano, gira em torno de Adi Rukun, que resolve confrontar os responsáveis pela morte do irmão, Ramli. Sob o pretexto de fazer um exame de vista nos assassinos, hoje idosos, Adi entra em suas casas e, com uma calma impressionante, vai atrás de um pedido de desculpas. Se você ficou curioso, além dos filmes, leia nossa matéria sobre o assunto.

O fim do silêncio na Indonésia: a história de “The Look of Silence”

Pelo Skype, conversei por quase uma hora com Joshua. A conversa flui fácil com ele, visivelmente apaixonado pelos temas de seus projetos. Do papel dos Estados Unidos no massacre aos detalhes mais dolorosos das conversas de Adi com os assassinos, Joshua não deixou de falar de nada – pena que teve de interromper a conversa por questões de tempo. A entrevista foi levemente editada para dar mais clareza.

Risca Faca: Estava comentando ontem sobre os assassinatos com meu irmão, que não conhecia essa história. Eu também não a conhecia antes de ver o filme. Gostaria que você começasse me contando como você descobriu a história do massacre e quando decidiu contá-la nesses filmes.
Joshua Oppenheimer: Eu também não tinha ouvido falar dos assassinatos antes de começar a fazer esses filmes. Em 2001 fui chamado para ir à Indonésia ensinar um grupo de trabalhadores de uma plantação de palma para fazer óleo a fazer seu próprio filme, no qual eles documentariam sua luta para organizar um sindicato após uma ditadura da qual a Indonésia acabara de sair. Na verdade, descobri depois, era a ditadura de Suharto, que tinha chegado ao poder por meio dos assassinatos. Mas não sabia disso na época.

Era um projeto curto. Cheguei nessa plantação, propriedade de uma companhia belga, em que as mulheres tinham o trabalho supostamente fácil de espirrar pesticida e herbicida, mas não recebiam roupas de proteção. As mulheres estavam ficando doentes e morrendo de falência no fígado na casa dos 40 anos. Percebemos, quando chegamos, que isso era causado por um dos herbicidas. Eles falaram com a empresa e pediram roupas de produção, e a empresa respondeu contratando um grupo paramilitar chamado Pancasila Youth para ameaçá-los e atacá-los. Eles desistiram das demandas imediatamente. Eles disseram: “Embora seja uma questão de vida ou morte pra gente, nossos pais e avós morreram em um assassinato em massa no país em 1965 só por serem membros do sindicato nacional de plantações”.

Todos os trabalhadores de plantações eram membros do sindicato e não sei se isso era o suficiente para eles serem considerados oposição ao novo regime militar, que estava chegando ao poder. Eles foram colocados em campos de concentração ou mortos – ou às vezes os dois. Os trabalhadores tinham medo de que isso pudesse acontecer de novo, porque a organização paramilitar Pancasila Youth estava mais poderosa do que nunca e foi o principal grupo a cometer os assassinatos em 1965, com o exército.

Então essa foi a primeira vez que ouvi falar nos assassinatos e percebi naquela hora que o que estava matando aquelas mulheres não era só veneno, não era só o herbicida, era o medo. Foi ali que encontrei o tema dos filmes, que não é o que aconteceu em 1965. Nenhum dos meus filmes é sobre o passado em si, nenhum é um documentário histórico. São filmes sobre um regime de medo, silêncio e impunidade que continua hoje. São sobre um estado presente de medo e silêncio.

Desde esse momento a ideia era fazer dois documentários separados? Eles foram filmados ao mesmo tempo?
Planejei rapidamente fazer dois filmes, mas não os filmei ao mesmo tempo. “The Look of Silence” é o filme que planejei fazer inicialmente, ainda em 2003. Depois que os trabalhadores da plantação me contaram das mortes, fizeram o próprio filme sobre a organização do sindicato e me disseram: “Agora queremos que você volte e faça um filme sobre por que temos medo tantos anos depois”.

Voltei na hora e logo fui apresentado à família de Ramli – Adi, sua mãe e seu pai, a família no centro de “The Look of Silence”. Eles imediatamente começaram a me contar as histórias de 1965 e juntar outros sobreviventes para me contar suas histórias. Mas em três semanas o exército chegou e ameaçou todos que participavam do filme. Eles me chamaram para uma reunião secreta à meia-noite na casa dos pais de Adi e me disseram: “Por favor, não desista. Tente filmar os assassinos. Veja se eles te contam o que aconteceu”. No começo fiquei com medo de me aproximar deles, mas os sobreviventes me encorajaram a tentar.

[olho]Nenhum dos meus filmes é sobre o passado em si, nenhum é um documentário histórico. São filmes sobre um regime de medo[/olho]

O que descobri foi que todos eles se gabavam abertamente e não só estavam ansiosos para me contar o que fizeram como queriam me levar para os lugares onde mataram e demonstram como tinham feito. Claro que os sobreviventes quiseram ver as gravações que me pediram para fazer. Mostrei pra eles e todos disseram: “Você deve continuar a filmar os assassinos. Você está chegando a algo terrivelmente importante, porque qualquer um que veja como eles estão falando será forçado a reconhecer que, de uma forma terrível, o genocídio não terminou. Mesmo que as mortes tenham parado, os assassinos ainda estão no poder e o público vai sentir instantaneamente que milhões de sobreviventes vivem com medo, porque estão rodeados por assassinos que se vangloriam”.

Senti que confiavam em mim para fazer um trabalho que eles claramente não podiam fazer. Seria muito perigoso filmar os assassinos. De 2003 a 2005 filmei todos os assassinos que achei, todos se gabavam, todas estava abertos, todos queriam me mostrar como tinham matado. Em poucas semanas percebi que deveria fazer dois filmes. Um sobre as mentiras, as fantasias por trás da ostentação dos assassinos e sobre como isso manteve uma sociedade inteira nas rédeas do medo, e permitiu que os assassinos se safassem com uma corrupção incrível. Isso, claro, é meu primeiro filme, “The Act of Killing”.

Sabia que teria que fazer um segundo filme sobre o que isso faz com seres humanos normais, ter que viver num regime construído pelos assassinos. Como é viver rodeado por homens poderosos que mataram quem você amava. Isso virou “The Look of Silence”. O 41º assassino que filmei foi Anwar Congo. Eu o conheci depois de dois anos. Fiquei com ele porque senti que sua dor estava perto da superfície. Ele não conseguia esconder totalmente a dor das suas memórias — o medo, a culpa, o trauma. A ostentação não era suficiente para escondê-la.

Comecei a perceber, por meio de Anwar, que talvez a ostentação não fosse verdadeiramente orgulho, mas o contrário: uma tentativa desesperada dos assassinos de se convencer de que o que fizeram foi certo. Porque em seus corações eles sabem que foi errado. Passei os cinco anos seguintes trabalhando com os assassinos para explorar isso: a relação entre escapismo e fantasia, de um lado, e a culpa, de outro. Depois de editar “The Act of Killing”, em 2012 — por cinco anos filmamos e editamos por dois –, voltei para gravar “The Look of Silence” com Adi. Foi antes de “The Act of Killing” ser exibido, quando sabia que nunca poderia voltar com segurança à Indonésia.

Nos seus filmes boa parte da equipe aparece nos créditos como “anônimo”, sem o nome. Presumo que seja por uma questão de segurança.
Correto.

Mas Adi não estava se arriscando ao expor sua cara e seu nome assim? Tiveram que tomar medidas de segurança para protegê-lo?
Quando voltei à Indonésia em 2012, Adi me disse: “Joshua, passei anos vendo suas gravações dos assassinos e isso me mudou. Preciso saber quem são os homens que mataram meu irmão, preciso que eles assumam a responsabilidade pelo que fizeram. Preciso confrontá-los.”. Eu disse na hora: “De jeito nenhum, é muito perigoso”. Ninguém tinha feito um filme em que sobreviventes confrontassem assassinos que ainda estão no poder.

Ele pegou uma câmera que eu tinha dado para ele usar como um caderno de imagens, para inspirar o segundo filme, enquanto eu editava “The Act of Killing” em casa. Adi estava filmando e me mandando gravações. Ele pegou a câmera e me mostrou algo que não tinha me mandado. Ele disse: “Desculpa por não ter te mandado, é algo muito pessoal pra mim”. Ele deu play e me mostrou a única cena em “The Look of Silence” que ele filmou. Está perto do fim, quando seu pai se arrasta pela casa, pedindo ajuda, achando que está na casa de um estranho. Adi começou a chorar na hora que viu a cena.

[olho]Ninguém tinha feito um filme em que sobreviventes confrontassem assassinos que ainda estão no poder[/olho]

Ele disse: “Esse foi o primeiro dia que meu pai não conseguia se lembrar de ninguém da família. Estávamos todos juntos para uma reunião familiar e ele estava confuso, perdido, pedindo ajuda o dia todo e não conseguíamos confortá-lo, porque éramos estranhos pra ele. Toda vez que tentávamos ele ficava com mais medo. Fiquei responsável por cuidar dele e garantir que ele não se machucasse. Estava com a câmera porque planejava filmar a reunião”.

Em um momento foi insuportável não conseguir ajudar e confortar seu pai. Então ele começou a filmar, usando a câmera como escudo para se proteger emocionalmente de ter que ver o pai se arrastar pela casa, com medo. Ele me disse que no momento que começou a filmar percebeu que estava documentando o dia em que ficou tarde demais para seu pai se curar. “Agora que ele não se lembra de ninguém na família, é tarde para ele se curar. Ele se esqueceu do que aconteceu, mas não do medo. Ele não poderá se livrar do medo, não vai poder cicatrizar, porque não se lembra do que aconteceu. Vai morrer numa prisão de medo, como um homem trancado num quarto e que não acha a porta, quem dirá a chave.”

Depois de ver a cena, ele me disse: “Joshua, não quero que meus filhos herdem essa prisão de medo de mim e dos meus pais. Acho que se chegar nos assassinos gentilmente, mostrando que os vejo como humanos, que estou disposto a perdoar se eles reconhecerem que o que fizeram foi errado, eles podem ver isso como uma oportunidade para parar de se vangloriar maniacamente. Aceitar o que fizeram e ser perdoados pela família de uma vítima. Assim minha família vai poder se reconciliar com os vizinhos que mataram meu irmão e nos aterrorizam por tantas décadas. Devo aos meus filhos tentar viver em paz com meus vizinhos, para que eles não cresçam com medo”. Fiquei muito tocado com isso.

Falei com minha equipe e eles disseram que a produção de “The Act of Killing” era amplamente conhecida no país. Como ninguém tinha visto o filme ainda, os homens que Adi queria confrontar – poderosos regionalmente, não nacionalmente – achariam que eu era próximo de seus chefes. Então eles não iriam tentar nos deter ou nos atacar fisicamente. Percebemos que podíamos confrontá-los por causa de uma estranha capa de segurança que tínhamos por ter filmado, mas não lançado, “The Act of Killing”.

Disse a Adi que tínhamos que filmar um confronto teste, sem riscos, em que ele não dissesse quem era. É o primeiro do filme. A primeira cena é de lá, com o homem usando os óculos vermelhos. Ele fica muito bravo. Adi não fala quem é. Disse pra ele: “Temos que filmar um teste, explicar o que estamos fazendo pra sua família e ver se eles estão confortáveis para procurar uma forma de fazer isso em segurança”. No fim, foi o que fizemos.

Tínhamos a família no aeroporto preparada para evacuar em cada uma das conversas. Tínhamos um carro para que Adi pudesse escapar assim que terminássemos de filmar, enquanto estivéssemos desmontando o equipamento. Com sorte, o assassino nem veria que ele tinha saído. Tomamos todas essas precauções. Também disse a Adi que só lançaríamos o filme se fosse em segurança. Tinha uma equipe de cinco pessoas que trabalhava o tempo todo monitorando a segurança da família, que os ajudou a mudar para outra região do país, a transferir as crianças pra uma escola melhor. Tentamos tornar a dor de cabeça da mudança em oportunidades pra família. As crianças foram para uma escola melhor, fizemos um fundo para eles irem a qualquer universidade. Abrimos um consultório para que Adi não precise ir de porta em porta.

E tínhamos um plano B. Todos eles conseguiram vistos para a Dinamarca, para onde iriam se houvesse perigo. Mas o filme foi lançado na Indonésia no ano passado, passou mais 5 mil vezes pelo país, está online agora e temos certeza de que vai ser assistido. Adi tem sido visto como um herói nacional na Indonésia pelo público e pela mídia. E é uma figura central no movimento para verdade, justiça e reconciliação. Até agora não só ele não foi ameaçado e a família está segura como todos estão muito, muito bem.

As conversas com os assassinos têm resultados bastante diferentes. Alguma correu como você imaginava? Os desfechos te surpreenderam?
Cada confronto foi uma surpresa completa. Especialmente as últimas três, acho. A com o tio de Adi foi uma das coisas mais dolorosas que já vi, não sabíamos que ele estava envolvido com as mortes. Adi tinha ido lá pra testar os olhos dele, tinha prometido fazer uma visita da próxima vez que estivesse no vilarejo e eu fui junto pra gente ver se descobria algo sobre a relação dele com Ramli, ver se ele lembrava de Ramli.

Ele contou como foi guarda de Ramli antes de ele ser assassinado. Foi terrível porque quando Adi começa a questioná-lo, perguntar se ele podia ter feito algo para salvar Ramli, o tio fica bravo, defensivo, e começa a usar a propaganda anticomunista para justificar o genocídio. Meio dizendo que Ramli merecia ter morrido e que se Adi continuasse pressionando, também mereceria. Foi um momento horrível, em que um relacionamento que começa amoroso se despedaça em meia hora. Foi uma cena que revelou como essa ferida aberta corta a família. Foi muito doloroso e inesperado.

A cena seguinte, com o pai e a filha, também foi. Fomos encontrar o pai, mas desde que eu o tinha filmado, em 2005, ele tinha perdido a audição. A filha tinha se mudado para a casa para cuidar dele e queria ajudá-lo a entender as perguntas. Isso se transformou numa cena entre Adi e a filha, em que ela percebe de uma forma terrível, pela história que o pai conta, que ele não é quem ela pensava. Ela percebe que ele é um estranho pra ela porque fez coisas terríveis. Vemos a cara dela entrar em colapso com a percepção de que vai ter que passar a vida dele toda cuidando dele, sabendo das coisas terríveis que ele fez.

[olho]Cada confronto foi uma surpresa completa[/olho]

Em vez de fazer aquilo que eu teria feito, que é entrar em pânico e colocar a equipe pra fora pra poder pensar, ela fica muito quieta, escuta sua consciência e pede desculpas a Adi. Ela o força a assumir a responsabilidade de perdoar, algo que ele disse que faria se alguém reconhecesse o erro. Ele não tinha perdoado até então porque ninguém tinha reconhecido. Foi uma das coisas mais delicadas e bonitas que já vi, a reação da filha.

E o confronto final foi igualmente chocante. Com todos os assassinos de “The Look of Silence” eu tinha passado um, dois, três dias, sete anos antes. Mas no caso do confronto final eu tinha passado três meses com aquela família, quando Amir Hassan ainda era vivo, em 2004, para dramatizar sua biografia. O objetivo daquela cena era Adi poder dizer: “Olha, eu sei quem vocês são, vocês sabem quem eu sou, não é culpa de vocês o que seu pai fez, o que seu marido fez, e temos de viver juntos como seres humanos. Não seria terrível se minha filha quisesse se casar com seu filho e não pudéssemos nos unir como família para eles?”.

Achei que essa seria a cena em que ele teria o perdão que buscava, porque ele não estava acusando ninguém de nada. Não tinha me passado pela cabeça que eles fossem mentir e dizer que não sabiam o que o pai tinha feito, porque eu saberia que eles estavam mentindo. E mesmo assim eles mentiram. Eu os pressionei naquela cena a ver mais imagens não porque queria humilhá-los, puni-los ou pegá-los numa mentira. Só queria ultrapassar a negação desesperadamente para termos a conversa para qual tínhamos ido até lá. Nunca chegamos a esse ponto.

Saí da gravação achando que não tinha nada, que tinha sido um fracasso total. Mas na edição olhei o material e percebi que aquela cena torna visível para o espectador, mais fisicamente do que qualquer outra cena, o abismo de medo e culpa que divide todos da Indonésia uns dos outros. Faz você sentir como o tecido da sociedade indonésia está rasgado e quão urgente é a verdade e a reconciliação. Como esse abismo é transmitido de geração a geração. Não haverá democracia genuína enquanto não lidarem com isso, porque não há democracia sem comunidade e não há comunidade quando todos têm medo uns dos outros.

No confronto final a família diz que não gosta mais de você e que quer que você vá embora. Em outros momentos, os assassinos pedem para que você pare de filmar. Teve alguma conversa em que a tensão tenha ficado tão grande que você tenha tido que parar de filmar por questões de segurança?
Os assassinos mais poderosos tinham grupos de gângsteres fora das casas, prontos pra atacar ou expulsar qualquer um de quem os chefes não gostassem. Então estava sempre com medo de que fôssemos fisicamente agredidos. Com eles, quando a conversa ficava muito tensa, eu cortava a cena e tentava acalmar a situação. Dizia: “Olha, estou aqui para filmar uma discussão entre duas pessoas com perspectivas diferentes. Entendo que você esteja bravo, isso é muito pessoal pros dois, mas tentem escutar um ao outro”. Eu moderava a situação não porque me sentia neutro em relação ao que estava acontecendo, mas tinha que acalmar pra que ninguém, principalmente Adi, saísse machucado.

Não tive que parar de filmar nenhuma conversa. Dito isso, todas as cenas, com exceção da filha, terminaram com um impasse terrível. Chegávamos numa espécie de muro que não dava pra ultrapassar. De muitas formas, o título “The Look of Silence” se refere a esse muro. Como ele é? Como é viver com ele?

No dia da morte de Ramli, o filho mais novo da família, que tinha oito anos, ouviu na escola, durante o recreio, o professor dizer: “Essa noite a gente mata o Ramli”. Os professores estavam no esquadrão da morte. Ele foi pra casa naquele dia e disse pros pais que eles iriam matar o Ramli. Dá pra imaginar o que é ter que fazer isso aos oito anos? Naquela noite eles realmente mataram Ramli. No dia seguinte a família estava devastada. Dois dias depois, mandaram as crianças pra escola para serem ensinadas pelo homem que matou o filho dias antes. Dá pra imaginar a tensão insuportável em que essa família vivia? O que isso faz com uma família?

[olho]Chegávamos numa espécie de muro que não dava pra ultrapassar[/olho]

A coisa peculiar, que percebi quando comecei a jornada com os trabalhadores da plantação, foi que o medo e a tensão são invisíveis. Você não pode ver quando vai num vilarejo. Pode parecer bucólico e amável. Como você torna isso visível? Você pode fazer as pessoas contarem suas histórias. Mas quando elas começaram, foram ameaçadas pelo exército. Como você torna isso visível? Não só a dor das histórias do passado, mas a tensão do presente. Está muito no presente. Por meio desses confrontos podíamos fazer isso.

Eu disse a Adi: “Não acho que quando você chegar aos assassinos vá conseguir o pedido de desculpas que espera. Acho o contrário. Você vai chegar neles disposto a vê-los como seres humanos, o teste de vista é parte disso, constrói uma intimidade. Vendo esses homens como seres humanos, eles vão devolver seu olhar gentil e te ver como ser humano. E vão ver Ramli como um ser humano e, por extensão, vão ver suas vítimas como seres humanos. Nessa hora, todas as mentiras que eles se contaram para justificar o que fizeram vão inevitavelmente cair. Todas as mentiras nas quais eles se agarraram são baseadas na desumanização das vítimas. Você as humaniza pela sua presença. Eles vão entrar em pânico, vão ficar defensivos, vão ficar bravos e acho que vamos falhar. Mas se eu puder mostrar por que falhamos, posso mostrar esse impasse, esse muro e vou fazer quem assistir ao filme sentir a pressão incrível sob a qual as vítimas vivem. Através da raiva, das ameaças. Vamos fazer com que vejam que precisamos urgentemente de verdade, justiça e reconciliação para que haja cura e paz permanentes. Assim, podemos ser bem-sucedidos de uma forma mais ampla ainda que falhemos em cada confronto individual”.

Como foi a repercussão dos filmes na Indonésia? O governo chegou a dar alguma declaração oficial?
“The Act of Killing” ajudou a catalisar uma transformação fundamental em como o país fala sobre o passado. Antes ativistas de direitos humanos talvez falassem sobre os assassinatos de 1965, alguns escritores tentaram escrever sobre isso, geralmente com um tom de desculpa, não muito direto. “The Act of Killing” tornou essa conversa nacional. Pessoas conversavam em escolas, instituições religiosas, comunidades, locais de trabalho e certamente na mídia. A mídia costumava ser silenciosa e agora fala disso como um genocídio, como um crime contra a humanidade. Mais importante: eles falam do regime criminoso que está no poder desde o genocídio.

“The Act of Killing” foi indicado a um Oscar, pressionando o presidente a dar uma declaração. Ele disse: “Sabemos que o que aconteceu em 1965 foi um crime contra a humanidade e que em algum ponto do futuro vamos precisar de reconciliação. Mas não precisamos que um filme nos pressione a fazer isso”. Eles meio que menosprezaram o filme, mas foi maravilhoso, porque foi a primeira vez que o governo reconheceu que aquilo foi errado.

[olho]“The Act of Killing” ajudou a catalisar uma transformação fundamental em como o país fala sobre o passado[/olho]

No espaço aberto por “The Act of Killing” veio “The Look of Silence”. Dois órgãos do governo se voluntariaram para serem os distribuidores oficiais do filme: a Comissão Nacional de Direitos Humanos e o Conselho de Artes de Jacarta, o que tinha sido impossível com “The Act of Killing”, que começou como um segredo. Esses dois órgãos ajudaram a passar o filme no maior cinema da Indonésia, onde cabem mil pessoas. Colocaram outdoors em Jacarta anunciando o filme e 2 mil pessoas apareceram, então foram feitas duas sessões. Um mês depois foram feitas 500 exibições públicas pelo país. Agora colocamos online. Foi chamado de o filme do ano por vários veículos do país.

Isso gerou uma reação do exército, que ainda está formalmente acima da lei na Indonésia. Consequentemente, é o centro de um estado de sombra que intimida e amedronta as pessoas. O exército contratou gângsteres para atacar exibições e 30 foram canceladas por causa disso. O exército pressionou o comitê censor da Indonésia a banir o filme do circuito comercial. Então temos uma situação peculiar: “The Look of Silence” é o primeiro filme da Indonésia a ser indicado ao Oscar – “The Act of Killing” não era uma produção formalmente indonésia – e está banido dos cinemas do país. O órgão censor faz parte do comitê de defesa no parlamento, o que parece loucura, mas é só autoritário.

Há uma batalha sobre o passado e acho que podemos esperar uma longa luta antes que o governo reconheça formalmente que o que aconteceu foi um crime contra a humanidade e mude o currículo escolar. A Associação Nacional de Professores de História criou um currículo alternativo para que professores do país possam dizer “isso é o que deveríamos ensinar, essa é a verdade”. Isso envolve mostrar meus dois filmes a alunos de ensino médio.

Mas acho que será uma batalha para ter reconhecimento do governo, porque quando ele reconhecer isso, reconhecerá que a riqueza e o poder dos assassinos e de seus protegidos é espólio de um massacre e de tortura. Ninguém quer sua riqueza e seu poder deslegitimado assim. Então acho que vai ser uma luta mudar a história oficial, mas ninguém no país acredita mais nela. Acho que tenho tempo para mais uma pergunta!

Em “The Look of Silence” vemos brevemente que os Estados Unidos tiveram uma influência no que aconteceu na Indonésia. Você poderia falar um pouco qual foi esse papel? E houve alguma resposta americana ao que aconteceu após o lançamento de seus filmes?
Aprendemos algo devastador sobre o papel dos Estados Unidos quando um assassino olha diretamente para a câmera e diz: “Eu deveria ganhar um prêmio, um cruzeiro para os Estados Unidos, porque foram eles que nos ensinaram a odiar e matar comunistas”. Para americanos, é um momento muito doloroso, porque ele olha direto para a câmera, para o público. Ele está nos implicando, dizendo que não é só história da Indonésia, é nossa. E nós sabemos que não é a única vez que intervimos, mas talvez mais gente tenha morrido na Indonésia que em outras intervenções no exterior. Essa é uma das muitas, muitas vezes que os Estados Unidos apoiaram atrocidades em outros países. Fizeram isso na ditadura brasileira.

Uma coisa importante é que a Goodyear, uma grande corporação, usava escravos de campos de concentração para extrair o látex que vai em seus pneus. Foi exatamente o que as empresas alemãs fizeram perto de Auschwitz só 20 anos antes. É uma crise de consciência para americanos que veem esse filme, nos faz pensar que o anticomunismo ideológico da Guerra Fria não fosse a razão real para as intervenções. Talvez fosse uma desculpa oficial para cometer atos de pilhagem assassina pelo mundo. Esse reconhecimento dói e levou americanos a fazer perguntas duras sobre a política externa e a violência interna. Não só sobre o complexo militar industrial, responsável pela violência fora, mas o complexo prisional industrial, responsável pela violência em nossas cidades.

O senador Tom Udall, de New Mexico, viu meus dois filmes e introduziu uma resolução no Senado dizendo: “Essa é a história americana e precisamos tirar o selo de sigiloso de documentos sobre nosso papel nesses crimes”. Sabemos de ouvir por aí, de pessoas que falaram, que os Estados Unidos deram dinheiro, armas e treinamento. Também sabemos que eles deram uma lista de 5 mil nomes de figuras públicas da Indonésia – jornalistas, ativistas, artistas, intelectuais – e disseram: “Risquem cada nome dessa lista e nos devolvam quando tiverem terminado”. Listas de morte.

É uma mancha profunda, com o uso de trabalho escravo pela Goodyear e possivelmente outras empresas americanas, sobre a presunção americana de ser uma força pela liberdade e democracia no mundo pós-guerra. Depois de ver o filme, o senador Tom Udall disse que precisamos saber exatamente o que os Estados Unidos fizeram e esses documentos que falem do nosso papel precisam deixar de ser sigilosos. Precisamos assumir a responsabilidade pelo papel que tivemos nesses crimes, porque se não toda nossa retórica sobre direitos humanos será percebida, corretamente, pelo mundo todo como um disfarce hipócrita para o avanço de interesses estratégicos e corporativos americanos.

Então dezenas de milhares de americanos assinaram petições pedindo a seus próprios senadores que apoiem o projeto de Tom Udall. Estamos tentando fazer com que ele chegue a votação no Senado e vire lei.

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O fim do silêncio na Indonésia

Joshua Oppenheimer foi à Indonésia em 2001 para ajudar a contar uma história difícil. Numa plantação de palma para produção de óleo, propriedade de uma empresa belga, trabalhadoras espirravam pesticidas e herbicidas sem ganharem roupas de proteção. Muitas ficaram doentes e morreram por problemas no fígado perto dos 40 anos de idade. Joshua foi ali ensinar o grupo de trabalhadores a fazer seu próprio documentário sobre as tentativas de formar um sindicato para lutar por melhores condições. O que descobriu por lá foi uma história ainda pior, sobre um massacre que desconhecia.

A empresa respondeu às demandas de seus empregados contratando o grupo paramilitar Pancasila Youth para ameaçá-los. As demandas foram retiradas imediatamente. “Eles me disseram: ‘Apesar de ser uma questão de vida e morte para a gente, nossos pais e avós morreram em um assassinato em massa em 1965 simplesmente por serem membros do sindicato nacional de trabalhadores de plantações’”, conta Joshua.

Naquele ano, pelo menos 500 mil pessoas (o número pode chegar a um milhão) foram assassinadas por supostamente serem comunistas. Artistas, ativistas, intelectuais e jornalistas foram mortos em um ataque coordenado pelo exército — que derrubou o presidente Sukarno — e realizado por grupos como o Pancasila Youth. A desculpa foi o assassinato de seis generais, atribuído na época aos comunistas, que cresceram durante o governo Sukarno. Hoje acredita-se que os militares usaram isso como desculpa para dar um golpe no presidente.

Na época, os trabalhadores sindicalizados, considerados ameaça ao regime, foram colocados em campos de concentração ou mortos. “Eles estavam com medo de que isso pudesse acontecer de novo, já que o Pancasila Youth estava mais poderoso que nunca.” Joshua viu ali uma oportunidade de falar sobre o massacre em um filme seu. A história acabou rendendo dois documentários: “The Act of Killing”, indicado ao Oscar em 2014, e “The Look of Silence”, que disputa o prêmio neste ano.

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Cena de 'The Act of Killing'
Cena de ‘The Act of Killing’

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“Percebi naquele momento que o que estava matando aquelas mulheres não era só veneno, mas também o medo. Encontrei lá o tema dos meus filmes: não o que aconteceu em 1965. Eles não são sobre o passado, nenhum dos dois é um documentário histórico. São filmes sobre um regime de medo, silêncio e impunidade que permanece até hoje. É sobre um estado presente”, afirma.

“The Act of Killing” é o menos convencional da dupla — um documentário não é continuação do outro, são duas metades de um todo. Para o filme, Joshua conversou com todos os assassinos que conseguiu encontrar durante anos, tentando entender o que havia acontecido. Surpreendentemente, seus entrevistados estavam abertos falar. E mais: eles pareciam se gabar do que tinha acontecido. Não só contavam a história como se ofereciam para levar Joshua até os locais onde tinham matado e até encenar os assassinatos.

Assim nasceu “The Act of Killing”. Em vez de mostrar as vítimas, o cineasta joga luz sobre os assassinos e dá a eles meios para fazer seu próprio filme sobre o massacre. Inspirados por Hollywood, os autointitulados gângsteres transformam a história real numa trama surrealista: meio musical, meio western, inteiramente bizarro. A morte vira um espetáculo e o resultado é aterrorizante — ver o filme uma vez é necessário, ver duas é tortura. “É um filme sobre as mentiras, as fantasias por trás da ostentação dos assassinos, e sobre como isso manteve uma sociedade inteira nas rédeas do medo e possibilitou que eles se safassem com uma corrupção imensa”, diz Joshua.

As primeiras imagens do estranho experimento foram responsáveis por trazer Werner Herzog (“Encontros no Fim do Mundo”) ao projeto, como produtor-executivo. Herzog estava no aeroporto, tomando um café antes de embarcar em seu voo, quando um colega disse que um rapaz queria desesperadamente falar com ele sobre um trabalho. Joshua tinha dez minutos para atrair o cineasta e utilizou-os para mostrar imagens aleatórias que tinha captado. A apresentação foi convincente. Naquela época, Joshua, hoje com 41 anos, tinha um currículo curto: formado em Harvard, tinha só dois documentários no portfólio, um de 1997 e outro de 2003. Foi com “The Act of Killing” que fez seu nome, e em 2014 ganhou uma “bolsa para gênios” da Fundação MacArthur, para qual as pessoas não se candidatam — são escolhidas.

Mas estamos nos adiantando na história, porque embora “The Look of Silence” tenha sido lançado depois, sua origem antecede “The Act of Killing”. Voltemos a 2003, quando Joshua, ainda um documentarista iniciante, viajou novamente à Indonésia após o trabalho inicial. Assim que chegou ao país, o cineasta foi apresentado à família de Ramli Rukun, cuja história era conhecida no país. Capturado e esfaqueado, Ramli havia conseguido voltar para sua casa, até que dois homens bateram à porta e disseram a sua mãe que o levariam ao hospital. Ramli foi amarrado nu, forçado a andar enquanto pedia por piedade e chorava, até ser castrado e jogado num rio.

Um dos irmãos de Ramli, na época com oito anos de idade, ouviu na escola o professor comentando que naquela noite eles matariam o irmão. Quando chegou em casa, contou o que tinha ouvido, mas não houve nada que a família pudesse fazer. Ramli de fato morreu naquele dia e o menino voltou à escola, onde tinha como mestre um dos membros do esquadrão da morte que havia matado o irmão mais velho.

ESCAPISMO E CULPA

Adi Rukun não era vivo quando Ramli, seu irmão, morreu, mas é ele a figura central de “The Look of Silence”. Foi ele quem convocou um grupo de sobreviventes do massacre e seus familiares para ajudar Joshua com o documentário, antes mesmo de “The Act of Killing” ser um projeto. Três semanas depois, militares ameaçaram todos que participassem do filme. Eles desistiram, mas pediram para que Joshua não engavetasse o projeto e que fosse atrás dos assassinos. Foi o que ele fez. Quando terminou as primeiras filmagens, mostrou as imagens ao grupo. “E eles me disseram: ‘Você deve continuar filmando os assassinos. Isso está levando a algo terrivelmente importante, porque qualquer um que veja como eles estão falando vai ser forçado a entender que o genocídio não terminou. Apesar de as mortes terem parado, os assassinos ainda estão no poder. O público vai entender que milhões de sobreviventes vivem com medo, porque estão rodeados por assassinos’”, relembra o cineasta.

Depois de dois anos de pesquisa, Joshua encontrou Anwar Congo, seu 41º entrevistado e personagem principal de “The Act of Killing”. Congo é uma figura curiosa: embora se vanglorie de ter matado comunistas, confessa que tem pesadelos à noite e parece ter alguma crise de consciência. “Fiquei com ele porque conseguia ver que sua dor estava perto da superfície. Ele não conseguia esconder completamente a dor de suas memórias. Comecei a entender, por meio de Anwar, que talvez a ostentação não fosse realmente orgulho, e sim o oposto: uma tentativa desesperada dos assassinos de se convencer de que fizeram a coisa certa. Porque eles sabem que foi errado. Passei os cinco anos seguintes explorando essa relação entre escapismo e fantasia, de um lado, e a culpa, de outro.”

Em 2012, após dois anos de edição, Joshua voltou a Adi, que havia acompanhado o processo durante todo aquele tempo e ouviu um pedido. “Ele disse para mim: ‘Passei anos vendo suas imagens dos assassinos e algo mudou em mim. Preciso conhecer os homens que mataram meu irmão. Preciso ver se eles assumem a responsabilidade pelo que fizeram. Preciso confrontá-los’.” Joshua negou. Era perigoso demais que Adi se expusesse daquela forma, ele dizia. “Ninguém tinha feito um filme em que sobreviventes confrontam assassinos que ainda estão no poder”, afirma. Mas Adi o convenceu, mostrando uma imagem que tinha filmado naquele período. Na cena, que faz parte do filme, o pai de Adi, já com mais de cem anos e cego, se arrasta pelo chão, achando que está na casa de um estranho e pedindo ajuda sem que ninguém o acuda. É uma imagem pesada, que parece desconectada do filme.

Aquele foi o primeiro dia, contou Adi, em que o pai não havia reconhecido ninguém da família. Sempre que alguém tentava ajudá-lo o pai se desesperava ainda mais. “Foi insuportável para Adi não poder confortar seu pai. Então ele pegou a câmera e começou a filmar, usando-a como um escudo para se proteger emocionalmente ao ver o pai se arrastando, com medo”, diz Joshua. Naquele momento, Adi viu que era tarde demais para as feridas do pai cicatrizarem. Ele tinha se esquecido da morte de Ramli, mas não do medo. “Depois de me mostrar a cena, Adi me disse: ‘Não quero que meus filhos herdem essa prisão de medo. Acho que se eu chegar gentilmente nos assassinos, mostrando que os vejo como seres humanos e que estou disposto a perdoá-los caso eles admitam que aquilo foi errado, talvez eles parem de se gabar. Eu devo aos meus filhos essa tentativa de estabelecer a paz com meus vizinhos para que eles não cresçam com medo’. Fiquei muito tocado com isso.”

Joshua Oppenheimer.
Joshua Oppenheimer.

O OLHAR DO SILÊNCIO

“The Look of Silence” é um retrato desses confrontos, cada um com resultados diferentes. Como oculista, Adi chegava à casa dos assassinos sem revelar sua verdadeira identidade e o que estava fazendo ali. Começava uma conversa fazendo um exame de vista, enquanto a câmera de Joshua registrava tudo. Não era uma tarefa simples, mas Joshua se aproveitou do fato de que “The Act of Killing” não tinha sido lançado ainda. A comunidade sabia que ele estava filmando líderes paramilitares nacionais. Como Adi só queria falar com gente da região, acharam que esses peixes menores tivessem medo de agredi-los, pensando que a equipe de Joshua era amiga de seus chefes.

Mesmo assim, tomaram medidas de segurança. Durante cada conversa, a família de Adi o esperava no aeroporto, pronta para fugir. Um carro também estava sempre a postos para levá-lo — todos tinham vistos para a Dinamarca, caso precisassem sair do país. Uma equipe de cinco pessoas acompanhava a família o tempo todo e todos eles se mudaram para uma outra região do país. As crianças foram transferidas para uma escola melhor, Adi ganhou um consultório próprio para não ter que bater de porta em porta vendendo óculos. “Mas desde o lançamento Adi tem sido visto como um herói nacional na Indonésia. Ele tem um papel central no movimento por verdade, justiça e reconciliação. Não só ele não foi ameaçado como parece que sua família está segura e muito, muito bem.”

Como pode-se esperar a partir dessa premissa, as conversas de Adi com os responsáveis pela morte de seu irmão não são de fácil digestão. O primeiro entrevistado conta como bebia o sangue das vítimas para “não enlouquecer” após os assassinatos. Ele não reage bem aos questionamentos e acusa Adi de politizar a conversa — que não poderia ser mais política. Adi é estoico e aguenta todos os confrontos com uma calma impressionante mesmo quando é pego de surpresa. Ao aparecer na casa do tio para uma consulta, começa a falar sobre o irmão e descobre que o tio havia sido guarda na prisão de Ramli e que não fez nada para impedir sua morte. “Ele fica bravo, defensivo, e usa a propaganda anticomunista para justificar o genocídio. Meio que diz que Ramli mereceu a morte e que se Adi continuasse a investigar também mereceria. É um momento horrível em que um relacionamento amoroso se despedaça. A cena revela como essa ferida aberta corta a família toda”, lembra Joshua.

Em outra cena, Adi visita um assassino que está surdo e cuja filha, que cuidava dele, descobre pela primeira vez o que o pai fez. “Ela percebe, de uma forma horrível, que o pai é um estranho para ela e que fez coisas terríveis. Vemos a cara dela entrar em colapso”, diz o cineasta. “Mas em vez de fazer o que eu teria feito, que é entrar em pânico e botar a equipe para fora para poder pensar, ela fica muito quieta, escuta sua consciência e pede perdão. Ela força Adi a perdoar, algo que ele disse no início que faria e que nunca tinha feito, já que até ali ninguém havia reconhecido o que fez de errado. Foi uma das coisas mais delicadas e bonitas que já vi.”

MURO INVISÍVEL

Essa foi a única conversa que não terminou num impasse. Quando a discussão ficava tensa demais, Joshua agia como um mediador. “Eu acalmava a situação dizendo que estava ali para filmar uma discussão entre duas pessoas com perspectivas diferentes. Entendia a irritação, era uma história pessoal para os dois, mas eles deviam tentar se escutar. Não fiz isso porque me sentia neutro em relação à situação, mas porque não queria que saíssemos feridos”, afirma. Do lado de fora, muitos dos assassinos tinha capangas prontos para colocar pra fora quem incomodasse seus patrões.

“Em todas as cenas chegávamos a um muro que não conseguíamos ultrapassar. O título ‘The Look of Silence’ [em português, ‘O Peso do Silêncio’] se refere a essa parede. O que ela é? Como é viver com ela?” Os vilarejos da Indonésia, diz o cineasta, podem parecer bucólicos e adoráveis porque a tensão não se vê. Como torná-la visível?

“Percebi que isso podia ser feito pelos confrontos. Disse a Adi que não acreditava que ele teria o pedido de desculpas que queria. Falei: ‘Acho o contrário. Você os vê como seres humanos e eles vão reciprocar seu olhar gentil e te ver como um ser humano também. Eles vão ver Ramli como um ser humano e todas as vítimas como humanas, e nesse momento as mentiras que eles se contaram vão entrar em colapso. Tudo aquilo a que eles se ativeram se baseia em tirar a humanidade das vítimas. Você as está humanizando só pela sua presença. Eles vão entrar em pânico, vão ficar defensivos, bravos, e vamos falhar. Mas acho que se conseguirmos mostrar esse impasse, esse muro, quem assistir ao filme vai sentir a pressão incrível que os sobreviventes sentem’”, lembra.

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A mãe de Adi em 'The Look of Silence'
A mãe de Adi em ‘The Look of Silence’

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RESPOSTA

Os filmes, diz Joshua, trouxeram a discussão do passado à tona na Indonésia. “A mídia era silenciosa a respeito e agora fala do que aconteceu como um genocídio, como um crime contra a humanidade. Mais importante: fala do regime criminoso que está no poder desde o genocídio”, diz. Quando “The Act of Killing” foi indicado ao Oscar, o presidente também se manifestou e disse que sabia que o que aconteceu em 1965 foi um crime e que em algum momento uma reconciliação seria necessária, mas que eles não precisavam de um filme para forçá-los a isso. “Eles meio que menosprezaram o filme, mas foi maravilhoso porque foi a primeira vez que o governo reconheceu que aquilo era errado”, diz Joshua.

Dois órgãos governamentais, inclusive, se ofereceram para distribuir o filme. Com a ajuda da Comissão Nacional de Direitos Humanos e do Conselho de Arte de Jacarta, “The Look of Silence” foi exibido no maior cinema do país, com capacidade para mil pessoas. Dois mil espectadores foram à abertura e o cinema teve de fazer duas sessões — depois das quais Adi foi aplaudido de pé. Depois disso, foram feitas mais de 500 exibições públicas e agora o filme está disponível na internet no país.

Mas nem tudo são flores. Gângsteres foram contratados para atacar exibições e 30 sessões tiveram de ser canceladas por questões de segurança. Como o órgão censor de filmes está no guarda-chuva do comitê de defesa do parlamento e é dominado pelo exército (“Parece louco, mas é só autoritário”), o documentário foi proibido de passar nos cinemas. “É uma situação peculiar. ‘The Look of Silence’ é o primeiro filme da Indonésia a ser indicado ao Oscar — ‘The Act of Killing’ não era uma produção formalmente indonésia — e está banido dos cinemas”, diz.

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Adi vê imagens captadas por Joshua Oppenheimer

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DEDO AMERICANO

O filme de Joshua não aponta só o dedo para o governo indonésio, mas também para os Estados Unidos. O diretor inclui um trecho de uma reportagem na TV americana exaltando o ocorrido como a maior batalha vencida contra o comunismo. Tem também imagens de um grupo de trabalhadores num campo de concentração para extrair látex para a empresa americana de pneus Goodyear. A crítica é ainda mais clara: em um momento, um dos assassinos olha para a câmera e diz que merecia um prêmio dos americanos, porque foram eles que os ensinaram a odiar e a matar os comunistas.

“Para os americanos é um momento muito doloroso, porque ele olha direto para o público. Ele está implicando a gente, dizendo que não é só a história da Indonésia, mas também a nossa. Essa é uma das muitas vezes em que os Estados Unidos apoiaram atrocidades em outros lugares”, critica.

“E a Goodyear usava escravos de campos de concentração, a mesma coisa que as empresas alemãs faziam perto de Auschwitz 20 anos antes. É uma crise de consciência para os americanos, nos faz pensar que talvez a ideologia anticomunista da Guerra Fria não seja a razão real para nossas intervenções. Talvez fosse uma desculpa, como a que os assassinos que vemos nos meus filmes usam. Talvez seja uma desculpa oficial para fazer aquilo que as corporações queriam”, continua. “Isso faz com que façamos perguntas difíceis sobre nossa política externa.”

O senador americano Tom Udall levou no ano passado, aos 50 anos do massacre, um projeto ao Senado para que o selo de sigiloso seja tirado de documentos que falam do papel dos Estados Unidos no que aconteceu na Indonésia. “Nosso governo continuou o apoio militar e financeiro à Indonésia naquela época. Ao chegarmos ao aniversário desse período horrível, há apenas 50 anos, os Estados Unidos e a Indonésia devem trabalhar para fechar esse capítulo horrível liberando informações e reconhecendo oficialmente as atrocidades que aconteceram. Muitos dos assassinos ainda estão vivos e soltos, e sua impunidade impede a Indonésia de verdadeiramente realizar seu potencial democrático”, diz o texto de Udall.

Joshua apoia a iniciativa. “Sabemos de ouvir por aí que os Estados Unidos deram dinheiro, armas e treinamento a eles. Também sabemos que eles fizeram uma lista com 5 mil nomes de figuras públicas da Indonésia — jornalistas, ativistas, artistas, intelectuais — e a entregaram ao Exército pedindo para devolverem os nomes quando tivessem se livrado de todos. Uma lista de morte. Essa é uma mancha grande na afirmação americana de que é uma força para a liberdade e a democracia no mundo pós-guerra”, diz.

Para o documentarista, enquanto esses documentos não forem públicos e os Estados Unidos não reconhecerem sua responsabilidade, tudo o que o país diz sobre direitos humanos é retórica e “será visto, corretamente, pelas pessoas do mundo como um disfarce hipócrita para avançar os interesses estratégicos e corporativos do país”. Circulam agora petições de americanos para que senadores de seus Estados apoiem a proposta de Udall. “Estamos tentando fazer agora com que isso passe pelo Senado e vire lei.” A discussão da história, diz ele, é fundamental. “Não haverá democracia genuína até que se lide com essa questão. Não há democracia sem comunidade e não há comunidade quando uns têm medo dos outros.”

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Cinema Crítica

‘Joy’ é propaganda de esfregão

O filme “Joy” começa com um aviso que diz algo como: “A todas as mulheres corajosas (talvez o adjetivo não seja esse. Mas insira aqui uma característica positiva que está valendo) do mundo. Essa é a história de uma delas”. Parece um bom prenúncio em uma temporada de filmes predominantemente masculinos — “Spotlight”, “A Grande Aposta”, “Os Oito Odiados”, “O Regresso”, “Creed”. Maravilha, veremos uma história bem contada sobre uma mulher? Não é bem isso que vem pela frente. Mas o filme foi indicado como melhor comédia no Globo de Ouro, então pelo menos dá pra rir, certo? Quem dera. Talvez tenha uma boa história para ser contada sobre Joy Mangano, criadora de um esfregão milagroso, mas certamente não é a que está no filme. “Joy”, que estreia no dia 21, é tão desinteressante que o melhor contexto para assistir a ele é num avião, pra matar o tempo antes de dormir.

Jennifer Lawrence, de novo em parceria com o diretor David O. Russell, estava cotada para o Oscar antes que qualquer um tivesse assistido ao filme — o que é uma maluquice, ainda que a previsão estivesse certa. Mas sua escalação para o papel de Joy, na verdade, é um equívoco. Não que Lawrence não esteja bem. Só que é esquisitíssimo ver alguém dizer para a atriz de 25 anos que ela não tem a vida toda pela frente, “só alguns bons anos”.

Joy é uma mulher divorciada, que não foi à faculdade para ajudar os pais a tocar a vida depois da separação deles, com dois filhos que tem dificuldade para sustentar e que tem pesadelos (literalmente, falta muita sutileza ao filme) sobre como sua vida foi desperdiçada. Difícil de comprar vendo alguém de 25 anos na tela. Difícil de vender também, apesar de Lawrence ganhar pontos (e prêmios, como o Globo de Ouro) pela tentativa.

Mas esse não é o principal problema do filme. Lawrence já viveu mulheres mais velhas nos filmes de O. Russell – “O Lado Bom da Vida” e “Trapaça”, ambos melhores que “Joy”. O problema é o roteiro, com personagens profundos como um pires. A meia-irmã de Joy é uma chata que implica com ela aparentemente sem motivo (se o cinema é cheio de “bromances” e grandes amizades masculinas, o mesmo não se pode dizer de parcerias entre mulheres, quase sempre rivais), a mãe passa o dia no quarto vendo novela sabe-se lá por que, a avó só está no filme para fazer uma narração hiper cafona que serve de muleta para o diretor. Lá pelas tantas aparece Bradley Cooper num papel que não vai a lugar nenhum. Robert De Niro também está lá para fazer um discurso de “não sei por que deixei você acreditar que era mais que uma dona de casa” para a própria filha sem que entendamos o motivo da crueldade.

Joy é uma inventora desde pequena, como o filme não para de jogar na sua cara. A avó, narradora, reforça esse ponto constantemente e mais de uma vez vemos um flashback da pequena Joy construindo uma fazenda de papel e dizendo que não precisa de um príncipe, só de suas invenções, como se não desse pra ter tudo na vida. Quando finalmente ela cria o esfregão, o filme deixa um pouco sua família de lado e se volta para as dificuldades de uma mulher entrar no mundo dos negócios. Parece que vai deslanchar, mas é uma esperança vã. Tudo dá errado, até o momento em que Joy corta os próprios cabelos em frente ao espelho (alerta de clichê) e os problemas se resolvem magicamente. Nada como um bom cabelo curto para conferir força e determinação a alguém.

A mensagem é que se você realmente quiser algo e persistir, vai dar certo. Nem sempre é assim. O filme tem bons momentos aqui e ali, mas não passa muito disso. O esfregão, pelo menos, é bom. “Joy” seria excelente se fosse uma propaganda: se você não tem um desses em casa, ele te convence a comprar.

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Cinema Crítica

‘Carol’ e a faísca que não vira fogo

Em uma longa entrevista dada à revista New York no ano passado, Quentin Tarantino deu uma declaração polêmica sobre os filmes que disputam o Oscar hoje em dia: “Eles são bons, mas não sei se eles têm a permanência que uns filmes dos anos 90 ou 70 tinham (…). Metade desses filmes da Cate Blanchett — são essas coisas ‘de arte’. Não estou dizendo que são ruins, mas não sei se eles são longevos ”. Concorde-se ou não com a afirmação, é essa a impressão que deixa “Carol”, filme de Todd Haynes com Cate Blanchett que estreia nesta quinta (14) nos cinemas.

Baseado em um livro de Patricia Highsmith, “Carol” é lindo. Para usar o termo de Tarantino, é mesmo um filme “de arte”. Tudo em “Carol” é muito bonito: os figurinos do início dos anos 1950, a trilha sonora, os enquadramentos. Cada cena parece uma fotografia. Dá pra dizer o mesmo da história: é bonita. Carol (Cate Blanchett) está se divorciando do marido, Harge (Kyle Chandler), quando seu olhar cruza com o da vendedora Therese (Rooney Mara) numa loja de departamentos, perto do Natal. Naquele primeiro encontro é possível ver o encantamento de uma pela outra, ainda que Therese não saiba direito o que aquilo significa. É um belo começo para uma história de amor.

 

Apesar de o filme se chamar “Carol”, é bem mais uma história de Therese. Carol é uma mulher segura e já tinha se relacionado com uma amiga de infância, informação que o marido usa ao seu favor no processo de separação para conseguir a guarda da filha. Já Therese é bem mais nova, nunca se apaixonou e não sabe muito bem o que quer. Namora um rapaz apaixonado por ela apesar de não sentir o mesmo, trabalha numa loja sonhando em ser fotógrafa, mas não tem coragem de montar um portfólio com seu trabalho. Therese anda sem rumo, dizendo sim para tudo e sem tomar as rédeas da própria vida, até que Carol aparece.

(Aliás, um pequeno parêntese. Não faz sentido que Rooney Mara esteja na disputa pelo Oscar de atriz coadjuvante, já que ela é no mínimo tão protagonista quanto Cate Blanchett. É até mais, mas vamos dar uma colher de chá para o estúdio, que não quis colocá-la para concorrer diretamente com a colega – sabiamente, o Globo de Ouro não caiu nesse papo e indicou as duas a melhor atriz em filme de drama.)

Como a fotografia, tudo no filme é meticuloso, pensado. A história se desenvolve lentamente (talvez um pouco devagar de mais) e é tudo bastante sutil, quase frio de tão delicado. Depois de conversar brevemente com Therese, Carol deixa um par de luvas sobre o balcão, que a vendedora, com o endereço da cliente em mãos, logo devolve. Carol agradece com um convite para um almoço, que se desdobra em uma visita a sua casa, outra visita e, por fim, uma viagem de carro pelos Estados Unidos.

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Cate Blanchett e Rooney Mara em 'Carol'
Cate Blanchett e Rooney Mara em ‘Carol’

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Demora para que algo aconteça realmente entre elas e o público acompanha o início do relacionamento quase em tempo real, sentindo a tensão crescente entre as duas. Mesmo quando a tensão se concretiza não tem aquele momento épico de filmes românticos, com a declaração às lágrimas, a corrida para impedir que a pessoa entre no avião ou a perseguição de carro. “Carol” é um filme calmo e a faísca entre Therese e Carol nunca chega a virar fogo.

Essa sutileza toda exige boas atuações para que o filme dê certo. “Carol” seria bem chato se a dupla não fosse boa como é. Mara e Blanchett estão perfeitas e conseguem transmitir muito com poucas palavras e gestos contidos. Rooney Mara é uma figura bem peculiar, de fala baixa, sorrisos tímidos, maquiagem escura e roupas com um quê de fantasmagórico. O papel da contida e ingênua Therese é feito sob medida para ela. E Cate Blanchett nasceu para interpretar mulheres ricas e elegantes — parece saída direto da casa de Carol nos anos 1950.

Aí voltamos para a declaração de Tarantino. “Carol” é sim um filme bonito, “de arte”, e também é um filme bom. Mas lembraremos dele em 20 anos? Talvez seja injusto fazer essa pergunta, porque no fim do ano, quando se faz listas dos melhores filmes dos últimos 12 meses, percebe-se que pouca coisa é realmente memorável — é o caso de outro favorito ao Oscar, “Spotlight”, também legal, porém não incrível. Mas, no fim das contas, “Carol” é meio assim: é bom, é lindo de se ver, mas falta aquela sensação de “uau” saindo do cinema que os filmes longevos costumam deixar.

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Cinema Crítica

Em ‘Creed’, Rocky ainda é o cara

De cara, “Rocky” e “Star Wars” não têm muito em comum. Talvez dê pra achar uma semelhança forçando a barra, mas são filme bastante diferentes. Isso deixa ainda mais curioso o fato de que, quase 40 anos depois do lançamento das franquias, após filmes que não emplacaram muito, novos longas das séries sejam lançados com tanto sucesso usando mais ou menos a mesma receita. Diante da tarefa de ter que agradar uma multidão de fãs ansiosos e frustrados com a trilogia iniciada nos anos 90, J.J. Abrams fez praticamente um reboot da história original de George Lucas. “O Despertar da Força” tem muito de “Uma Nova Esperança”. Deu certo: o público recebeu o que queria e todos saíram contentes. O mesmo acontece com “Creed”: você viu algo muito parecido em “Rocky”. E é incrível.

No filme, Michael B. Jordan é Adonis, filho que Apollo Creed — o boxeador rival de Rocky no primeiro filme, que depois vira seu amigo — teve fora do casamento. Depois de uma temporada em orfanatos e reformatórios, Adonis vai morar com a viúva do pai, que quer para ele uma vida diferente do pai. A princípio tudo vai bem: Adonis vive numa casona, tem um carrão e acaba de ganhar uma grande promoção em seu trabalho num escritório. Mas a sombra de Apollo ainda paira ao seu redor e o que ele quer mesmo é lutar.

Para realizar o sonho, Adonis deixa Los Angeles rumo à Filadélfia para pedir a Rocky que seja seu treinador. No começo ele recusa, mas não é surpresa pra ninguém quando ele volta atrás. E, é claro, antes do fim do filme o sobrenome de Adonis terá chamado a atenção de um campeão de boxe, que o desafia. Como Rocky, Adonis é um azarão. Como Rocky, ele é muito melhor do que todos pensam. E dá-lhe cenas de treino: Adonis corre pelas ruas, pega galinhas para ganhar velocidade, treina onde dá. Tudo saído do início da série, em referências que o próprio filme escancara (“as galinhas estão ficando mais lentas”, reclama Rocky ante o desempenho do pupilo).

São poucas as surpresas — principalmente para quem assistiu ao trailer –, mas não importa. “Creed” é o tipo de filme que faz rir, chorar (sim, quem for do tipo que chora no cinema faz bem em levar uns lenços) e torcer por Adonis como se você o conhecesse há anos e ele estivesse disputando uma luta real. Michael B. Jordan é muito bom, mas o filme tem dois grandes trunfos: Sylvester Stallone, que foi aplaudido de pé ao ganhar o Globo de Ouro de ator coadjuvante, e Ryan Coogler, diretor de 29 anos em seu segundo longa — e que foi contratado nesta semana pela Marvel para dirigir “Pantera Negra”.

Ao receber o prêmio, Stallone disse que Rocky Balboa é seu melhor amigo. Parece verdade. Talvez o ator nunca faça outro papel tão bem, mas Rocky parece uma extensão dele. Quando criou Rocky, numa história já famosa, lhe ofereceram centenas de milhares de dólares pelo roteiro, desde que ele desse o papel do protagonista para outro ator. Stallone, tão azarão quanto seu personagem, não tinha cara de ator de Hollywood. Mas bateu o pé e ficou com o papel, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar em 1977. Essa conexão com Rocky é visível. Stallone está super engraçado, comovente quando precisa, sem medo de rir de si mesmo e muito fofo — adjetivo talvez inusitado para Stallone, mas fazer o quê, é verdade. Os prêmios são merecidos. Rocky ainda é o cara.

Michael B. Jordan e Sylvester Stallone
Michael B. Jordan e Sylvester Stallone

Mas a principal arma do filme é Coogler, que também assina o roteiro. De vez em quando “Creed” coloca um pé no piegas, mas o diretor nunca o deixa ficar cafona. É um filme sobre um boxeador azarão, é um filme de amor, é um filme sobre pai e filho — tudo isso foi feito muitas e muitas vezes. Mas o diretor dá a sua cara ao negócio e deixa “Creed” um pouco diferente daquilo que já vimos. Adonis treina correndo na rua e batendo em sacos de pancada, mas também se coloca em frente à imagem de seu pai lutando com Rocky num telão, imitando seus movimentos, e trava lutas contra sua própria imagem num espelho. São cenas simples, mas esteticamente bonitas. A luta final, então, é demais. Dá pra se sentir dentro do ringue. É difícil explicar por que, mas “Creed” dá a impressão de que estamos vendo algo novo, apesar da história pouco original.

Ava DuVernay, de “Selma”, recusou a direção de “Pantera Negra” dizendo sentir que não conseguiria fazer dele um filme seu. Talvez ela esteja certa e seja mais difícil fazer algo diferente e colocar sua marca em franquias, em histórias que todo o mundo conhece. Mas Ryan Coogler mostra que pode dar certo. Pode dar muito certo.

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Crítica

O Frankenstein de Tarantino

Quentin Tarantino tem uma autoestima invejável. Em entrevista à revista “GQ” em dezembro, disse que queria ter mais Oscars de roteiro original que “qualquer um que já tenha vivido”. Quatro prêmios — um a mais que Woody Allen e dois a mais do que já tem — já seria o bastante. “E isso em dez filmes, para quando eu morrer eles nomearem o Oscar de roteiro original de ‘o Quentin’”, afirmou. Bem, se houver justiça no mundo, seu terceiro Oscar não virá de “Os Oito Odiados”. Seu principal problema, talvez, seja justamente o excesso de autoestima de Tarantino. Primeiro, faltam cortes ao filme — são três horas, o que por si só não é um problema, mas são três horas desnecessárias. Nem toda ideia do diretor merece estar na tela. E, mais importante, termina-se o longa com a sensação de já ter visto algo assim antes, na obra do próprio Tarantino. É uma grande reciclagem de ideias.

“Os Oito Odiados”, que estreia hoje (7), carrega um pouco de cada projeto de Tarantino. No filme, Kurt Russell é John Ruth, um caçador de recompensas que quer levar a prisioneira Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) para ser executada e embolsar uma bela quantia. Uma nevasca, no entanto, faz com que ele tenha que interromper sua jornada e procurar abrigo numa hospedaria com outros sete homens, todos igualmente misteriosos e “odiosos” (melhor tradução para o título original, “The Hateful Eight” do que “odiados”).

Samuel L. Jackson é Marquis Warren, também caçador de recompensas; Walton Goggins é Chris Mannix, o novo xerife local; Tim Roth é o carrasco Oswaldo Mobray; Brude Dern é Sandy Smithers, general que lutou na Guerra Civil americana do lado dos Estados Confederados; Demián Bichir é o mexicano Bob, que cuida da hospedaria na ausência da dona; Michael Madsen é o caubói Joe Gage e James Parks é o cocheiro O.B, o único ali que parece não ter interesses escusos. Pelo menos é isso o que cada um diz ser, de cara dá para ver que não se deve colocar a mão no fogo por nenhum deles.

Como em “Cães de Aluguel”, todos ficam confinados no mesmo espaço, ninguém (nem o espectador) sabe quem é confiável ou não e, como é de praxe com Tarantino, muito sangue é derramado até o fim do filme. Nem as reviravoltas chegam a ser muito surpreendentes se você viu o primeiro trabalho do diretor. De “Django Livre”, o filme tem um pé no faroeste, boa dose de sadismo e os impropérios racistas. De “Pulp Fiction”, tem a estrutura, com uma divisão de capítulos que não respeita a ordem cronológica e histórias que se amarram no fim. Como “Bastardos Inglórios”, tem a vingança como um dos temas principais.

Samuel L. Jackson em "Os Oito Odiados". Crédito: Divulgação
Samuel L. Jackson em “Os Oito Odiados”. Crédito: Divulgação

Basicamente, “Os Oito Odiados” é um Frankenstein de outros longas de Tarantino. Isso não torna o filme ruim ou chato (é bom deixar claro: ele não é). Seu maior problema talvez tenha sido o excesso de cenas cortáveis, que não são nem essenciais nem particularmente boas. Edição é importante e saber cortar é quase tão essencial quanto saber fazer. O ponto alto: o filme é lindo (lindo mesmo, é uma pena que tenha “O Regresso” como forte concorrente ao Oscar de fotografia). Há imagens muito bonitas na neve, cada cor no figurino dos personagens tem razão de ser e as cenas são muito amplas, o que dá uma sensação bem teatral de estar vendo um palco inteiro, em que todos atuam o tempo todo. As performances, aliás, também são ótimas e ajudam a segurar até os momentos meio modorrentos. Jennifer Jason Leigh, a única mulher do filme (parece regra nessa safra de potenciais indicados ao Oscar), é maravilhosa — ameaçadora, mordaz e poderosa, apesar de passar o tempo todo presa –, Bruce Dern é demais mesmo falando pouco e Samuel L. Jackson é Samuel L. Jackson, ame ou odeie.

Mas nos filmes do cineasta a surpresa é importante e os finais tendem a ser impactantes. “Os Oito Odiados” é construído para ter o mesmo impacto, espera-se que você saia com aquela sensação de “uau” e, caso você já tenha visto um Tarantino na vida, dificilmente será um caso. Se você tiver que levar um só filme do diretor para uma ilha deserta ou colocar numa caixa para gerações futuras acharem, não é a melhor escolha. Todos os originais são melhores que a cópia.

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Televisão

A obsessão de ‘Making a Murderer’

Não dá pra gostar de “Making a Murderer”. A série documental do Netflix é viciante, do tipo que te faz ler comentários em sites, frequentar fóruns atrás de mais informações, elaborar teorias da conspiração e comentar com qualquer um que passe ao seu lado sobre a história de Steven Avery, inocentado após 18 anos na cadeia e preso dois anos depois, acusado de assassinato. Mas não dá pra gostar de “Making a Murderer”. A cada um de seus dez episódios o programa deixa o espectador mais perturbado. Como aquilo pode estar acontecendo? De vez em quando você se esquece de que aquilo é real e toda vez que você se lembra é uma paulada na cabeça.

Como de praxe quando se trata do Netflix, não há informações sobre audiência, o que torna impossível saber quantas pessoas viram a série (o primeiro episódio, postado pelo serviço no YouTube, tem quase 500 mil visualizações). Em repercussão, porém, o programa é um fenômeno. Desde que estreou, perto do Natal (melhor época para se ver televisão, aliás, quando as pessoas estão cheias de tempo livre e estufadas de comida), o nome Steven Avery não para de pipocar em sites noticiosos, fóruns, redes sociais. Para um programa pouco anunciado pelo Netflix, sem grandes estrelas, foi surpreendente. Mas vendo “Making a Murderer” é fácil de entender por que as pessoas se envolveram tanto.

A história de Steven Avery parece saída da cabeça de Agatha Christie. Se estivesse em uma série de tribunal, como “The Good Wife”, já seria maluca e o fato de ser real torna tudo mais doido ainda. Steven Avery tinha acabado de ser pai quando foi acusado de ter tentado estuprar uma mulher no interior do Estado de Wisconsin, onde vivia. Steven tinha álibi — mais de um, inclusive. Com passagens anteriores pela polícia (por causas variadas, como ter queimado um gato), não havia nada que o ligasse àquele crime. Mas com base no retrato falado feito pela vítima, a polícia o prendeu. Um detalhe importante (todo detalhe é importante nesse caso): Steven havia jogado, pouco tempo antes, o carro para cima de uma prima, casada com um policial do condado. Ele não era exatamente querido.

Dezoito anos depois, um teste de DNA provou que ele era inocente e que o verdadeiro culpado estava preso havia alguns anos e, inclusive, já tinha confessado o crime à polícia, que mesmo assim não liberou Steven. Já solto, ele pediu uma indenização de US$ 36 milhões pelo tempo que passou injustamente na cadeia. Poucas semanas depois que os principais policiais envolvidos no caso deram seus depoimentos, uma fotógrafa, Teresa Halbach, desapareceu após tirar algumas fotos na propriedade de Steven. Mais tarde, seus ossos foram encontrados queimados em seu terreno. Acusado de novo e sem dinheiro no bolso, Steven aceitou um acordo em seu processo e ganhou uma indenização de apenas US$ 400 mil, longe do que havia pedido.

Inocentado após passar 18 anos na cadeia, homem mata mulher e vai preso de novo. Já seria uma história e tanto, digna de filme, e foi isso que levou as diretoras Laura Ricciardi e Moira Demos a fazer as malas para Wisconsin. Durante dez anos elas trabalharam na história de Steven, conversando com ele e sua família, acompanhando o julgamento, coletando documentos e gravações. Nesse tempo, o projeto ganhou outra dimensão. Já não era só uma história curiosa, e sim um retrato chocante do funcionamento do sistema penal. Por isso, não dá pra parar de assistir. Como diz um dos advogados de Steven, você pode ter certeza de que nunca vai cometer um crime, mas não pode ter certeza de que nunca vai ser acusado de um crime. Caso você seja, é isso que pode te acontecer. E é aterrorizante. (Pare aqui caso você não queira saber os detalhes da história.)

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Steven Avery, preso pela primeira vez. Crédito: Divulgação
Steven Avery, preso pela primeira vez. Crédito: Divulgação

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No fim de “Making a Murderer” não se sabe o que realmente aconteceu com Teresa Halbach. Não é esse o objetivo. O foco é menos o assassinato em si e mais o funcionamento da justiça e o drama humano que vivem o acusado e sua família, o que tem apelo para todo o mundo. Sabe-se que Steven Avery e seu sobrinho adolescente, Brendan Dassey, foram condenados à prisão perpétua pelo crime sem que a promotoria conseguisse montar um caso consistente. Talvez Steven seja mesmo o assassino, mas o fato é que não dá para ter certeza. E como todos são inocentes até que se prove o contrário, a conclusão inevitável é que eles não deveriam estar presos. É por isso que já existem duas petições, que somam mais de 300 mil assinaturas, para que Barack Obama solte os dois.

Primeiro ponto estranho: os mesmos policiais envolvidos no processo milionário movido por Steven Avery estiveram em sua propriedade após a morte de Teresa procurando por evidências, apesar de não haver motivo para eles estarem ali (a polícia de outro condado investigava o caso). Pra dizer o mínimo, havia um conflito de interesses. Segundo ponto estranho: algumas das evidências contra Steven, como a chave do carro de Teresa, foram encontradas depois de dias de busca, em lugares óbvios. Durante dias ninguém tinha visto a chave do lado do criado-mudo. Certo. A mesma chave não tinha o DNA de Teresa, sua dona, mas tinha o DNA de Steven. Ok.

Terceiro ponto: segundo a acusação, Steven estuprou Teresa no quarto e cortou sua garganta, mas não havia vestígios de sangue ou de seu DNA por lá. Quarto ponto: no carro de Teresa, encontrado do lado da casa de Steven (que tinha um compactador de veículos e por algum motivo não o usou para destruir a evidência), havia sangue de Steven. Mas uma amostra de seu sangue que fazia parte de sua primeira prisão havia sido violada. E por que Steven teria matado Teresa na casa, colocado seu corpo no carro, mantido o carro do lado da casa, tirado o corpo do carro e o queimado no próprio terreno? Nada faz sentido. O estranhamento só cresce.

Segundo a tese de seus advogados, a polícia plantou as evidências para incriminá-lo. Isso não é comprovado, mas há margem para dúvida e, se essa margem existe, Steven não deveria ter sido condenado. Por isso “Making a Murderer” é tão perturbador. Se o espectador consegue ver a injustiça cometida, como o júri e o juiz não conseguem? É a vida de alguém que está em jogo e não conseguimos fazer nada a não ser assistir de mãos atadas. Ninguém é punido por ter deixado Steven 18 anos preso injustamente. Ninguém questiona as lacunas na tese da acusação. “A presunção de inocência só vale pra quem é inocente”, diz o promotor. A sentença de Steven tinha sido dada antes do julgamento começar. Como ele poderia lutar contra polícia e o sistema?

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Steven Avery, preso anos depois. Crédito: Divulgação
Steven Avery, preso anos depois. Crédito: Divulgação

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Histórias de crime exercem um fascínio especial sobre as pessoas. Há criminosos famosos, cujos julgamentos são acompanhados como novela, em diversos capítulos nos jornais e televisão. Novas séries ambientadas em tribunais ou delegacias estreiam a cada temporada, várias com sucesso. Sherlock Holmes teve mil encarnações até chegar a Benedict Cumberbatch. Acompanhar essas tramas atiça a curiosidade das pessoas em vários níveis: como alguém pode fazer algo assim? Como foi que isso aconteceu de verdade? Por isso, essa onda de séries documentais sobre crimes reais, como “The Jinx”, exibida no ano passado pela HBO, ou o podcast “Serial”, também de 2015, não espanta. Crimes geram interesse. Mas “Making a Murderer” é diferente de “The Jinx” em algo: não tem fim.

Só dá para especular, mas provavelmente a série teria causado um impacto menor caso houvesse um final feliz. Em “The Jinx”, o protagonista Robert Durst confessa sua culpa e será julgado neste ano. Quando o crime é desvendado, você pode respirar aliviado e deixar a história pra lá porque a justiça foi feita. Não dá pra esquecer “Making a Murderer”. É um soco no estômago ver como o sistema funciona contra Steven Avery, que nasceu com cartas ruins na mão, uma vez e depois outra.

Você termina a série e quer compartilhar sua indignação com o mundo. Por isso as pessoas vão à internet: para discutir teorias, conversar sobre fatos não mencionados pelo programa, para detonar o promotor nas redes sociais, para pedir que Steven seja libertado ou julgado novamente. É como um dos advogados de Steven diz no fim: você quase torce pra que ele seja mesmo culpado. A ideia de ele estar preso de novo por um crime que ele não cometeu é insuportável.

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Cinema Crítica

‘Spotlight’ é o novo ‘Argo’

Quase seis meses antes do Oscar deste ano, ainda em setembro, um crítico da revista New York afirmou: “Spotlight” era o favorito a levar o prêmio de melhor filme. O tempo passou e o panorama continua parecido. Não dá pra dizer que o filme de Tom McCarthy esteja com a estatueta no bolso, mas se você quiser fazer uma aposta pouco arriscada, “Spotlight” é uma ótima opção. É, realmente, o típico filme pra Oscar: história real, elenco famoso (Michael Keaton, Rachel McAdams, Mark Ruffalo e por aí vai), personagens inspiradores. Não muito diferente de, digamos, “Argo” ou “O Discurso do Rei”, que carregam uma bênção e uma maldição: ok, levaram o Oscar, mas ninguém mais se lembra muito deles hoje. “Spotlight” tem cara de quem vai seguir o mesmo caminho.

Isso não quer dizer que o filme, que estreia na próxima quinta, não seja bom. Ele é. É pouco provavél que alguém saia arrependido por ter gastado duas horas do seu dia no cinema vendo “Spotlight”, o que é sempre uma vitória. Mas o filme não é essa coca-cola toda, apesar de ter uma nota de 97% no Rotten Tomatoes. Uma tese para explicar tanto confete: “Spotlight” foi feito sob medida para jornalistas. É aquele filme capaz de fazer um adolescente pensar “hum, talvez eu queira ser repórter”, que dá ao recém-formado a esperança de mudar o mundo com um texto e que faz repórteres e editores pensarem que, bem, talvez tenham escolhido a profissão certa. “Spotlight” é o sonho de quem trabalha em uma Redação.

 

Spotlight é o nome de uma equipe do jornal americano Boston Globe que existe desde a década de 1970 com liberdade para passar meses ou até anos investigando uma história, a fundo, sem ter que se preocupar com as notícias do dia em circunstâncias normais. Em 2001, em sua primeira reunião de pauta com os editores do jornal, o recém-chegado editor-executivo Marty Baron (Liev Schreiber) pede para que os jornalistas do Spotlight engavetem tudo o que estavam fazendo para se dedicarem a uma reportagem sobre um caso de pedofilia envolvendo um padre da cidade. Segundo uma colunista do jornal, um advogado local teria provas sigilosas de que o alto clero da Igreja Católica sabia e havia acobertado o escândalo. Baron quer essas provas para abalar o sistema.

Essa era só a ponta de um novelo desenrolado ao longo de meses pelos jornalistas Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams), Michael Rezendes (Mark Ruffalo), Walter Robinson (Michael Keaton) e Matt Carroll (Brian d’Arcy James). A apuração começa com um padre e vai crescendo, crescendo, até que eles chegam a uma lista de quase 90 padres molestadores de crianças. Durante meses os repórteres conversam com vítimas, com advogados que tinham a dimensão do problema e ajudaram a empurrá-lo pra debaixo do tapete, procuram padres, esmiúçam documentos, vão a bibliotecas, fóruns, gastam a sola do sapato na rua e vão ao jornal nos fins de semana para continuar trabalhando, num esforço que rendeu mais de 600 histórias.

É o jornalismo dos sonhos: contar histórias relevantes, que façam diferença na vida das pessoas, com tempo para investigar de verdade. Em suas pesquisas, a equipe percebe que boa parte das pistas estavam disponíveis para todos, ali mesmo no jornal, em pequenas matérias picotadas escondidas nas páginas internas dos cadernos, pras quais ninguém deu muita atenção. As mesmas evidências que eles encontravam tinham sido enviadas anos antes para outros jornalistas do Boston Globe e ignoradas. Só que ninguém havia juntado as peças para formar o quebra-cabeças. Não foi um furo de reportagem que caiu no colo de alguém: foi fruto de muito trabalho, árduo e pouco glamouroso. Não à toa, os repórteres do Spotlight ganharam o Pulitzer. Suas reportagens mostram, basicamente, como o jornalismo é importante. É um filme que deve agradar todos os públicos, mas, nesse sentido, é especialmente irresistível para a crítica.

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Michael Keaton e Mark Ruffalo. Crédito: Divulgação
Michael Keaton e Mark Ruffalo. Crédito: Divulgação

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De certa forma, “Spotlight” lembra “A Grande Aposta”, outro filme que provavelmente disputará o Oscar. São duas boas histórias reais, com elencos enormes cheios de coadjuvantes e nenhum protagonista (e, ressalte-se, quase nenhuma mulher), sobre pessoas que olharam ao redor e entenderam a dimensão verdadeira de algo importante.

Mas “A Grande Aposta”, que conta a história de um grupo de pessoas que previu antes do mundo a crise econômica de 2008 e enriqueceu com isso, é mais original. Adam McKay, que foi roteirista do “Saturday Night Live” e diretor de “O Âncora”, consegue transformar uma crise difícil de entender em algo compreensível e engraçado. O diretor tenta fazer algo diferente, como colocar famosos em situações esdrúxulas para explicar termos econômicos (Margot Robbie numa banheira tomando champanhe, Selena Gomez num cassino…), personagens quebram a quarta parede e o filme todo é salpicado de cultura pop.

“Spotlight” é legal? Sim. É bem feito? Sem dúvidas. Conta uma história relevante? Definitivamente. O elenco é bom? Muito. Vale o ingresso? Com certeza. Mas é quadradinho. Pode até ganhar o Oscar, mas não é lá muito marcante.

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Cultura

Os melhores livros e HQs de 2015

Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu.

Já falamos das séries, músicas, discos, atuações e filmes de que mais gostamos no ano. Aqui listamos os livros e HQs de 2015 que nos marcaram, fora de ordem mesmo. Segura:

zero

“Zero” (Ales Kot)
Eu queria dar um abraço no Ales Kot. O roteirista de “Zero” sabe como poucos transformar uma história batida – um espião de uma agência secreta que começa a desconfiar das missões e objetivos de seus patrões – em uma obra-prima sobre a desgraça humana, pessoas deploráveis, morais nebulosas. Tudo feito com uma inteligência fora do normal para histórias do tipo. A escolha dos artistas, que muda a cada edição, também é digna de nota: cada um deles conseguiu absorver o tipo de sofrimento da história. Para ler e reler e reler. [Leo Martins]

saga

“Saga” (Brian K. Vaughan e Fiona Staples)
“Saga”, publicado pela Image Comics e traduzido no Brasil pela Devir, é provavelmente o quadrinho mais interessante dos últimos tempos. O roteiro de Brian K. Vaughan conta a história de um casal estilo Romeu e Julieta em um universo distópico que parece uma mistura de “Star Wars” e “Game of Thrones”. Tudo isso casa perfeitamente com os desenhos de Fiona Staples, com criaturas incríveis que parecem saídas de um sonho que, lá pro fim do dia, você percebe que foi um pesadelo. A facilidade de adicionar pequenas tramas, personagens fugazes e conversas brutalmente sinceras fazem com que seja impossível ler só um pouquinho. [LM]

wicked

“The Wicked + The Divine” (Kieron Gillen e Jamie McKelvie)
Já deu pra sacar que o ano foi bom demais pra Image Comics, né? E foi mesmo. “The Wicked + The Divine”, com roteiro de Kieron Gillen e arte de Jamie McKelvie, conta a história de divindades que a cada 90 anos voltam para a Terra e são tratados como popstars. O roteiro é impressionante, os traços são incríveis e a vontade é de viver um pouco, mas só um pouquinho, nesse mundo maluco. [LM]

tanehisi

“Entre o Mundo e Eu” (Ta-Nehisi Coates)
O jornalista Ta-Nehisi Coates é, faz alguns bons anos, uma das vozes negras mais importantes dos EUA. Ultimamente, por causa dos abusos policiais contra adolescentes negros no país, sua coesão de discurso e bom senso aumentaram ainda mais a potência dessa voz. Em “Entre o Mundo e Eu”, Coates mistura histórias de sua difícil infância em Baltimore com reflexões sobre o estado atual da sociedade americana, do racismo e do futuro do país. Muito bem escrito, o livro é uma rápida aula de 150 páginas para qualquer um que queira entender mais sobre alguns dos maiores problemas do nosso mundo. [LM]

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“Dois Irmãos” (Fábio Moon e Gabriel Bá)
Transformar obras de literaturas em HQs é uma certa moda recente. Desde os clássicos até livros atuais, tudo ganha versão em quadrinho. Isso nem sempre é bom, mas no caso de “Dois Irmãos”, dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, deu certo. Ficou mais fácil para os irmãos porque o livro de Milton Hatoum, lançado em 2000, é realmente muito bom. Coube a eles transformar a narrativa, e o resultado é digno de nota: os traços preto e branco, o jogo de sombra, o cenário de Manaus durante décadas de mudança, tudo isso conversou muito bem com a história de dois irmãos separados pela guerra, pela família e pelo amor. [LM]

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“São Paulo, a Capital da Vertigem” (Roberto Pompeu de Toledo)
“São Paulo, a Capital da Vertigem”, de Roberto Pompeu de Toledo, narra a história paulistana de 1900 a 1954 e mostra por que a cidade é a mais brasileira das nossas capitais – inclusive quando nega a sua brasilidade (o Brasil consegue ser uma coisa e seu oposto ao mesmo tempo). Continuação do grande “São Paulo, a Capital da Solidão”, que vai de 1554 até o fim do século 19, “A capital da Vertigem” mostra como transformarmos um vilarejo marrento em uma metrópole fulgurante. Também relembra o bombardeio aéreo de 1924 e explica, até, por que o metrô demorou tanto tempo para sair do papel nessa cidade de vales sufocados e rios aterrados, de gente local e gente de tudo quanto é lugar do mundo – e que se sente local. É um clássico para amar e odiar São Paulo – ao mesmo tempo!” [Leandro Beguoci]

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“Humilhado” (Jon Ronson)
O livro de Jon Ronson é daqueles que se lê numa sentada. A leitura é bem fácil, mas nada leve. Centrado em alguns personagens que, por motivos diversos, foram humilhados publicamente pelas redes sociais, faz refletir sobre o poder que posts aparentemente inofensivos no Facebook ou no Twitter têm na vida das pessoas. As histórias são boas: Jonah Lehrer, jornalista da New Yorker que caiu em desgraça quando descobriram que ele havia inventado aspas de Bob Dylan em um best-seller, Justine Sacco, demitida depois de fazer um tweet racista, Lindsey Stone, que ficou deprimida com as consequências de uma foto desrespeitosa num cemitério de militares, entre outros. Quando alguém faz ou fala algo considerado absurdo, muita gente não hesita em apontar o dedo na internet sem pensar nas consequências. Mas, Ronson questiona, será que a pena corresponde ao crime? [Fernanda Reis]

karl ove

“Ilha da Infância” (Karl Ove Knausgaard)
Colocar Karl Ove Knausgaard na lista de melhores do ano já é clichê, mas fazer o que se ele manteve a regularidade no terceiro livro de sua série autobiográfica “Minha Luta”? O tema é tão banal que é difícil fazer uma sinopse: no volume, ele discorre em detalhes sobre sua infância em uma ilha na Noruega. Mas ele escreve tão bem que até um passeio dele com um amigo ou seu prazer por adiar o máximo que podia as idas ao banheiro ficam interessantes. É o mais fraco entre os três volumes publicados no Brasil, sim, mas mesmo o pior Karl Ove é melhor do que boa parte dos lançamentos por aí. [FR]

doerr

“Toda Luz que Não Podemos Ver” (Anthony Doerr)
Vencedor do prêmio Pulitzer de ficção, Anthony Doerr realiza uma façanha: escrever um livro original sobre a Segunda Guerra. Doerr não fala de Hitler, Churchill ou Roosevelt, deixa de lado as grandes batalhas e foca em duas histórias, a de uma menina cega francesa e de um menino alemão que sabe tudo sobre rádios. É uma história sem maniqueísmo, que não retrata todos os alemães como vilões nem todos americanos e franceses como heróis. “Toda Luz que Não Podemos Ver” é uma história sobre pessoas. Às vezes triste, mas sempre bonita. [FR]

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Cultura

As melhores atuações de 2015

Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.

Já falamos das séries, músicas, discos e filmes de que mais gostamos no ano. Aqui listamos dez atuações de 2015 que nos marcaram, divididas em duas partes: cinco no cinema, cinco na televisão. Fora de ordem mesmo, já que não deu pra ver tudo e seria injusto fazer algum tipo de ranking (só de televisão foram mais de 400 séries em 2015, né). Olha lá:

CINEMA

julianne

Julianne Moore – “Para Sempre Alice”
O filme, em si, não é nada de mais. Ok, é bonzinho, mas daqui um ano ninguém vai se lembrar muito dele. Mas Julianne Moore faz valer a pena. Sua Alice, uma professora de linguística que descobre ter Alzheimer aos 50 anos, é cheia de nuances. Forte e cheia de vida em alguns momentos, desolada com a consciência da doença em outros, às vezes totalmente perdida. Nomeie alguma emoção qualquer: está lá na performance dela.

matt damon

Matt Damon – “Perdido em Marte”
Matt Damon atua sozinho durante quase todo o filme e consegue fazer dele uma das experiências mais divertidas do ano. Ponto pra ele. Não é um papel feito sob medida pra prêmios — ele não é um psicopata, não usou uma prótese no rosto e não comeu fígado cru de bisão — e mesmo assim será uma injustiça se ele não estiver no Oscar. Matt Damon é bem engraçado, quem diria.

depp

Johnny Depp – “Aliança do Crime”
Johnny Depp é o anti-Matt Damon. Enquanto Damon é um cara comum, o garoto da casa ao lado, Depp se dá melhor fazendo tipos bizarros. Como o criminoso Whitey Bulger, Johnny Depp é a isca perfeita para prêmios. Transformação física? Ok. (Ele aparece quase careca, com lentes de contato e magérrimo.) Papel de louco? Ok. (No caso, é um assassino frio.) Só não comeu fígado cru de bisão — difícil superar Leonardo DiCaprio em “O Regresso”, que estreia em janeiro, nesse sentido. O filme é bem meia-boca, mas a atuação de Johnny Depp é marcante. Ele está esquisito e assustador na medida certa.

regina

Regina Casé – “Que Horas Ela Volta?”
Pelo menos uns 50% do sucesso de “Que Horas Ela Volta?” são responsabilidade de Regina Casé, que está puro carisma. Ela nos relembra de que é uma ótima atriz, que faz rir e emociona, e não só a estridente apresentadora do “Esquenta”.

idris

Idris Elba – “Beasts of No Nation”
Idris Elba tem sim charme e carisma para ser o próximo James Bond, ao contrário do que disse o autor Anthony Horowitz neste ano. A prova disso é que ele consegue colocar as duas características num personagem horrível, que recruta crianças africanas para lutar. Elba é ao mesmo tempo perigoso e sedutor e é o destaque de um filme que prometia mais do que cumpriu.

TELEVISÃO

Chapter Twenty-Two

Gina Rodriguez – “Jane the Virgin”
“Jane the Virgin” poderia ter dado muito errado caso as atuações não fossem tão boas. O tempo todo a série circula sobre a tênue linha entre o curiosamente divertido e o cafona, às vezes com um pé lá e o outro cá. Mas a performance de Gina Rodriguez é o tempo todo luminosa — vai, tudo bem usar um adjetivo cafona aqui, estamos falando de “Jane the Virgin”. Ela rivaliza com Claire Danes na categoria “melhor choro televisivo” (um elogio e tanto), é bem engraçada e faz com que Jane seja uma pessoa 100% boa sem ser chata ou sem graça. É o tipo de personagem de quem você gostaria de ser amigo e eleva a série de uma novelona engraçadinha para uma das melhores estreias do ano.

rami

Rami Malek – “Mr. Robot”
“Mr. Robot” apareceu em dez entre dez listas de melhores do ano. E “Mr. Robot” é Rami Malek. Com seus olhos esbugalhados e sua fala arrastada, Malek é protagonista e narrador da trama, e vai enredando o espectador numa trama muito doida e irresistível. Seu personagem, Elliot, é mais um hacker esquisito com pouco traquejo social, mas ele foge do clichê e é cheio de complexidade. Sua performance é tão impactante que é difícil imaginá-lo em outro papel.

aya

Aya Cash – “You’re the Worst”
Em seu segundo ano, a série fez uma aposta arriscada: falar a fundo sobre depressão sem deixar de ser uma comédia. Deu tudo certo por causa de Aya Cash, que escapou da caricatura e fez um dos melhores retratos televisivos de uma pessoa deprimida, em todas suas dimensões, alternando momentos de tristeza, raiva, apatia e alguns picos de alegria. Tudo isso sem perder o humor e a essência de sua personagem. Merecia uma indicação ao Globo de Ouro, mas… Quem sabe no Emmy ela não seja lembrada.

matthew

Matthew Rhys – “The Americans”
“The Americans” é uma das raras séries que só melhora (pelo menos por enquanto, não vamos zicá-la). E seus protagonistas, Matthew Rhys e Keri Russell (que faz esquecer que um dia já foi Felicity), têm melhorado com ela. A dupla é muito boa, mas o destaque da temporada é Rhys, cujo personagem, o espião soviético Philip, se viu mais dividido e torturado do que nunca. Vale a pena seduzir uma adolescente para conseguir informações de seu pai? Como lidar com o fato de que seu país quer arrastar sua filha para a perigosa vida que ele leva? Ele deve ser leal à família ou à União Soviética? Rhys faz com que você sinta sua dor. “The Americans” já nasceu como uma boa série de ação, mas os atores a transformaram num dos melhores dramas da atuais.

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Shiri Appleby – “UnREAL”
Rachel, a personagem de Shiri Appleby em “UnREAL”, é, para dizer o mínimo, uma pessoa difícil. Sumiu da vida do namorado sem dar notícias, é brigada com os pais, bebe demais, mora numa van e pirou frente às câmeras do reality show estilo “The Bachelor” no qual trabalhava. E é uma mestre na manipulação (sério, campeã em manipular os outros). Você sabe que ela vai destruir a vida alheia e a própria, e que não deveria torcer por ela, mas quando vê está esperando seu final feliz. É cedo pra dizer, mas Rachel pode ser o Don Draper ou Walter White (aqueles anti-heróis carismáticos) feminino que estava faltando na televisão.

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Crítica

O novo “Star Wars”: a crítica sem spoilers

Como alguém que assistiu recentemente às duas trilogias de “Star Wars”, na ordem de lançamento, minha expectativa para “O Despertar da Força” era baixa. A lembrança mais recente era a de Hayden Christensen em uma das piores atuações de todas as galáxias. Pra que mexer de novo nesse vespeiro? Não era melhor deixar a memória da trilogia original em paz? Depois de ver o sétimo episódio, a conclusão: ele está bem mais para trilogia original do que para a nova. Aliás, ele é muito (muito) parecido com o primeiro filme, “Uma Nova Esperança”.

Aqui vai só a premissa da história, o que acontece nos primeiros minutos ou já aparecia nos trailers, para ilustrar as semelhanças. Rey (Daisy Ridley) mora num planeta deserto e sabe pouco sobre sua família, até se envolver com o droide BB-8, que carrega em si uma informação importante para a rebelião. (Para quem não se lembra, Luke Skywalker também morava num planeta deserto, sabia pouco sobre sua família e se envolveu com a rebelião ao encontrar o droide R2-D2, que carregava uma informação importante.) Tem também o personagem que, como Han Solo, só quer salvar a própria pele até aderir à rebelião, um vilão mascarado que obedece a um vilão ainda maior e misterioso, heróis que não sabiam ser heróis até descobrirem a existência da Força.

[olho]Abrams apelou para a memória afetiva do público[/olho]

O diretor J.J. Abrams seguiu à risca a receita original de George Lucas e construiu uma história para aplacar a saudade dos fãs da série — numa das primeiras sessões do filme ouvia-se suspiros, gritinhos quando um personagem original como C-3PO aparecia e muitos bateram palmas. Outros tantos devem ter chorado (foi o caso de um amigo, pelo menos). Abrams apelou para a memória afetiva do público.

Mas seguir os passos de “Uma Nova Esperança” não seria garantia de nada e a receita poderia ter desandado. “O Despertar da Força” é um filme divertido, às vezes bem engraçado — Poe Dameron (Oscar Isaac) é um dos destaques nesse sentido. Não tem nenhum personagem tonto e irritante, como Jar Jar Binks, o que é sempre um motivo de comemoração. Os atores novos são bons, infinitamente melhor que os intérpretes de Anakin Skywalker ou mesmo Natalie Portman, bem ruim como a Padmé Amidala nos três primeiros episódios.

E o mais importante: os personagens novos são legais. Leia já era uma boa heroína, inteligente, corajosa e hábil com uma arma. Mas era apenas uma mulher num mar de personagens masculinos e ela foi colocada num biquíni dourado e escravizada por uma lesma gigante (que os fãs mais fervorosos de “Star Wars” perdoem a descrição) até ser resgatada por Luke. Rey tem a companhia de outras ótimas personagens femininas: a própria Leia, Maz Kanata (Lupita Nyong’o), e até uma vilã, a capitã Phasma (Gwendoline Christie). Se Luke tem um contraponto nessa trilogia nova, é Rey, a verdadeira protagonista e heroína da trama. Finalmente uma mulher (vamos descontar aquelas que não falam e só fazem figuração) pega num sabre-de-luz! O vilão, Kylo Ren (Adam Driver), não é nenhum Darth Vader, mas é complexo e tem potencial. E Driver, com aquela voz profunda, nasceu para fazer esse papel.

[olho]Os anos passaram e tudo praticamente voltou ao início[/olho]

O filme não é perfeito. Quem assistiu a “O Retorno de Jedi” e nunca mais parou pra pensar ou voltou ao universo de “Star Wars” pode não entender direito como fomos da festa dos ewoks para comemorar a derrocada do Império à guerra que vemos no início. Os anos passaram e tudo praticamente voltou ao início, com os rebeldes em desvantagem na luta contra os vilões. A motivação de alguns personagens também é um pouco nebulosa e não há exatamente uma conclusão. Na trilogia original, cada filme tinha um arco próprio e um fim de verdade. “O Despertar da Força” é um episódio inicial de algo maior, não amarra várias de suas pontas e deixa muitas dúvidas no ar.

Falta originalidade ao roteiro? Talvez. Mas, de qualquer forma, “O Despertar da Força” é um filme bem, bem legal, e apaga o gosto amargo que “A Vingança dos Sith” tinha deixado na boca. Já é um mérito e tanto.

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Cultura

Afinal, quão bom é ‘Star Wars’?

A estreia de um novo “Star Wars” mexe com as pessoas. No começo, foi fácil resistir a entrar no clima. Mas aí vieram os trailers, os comentários alucinados no Facebook, os pôsteres e — o golpe final — o fofíssimo robô BB-8. De repente, a internet estava cheia de discussões sobre a verdadeira natureza de Jar Jar Binks, o personagem mais chato da galáxia. Depois de três filmes meia-boca, porém, fica a dúvida: vale tanta animação? Quão bom é de fato “Star Wars”? Quais são os melhores filmes? Depois de muita análise, o nosso veredicto é simples: a franquia é boa. Mas nem tudo relacionado a seu universo é automaticamente bom. Longe disso.

Alguns livros e filmes além de criar personagens e uma trama, criam todo um universo, o que permite que novas histórias, antes e depois da original, sejam criadas. “Harry Potter”, por exemplo, vai ganhar spin-offs no cinema e no teatro. Nas telas, Eddie Redmayne será o magizoólogo Newt Scamander em “Animais Fantásticos e Onde Habitam”, ambientada décadas antes de “Harry Potter”, mas com o mesmo universo de bruxos.

Mas a possibilidade de criar novas histórias não significa que elas sejam necessariamente tão boas quanto as originais. O que tornou “Harry Potter” e a trilogia original de “Star Wars” produtos de sucesso é o conjunto da obra: universos interessantes com bons personagens e boas tramas. Ambientar um livro num futuro distópico, numa escola de magia ou numa galáxia muito, muito distante, por si só, não é garantia de nada. Quando se espera algo tão legal quanto o original, a decepção pode ser grande. A expectativa é cruel.

A trilogia original de “Star Wars” é muito boa. O primeiro filme, o mais fraco dos três, já é interessante. O trio de mocinhos protagonista é excelente: um garoto que só tem bondade no coração, um cafajeste charmoso e uma princesa que não tem nada de donzela em apuros. Há uma boa trama política, uma história de amor, ação, um alívio cômico que aparece na medida certa (C3-PO) e um vilão antológico. Nos filmes seguintes, com a descoberta de que — alerta de spoiler para quem viveu numa bolha nos últimos 30 anos — Luke Skywalker e Leia Organa são irmãos e filhos de Darth Vader, a trilogia ganha ainda um elemento de drama familiar e fica ainda melhor. Tudo deu certo.

O trio Luke, Leia e Han Solo
O trio Luke, Leia e Han Solo

Na teoria, a trilogia iniciada nos anos 90 também poderia ser boa. A premissa, pelo menos, é ótima: mostrar como o jedi Anakin Skywalker foi para o lado negro da força e virou o vilão Darth Vader, como os jedis foram dizimados, a formação do Império, o nascimento de Luke e Leia. Tem muito material. A execução é que foi ruim. George Lucas pegou vários dos mesmos elementos que deram certo nos três primeiros filmes, mas fez tudo errado com eles.

Como na trilogia original, tem política. Mas é tudo tão mais complicado que, para pessoas estreando no universo “Star Wars” ou há muito tempo afastadas dele, umas consultas ao Google ajudam. Há também uma história de amor, mas muito ruim. No primeiro filme, é estranho ver o romance nascente entre uma rainha, ainda que adolescente, e uma criança. Nos seguintes, Anakin força a barra com Padmé e não consegue entender que “não” significa não. Também não ajuda o fato de Hayden Christensen, o Anakin, ser um péssimo ator e Natalie Portman estar longe de seu melhor momento.

O alívio cômico, Jar Jar Binks, em vez de fazer rir, provoca em iguais medidas constrangimento, irritação e ímpetos violentos. E um vilão do calibre de Vader faz falta (Darth Maul? Pffff, por favor. Só seu sabre de luz, com duas pontas, é legal). Nem a transformação de Anakin em Vader é lá essas coisas. Falta sutileza: desde o começo ele é desobediente, irritadiço, com tendências ditatoriais, e um chato que só reclama. Yoda devia ter seguido seu primeiro instinto e se recusado a treiná-lo.

Pode parecer estranho dizer que os efeitos especiais dos filmes dos anos 1970/80 envelheceram melhor que os dos anos 1990/2000, mas é verdade. Na trilogia original, as estranhas criaturas espaciais são representadas por bonecos ora fofos — como Yoda –, ora curiosamente bizarros — escolha qualquer um no bar em que Luke conhece Han Solo. De qualquer forma, os bonecos são simpáticos. Nos filmes mais recentes, muitas criaturas são digitais, e os efeitos evoluíram muito de lá pra cá, e os efeitos envelheceram mal. Novamente Jar Jar Binks é o exemplo negativo. Mesmo Yoda é computadorizado no final, perdendo boa parte do seu charme.

Luke com o Yoda em versão boneco
Luke com o Yoda em versão boneco

Vale o mesmo para os livros de “Star Wars”. São muitos, escritos por vários autores e ambientados em épocas diferentes. São histórias tão diferentes que é impossível generalizar e dizer que os livros, como um todo, são bons ou ruins. Há dezenas de livros de “Star Wars” disponíveis, que contam histórias de antes da era da velha república, da época dos filmes e depois de “O Retorno de Jedi”. Alguns livros giram em torno de um só personagem (grande, como Han Solo, ou menor, ou do oficial Wilhuff Tarkin, comandante da Estrela da Morte).

Entre todos, “Marcas da Guerra”, de Chuck Wendig, é o único ambientado após “O Retorno de Jedi” que pertence ao cânone — coleção de livros oficiais, que existem no mesmo universo dos filmes. A maioria dos livros tem o selo “Legends”: são histórias que não têm impacto no que acontece no cinema e não dão pistas para o que vem por aí. Mesmo assim, esses volumes têm seus fãs.

Os mais populares da coleção são os da trilogia Thrawn, de Timothy Zahn. Publicada nos anos 1990, entre as trilogias cinematográficas, foi responsável por uma nova onda de interesse pelo universo de George Lucas. A história de Zahn se passa após a derrocada do Império e ganhou o selo “Legends” quando um novo filme foi anunciado. No livro, por exemplo, Leia engravida de gêmeos e Luke se casa. Vai saber o que acontece nos filmes.

Mas “Marcas da Guerra” é o único livro a dar pistas do que vem pela frente. Como os personagens do livro e do novo filme não são os mesmos e os dois foram feitos por pessoas diferentes, não dá para usá-lo como base para especular como será “O Despertar da Força”, só para sentir o clima de como andam as coisas na galáxia distante. O autor conta histórias de diferentes personagens, alguns do lado do Império, outros do lado da Nova República. Tem menos ação do que um fã da série está acostumado — é como se fosse um prólogo mesmo, um mosaico de como a galáxia está após a morte de Darth Vader e do Imperador (spoiler: não está nada bem, aqueles Ewoks começaram a dançar antes da hora).

Pelo menos, o livro mostra que ainda existem boas histórias para contar: diferente do que o final de “O Retorno de Jedi” dá a entender, com a festa de ewoks comemorando a morte do Imperador e de Darth Vader, a paz não foi alcançada na galáxia. O Império foi enfraquecido, mas a guerra está só começando.

O casal Anakin Skywalker e Padmé Amidala
O casal Anakin Skywalker e Padmé Amidala

Resta saber onde o sétimo filme se encaixará no ranking de melhores filme da série, que, por enquanto, está assim:

6) Episódio 1: A Ameaça Fantasma

Tão bom quanto uma visita ao dentista. O mundo estava certo ao dizer que Jar Jar Binks era o pior personagem de toda a série. Sem graça, irritante, é só ele aparecer em cena (e pior, abrir a boca) pra você sentir uma vontade súbita de ir ao banheiro sem pausar o filme. O ator que faz o Anakin Skywalker, coitado, é péssimo — e nunca mais fez outro trabalho como ator. Nada de emocionante acontece e a corrida de pod racers é maçante e poderia ser cortada facilmente. A luta de sabres de luz entre Darth Maul, Qui-Gon Jinn e Obi-Wan Kenobi é o único bom momento — e acontece só no final. Até lá é um suplício. Se a história for justa, esse filme será esquecido e virará apenas uma memória apagada na mente de todos nós.

5) Episódio 2: Ataque dos Clones

A boa notícia: outro ator faz Anakin. A má notícia: ele talvez seja pior que o primeiro. Impressionante, é “Star Wars”, eles podiam escalar qualquer ator do mundo, e escolheram Hayden Christensen. A química dele com Natalie Portman (Padmé Amidala) é praticamente inexistente e é difícil torcer pelo romance deles, que é o que leva Anakin ao lado negro da força. Ver Yoda como computação gráfica dá uma tristeza. Pelo menos tem menos Jar Jar e a trama de Obi-Wan investigando o exército de clones é até que legal. Se o filme se centrasse nele, talvez fosse melhor.

4) Episódio 3: A Vingança dos Sith

Hayden Christensen ainda está mal, mas melhora como Anakin. Dos filmes da trilogia nova, é o mais cheio de acontecimentos. O motivo que leva Anakin ao lado negro da força é um pouco idiota: convencido de que se juntar a Palpatine pode impedir a morte de Padmé, ele se volta contra os jedi. Mas ele não se deu conta de que ele ia perdê-la justamente por isso? E no fim das contas ela morre mesmo, o que é bem frustrante. Pelo menos o final, com a luta entre Obi-Wan (o melhor personagem da trilogia) e Anakin, é bom. E nem que seja por pura curiosidade, é legal descobrir o que aconteceu para Vader precisar daquela máscara e armadura e finalmente ver a transformação do vilão.

3) Episódio 4: Uma Nova Esperança

Não ter o romance entre Padmé e Anakin e Jar Jar Binks já faz do episódio 4 melhor que os três filmes da trilogia nova. Mas ainda não tem o mestre Yoda e como não se sabe que Darth Vader é pai de Luke e Leia há menos coisa em jogo. Para quem já sabia desse fato ao ver o filme, o clima de romance e azaração entre Luke e Leia é bem esquisito. É uma boa introdução para a história e a destruição da Estrela da Morte é legal, mas a história melhora quando Luke se torna um jedi.

2) Episódio 6: O Retorno de Jedi

Em “How I Met Your Mother” uma teoria é apresentada: quem nasceu antes de 1973 e já era grandinho no lançamento do filme não gosta dos ewoks. Quem nasceu depois, os adora. Talvez seja verdade. Como alguém que só viu a trilogia nova no cinema: eles são fofíssimos. O filme tem momentos divertidos (o resgate de Han Solo, preso por Jabba), boas lutas e um desfecho emocionante entre Darth Vader/Anakin e Luke.

1 ) Episódio 5: O Império Contra-Ataca

Ganha do “Retorno de Jedi” por ter Yoda montado nas costas de Luke, aprendiz de jedi. É, aliás, a primeira aparição de Yoda, forte candidato e melhor personagem da série. Tem também o momento mais famoso de “Star Wars”, a revelação de que Darth Vader é pai de Luke (pra quem viu o filme sem saber o spoiler, deve ter sido um momento e tanto). Como se não bastasse, tem outra frase clássica: depois de ouvir uma declaração de amor de Leia, Han Solo responde com “eu sei”. Grandes momentos em um grande filme.