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Cinema Crítica

Alicia Vikander é a garota dinamarquesa

Eddie Redmayne tem uma capacidade incrível de imitar pessoas em seus mínimos trejeitos, e isso ficou claro em “A Teoria de Tudo”, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator no ano passado por sua interpretação de Stephen Hawking. Seu rosto também se transforma com facilidade — a cada filme ele parece uma pessoa diferente. E em “A Garota Dinamarquesa”, que estreia hoje (11), não é diferente. Redmayne mostra de novo que, fisicamente, é um camaleão. Pelo papel de Lili Elbe, pintora dinamarquesa que fez uma das primeiras cirurgias de mudança de sexo de que se tem notícia, Redmayne concorre pela segunda vez seguida ao Oscar.

Seus dois filmes, aliás, têm bastante em comum. Como em “A Teoria de Tudo”, Redmayne interpreta uma personagem num casamento feliz, que vai se deteriorando à medida em que o marido passa por uma grande transformação. Nos dois filmes, seu personagem tem uma mulher que dá apoio o tempo inteiro mesmo às custas de um sofrimento pessoal (um papel clássico de mulheres no cinema, aliás). A diferença é que, enquanto em “A Teoria de Tudo” Felicity Jones era bem coadjuvante, em “A Garota Dinamarquesa” a mulher rouba a cena de Redmayne.

Alicia Vikander disputa o Oscar de melhor atriz coadjuvante neste ano pelo papel de Gerda Wegener, o que faz pouco sentido. Está certo que se ela concorresse ao prêmio de atriz a briga seria mais acirrada — Brie Larson é a favorita, mas Saiorse Ronan e Cate Blanchett também estão no páreo –, mas é ela quem carrega o filme. Não que Redmayne esteja mal. Mas sua atuação é muito mais física que emocional. Lili estuda os gestos de mulheres na rua, paga uma prostituta para poder observá-la, estuda o próprio corpo no espelho e faz dieta para ficar magérrima. Redmayne, que imita como poucos, capta bem a parte corporal da transformação, mas é Vikander quem faz chorar.

Quando o filme começa, Gerda e o marido, Einar, têm um casamento de causar inveja. Eles não se desgrudam, passam os fins de semana na cama, conseguem se comunicar com um olhar numa multidão, têm uma bela vida social e tentam ter um filho. Um dia, a modelo que Gerda estava pintando se atrasa para uma sessão e ela pede para o marido vestir meias e sapatos femininos para que ela possa adiantar o trabalho. Ali, algo muda em Einar. Nos dias seguintes ele pede primeiro para que a mulher não tire a camisola nova na cama e, logo depois, veste a mesma camisola por baixo das roupas.

Gerda não faz muitas perguntas e inclusive sugere que ele vá vestido de mulher a uma festa e se apresente a todos como Lili, uma prima de Einar do interior. Ela o ensina a se maquiar, a andar de salto, a escolher as roupas. Para Gerda, aquilo não passa de uma brincadeira, até que ela vê Lili beijar um homem na festa. Mas a essa altura seu casamento nunca mais seria o mesmo. Einar começa a se portar como Lili com mais e mais frequência, até que ele começa a sonhar os sonhos de Lili e Einar desaparece completamente.

Alicia Vikander em 'A Garota Dinamarquesa'
Alicia Vikander em ‘A Garota Dinamarquesa’

A trajetória de Lili não é nada fácil. Quase ninguém, ali no começo do século 20, entendia o que ela estava passando. Foi vítima de transfobia, médicos tentaram interná-la e a fizeram passar por sessões de radiação, dizendo que ela era esquizofrênica entre vários outros diagnósticos terríveis. Mas, por causa da performance de Vikander, é o sofrimento de Gerda que se sente mais na pele. Em certo momento, quando sua carreira começa a deslanchar e ela vai sozinha a uma festa de abertura de sua exposição em Paris, ela volta para casa aos prantos, diz que o marido deveria ter ido com ela e pede para que Einar apareça só um pouco, ao que Lili responde que isso não é mais possível.

Einar já não existe mais. Lili e Einar são pessoas completamente diferentes, que não têm nem paixões em comum. Quando Gerda sugere que Lili pinte, ela responde: “Eu quero ser uma mulher, não uma pintora”, ao que ela responde: “Existem pessoas que são as duas coisas”. A transformação física de Redmayne é impressionante, mas o filme se preocupa mais com a parte estética do que com o que se passa na cabeça de Lili.

Enquanto isso, embora Gerda continue ao lado de Lili até o fim, ajudando-a se recuperar das cirurgias para a mudança de sexo — mesmo achando que elas eram perigosas –, ela é bem mais que “a mulher sofredora que dá apoio”. Sua jornada como personagem é tão ou mais importante quanto a de Lili: vemos claramente seu conflito interno, seu amargor, suas decepções, seus momentos de fraqueza. Em um momento, inclusive, Gerda é chamada por alguém de “a garota dinamarquesa” do título. Faz sentido. O filme é 100% de Vikander.