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‘Tangerine’: humor e realismo trans

No filme “Tangerine”, Sin-Dee acabou de sair de uma curta temporada na prisão quando a amiga Alexandra conta, no banco da loja de donuts que frequentam, que seu namorado a traiu. Ao longo de um dia, as duas percorrem Los Angeles em busca de retaliação contra o namorado e a tal mulher, sobre quem a única coisa que elas sabem é que o nome começa com D. É uma história clássica de vingança e amizade. O fato de Sin-Dee e Alexandra serem mulheres trans é mais uma de suas características, não aquilo que as define. Diferente de outras produções com personagens trans, como “A Garota Dinamarquesa”, “Transparent” ou “Meu Nome É Ray”, não vemos a transição e sim um dia na vida que elas levam depois disso, com vários problemas, mas também muito humor, a pedido das próprias atrizes, que participaram do projeto desde o início.

Sean Baker, diretor do filme que estreou no Festival Sundance no ano passado e que tem estreia prevista para dia 4 de fevereiro no Brasil, não tinha roteiro ou ideia definida até conhecer Mya Taylor, que interpreta Alexandra, perto de sua casa. Seu último filme, “Starlet”, lançado em 2012, também era sobre uma amizade entre duas mulheres: a idosa Sadie e a jovem atriz pornô Jane, e foi a primeira inspiração para “Tangerine”. “Talvez o interesse pelo trabalho sexual não tenha deixado meu organismo, porque me senti atraído por um cruzamento famoso perto de minha casa em Los Angeles, na esquina de Santa Monica e Highland, conhecida por ser um distrito da luz vermelha para trans que trabalham com sexo”, me contou Baker.

Ali no cruzamento ele e seu corroteirista, Chris Bergoch, viram Mya pela primeira vez. “Ela nos impressionou de cara. Eu a vi do outro lado da rua e sabia que tínhamos que falar com ela”, lembra. Baker disse a Mya que pretendia fazer um filme e ela o ajudou apresentando várias de suas amigas, que foram entrevistadas pelo cineasta para ajudar a construir o projeto. Mas o filme só ganhou forma mesmo quando Kitana Kiki Rodriguez, a Sin-Dee, apareceu por lá. “No momento em que vi Mya e Kiki juntas sabia que tínhamos uma dupla dinâmica nas nossas mãos. Elas se complementavam, mas tinham um contraste. Chris e eu sabíamos que devíamos construir uma história com duas protagonistas para Mya e Kiki.”

Em cena, a Sin-Dee de Kiki é a mais exuberante. Com cabelo loiro tipo Beyoncé e uma roupa curta, desfila com confiança pela cidade em busca da tal garota — que não é trans, ainda por cima — que estava com seu namorado (e cafetão), chamando a atenção por onde passa. Alexandra é a voz da razão, que tenta conter a amiga enquanto se prepara para cantar num bar à noite, uma grande oportunidade. As diferenças de personalidade entre as duas são tão grandes quanto sua amizade. O tempo todo uma apoia a outra: Sin-Dee interrompe seu plano de vingança para ver o show de Alexandra, que retribui ao lhe oferecer a própria peruca quando a amiga é atingida por um copo de urina na rua.

O caso da urina, como outros eventos do filme, é inspirado numa história real. “Mya contou que isso aconteceu com algumas de suas amigas ou conhecidas”, diz Baker. A traição do namorado também tem um pé na realidade e veio de uma suspeita real de Kiki sobre seu relacionamento. “Pegamos isso e ficcionalizamos, vimos o que aconteceria se ela fosse atrás da mulher cisgênero envolvida no caso”, diz o diretor. “O processo de pesquisa nos ajudou a chegar num ponto em que nos sentíamos confiantes com o fato de que a ficção seria verdadeira e honesta.”

[olho]”Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades”[/olho]

Mas mesmo com o roteiro pronto, Mya e Kiki, ambas estreando no cinema, ficaram à vontade para improvisar, incentivadas pelo diretor. “Muitas vezes acho que o frescor de uma fala improvisada tem uma autenticidade que nenhuma palavra escrita pode ter. E em casos como ‘Tangerine’ existem gírias das ruas pras quais eu e Chris precisávamos de consultoria. Mya e Kiki nos falavam se o que tínhamos escrito era preciso ou não.”

Baker não considerou contratar atores que não fossem trans, ainda que fossem mais conhecidos, para participar do filme — caso de produções como “A Garota Dinamarquesa”. Num mundo ideal, um bom ator, diz, deveria ter a oportunidade de fazer qualquer tipo de papel. Um ator cisgênero poderia viver um papel trans e vice-versa. Mas o momento não é esse. “A situação triste é que pessoas trans têm uma taxa de desemprego que é o dobro da população em geral, e para pessoas de cor o desemprego chega a ser quatro vezes maior que a média nacional [dos EUA]”, diz. “Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades. Espero que no futuro, quando a igualdade for alcançada (pensamento positivo), cisgêneros e transgêneros poderão competir por esses papéis. Mas em 2016 acho que temos de fazer o que podemos para ajudar aqueles que a sociedade ignorou por tanto tempo.”

Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez em "Tangerine"
Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez em “Tangerine”

COM HUMOR

Além de emprestar suas histórias e suas palavras para Baker, Mya fez logo de cara dois pedidos importantes, que deram um norte para o filme. Primeiro, queria que a história fosse realista. “Ela disse que faria o filme se eu não segurasse a mão no realismo. Queria que eu capturasse a realidade brutal que as trabalhadoras do sexo trans enfrentam. Mesmo que fosse difícil de ver ou que não fosse politicamente correto”, conta.

A segunda demanda foi que o filme fosse engraçado. “Ela queria que ele apreendesse o humor que as garotas usam para lidar com as coisas. Fiquei abalado, porque ela me pediu para tentar um equilíbrio muito difícil, que podia dar muito errado. Mas quando avançamos percebi que fazer um filme abertamente político que só tratasse nossos personagens como vítimas seria condescendente”, diz. “Foi um momento importante na construção do filme e devo muito a Mya por me colocar na direção certa.”

“Tangerine” não esconde as dificuldades nas vidas de suas personagens. Alexandra leva um calote de um cliente e é chamada pelo nome masculino pela polícia, que se recusa a tratá-la como mulher, enquanto Sin-Dee é agredida na rua e começa a história saindo da prisão. Mas não é um filme triste. A fotografia, bem solar, com cores quentes e saturadas, ajuda a dar esse clima. No início, Baker tinha optado pelo contrário: tirou a saturação de todas as cores para deixar o filme com uma cara mais realista. “Mas assim que vi as imagens senti que algo estava errado. O estilo contrastava com as personalidades coloridas delas. Então fui pro outro lado e joguei as cores lá em cima. De repente pareceu certo.”

Vendo o filme não se percebe, mas “Tangerine” é uma produção que começou tão modestamente que teve de ser filmada inteiramente num iPhone. Baker não tenta disfarçar dizendo que foi uma escolha puramente estética, e sim orçamentária, pelo menos no início. “Mas tinha um instinto de que seria o jeito perfeito de fazer o tipo de filme de que eu gosto — gravado clandestinamente, socialmente realista, que mistura atores não profissionais, gente atuando pela primeira vez e gente experiente”, afirma. “O iPhone diminuiu as inibições e aumentou a confiança de quem normalmente ficaria intimidado com uma câmera tradicional. Acho que isso afetou tudo de uma maneira muito boa. Captei alguns momentos espontâneos que não teria conseguido com nenhuma outra câmera.”

A cara de filme profissional, e não amador, ficou por conta de uma lente que ainda estava em fase de protótipo de um grupo que arrecadava dinheiro em campanha de financiamento coletivo, acoplada ao telefone. Com essa lente, Baker conseguiu fazer com que a proporção entre altura e largura do vídeo fosse aquela que desejava para o filme.

O filme que começou pequeno, logo ficou grande. Foi um hit em Sundance no ano passado e as críticas foram bem positivas (o filme tem nota 96% no Rotten Tomatoes) e concorre agora a um dos principais prêmios da organização GLAAD (aliança de gays e lésbicas contra a difamação, na sigla em inglês). O desempenho de “Tangerine” deixou Baker contente. Agora, para seu próximo projeto — uma história para crianças ambientada na Flórida — diz que vai manter a mesma equipe, mas espera ter uma verba “bem maior”.