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O ídolo nipo-brasileiro dos anos 80

 

Recomendamos a leitura acompanhada desta mixtape produzida pelo pessoal do Suppaduppa. Boa viagem:

O chão está coberto por gelo seco simulando as nuvens. Várias telas de TV reproduzem cenas do mar, uma imagem do céu é plano de fundo, e uma banda com quatro integrantes usando paletós e camisas sociais em tons azuis e beges domina o palco. O vocalista tem uma voz suave e um penteado à la Tom Cruise no filme “Negócio Arriscado”. Seus movimentos de um lado pro outro formam uma espécie de dança sincronizada e o som é uma mescla de sintetizadores com jazz, o mais puro City Pop. O ano é 1986, o local é Tóquio. 30 anos depois, sem gelo seco e com uma réplica de um castelo japonês como imagem de fundo, em Curitiba, mas com a mesma voz e um penteado mais contido, me encontrei com Carlos Toshiki, o ídolo nipo-brasileiro que abrilhantou as paradas musicais japonesas dos anos 80.

Anônimo no Brasil e ídolo no Japão, Carlos Toshiki viveu no Japão por 13 anos, onde fez sucesso com a  banda 1986 OMEGA TRIBE. Foi presença frequente em centenas de programas de música e variedades, teve três álbuns no topo das paradas japonesas, além de diversos hits. Seu rosto estampou revistas e propagandas. Uma carreira pela qual ele possui muito orgulho. Meu encontro com Carlos aconteceu na Praça do Japão, em Curitiba. Assim que o encontro tento quebrar o gelo falando que todo mundo ao nosso redor estava jogando Pokemon Go ali na praça. Ele ri mas confessa não entender nada do tal jogo. Nos sentamos e Carlos começa a contar sua história, que tem início, naturalmente, na sua infância.

Nascido numa colônia japonesa em Maringá, Carlos foi criado de acordo com os costumes nipônicos. Seu pai era DJ da rádio da colônia e era conhecido por sempre tocar novidades vindas do Japão, desde músicas pops ao tradicional enka. Por este motivo, Carlos acabou criando um gosto pela música e pelo canto. Ele lembra que aos 9 anos, chegava do colégio e se trancava no quarto para cantar por horas. “O tempo voava”, fala com um sorriso saudoso. Como não sabia escrever os ideogramas japoneses, escrevia as letras das músicas da maneira que ele ouvia e as decorava. Seu pai começou então a notar o dom do filho para o canto e queria que ele se envolvesse nos concursos de canto que a colônia fazia. O pânico de Carlos, porém, era subir no palco e enfrentar uma plateia – apesar de também ser seu maior sonho. “Eu não gostava de cantar para as pessoas. Era um paradoxo. Eu gostava de cantar só para mim.” Para incentivá-lo, seu pai prometeu que o daria uma passagem para Tóquio caso ele fosse o campião brasileiro do Concurso de Canto.

Carlos me falou que a ideia de ir a Tóquio despertou nele o desejo de seguir um sonho que estava cada vez mais próximo. Primeiro, ficou em terceiro lugar no concurso municipal de Maringá. Depois tornou-se o melhor no Paraná. Ele tinha orgulho de falar para todo mundo que se ganhasse o concurso nacional, iria para o Japão estudar canto. Todos ao seu redor torciam pelo seu sucesso. “O universo conspira a teu favor, né? Quando você tem uma paixão as coisas começam a girar a teu favor, as pessoas te ajudam”, ele conta.

Gratidão é o termo que o Carlos citou inumeras vezes durante nossa conversa. E foi nessa vibe positiva que ele chegou ao concurso nacional e ganhou primeiro lugar como melhor cantor, em 1981, aos 17 anos. “Eu não sei se os jurados tiveram dó de mim, mas eu fui campeão”, diz, rindo.

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Carlos Toshiki mostrando uma das revistas japonesas dos anos 80. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
Carlos Toshiki mostrando uma das revistas japonesas dos anos 80. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

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Seu pai teve que pagar a promessa e assim Carlos finalmente viajaria para o Japão. Apesar da certeza de que iria viajar, ainda era incerta a maneira como viveria lá. O Brasil passava pela ditadura militar e não tinha nenhum acordo diplomático com o Japão. Financeiramente, era impossível enviar dinheiro do Brasil para lá. O sonho parecia distante – mas ao mesmo tempo muito próximo. Mais uma vez, rodeado de positividade, Carlos se apegou às boas energias e embarcou para Tóquio. Depois de 42 horas de viagem e 3 escalas, chegou ao Japão, onde viraria uma estrela nacional. Mas não foi tão fácil assim.

Chegar em Tóquio foi uma explosão de emoções e alegrias para Carlos. Foi lá que ele descobriu novos estilos musicais e se aprofundou em artistas que antes conhecia muito pouco por conta da ditadura militar – ele era fã dos Beatles mas nem imaginava toda a grandiosidade em torno da banda, que no Brasil ficava limitada a tocar uma outra música na rádio. Não tinha mordomia ou luxo algum, se alimentava de amostras grátis de supermercado e amendoim porque “enche a barriga, né”. Sofreu com o preconceito de ser um estrangeiro dentro da sua terra mãe – os japoneses não aceitavam o fato de Carlos ser um nipo-brasileiro. A comunicação também não ajudava: seu japonês soava ultrapassado ao tentar conversar com as pessoas. A solidão assolou sua vida. Porém, a música e o sonho de ser cantor o mantinham esperançoso. Contanto que ele tivesse um microfone e uma caixinha de som, ele ficava feliz.

Foi no seu emprego como lavador de pratos – em que ele ganhava menos por ser brasileiro – que começaram a surgir as oportunidades musicais. Por pedido de seu chefe, começou a cantar no karaokê durante os intervalos. Aos poucos, Carlos começou a ficar conhecido entre os clientes. Algumas pessoas passaram a frequentar o restaurante só para ouvi-lo cantar e uma delas o convidou para gravar comerciais de rádio. Pela grana “fácil”, ele topou e gravou seus primeiros jingles. Ao ouvir sua voz na rádio, seu orgulho em cantar só aumentava.

Carlos Toshiki em Curitiba. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
Carlos Toshiki em Curitiba. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Durante os três primeiros anos de sua estadia em Tóquio, dedicou seu tempo entre os bicos que fazia, as aulas de canto e gravação de demos e ensaios com banda. Após inúmeras tentativas de entrar em uma gravadora e desenvolver sua carreira musical, Carlos pensou em desistir – achava que tinha chegado ao seu limite e precisava dar um rumo na sua vida. Decidiu que tentaria mais um ano e, caso não conseguisse, seguiria sua vida em uma nova carreira. Três meses depois, após ouvir uma das fitas demo do Carlos, o produtor Koichi Fujita queria conhecê-lo. Fujita era o produtor da banda OMEGA TRIBE, que acabava de perder seu vocalista e estava a procura de um novo. “Timing perfeito”, segundo o Carlos. Ele fez o teste e de cara gostaram do resultado. E em pouco tempo, Carlos Toshiki tornou-se o vocalista do 1986 OMEGA TRIBE, rebatizada pela nova formação.

Carlos me contou que a banda tinha uma imagem de veraneio, resort, uma estética bem tropical. E, por isso, o produtor decidiu levá-lo ao Havaí para poderem se conhecer mais e imergir Carlos na estética do grupo. Entre uma conversa e outra, Carlos comentou que achava engraçado que em japonês o numeral 1000 se fala “sen” e no Brasil “cem” é 100. A partir daí, o produtor teve a ideia para o primeiro single de Carlos com a 1986 OMEGA TRIBE: “Kimi wa 1000%” (você é 1000%), uma brincadeira entre Brasil e Japão. Carlos então gravou a música que consolidaria sua carreira e que, mais tarde, seria eleita como uma das músicas da geração. Mesmo sem entender muito o japonês da letra, Carlos gravou “Kimi wa 1000%” focando na energia que colocava em cada melodia. O single, que marca a estreia de Carlos como vocal do grupo, foi lançado em maio de 1986 e virou o tema da novela Doyou Grand Gekijou, que passava em horário nobre da televisão japonesa.


Abertura da novela Doyou Grand Gekijou com a música Kimi Wa 1000%

1986 foi um ano importante para o Japão. Marcou o início de uma bolha econômica pós-guerra, época em que o dinheiro rolava solto e os japoneses consumiam bens de consumo como nunca antes. Musicalmente, era o auge do City Pop, gênero musical que mesclava jazz, sintetizadores, rock adulto e mais um monte de referência absorvida da cena musical americana. O City Pop e a bolha econômica estavam intimamente ligados. O gênero musical representava a imagem urbana e tecnológica pela qual a bolha econômica estava guiando o “novo Japão”. Nesta época, diversos músicos e bandas surgiram (na época chamados de idol), e a música era um negócio super rentável. Novos programas de música surgiam todos os dias, cada vez mais glamurosos.

Recentemente, a internet reviveu o City Pop. O vaporwave, gênero musical que tem como base o uso de samples de músicas oitentistas misturado a outros beats, permitiu o conhecimento de diversos artistas japoneses. Até o Ed Motta tem revivido o som através das suas mixtapes. O Youtube também é uma fonte preciosa de músicas city pop. É impressionante a quantidade de vídeos gravados dos programas de música da época. Eu mesmo conheci o Carlos Toshiki e a OMEGA TRIBE através do Youtube. E isso foi um choque pra ele! Como era possível que eu, aos meus 24 anos, recifense, sem descendência japonesa conhecia uma banda que fez sucesso 30 anos atrás?

“Kimi wa 1000%” foi lançada e atingiu o 17° lugar no Oricon, parada musical japonesa. Com isso, foram chamados para se apresentar pela primeira vez na televisão, no programa mais importante da época, The Best Ten. Como o nome indica, o programa chamava os 10 melhores artistas da parada musical e fazia um segmento chamado de Spotlight, mostrando as apostas da música. Foi nesse segmento que o 1986 OMEGA TRIBE fez sua estreia. Em poucos dias, a música pulou de 17° para 7°, até que chegou ao 2° lugar nas paradas.

Primeira apresentação na TV que Carlos fez no programa “The Best Ten” 

Carlos lembra perfeitamente do dia após sua primeira apresentação na TV. “Eu saí na rua no dia seguinte e as pessoas começaram a falar meu nome, a falar: ‘Olha lá, o Carlos da ÔMEGA TRIBE’!” Da noite pro dia, Carlos tinha virado um idol. Ele brinca que sua história foi igual ao conto da Cinderela: ele dormiu como aspirante a cantor que lavava pratos em restaurante e acordou como um astro da música japonesa. Depois de três anos persistindo o sonho, finalmente conseguiu alcançá-lo. A solidão que ele sentia, entretanto, intensificou. Repentinamente, começaram a surgir inúmeros “amigos” e parentes que nunca tinham procurado o Carlos em seus quatro anos de Japão. O dinheiro não faltava, assim como as amizades por interesse. Sua essência, entretanto, continuava a mesma: contanto que pudesse cantar e expressar sua paixão, tudo estava bem.

A bolha econômica unida às tradições japonesas aumentou a pressão sobre os adolescentes da época. Eles precisavam ser os melhores na escola, na universidade e no trabalho. A concorrência era acirrada e, aqueles que ficavam na margem da excelência, se entregavam ao desespero. O suicídio era uma saída comum dessa situação. A música teve um papel importante para os jovens dessa época pois servia como válvula de escape da vida real. De alguma forma, ela ocupava a mente e evitava pensamentos perturbadores. Carlos percebia a importância que sua música e imagem tinham sobre os fãs. “Eu descobri que a musica é um instrumento que faz com que você entre no coração das pessoas na maior naturalidade”, comenta. Agradar os fãs era sua maior motivação.

O arquivo pessoal de Toshiki com matérias da época de sucesso. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca
O arquivo pessoal de Toshiki com matérias da época de sucesso. Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Sua conexão com os fãs era o elo mais valioso para ele. Diariamente, Carlos recebia cartas das fãs comentando a paixão por ele e também relatando as dificuldades da vida adolescente nos Japão dos anos 80. O sentimento dos fãs inspiravam as composições de Carlos, que de alguma maneira queria retribuir o amor e admiração e ajudá-los a superar as dificuldades, assim como ele estava tentando superar a própria solidão. “Era uma relação de troca.”

Por 5 anos, a 1986 OMEGA TRIBE lançou 6 álbuns, 12 singles, mudou de nome para Carlos Toshiki & OMEGA TRIBE, se apresentou em centenas de programas, virou um dos hinos da geração. Álbum após álbum, os interesses da gravadora e os de Carlos iam se contrastando. Carlos queria seguir sua paixão, fazer músicas que tocassem seus fãs, mas a gravadora da banda não conseguiu acompanhar o amadurecimento dos fãs e começou a forçar Carlos – que na época já tinha seus 27 anos – a fazer músicas cada vez mais adolescentes e com temáticas que não condiziam com seu momento de vida. “Hoje eu vejo que a música é modismo. Se você não cantar de certo modo, você não vende. Música não é arte, é comércio.”. Esse foi um dos motivos do fim da banda, em 1991.

O ano também foi marcado pelo “estouro” da bolha econômica. Com isso, a economia japonesa entrou declínio, influenciando diretamente no modo de vida da população e na música ouvida. O City Pop, que representava toda a prosperidade da bolha, tornou-se obsoleto e ultrapassado. O som não representava mais o Japão contemporâneo. Este novo momento foi crucial para os artistas que marcaram os anos 80. Grande parte deles decaiu das paradas musicais até desaparecer no ostracismo. Carlos Toshiki, após o fim da banda, decidiu seguir carreira solo. Lançou três álbuns solos que mesclavam músicas em japonês e português.

Em certo momento da entrevista, Carlos decidiu mostrar seus vinis, revistas e CDs que guardava numa mala. Após folhear várias pastas com recortes de revista e nos mostrar com orgulho seus vinis, Carlos nos conta qual foi sua maior realização profissional nos seus 11 anos de Japão: entrevistar Zico e Ayrton Senna.

Assim como Carlos, Zico e Ayrton eram dois brasileiros que o Japão idolatrava. Senna, conhecido no Japão após o circuito de Suzuka em que conquistou três títulos, era símbolo de conduta e profissionalismo – princípios marcantes na cultura japonesa – e encantava pelo seu carisma e humor. Zico, por sua vez, conhecido pelos japoneses como “Deus do Futebol”, jogava no Kashima Antlers e ajudou a consolidar a paixão local pelo futebol. Ele abre o Youtube no seu celular e nos mostra a entrevista com muito orgulho.

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Foto: Anna Mascarenhas/Risca Faca

Em 1995, após operar de hérnia de disco, Carlos decidiu voltar para o Brasil e deixar a carreira musical de lado. A paixão que sentia pela música tinha se transformado em um peso e cantar já não o satisfazia. De volta ao Brasil, tocou o restaurante que a família tinha em Curitiba e, atualmente, trabalha em uma biofábrica, onde reencontrou a paixão que sentia apenas pela música. Após ser um astro no Japão, Carlos é hoje um dos maiores especialistas em alho do Brasil. Mas sua carreira como artista não teve fim.

Neste ano, 30 anos depois do lançamento de sua primeira música, Carlos foi convidado pela sua banda de apoio para fazer uma turnê de comemoração no Japão. Nervoso com a ideia de voltar aos palcos e retomar a carreira que estava parada há mais de 15 anos, mas empolgado com a ideia de encontrar novos e antigos fãs, Carlos aceitou. Quando perguntei sobre suas expectativas ele respondeu, bem sincero: “Eu não faço ideia! A turnê surgiu do nada e foi toda organizada pela banda de apoio. Eu sei que estou empolgado por que vai ser um show com o Carlos de 52 anos mas com a energia que eu sentia no passado”. A turnê vai ter 12 shows – e dois deles, em Tóquio e Yokohama, tiveram os ingressos esgotados no primeiro dia de vendas. É um novo momento – agora misturando nostalgia, gelo seco, passado e presente – para Carlos ser um ídolo no Japão.

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Comportamento

A invasão do K-Pop

 

“AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”

Se tem uma coisa que você precisa saber sobre K-pop, a música pop produzida na Coreia do Sul, é que o fanatismo obcecado dos fãs se expressa em gritos. É início de noite da quinta-feira, 21 de julho, e o Teatro Gazeta, na avenida Paulista, está lotado de adolescentes, sobretudo meninas, segurando um mar de varinhas de neon.

No palco, sucedem-se 17 grupos covers de dança e canto selecionados para o 3º Korean Pop Festival. O prêmio geral é cinco mil reais e o de cada categoria, três mil. Mais importante: os vencedores poderão disputar uma vaga para competir na final mundial na Coreia do Sul.

Cada artista que pisa no palco, “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”, cada grupo, “AAAAAAAAAAAAAAAAA!”, cada mensagem dos apresentadores “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”, é respondida com uma manifestação ululante das fãs.

No palco tem uma menina que, meu Deus!, o que é isso? É a Pammie interpretando Arirang Alone, da cantora So Hyang, com uma voz tão imponente que se impõe sobre o grito da plateia, atingindo uns agudos lá pra cima na escala. Gente, ela é tudo! Canta em coreano, apesar de não ter completado nem o primeiro módulo do idioma. Ela não é nem cantora profissional, mas auxiliar administrativa em uma empresa que vende doces e salgados. Se não fosse o K-pop, o nome dado ao fenômeno cultural coreano, ela não estaria cantando. E esse prêmio é importante, porque ela ganhou o geral do ano passado, mas não foi pra Coreia, embora merecesse muito! Todos ali sabem quem é Pamella Raihally.

Sabia que o Brasil já teve uma banda que tentou imitar o pop coreano? Era a Champs, que apareceu na Ana Maria Braga (ela chamou de Champers, ai…), ganhou 600 mil likes no Facebook, mas acabou e um integrantes do grupo virou YouTuber e já tem 70 mil seguidores. O Iago, lindo!, virou ex-Champs, seguiu dançando e tem uma banda cover chamada Allyance, que está agora reunida nas coxias de teatro. A apresentação da cantora Mônica Neo, que veio depois da Pammie, está acabando. Eles estão ali há um minuto abraçados e, de repente… o “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA” invade as coxias. O nome da banda está no telão. Todos sabem que é a banda de Iago Aleixo.

O grito, aqui, não é o símbolo do desespero, mas da tomada de assalto da cultura coreana em segmentos dos jovens brasileiros, num fenômeno chamado Hallyu — a nova onda avassaladora que veio da Ásia e abocanhou os jovens da classe C.

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Crédito: Anna Mascarenhas

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A infiltração do K-pop no Brasil pode estar à margem da sua rede de contatos e até da sua timeline, mas ela é a parte mais expressiva do soft power sul-coreano por aqui. Pelo leste da Ásia, os produtos culturais do país se espalharam com a força de uma política de Estado que deu certo. O termo Hallyu precisou ser criado por jornalistas chineses para explicar a influência cultural do Estado vizinho.

Por falta de acesso aos mercados dominados pelas grandes gravadoras e incapazes de enfrentar a pirataria na China, as empresas coreanas abdicaram do CD e apostaram no que acabou por se tornar a MTV dos anos 2010, o YouTube. Deu certo? Bom, lembra do Psy? A música Gangnam Style, que explodiu em 2012, não passava de uma piada interna, uma ironia a uma cultura musical bem estabelecida — até hoje nenhum vídeo superou sua marca de dois bilhões de visualizações.

Os clipes das bandas mais famosas entre os fãs costumam ter um ar mais romântico, a um só tempo atrativo e infantil, no qual a beleza dos artistas parece ter saído de um anime. Existe um grau de sexualidade latente, mas sublimada nas atitudes dos músicos jovens: sempre educadinhos e fofos; nunca machos alfa pegadores.

Pouco a pouco, via YouTube e bordas da cultura anime, o K-pop começou a fincar raízes bem no momento em que a classe C se expandia no Brasil e procurava novas referências culturais. Mesmo exóticas, elas se acomodaram a valores mais conservadores, evangélicos, acompanhadas por sonhos de luxo e glamour. Alessandra Vinco começou como fã em 2011 e agora pesquisa o tema pela Universidade Federal Fluminense. Para ela, K-pop é um gênero híbrido: se apropria de elementos globais, mas preserva valores confuncionistas, como a preservação da família, o respeito ao próximo e o resguardo da vida sexual.

Uma pesquisa do centro cultural coreano apontou que o número de fãs no Brasil era 220 mil pessoas. A sensação é que o número é bem maior. A maior prova, para além dos diversos sites e festivais que cultivam o nicho, é que o programa do Raul Gil vai estrear um quadro chamado “Quem sabe, dança K-pop” no dia 13 de agosto. “Nesta nova atração”, diz o locutor do vídeo promocional, “atravessamos o planeta para trazer um gênero musical repleto de batidas emocionantes e coreografias absolutamente viciantes”. Grupos cover podem se inscrever no site do SBT. O prêmio será de 10 mil reais.

Já os aspectos demográficos têm dados um pouco melhores. Em 2015, Tiago Canário, um doutorando no departamento de Cultura Visual da Korea University, fez uma pesquisa online na qual 2.764 pessoas responderam a um questionário sobre o cultura corena no Brasil. Dessas, 91,3% se identificaram como mulheres, 8,36% como homens. No total, 95% dos fãs de K-pop tinham entre 10 e 29 anos. Apenas 18 pessoas se identificaram como descendentes de coreanos.

Ricardo Pagliuso Regatieri, um pesquisador brasileiro do departamento de sociologia da Korea University, escreveu em artigo ainda não publicado que os fãs paulistas vêm de regiões periféricas e semiperiféricas da cidade e arredores. Resultados preliminares de outra pesquisa online feita com 635 pessoas mostra que 37% dos fãs têm renda familiar entre R$1.751 e R$3.500 por mês e 26% têm renda familiar mensal de até R$1.750. Ou seja, boa parte se enquadra dentro da nova classe C brasileira.

No artigo, Regatieri oferece uma interpretação do fenômeno: o K-pop se conecta ao processo de mobilidade social, usando a popularidade da internet no país como principal combustível. No processo, os fãs do estilo no país buscam uma ruptura com os modelos culturais de seus pais e avós. A fábrica de sonhos do K-pop, ele escreve, oferece um repertório de modernidade centrado nos prazeres do consumo, da moda e do glamour da vida na cidade.

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Pammie em ação. Crédito: Anna Mascarenhas

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Pammie e Iago — a cantora e o youtuber — são parte dos dois mundos. Moradora do limite entre São Paulo e Diadema, ela começou a cantar pequena, nos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus. Logo, o talento foi reconhecido e começou a ser chamada para se apresentar, de graça, em casamentos dos fiéis. Em 2010, no último ano da escola, viu o primeiro clipe de K-pop pela internet — era GARAGARA GO!!, da BIGBANG.

“O K-pop foi natural pra mim. Cheguei a mostrar para algumas amigas, mas elas não ficaram tão fãs como eu. A gente ensaiava numa sala vazia para se apresentar nas festas da escola”, me disse por telefone durante o seu intervalo do almoço na empresa onde trabalha como auxiliar administrativa, no Morumbi.

Pamella, 23, é um tipo de talento natural. Chegou a fazer aulas de canto depois que alguns professores elogiaram sua performance ao interpretar uma música da Rihanna em coreano. Não chegou a concluir o curso, contudo. Eram tempos de IPI reduzido. “Na época, meu pai queria comprar um carro. Como era ele que pagava pra mim, e a escola era muito boa e cara, eu sacrifiquei a minha aula para podermos comprar. Depois, não voltei mais.”

Uma das juradas do 3º K-pop Festival, a cantora lírica Cecília Massa, acha que Pammie tem potencial para ser uma cantora de jazz. “Vejo nela um altíssimo nível vocal, capaz de fazer variações muito rápidas na voz. A primeira vez que a escutei ela me lembrou da Whitney Houston”, me disse numa tarde do final de julho em um café em Santa Cecília.

Para ela, Pamella está escutando um repertório com melodias simples e harmonia básica. “Ela tem um material maravilhoso, mas é uma escolha dela”, disse sem nenhum tom professoral. “Seguir cantando é uma felicidade que ela pode ter e dar ao outros”.

Acontece que Pammie fica num cruzamento em termos de mercado e talento. É boa demais para o que faz sucesso na televisão, mas tem poucas referências de caminhos a seguir e cantoras em quem se inspirar. “Você não consegue viver da música aqui no Brasil”, me disse Pammie. “Já pensei em seguir mas é difícil. Acho que se eu não tivesse conhecido o K-pop, hoje não estaria cantando.” Uma vitória no concurso é o estímulo para fazê-la seguir o que lhe dá mais prazer.

As empresas coreanas conseguiram criar uma tecnologia cultural capaz de criar boys e girls bands em uma sequência quase industrial. Os futuros artistas entram como trainees por volta dos 15 anos e saem capazes de atuar, cantar, dançar etc. Existe o V-pop (Vietnã), o T-pop (Tailândia) e J-pop (Japão). E por pouco não vingou por aqui um B-pop.

Iago Aleixo, hoje com 20 anos, foi uma cobaia da tentativa de reproduzir o modelo no Brasil. Aos 17, foi selecionado por um produtor coreano e passou a morar com mais cinco pessoas no centro de São Paulo. Nascido no Rio, hoje ele mora com a mãe em Osasco.

Nos encontramos no café do Centro Cultural São Paulo, que se tornou o ponto de encontro dos k-poppers, um pouco antes de um ensaio da sua banda, a Allyance, para o festival que ocorreria na semana seguinte. Antes da conversa, ele entrou no bar e saiu com uma garrafa de 600ml de refrigerante. Tentou abri-la; não conseguiu. Deixou-a sobre a mesa e contou sobre sua experiência no processo de se tornar um b-popper em 2013.

[olho]”As meninas têm que te querer e os meninos têm que querer ser você”[/olho]

“Era um projeto da JS Entertainment, empresa coreana com foco no Brasil. Depois da seleção, tive que deletar as redes sociais e criar novas como se eu fosse uma nova pessoa. Praticamente, nascer de novo. Eu tinha muitos tweets antigos, então, tipo, se a pessoa fosse nos arquivos poderia ver alguma possível besteira que falei quando era pequeno. Daí isso pesaria agora. Eles excluem toda nossa vida passada, só deixam a mostra o que querem.” Tentou abrir novamente a garrafa. Não conseguiu.

“Na Champs, eu era o mais novo, por isso tinha que mostrar uma pureza. Tinha que ser um fofinho, sem barba, meu cabelo tinha que ser liso, jogado à Justin Bieber. Não podia usar óculos, pra visualmente ficar mais bonito, e tinha que ser um corpo definido pra criar mais interesse. Ou seja, tinha que ser um menino perfeito. A empresa cria a ideia do desejo. Eu fiz parte disso, desse meio. Nosso empresário falava ‘vocês têm que fazer a menina desejar vocês para se elas se tornarem fãs. As meninas têm que te querer e os meninos têm que querer ser você’”. Mais uma tentativa com a garrafa. Nada.

De óculos, com uma barba ruiva de poucos dias, ele fala com empolgação do treinamento. De seus lábios saem palavras que relembram a antiga rotina com um leve sotaque carioca: de segunda a domingo, da manhã à noite, musculação, canto, coreografias, aulas de hip-hop, ballet e jazz. Sábado era dia de treino livre e teatro. Domingo o ensaio era até as 15h, depois vinha a folga. Fora moradia, não recebia nada. “Querendo ou não, ele [o empresáio] tava gastando bastante dinheiro.”

Por fim, gravaram o clipe na Coreia e estrearam no Brasil. Receberam boa cobertura da imprensa, mas a Champs não deu certo naquele momento. Iago acha que foi má administração. Porém, o sistema do K-pop se baseia em baixas margens de lucro. Como a música é distribuída de graça pelo YouTube, o sistema de vídeos do Google fica com a maior parte do dinheiro da publicidade online. Se a base de fãs não dispara, os shows e outros produtos não compensam o investimento.

Quando viu que não daria certo, fez o que boa parte dos jovens deseja hoje em dia: criou um canal no YouTube. Começou com duas mil pessoas e agora tem 70 mil seguidores. Espera acabar o ano com 100 mil. Diz que não está mais vendendo um personagem, mas o Iago real.

“O Iago do Champs era uma pessoa para ser desejável e eu não quero ser desejável. Quero ser admirado. Quero que as pessoas olhem pra mim e falem ‘caraca, olha o que ele tá fazendo com estilo que eu gosto’. Não quero ser o estrelinha, o famosinho. Quero ser uma pessoa que é parada na rua por alguém dizendo que gosta do meu trabalho.” Ele pega a garrafa, crava os dentes molares na tampa verde. Contrai os olhos, gira a garrafinha com as mãos e tssssss. Consegue abri-la. Toma um gole e vai encontrar os colegas para o ensaio da música Fly, da banda GOT7.

Para ele, vencer o festival significa, além do gosto do prazer de se sentir um k-popper e do prêmio para pagar os custos figurino, faz parte de uma estratégia para voltar à Coreia do Sul e ajudar a turbinar seu canal no YouTube.

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Iago (à frente, de óculos) e sua trupe do Allyance. Crédito: Anna Mascarenhas

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Na longa fila que se forma nos arredores do Teatro Gazeta, centenas de adolescentes aguardam para entrar no festival de covers de K-pop. Um dos poucos adultos, o guarda civil Hélio Marques, 52, acompanha as três filhas. “Vim por causa da minha menina, que escuta muito, muito. Ela sabe até o que o menino come”, diz sem brincar.

Antes do show, encontro com Pamella e Iago. Ela, bem maquiada, de vestido longo floreado e Havaianas, está insegura, com um pouco de medo por causa da dificuldade da música. Ele, mais profissional, ainda está sem o figurino. Conta que no último ensaio, dois dias antes, repetiram toda a dança 25 vezes. Eles tiram fotos e voltam para acabar de se arrumar.

O teatro está lotado. Os cerca de 50 competidores ficam no mezanino, à esquerda de quem encara o palco. Dá pra sentir a expectativa e a tensão. Iago, já com o figurino, fica filmando e tirando fotos com os amigos. Há grupo de cinco meninas vestidas com o que parece ser um uniforme das paquitas. Duas delas ensaiam alguns passos juntas. Pamella está sentada com o celular na mão, de cabelo solto. Está ao lado de outra cantora, com a qual troca algumas palavras. Fala com outras pessoas, mas a vida de cantora parece mais solitária.

Não só pela música, mas todos estão agitados, afinal é o principal momento pelo qual esperaram e treinaram. A recompensa é grande. Pelas regras do evento, há duas vagas para disputar a chance de ir pra Coreia. Se, por exemplo, o canto vencer o prêmio principal, a outra vaga é de quem vencer na dança.

Os participantes têm camarins, garrafas de 1,5 litro de água e esfihas do Habibs à vontade.

O primeiro competidor, Davi Nogueira, senta num banquinho e com violão em mãos, apresentada uma música de Roy Kim.

“Boa noite”, diz. A plateia responde: “AAAAAAAAAA!”

Antes de começar a tocar, uma menina atrás de mim grita: “Arrasa, viado!”

Na sequência, várias bandas e competidores tomam o palco. Os momentos mais sexualizados das coreografias são os que arrancam mais gritos. Por vezes, os berros são tão fortes, constantes e esganiçados que se sobrepõem à voz das apresentadoras.

Os artistas se sucedem até que às 20h14 chega a vez de Pammie.

Perto dos demais, ela parece uma cantora de ópera. Das coxias, dá pra ver que ela transpira presença de palco, segura o microfone com uma mão e despeja toda sua potência sonora. É uma apresentação elegante — recebe mais aplausos do que gritos. Ao sair, bebe três copos d’água. As mãos tremem. Não consegue dizer muito além de “tô nervosa”.

Em seguida, há outra apresentação. O grupo de Iago fica na lateral do palco e se prepara para entrar. Todos os membros se abraçam e formam um círculo. Iago fala algumas palavras de motivação. Ficam assim por mais ou menos um minuto. A cantora que está no palco, Mônica Neo, encerra a apresentação. Iago está sem óculos. O círculo se desfaz e eles se dão uns tapinhas de apoio. O nome do grupo aparece no telão e eles entram no palco para atender ao chamado da orquestra de berros. Do backstage, de uma visão lateral, a coreografia parece perfeita. Ao final, os gritos, sempre eles, invadem a coxia. Os integrantes saem em duplas em silêncio. Recebem elogios dos grupos que esperam para se apresentar. Iago põe os óculos.

Longe do palco, depois de um longa escadaria que leva a um espaço atrás no mezanino, um dos dançarinos, Paulo Fraga, chora muito. Toma água tremendo. Iago reúne todos, formam um novo círculo e ele diz: “A galera não parou de gritar! Não importa quem errou. Tô muito orgulhoso desses quatro meses de trabalho”.

Crédito: Anna Mascarenhas
Allyance no palco. Crédito: Anna Mascarenhas

Eu volto para a plateia e sento em outro lugar. A menina ao meu lado, de blusa e meia calça preta, saia rosa um palco acima do joelho, usa óculos redondo de acetato. Ela pula na cadeira, chacoalha a varinha de neon, grita com força, descansa e se abana.

O anúncio dos prêmios sai pouco tempo depois da última apresentação. No palco, estão reunidos todos os competidores. Das coxias, o áudio fica abafado, mas descubro que a Pammie é a número um do canto. O Allyance ganha na dança. Venus, um cover de dança de 10 meninas, é o primeiro geral. Iago ganha o dinheiro, mas não terá a chance de competir na Coreia. Todos se abraçam, perdedores e vencedores. Mas quem fica para a foto são só os vencedores.

Mais calma, Pammie diz que o retorno do áudio estava distante e por isso não conseguia saber se tinha ido bem. No olho escuro, negro, quase sem diferença entre íris e pupila, só se vê o brilho do reflexo das luzes. Várias pessoas a parabenizam. Alguém comenta: “Agora tem que deixar as amiguinhas ganharem”. Ela sorri amarelo — é uma menina tímida, não uma artista.

Conversa com Cecília Massa, uma das quatro juradas. Ela está dizendo que a música é muito difícil, mas que existem caminhos profissionais, com mais consciência vocal. Fala de um jeito educado, preocupado.

“Você faz aula?”, pergunta a jurada.

“Não.”

“Você canta música brasileira?”

“Não, mais internacional.”

“Você tem presença, mas tem que ouvir grandes intérpretes internacionais e nacionais.”

“Se não fosse o K-pop, eu não estaria cantando.”

“Mas tem um mercado, sim. Não é o da TV ou que aparece na grande imprensa, mas existe um outro mercado. Na internet, em editais…”

A seguir, encontro com Iago. Está sério, mas age como um profissional. Elogia as concorrentes, fala do esforço do grupo do prêmio, mas sabe que não ganhou o que queria. Assim que para de falar comigo diz a um colega: “Nossa!, que raiva, velho. Vídeo filho da puta!” Ele atribui a derrota ao vídeo enviado na pré-seleção dos competidores.

Os demais integrantes do Allyance reforçam que ficaram felizes pelas concorrentes da Venus, o que parece sincero. Mas há uma melancolia no ar. Iago está com o espírito desinflado, o olho abaixou, o sorriso ficou mais profissional. É uma vitória manca.

Todos saem do mezanino e vão para o saguão do teatro, onde artistas e público se misturam. Dezenas de jovens estão chupando Melona, aquele picolé retangular verde, que é coreano, vendido na Liberdade, e que foi distribuído de graça no final do evento. No saguão, Iago tira fotos com várias fãs sempre da mesma maneira. Sem sorrir, faz um gesto comum entre coreanos — um V lateral com a mão esquerda, a mesma que segura um pacote de salgadinhos.

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O novo mundo de Mahmundi

Marcela Vale trocou os chinelos na areia pelos sapatos no asfalto. Desde sua recente mudança para São Paulo, a cantora carioca está feliz de uma forma diferente. Abre a janela, repara nos prédios, contempla as pessoas e suas relações. A mudança geográfica, afinal, não veio só. Coincidiu com a chegada de seus 30 anos, uma transformação mais íntima – e com o lançamento de seu primeiro álbum.

Mahmundi é seu nome. Tanto do disco, como do projeto, como da cantora. O termo tem diversos significados. “Eu me tornei Mahmundi porque acabei compreendendo melhor quem eu era. Não é a projeção de um personagem”, define. “É um processo de entendimento enquanto indivíduo.”

O álbum nasce dessa autopercepção artística. Em um processo de imersão, sua casa no Rio de Janeiro tomou as formas de um estúdio em janeiro de 2015. A produção foi feita por ela mesma. O resultado é um compilado de canções que lhe agradavam, algumas inclusive já publicadas. “Quase uma mixtape”, em suas palavras.

[olho]“Eu me tornei Mahmundi porque acabei compreendendo melhor quem eu era”[/olho]

A comparação com o retrô das fitas cassetes caseiras é adequada. Isso porque Mahmundi tem uma pegada oitentista que não é intencional, mas é natural dado o ressurgimento dos anos 1980 na cultura pop. Essa é sua inspiração: aquilo que escutava nas rádios ou nos discos que comprava, “de Calypso a Phil Collins, tudo que soa bem, que é confortável, que é bom”.

Foi assim, aliás, que ela aprendeu música: a partir daquilo que era ouvido e cantado pelas pessoas. Desde a descoberta musical com o gospel durante a pré-adolescência no bairro de Marechal Hermes, periferia do Rio; até o trabalho como produtora musical da casa de shows Disco Voador.

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“Não quis direcionar para essa ou aquela época, para São Paulo ou para o Rio de Janeiro. Acho que consegui unificar ali um sentimento do mundo. Tem piano e sintetizador; tem o trap de Wild, a refrescância de Hit, a volta de Calor do Amor”, diz. “Quis fazer canções boas o bastante para você me ligar e batermos esse papo sobre música.”

Sua busca por algo intimista neste primeiro trabalho não foi um processo solitário. Ao contrário, contou com olhares alheios como o de seu amigo Hugo Braga, o Yugo, pesquisador musical que está por trás da direção de seus clipes e do visual do álbum. “Foi alguém que olhou para mim quando eu não me via”, lembra ela.

A grande vitória de Mahmundi, para ela, é que seu som esteja tocando em fones de ouvido mundo afora, sua intenção desde o início. Se, há cinco anos ela começava em sites MySpace e Soundcloud; agora ela lança sua obra em serviços de streaming e no YouTube. Muito disso é possível pela direção artística de Carlos Eduardo Miranda, acostumado a trabalhar com artistas independentes no selo Stereomono.

Marcela, assim, fica livre para desenvolver sua criatividade. E Mahmundi se beneficia disso. Seu processo de composição, por exemplo, é próprio. Como toca mais do que escreve, suas letras vêm depois da composição melódica. Assim, Mahmundi é um álbum que fala de amor, verão e mar de forma polifônica. Tanto na voz quanto na melodia.

“O objetivo do meu trabalho é que ele se comunique com as pessoas. A mudança pra São Paulo me deu esse olhar sobre o indivíduo. Eu posso estar aqui, mas sempre projetei minha música para ser de qualquer lugar.”

Talvez por isso ela diga que sua “alma continua com o pé na areia” mesmo com a chegada do (fraco) inverno paulistano. “Acho bonito como os espaços estão sendo apropriados aqui em São Paulo. Os grafites, os estudantes ocupando as escolas…”

Enquanto descobre uma nova cidade, Marcela não se preocupa com o tempo. Sabe que está em trânsito aqui, ainda quer ir para Portugal, para o Japão, para o Nordeste. Na bagagem, tem material e interesse em novos timbres. “Quem sabe não lanço um disco de pagode”, ela ri. “Mahmundi é caminhada. Mas a música é o centro disso tudo. E, sem música, eu não estaria em nenhum lugar.”

Mahmundi toca no Festival Path, neste fim de semana, em São Paulo. Clique aqui para mais detalhes.

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Música

Vida longa ao CD

Primeiro, a má notícia para os CDs: segundo o último relatório da Federação Internacional da Indústria Fonográfica, divulgado em abril do ano passado, as vendas de discos físicos caiu 8,1% em 2014. O Brasil não é exceção à regra: se em 2013 a venda de CDs rendeu 185,7 milhões de reais, no no ano seguinte o valor foi 14,4% menor: 159 milhões (no período anterior a queda havia sido semelhante: 15,5%). Mas números não são tudo na vida, e apesar de o CD já ter vivido dias melhores, há uma parcela de fãs que não abre mão do formato, que não tem a aura retrô do vinil, nem a praticidade dos serviços de streaming.

Por influência da família, pelo prazer de ter o encarte na mão, por achar que o som é melhor ou pelo prazer de ver a coleção crescer, os motivos citados para explicar o apego ao formato criado nos 1980 variam. O bancário Emílio Pacheco, 55, é desses que não abandona o barco: desde que começou a comprar CDs, em 1989, nunca mais trocou de formato. “Sou fã de carteirinha do formato compact disc, não vejo nenhuma vantagem nos demais”, conta o dono de uma coleção de cerca de 4.000 CDs. Para ele, o disco é um objeto de coleção, um item de valor, como um selo para um filatelista.

Assim como deixou os vinis de lado, não aderiu às novas formas de escutar música. “Não acredito que o streaming já tenha igualado a qualidade de som de um CD em um bom equipamento. Existe, isso sim, a opção de baixar um arquivo de áudio de alta definição. Mas continuo preferindo o CD original, com um encarte caprichado.” A opinião é compartilhada por Rodrigo Alves, dono de 2.700 CDs e da loja Choke Discos. “A qualidade é bem melhor que qualquer streaming”, diz. Além disso, ter um disco físico em mãos faz com que ele não dependa de celular ou internet pra ouvir música. Mesmo assim, todos os amigos estranham, conta.

Preferência por CD não significa, porém, que serviços de streaming não tenham nenhuma utilidade. Rodrigo até usa e diz que adora, mas não encontra nem em Spotify, Google Play ou Deezer “bandas obscuras e coisas mais independentes”. Pela praticidade, Emílio às vezes recorre ao YouTube. “Se já estou no computador e me dá vontade de ouvir uma música nos fones, é mais rápido procurar no YouTube para rodar na hora”, conta. “Mas jamais deixaria de comprar um CD só porque posso ouvi-lo no YouTube. Acho sensacional poder ouvir álbuns inteiros lá, mas para decidir se compro o CD ou não.”

“Os CDs são caros, sempre foram caros, e não dá pra comprar tudo que desperta seu interesse sem antes ter uma espécie de ‘controle de qualidade’, que só é possível pela audição experimental”, concorda Cesar Sousa, 36. Em reuniões com amigos também é mais prático colocar logo uma playlist no YouTube do que ficar trocando de CD toda hora, concede. “Ideal para momentos em que a gente precisa dar atenção pra muita gente, em casa. Para os momentos mais introspectivos e intimistas, os discos e CDs mandam”, diz. Em sua opinião, CDs são menos supérfluos que downloads. “Você, de fato, tem a obra em mãos, e ela se torna a trilha da sua vida daquele momento. Ela fica na estante, você passa e fica admirando, vez por outra, todos os seus CDs e discos, e eles trazem em si um fragmento da sua vida. É uma relação muito mais profunda, uma relação duradoura com a arte, com o artista.”

NA ESTANTE

A preferência por comprar discos na internet ou em lojas físicas é dividida entre os fãs de CDs. Emílio, por exemplo, prefere comprar seus discos pela internet, mesmo que exista a loja física — nesse caso, vai até o local buscar a encomenda — e recorre também a sites estrangeiros, como a Amazon.

“Achei engraçado quando, há muitos anos, uma pessoa da família me perguntou, bem impressionada: ‘Você compra disco todos os meses?’. Todos os meses? Uma vez por semana, no mínimo! Até hoje é assim”, diz Emílio. “Sempre que vou a lojas como Saraiva e Cultura, dou uma olhada pra ver se não tem nada que me interesse. Raramente saio de mãos vazias.” O cuidado com os CDs é tão grande que para ouvi-los no carro ele faz cópias. “Jamais carrego originais comigo.”

O biólogo Fernando Alvarenga, 43, por outro lado, acha o carro o melhor lugar para ouvir seus CDs — em casa, prefere os vinis. Ouvir discos físicos, diz, é um costume. “Curto pegar o CD, olhar o encarte, ver a arte.” Só no mês passado comprou 30 CDs, e mais 12 vinis. Diz que não tem muitos, “uns mil” CDs. “Por ter sido meio nômade quando mais novo vendi muitos CDs e LPs”, conta. Colecionar CDs é coisa de roqueiro, opina ele. Um público fiel que não para nunca de escutar aquelas músicas. No caso do pop, “em que intérpretes por vezes alcançam sucesso com um hit e depois somem, esse disco fatalmente um pouco e depois some”.

Não é o caso, por exemplo, do DJ Cristiano Pereira, 28, que cita entre seus favoritos CDs de Sandy & Junior, Legião Urbana, Laura Pausini e Silva. Já da geração YouTube e Spotify, Cristiano diz que sempre tem alguém que estranha seu hábito de comprar CDs pelo menos uma vez por mês, de preferência em lojas físicas — sua coleção tem por volta de 400 exemplares. Como os outros fãs de CD, diz que nada substitui o encarte com fotos e letras e o prazer de ter algo físico nas mãos. “Não quero só ouvir a música, quero me relacionar com ela de outra forma.” Mesma resposta que dá Tiago Rolim, 38, dono de aproximadamente 5.000 CDs. Questionado por que ainda compra os discos, diz: “Minha esposa vive me fazendo essa perguntas! Virou um vicio já. Acho chato ouvir musicas em celular, ou no computador. Até escuto, mas não gosto. Gosto de ter o encarte, ler as letras, essas coisas do século passado”. A imensa maioria de amigos, aliás, nem sabe que ainda se vendem CDs. “Sério isso.”

Dimas Marques, 26, vive situação parecida. Seus amigos já abandonaram a mídia, com exceção de uma amiga que já “está mais pra lá do que pra cá”. Ao responder quantos CDs integram sua coleção, dá a resposta precisa: 768, todos catalogados em um arquivo de computador. Ver seus discos elencados na estante lhe dá uma sensação de “real” que o digital não consegue. “Sempre gostei do formato físico, de ir à loja, procurar e achar algo legal, de pegar, olhar o encarte, ter uma estante organizada.” Usa, sim, o YouTube para ouvir música, mas para descobrir coisas novas e acrescentar à sua lista de compras — que inclui fitas cassete, que considera mais difíceis de adquirir. Todo mês ele adquire pelo menos um disco novo. Só lamenta o pouco número de lojas físicas em sua cidade, Maceió, Alagoas.

NA FAMÍLIA

Para a estudante Jéssica Mar, 23, dona da página A Menina que Colecionava Discos, comprar CDs é também algo afetivo: foi uma tradição que começou com seu pai e aumentou depois que ele morreu. “Desde criança eu gostava de ir nas lojas com meu pai e ficava olhando os encartes, mas eu sempre comprava algo mais infantil”, lembra. “Esse foi um dos legados deixados por meu pai: paixão pela música. Cresci vendo ele comprar CDs e discos, aumentando a coleção, cuidando com muito carinho e me ensinando tudo sobre cada artista e música. Quando ele faleceu, não tinha como deixar de lado. Minha paixão aumentou e eu continuo cuidando e aumentando a coleção deixada por ele. Sei que ele está feliz vendo que continuo levando seu legado em frente.”

Jéssica coleciona música em qualquer formato: CD, vinil, fita cassete, DVD. É também eclética na forma de comprá-los: faz pela internet, em sebos, lojas, troca com conhecidos. Toda semana costuma comprar pelo menos um CD de sua lista. “Já me falaram que é estranho eu ficar nas vitrines olhando os CDs, pois geralmente o pessoal já vai na intenção de comprar algo específico. Mas eu adoro ficar olhando, vendo os lançamentos, descobrindo bandas novas, admirando os encartes.”

Ela conta que a maioria de seus amigos adora música, mas nem todos costumam comprar CDs, ressaltando que os preços são elevados. Mas com dois amigos ela costuma levar CDs dos artistas quando vai a shows para que eles autografem. “A maioria leva folha de papel ou alguma foto. Fica nítido que o artista adora ver que compramos algo dele, ou que temos aquele CD em edição especial”, afirma. São os CDs autografados alguns dos xodós de sua coleção. “Mas mais que isso tenho um sentimento muito grande por quase todos que eram do meu pai. Por isso sinto prazer em cuidar e aumentar a coleção.”

NA BALANÇA

O CD tem outro ponto a seu favor: a qualidade do som. Enquanto é consenso que o som de um disco físico é melhor que o de um MP3 baixado na internet (“Eu não tenho um iPod… Eu ainda uso CDs ou discos. Às vezes fitas. Tem um som muito melhor, muito melhor que o digital”, declarou Keith Richards em 2013.), a disputa entre CD e LP é mais acirrada. À reportagem da LA Weekly o ex-engenheiro de som da Philips declarou no ano passado: “Se você medir a diferença, o CD é absolutamente melhor que o vinil. Mas se você disser que a experiência é melhor — como fumar charuto com os amigos –, então faça. Curta fumar charuto com amigos, e beber cerveja e brandy ouvindo a um velho disco. Mas não diga que o som é melhor”.

Segundo o engenheiro de som Bob Clearmountain, quando ele fazia vinis para a Columbia, a gravadora fazia um teste que colocava cada LP em uma vitrola velha e barata, com o objetivo de chegar até o fim sem pular. Caso falhasse, o disco teria que ser mixado de novo. Um som muito baixo ou vocais cheios de som de letra “s”, por exemplo, poderiam fazer com que a agulha pulasse, então seriam menos desejáveis e deveriam ser editados. Uma reportagem de 2014 do site Vox, também investigando qual som é melhor, aponta outras questões e afirma que, se as notas são muito baixas, menos áudio cabe no vinil. Se as notas são muito altas, pode haver distorção. Por isso, na hora da masterização, muitas vezes os extremos eram cortados, deixando a música diferente do que o almejado pelos músicos.

Mas a questão é ainda mais complexa e a LA Weekly acrescenta que todos os engenheiros de som ouvidos pela publicação disseram que não é difícil achar LPs que soem melhor que CDs, já que a qualidade de quem produz cada um pode alterar dramaticamente a posição de cada mídia na balança. Também existe uma questão de preferência pessoal. Muita gente prefere o chiado do vinil e a sensação reconfortante que ele proporciona. Segundo a Vox, isso se deve às mudanças que os engenheiros fazem no som do baixo na hora de produzir o vinil, que acabam agradando esteticamente parte do público, embora o som seja diferente do ao vivo. O fato é que, embora seja comum ouvir por aí que o vinil é superior ao CD, não é bem esse o caso. São experiências diferentes, mas não dá pra dizer que o LP seja melhor em qualidade de som.

NAS LOJAS

Nas paredes da Baratos Afins, a loja de discos mais antiga na Galeria do Rock, no centro de São Paulo, parte de um acervo de 100 mil CDs dividem espaço com parte de 100 mil discos de vinil, enfileirados por todos os cantos da loja em ordem alfabética — o resto da coleção da loja, presente no local há 37 anos, está em um estoque. O público, conta Carolina — filha do fundador da loja, Luiz Calancas — é variado: tem gente que chega com listas de compras nas mãos e gente que quer buscar algo na coleção — tarefa que pode levar horas. “Dá pra ficar o dia inteiro e não ver tudo.” Alguns, inclusive, são velhos conhecidos.

Como que pra provar a afirmação, entra um cliente fiel, que puxa papo com os vendedores e dá um pitaco na conversa. “MP3 é muito abstrato. É diferente ter o objeto”, diz ele. O papo envereda para o retorno das fitas cassete, mas aí todo o mundo concorda que já é demais. “Eu curtia fazer fitinha, seleção pra dar pras pessoas”, lembra Carolina. “Romântico. Muito romântico”, diz o freguês. Mas ele ressalta, dando mais uma vantagem do CD em relação às mídias concorrentes: com ele ainda dá pra fazer suas próprias coletâneas e dar de presente pros outros. Ele faz até hoje. Romântico. Muito romântico.

Entre os gêneros mais populares, o rock é o maior, responde Carolina sem pestanejar. Principalmente o internacional, mas os nacionais também saem bem. “Nacional a gente tem de tudo. MPB, rock, samba. Mas pra comprar e repor, é menos, porque não tem uma demanda igual de rock”, diz ela. “MPB é muito cíclico. Se você for ver os fãs do Chico [Buarque] de dez anos atrás, talvez metade consome disco. Às vezes o cara já tem tudo. Mas o de rock sempre vem atrás de coisa nova, de coisa que já passou, mas lá atrás ele deu menos importância. Acho que o público do rock é mais fiel ao consumo de disco.”

Não há um tipo específico de cliente em busca de discos físicos na loja — tem gente de todas as idades e todos os gostos. “Desde o moleque que tem a cultura familiar, até aqueles que estão descobrindo esse prazer. Muitos músicos”, conta. Não há som tocando na loja e os funcionários não têm o hábito de dar indicações. “Nem todo o mundo gosta do que eu gosto. É que nem vendedor de sapato, que já traz um monte de opção, mas eu não gosto.”

Quilômetros dali, em Pinheiros, a pequena loja Pops Discos, numa galeria na Teodoro Sampaio, também resiste bravamente — só com CDs, sem discos de vinil. Também rola por ali um clima familiar: enquanto toca a rádio Eldorado, um cliente conversa com o dono da loja sobre o jogo da seleção brasileira da noite anterior enquanto passa os olhos pelos álbuns e escolhe um. Organizados em ordem alfabética, os CDs carregam uma etiqueta com um código. Para os não iniciados, como eu, não faz sentido. Pergunto o preço e me mostram como usar uma tabela que mostra o preço de cada coisa com base nos códigos, “para a próxima vez” que eu for lá. Definitivamente um clima família — e, empolgada, levo uma caixa com cinco CDs do Gil que não fazia parte dos meus planos.

Aberta há 36 anos, a Pops começou como uma loja de vinil — hoje não os vende porque são muito caros. Lá, o que mais sai é música nacional e rock, e a maioria dos clientes já vai à loja com o que quer em mente, depois de olhar na internet, conta Ademir Manzato, fundador da Pops. O público, diz ele, tem faixa etária acima dos 40. Depois concede: 30. Mas não mais novos do que isso. Pelo tamanho do espaço, vender CD é mais fácil que vinil. Além do que, diz Ademir, vinil é muito caro. Se a moda pegar de vez e ficar mais acessível, quem sabe.

Na Barato Afins, Carolina conta que nos últimos anos houve uma queda na venda de CDs, acompanhada de um aumento na venda de vinis. “A gente sentiu uma diferença quando surgiu a internet. Muita loja fechou aqui por causa disso, as pessoas começaram a baixar música. Não precisava mais da fitinha pra trocar música. Não são nem os serviços de streaming [que fizeram a diferença no movimento], quando a internet ficou mais fácil pra todo o mundo deu uma caída, sim. Principalmente nas lojas que só vendiam CD”, diz ela. O disco físico, opina, terá vida longa. “Sempre vai ter mercado. Ninguém deixa de fabricar selo, por exemplo, sempre vai ter comércio pra isso. Colecionador… Quando o movimento começou cair e a gente pensou em abrir outra coisa, a gente pensou que já estava no ramo e sempre vai ter gente nostálgico. Eu sou suspeita. Mas nostalgia mexe com o emocional e sempre vão buscar coisas do passado.”

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As faces de David Bowie

David Bowie se foi. Aos 69 anos, o Starman decidiu partir para novas explorações espaciais e nos deixou aqui, tristes, desconsolados, mas felizes ao revisitarmos toda a sua obra, todas as suas fases, todos os seus discos, todos os seus rostos. E por causa das diversas facetas de Bowie, que lembraremos com emoção em todos os anos que virão pela frente, convidamos o desenhista Odyr Bernardi para retratar alguns dos semblantes mais marcantes do camaleão. Cinco momentos, cinco histórias, cinco faces de alguém que não será esquecido.

Além das belas ilustrações, fiquem também com o lindo relato de Brian Eno sobre o amigo que se foi:

“A morte de David veio como uma completa surpresa, como praticamente tudo sobre ele. Agora, eu sinto um enorme vazio.

Nós nos conhecemos por mais de 40 anos, em uma amizade que sempre foi marcada por ecos de Pete and Dud. Nos últimos poucos anos – com ele morando em Nova York e eu em Londres – nossa conexão foi feita por email. Nós nos despedíamos com nomes inventados: alguns deles eram ‘mr showbiz’, ‘milton keynes’, ‘rhoda borrocks’ e ‘the duke of ear’.

Cerca de um ano atrás nós começamos a conversar sobre o Outside – o último álbum que trabalhamos juntos. Nós dois gostávamos bastante do disco e sentíamos que ele não teve a devida atenção. Nós falamos sobre revisitá-lo, levando-o para um lugar novo. Eu esperava por esse momento.

Eu recebi um email dele sete dias atrás. Como sempre, era algo divertido e surreal, indo e vindo em um jogo de palavras e alusões e outras coisas típicas que fazíamos. E terminava com esta sentença: ‘Obrigado por nossos bons tempos, brian. eles nunca irão apodrecer’. E estava assinado como ‘Dawn’.

Agora percebo que ele estava dizendo adeus.”

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Descanse em paz, Bowie.

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Cultura

Entre os muros da escola de música

Em uma estreita rua no bairro do Ipiranga, já perto de Heliópolis, um prédio grande chama a atenção entre as vendinhas e casas. Crianças não param de entrar: sozinhas, em duplas, acompanhadas pelos pais, ou vindas de um grande ônibus amarelo que para ali na frente de tempos em tempos, levando e trazendo crianças do bairro, passando pela entrada da favela até chegar ali. É lá que fica, desde 2005, o Instituto Baccarelli, que dá aulas gratuitas de música para 1.300 jovens, boa parte vindos da comunidade vizinha.

O Instituto, criado em 1996 pelo maestro Silvio Baccarelli, é inspiração para o filme “Tudo que Aprendemos Juntos”, que estreia hoje (3). Nele, Lázaro Ramos é um violinista talentoso que trava na hora de uma importante audição para a Osesp e, sem outro trabalho, aceita dar aulas na favela de Heliópolis para um grupo de 25 adolescentes que se prepara para uma apresentação para uma ONG.

Não é propriamente um filme “baseado em fatos reais”, mas tem uma proximidade grande com o trabalho do Instituto. Parte dos jovens atores vem, inclusive, de suas salas de aula, escolhidos através de testes. É o caso de Thais Plastina, contrabaixista de 22 anos, e Lucas Andrade, flautista de 20, que hoje fazem parte da Orquestra Sinfônica de Heliópolis e fazem sua estreia no cinema. Os dois eram estudantes do Instituto quando a equipe do diretor Sérgio Machado passou por lá fazendo testes, já que queria que todos os atores fossem músicos da comunidade — Lucas mora em Heliópolis e Thais, no Jardim Patente, ali perto.

 

Coral do Instituto Baccarelli
Coral do Instituto Baccarelli

O primeiro contato de Thais com a música foi por meio de um teclado dado pelo avô, que o pegou depois que alguém o jogou fora. Era tão pequenininha que nem se lembra ao certo de quando foi. Só diz que aquilo nunca foi um hobby. Desde que encostou num instrumento, soube que era aquilo que queria fazer, apesar de não ter nenhum músico na família. “Foi um susto pra eles, mas dei a cara a tapa. Era isso que eu queria.”

Ainda criança começou a cantar na igreja. Aos 14 anos, uma amiga da escola falou do Instituto, que dava aulas gratuitas de música. “Eu nem acreditei. Precisei vir ver”, diz, um dia antes da estreia do filme numa sala de aula do Instituto. Ela queria aprender a tocar cello, mas não passou no teste. A mesma amiga sugeriu que ela tocasse contrabaixo como ela, já que seu professor tinha vagas. “Pensei que depois mudaria de instrumento, mas depois você se apega. Gostei da frequência grave. Brinco que o contrabaixo me escolheu.” Para pagar seu instrumento, vendeu trufas durante um ano no Instituto.

Lucas entrou no Instituto ainda mais novo, aos oito anos — há aulas de musicalização para crianças desde os quatro anos de idade –, quando a sede ainda ficava na Vila Mariana, na casa de Silvio Baccarelli. Ele dedilhava um violão encostado em casa, até que o levaram ao Instituto. Começou na percussão e odiou. Pensou em deixar as aulas, até que ouviu uma aula de flauta e se apaixonou. Hoje, toca flauta transversal e piccolo, também da família das flautas.

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FOGO EM HELIÓPOLIS

No filme de Sérgio Machado, o professor de violino que desperta nos alunos da comunidade a paixão pela música chega lá a contragosto e não tem intenção de criar raízes. Seu objetivo é ganhar tempo enquanto não passa em outra audição para a Osesp. Na vida, foi diferente. O Instituto foi criado pelo maestro depois de um incêndio ter atingido Heliópolis. Ele viu aquilo pela televisão e quis ajudar a comunidade de alguma forma. Procurou uma escola pública da região e passou a ensinar instrumentos de orquestra a um grupo de 36 alunos em seu próprio imóvel.

Anos mais tarde, a Prefeitura lhe cedeu um terreno. A organização Pró-Vida construiu o primeiro prédio, com três andares e salas de aula e ensaio. Suas paredes são levemente curvas, o que é quase imperceptível aos olhos, para que a acústica seja a melhor possível. Um segundo prédio foi construído pela Eletrobras.

Hoje, os corredores andam cheios de crianças, que correm em grupos pelos corredores. Até chegar na porta da sala de aula. Enquanto cerca de cem jovens — de pequeninos a já adolescentes — ensaiam uma apresentação do coral com músicas de Natal para a Catedral da Sé, três meninas quietinhas olham pelo vidro e se perguntam se podem entrar, só para assistir.

Dentro das salas, as aulas são levadas a sério. Em um momento, o maestro interrompe a apresentação, quando o coral já está acompanhado por uma orquestra, e aponta para um grupo: “Ou vocês me ajudam ou saem. Não é a primeira vez que vejo vocês dando risada”. Filmados para um canal de TV, os músicos falham. O maestro para o ensaio: “Não tem TV aqui. Somos só nós aqui”. A concentração volta.

Mais de mil alunos hoje são de Heliópolis. Há dois jeitos de entrar no Instituto: para aqueles que estão iniciando e querem aprender um instrumento, é preciso ser morador da região e estar matriculado em uma escola pública. Quem tem um nível avançado de algum instrumento sinfônico pode fazer um teste para as Orquestras Juvenil e Sinfônica de Heliópolis, as únicas que permitem membros de fora da comunidade. Regida por Isaac Karabtchevsky é composta por alunos avançados do Instituto. Pelo quinto ano consecutivo, a Orquestra teve uma temporada regular de concertos na Sala São Paulo.

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DEDICAÇÃO TOTAL

Quem toca nas orquestras continua tendo aulas no Instituto e a rotina, dizem Thais e Lucas, é puxada. Há uma aula individual semanal de instrumento, há aulas de naipes e ensaios com a Orquestra. A partir de uma idade é preciso escolher entre levar o instrumento a sério e fazer outras atividades. Lucas dançava num grupo em São Caetano e o largou — assim como as aulas de computação e o futebol. O único momento em que deixaram os estudos um pouco de lado foi durante a gravação do filme, em 2012.

Todos os membros do elenco tiveram de fazer aulas no Instituto. Lucas também passou por algumas dificuldades, já que em “Tudo que Aprendemos Juntos” ele toca viola, e não flauta. “Nunca tinha tocado. Como a gente é músico, tem uma noção. Mas foi punk aprender”, conta. Hoje diz que só pega o instrumento de vez em quando. Para Thais, uma das dificuldades foi “dublar” seu instrumento. As músicas eram gravadas previamente em estúdio, pelas orquestras do Instituto, e ela tinha que fingir tocar em cena, sem encostar nas cordas. “Só fazendo aquela cara de quem está tocando”, brinca Lucas.

Embora o Instituto Baccarelli não apareça no filme, os dois dizem que ele está lá o tempo todo. As músicas foram tocadas por seus alunos, os professores deram aulas a todos do elenco (inclusive ao diretor, que diz ter sido um desastre como músico) e há muito deles mesmos ali. Tem um pouco de improviso? “Um pouco?”, Thais gargalha. “A gente não tinha roteiro!”, completa Lucas. Eles explicam um pouco melhor: Sérgio Machado tinha alguma ideia de como a cena iria se passar, mas a partir disso a bola estava com ele.

Em uma cena, Laerte, o personagem de Lázaro, pega um papel que circula entre os alunos e vê que ali estão escritas as notas da música, não como notas numa partitura, que eles não sabiam ler, mas por extenso: dó, ré, mi… Ele pergunta o que é aquilo. “O Joabe estava lá só pra acompanhar e diz: ‘ué, são notas, professor’. A gente queria dar risada, mas não podia”, lembra Lucas. Também em uma cena de sala de aula, Laerte diz que eles passarão a ter aulas de sábado. Os alunos debatem: alguns trabalham, outros têm que ajudar em casa, nem todo o mundo pode… Até que uma das meninas faz um desabafo emocionado sobre a importância daquelas aulas em sua vida. Tudo verdade, tudo espontâneo.

Lucas diz que todos os meninos do filme viraram irmãos. Ver o resultado nas telas foi o momento mais emocionante de sua vida, conta. “A gente se emociona muito com a mensagem. É um trabalho muito bonito. E se ver num trabalho desses…”, diz Thais. “A pena é que a gente vai concorrer com ‘Star Wars’.”

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A máquina de hits

O que “Everybody”, dos Backstreet Boys, “…Baby One More Time”, de Britney Spears, “Roar”, de Katy Perry, e “Shake It Off”, de Taylor Swift, têm em comum? Todas têm na lista de autores um mesmo nome: Max Martin. O sueco, único compositor na lista dos 50 melhores da revista Rolling Stone a ter construído uma carreira a partir dos anos 90, é uma máquina de fazer hits. Tanto que, neste ano, Justin Bieber declarou não sentir que “ligar pro Max Martin e pedir pra ele te escrever um hit” é fazer música de verdade. Para muitos cantores pop hoje em dia é assim que funciona: em busca de um novo sucesso, procura-se Martin — que costuma entregar o que promete.

Max Martin é o mais bem-sucedido de um pequeno grupo de compositores e produtores da Escandinávia por trás de grande parte dos maiores hits das últimas décadas. Seu mentor, o também sueco Denniz PoP (1963-98), foi responsável por canções como “All That She Wants”, do Ace of Base, e “As Long As You Love Me”, dos Backstreet Boys. Já os noruegueses Tor Erik Hermansen e Mikkel Storleer Eriksen, conhecidos como Stargate, fizeram “Worth It”, do Fifth Harmony, “Don’t Stop the Music”, de Rihanna, e “Irreplaceable”, de Beyoncé.

No livro “The Song Machine” (Editora WW Norton, 288 págs., R$ 150 em papel e R$ 52 em versão digital), o jornalista da New Yorker John Seabrook mostra como a produção de hits é praticamente industrial. Criadas em pouco tempo por equipes munidas apenas de um computador, essas canções seguem quase uma receita, na qual a letra importa pouco e as batidas misturam, em suas palavras, vodca e MDMA ao pop chiclete de antigamente.

A imagem do cantor compositor, sentado na cama com um violão escrevendo suas canções num caderno, não tem lugar no mundo pop de hoje. Quem mais se aproxima disso é Taylor Swift, conhecida por falar de todas suas desventuras amorosas em suas músicas. Mas mesmo ela não costuma compor sozinha. Das 13 canções de seu último disco, “1989”, apenas uma tem só seu nome nos créditos. Max Martin aparece como compositor nos maiores sucessos: “Style”, “Blank Space”, “All You Had to Do Was Stay”, “Shake It Off”, “Bad Blood”, “Wildest Dreams” e “How You Get the Girl”. O mesmo vale para Adele. Em “25”, que lançou neste mês, todas as canções têm coautores — Martin entre eles.

 

Seabrook, que levou quase quatro anos nas pesquisas para o livro, não é exatamente um fã de pop. Seu gosto pessoal pende mais para o rock, mas descobriu anos atrás que o gênero era um ótimo tema para conversar com seu filho adolescente, que controlava o rádio a caminho da escola e escutava canções nas quais ele nunca tinha ouvido falar.

Nos últimos anos, fez alguns artigos sobre música pop para a New Yorker, meio que por acaso. “Nunca fui um escritor de música pop. Sempre me interessei por canções, nos momentos de inspiração e em como ideias podem virar dinheiro”, conta. “Mas meio que caí nesse tema. Começou com uma ideia que um editor da revista sugeriu.” Nas páginas da revista, escreveu sobre o pop coreano, sobre o produtor e compositor Dr. Luke, discípulo de Max Martin, e sobre o próprio Martin. Um texto seu de 2012, no qual traçava um perfil da equipe por trás do sucesso de Rihanna, foi inclusive publicado com o título “The Song Machine”, a máquina de canções.

UMBRELLA ELLA ELLA

Rihanna, aliás, é uma espécie de síntese do processo descrito por Seabrook. “Umbrella”, música que fez com que ela estourasse em 2007, não só não foi escrita por ela como nem foi escrita para ela. A história começa com o grupo de compositores de Atlanta formado por três homens. Um deles, Tricky Stewart, vinha de uma família de escritores de jingles que tinha no currículo canções para marcas como Coca-Cola e McDonald’s. Tricky cresceu em estúdios aprendendo a fazer músicas pegajosas e, por influência da mãe, estudou produção musical em vez de algum instrumento (assim ele teria mais futuro, pensou ela). Com outros membros de sua família, Tricky abriu a produtora RedZone Entertainment e durante anos trabalhou sem produzir um grande hit.

O jogo virou com “Umbrella”, uma criação conjunta. Kuk Harrell brincava com uma batida no computador quando Stewart entrou na sala e complementou o som com uns acordes no teclado. Terius Nash ouviu tudo, pegou um microfone, e começou a cantar algumas palavras aleatórias que vieram à cabeça. Assim nasceu o famoso refrão “under my umbrella ella ella ê ê”.

 

Sabendo que tinham algo bom em mãos, os três procuraram um artista para gravar a música. Tentaram Britney Spears, a cantora mais famosa que conheciam, mas ela recusou. Depois disso, tentaram o executivo L.A. Reid, que a mostrou para Rihanna, que, por sua vez, amou a canção e quis gravá-la. Os autores, porém, queriam alguém mais conhecido para “Umbrella” e, no início, negaram. Com a ajuda de Jay-Z, Rihanna acabou convencendo a equipe.

Mas o nascimento de um hit não é tão simples. É fundamental para que uma música toque bastante na rádio para estourar, e para que isso aconteça é necessária uma campanha pesada da gravadora. Segundo uma investigação da rádio pública americana NPR, citada pelo livro, uma gravadora desembolsa tranquilamente pelo menos 1 milhão de dólares para emplacar uma única música nas rádios, influenciando as datas e horários em que ela vai tocar e o número de vezes em que ela será repetida durante o dia. “As rádios precisam de música contagiante o suficiente para manter as pessoas ouvindo mesmo com os anúncios e as gravadoras precisam das rádios para vender suas músicas. Ambas precisam de hits”, escreve Seabrook.

POP ESCANDINAVO

“Umbrella” foi escrita por americanos, mas a origem dessa fábrica de canções está na Suécia nos anos 1990, com Denniz PoP, então um DJ de 28 anos parte do coletivo SweMix, que remixava sucessos dos Estados Unidos para o público europeu. O sonho de Denniz, conta Seabrook, era misturar as batidas dançantes dos clubes com o pop das rádios e seus refrões marcantes. Ele já havia trabalhado com algumas bandas quando recebeu uma fita com uma gravação de um quarteto chamado Ace of Base com uma mensagem: “Por favor, ouça essa fita e nos ligue”.

O DJ colocou a fita para tocar em seu carro e antes de terminar a canção já sabia que não queria trabalhar com eles. Mas seu rádio quebrou, a fita não saía e Denniz ficou ouvindo a música sem parar por duas semanas. Foi aí que teve o estalo. Mudou a melodia toda, colocou uma linha de baixo, deixou a música em acordes maiores, mas o refrão em menores, simplificou algumas coisas e batizou a composição de “All That She Wants”. A música foi um sucesso, inclusive nos Estados Unidos.

 

Denniz teve uma carreira curta, mas foi o responsável pelo Max Martin compositor. Martin era um cantor de glam-rock chamado Martin White quando assinou um contrato para trabalhar com Denniz, que o colocou sob sua asa. Denniz percebeu que Martin era melhor como compositor do que como cantor e o ensinou a usar o estúdio. Não há nenhuma gravação disponível na internet de Martin cantando, mas segundo Seabrook, que ouviu a versão do compositor de “…Baby One More Time”, sua voz é muito boa. Inclusive, ele envia suas versões das canções para o artista exatamente do jeito que ele quer que elas sejam cantadas.

Martin é bastante recluso e não quis falar com Seabrook, que contornou a questão usando entrevistas que ele havia dado a uma rádio sueca em 2008 que ainda não tinham sido traduzidas para o inglês. “Isso respondeu a maior parte das questões que eu teria perguntado”, afirma. O jornalista diz entender que Martin não goste muito de falar. “Ele é sueco! Eles não gostam muito de chamar a atenção. E como é melhor que todos achem que o artista escreve suas próprias músicas sua natureza reclusa encaixa muito bem com seu trabalho.”

E por que o pop deu tão certo na Escandinávia? Seabrook arrisca uma resposta. “ Nos Estados Unidos os compositores crescem com uma divisão entre pop e R&B que vem de categorias raciais de 60 anos atrás, mas que ainda são muito reais em termos de quem escreve cada música”, diz. “Pessoas brancas não escrevem R&B nos Estados Unidos. Mas na Suécia isso não é um problema. Pessoas como Max Martin se propuseram a escrever R&B para artistas negros, mas como são suecos, não saíram músicas exatamente desse gênero. Quando ele escreveu …Baby One More Time para o trio de R&B feminino TLC, elas ouviram a demo e disseram não.”

ME BATA MAIS UMA VEZ, BABY

Uma consequência curiosa desse arranjo é que as letras dessas músicas às vezes não fazem muito sentido. O refrão de “All That She Wants”, por exemplo, diz “all that she wants is another baby”, que seria algo como “tudo o que ela quer é outro bebê”. Frase estranha para uma música pop. O objetivo, conta o jornalista, era dizer “tudo o que ela quer é outro namorado”. A mesma coisa para “…Baby One More Time”. O nome original da música era igual ao refrão: “Hit Me Baby One More Time”, o que significa, ao pé da letra, “me bata mais uma vez, baby”. O que os autores queriam era dizer “me ligue de novo, baby”.

 

“As letras são menos importantes hoje fora do mundo do hip hop, em que ainda é importante que as frases signifiquem algo, sejam inteligentes ou chocantes. No pop as letras são só levemente melhores que na música disco”, afirma Seabook. “Em parte porque as músicas são construídas em torno da batida e da melodia e a letra é escrita em função delas. Na composição tradicional a letra nasce com a melodia. Agora ela vem no fim do processo.” E, é claro, porque como inglês não é a primeira língua dos compositores, às vezes as frases ficam truncadas.

Sem escrever suas próprias canções, os artistas perdem um pouco de seu controle criativo sobre a própria obra. “Mas eles ganharam poder com a ascensão das mídias sociais e controle sobre a própria imagem. Antes eles precisavam de repórteres musicais. Agora, não. Por isso as revistas de música estão desaparecendo”, afirma. Sobre as cantoras que fazem sucesso hoje, ele diz acreditar que são mais atrizes do que as divas de voz poderosa como Céline Dion e Whitney Houston. “Elas interpretam um papel e a música é como um roteiro. Se elas conseguem fazer diferentes papéis, como Rihanna e Nicki Minaj, melhor. Whitney Houston era sempre Whitney, não importava a música. Mas Rihanna muda a cada canção.”

Após passar anos em estúdio acompanhando processos de composição e produção, Seabrook diz que, embora existam segredos que não lhe contaram, não há uma fórmula secreta para escrever um hit. “Existe um processo industrializado que permite às pessoas que escrevam muitas músicas no mesmo tempo em que compositores levavam para escrever poucas. No livro, chamo isso de ‘track-and-hook’. Mas você ainda deve deixar a arte prevalecer em algum ponto do processo.”

O tal “track-and-hook” se refere à divisão entre a batida (track) e a melodia (hook), inventada por produtores de reggae na Jamaica. Lá, produtores faziam uma batida e convidavam vários cantores para gravar músicas a partir dela. “Hoje, o ‘track-and-hook’ virou o pilar da música popular. É comum que um produtor mande a mesma batida para várias pessoas — em casos extremos, até 50 — e escolha a melhor melodia entre elas.” Para Denniz PoP, conta Seabrook, compor era um esforço coletivo: como num programa de TV, em que vários roteiristas se reúnem numa sala e trocam ideias. Martin compartilha essa filosofia.

No site de John Seabrook há uma série de playlists para serem escutadas enquanto se lê o livro. Há uma divisão por capítulos, que engloba todas as canções citadas em ordem, e por produtor. “Ficou óbvio pela reação dos meus primeiros leitores que as pessoas largavam o livro para ouvir as músicas no YouTube. Idealmente você teria um livro em que você clicaria nas músicas quando elas aparecessem no texto. Mas esse tipo de livro não existe.”

Ouvir as canções dá uma boa dimensão do alcance de um grupo de produtores e compositores tão restrito que se pode contar nos dedos de uma mão. Pense em algum artista pop dos anos 1990 para cá: pelo menos uma música sua estará na playlist. Mas, segundo Seabrook, como todas as tendências na música, esse pop de hoje está fadado a acabar. Em breve? “Já passou da hora!”

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Uma década a 45rpm

Em uma manhã chuvosa, fim do verão de 2004, eu assinava o certificado de reservista na junta militar do Viaduto Jacareí, no centro de São Paulo, e entrava oficialmente na idade adulta, embora sem muita convicção. Longe dos estudos, sem trabalhar e tensionado pela imaturidade, eu sentia no alto dos meus dezoito anos o peso do rito de passagem. Mas essa não era a única metamorfose latente. O rock, especialmente punk e hardcore, que ditara meu comportamento desde a adolescência, influenciando a forma com que eu percebia o mundo e me via perante ele, já não me bastava. Uma necessidade quase física me empurrava a novos ritmos e melodias.

Naquele dia, enquanto aguardava o burocrático processo, rodava no meu discman um CD que eu baixara na internet por influência de um primo, com clássicos do reggae. Gênero que, até então, eu praticamente desconhecia e que há um par de meses absorvia completamente minhas atenções. Ainda que eu não fosse muito afeito à natureza e viagens místicas. Coisas que, pensava eu, faziam, obrigatoriamente, parte da vida de quem curtia Bob Marley. Apesar do meu próprio preconceito e autocensura, não podia disfarçar que a febre jamaicana tinha me acometido.

Descobri, na velocidade de um modem 56K, mais informações sobre aquele ritmo hipnótico e sua cultura. Bob Marley não era o único mito da pequena ilha caribenha; o reggae era apenas uma das possibilidades dentre as vertentes da música jamaicana; sua origem era urbana, nada tinha a ver com som de cachoeira ou trampos de Durepoxi; e o melhor de tudo: em São Paulo, havia uma festa, bem na Boca-do-Lixo, quando o centro ainda não estava na moda, a Susi in Dub. De quebra, ela era comandada por um DJ japonês, que tocava reggae de verdade, com discos de vinil e caixas potentes. Melhor rolê da cidade, diziam.

O disco dá voltas

Lá, ouvi e vi, pela primeira vez, a destreza de Fabio Murakami, ou melhor, Yellow-P, nas pick-ups. Era uma sexta-feira. Logo ao entrar no local, um forte grave irrompeu no meu tórax. Combinado às intermitentes guitarras, o som formava uma espécie de colchão sonoro que dava um toque inebriante ao ambiente. O DJ de olhos puxados, envolto a uma fumaça branca e densa, soltava pedradas musicais, uma atrás da outra. O chiado dos vinis reverberava nas paredes sem reboco, fuzilando de ricochete os ouvidos de no máximo 100 pessoas, apertadas e em transe, dançando ao sabor daquela que, para mim, era a maior novidade do ano.

Passados onze anos, reencontro o paulistano descendente de orientais em outra situação, dessa vez em sua casa, na Vila Romana, Zona Oeste de São Paulo, com o reggae emancipado e atraindo cada vez mais público. A cultura sound system, na forma de coletivos e festas, já não é novidade e se multiplica por todos os cantos. Hoje, é possível curtir música jamaicana, seja qual for a vertente, quase que diariamente, sem exageros. Os discos ficaram mais acessíveis por conta da internet e a capital paulista entrou na rota de grandes nomes da cena, com a vinda de cantores, produtores e DJs, jamaicanos ou não, a exemplo de Lee Perry, U-Roy, Skatalites, Mad Professor, Roy Ellis, Tommy Far East, entre outros. Mas nem sempre foi assim, digamos, fácil. Principalmente para os primeiros que se aventuraram a fazer das vitrolas suas vidas.

Apesar de a cultura sound system e a cena reggae serem populares no Maranhão há algumas décadas, sob o nome de “radiolas”, aqui em São Paulo a coisa se desenrolou apenas na virada do século. Lutar contra a escassez de discos e recursos, a estigmatização do ritmo, além da desinformação do público sobre em que consistiam as festas, eram algumas das missões mais árduas para os iniciantes do negócio. Foi necessário muito empenho para que o status do ritmo fosse aos poucos se alterando.

Influenciado por uma tia que frequentava shows de reggae no início dos anos 90 e que chegou a namorar o baixista do Shabba Ranks, Fabio Murakami, 35 anos, começou sua coleção com CDs, ainda adolescente, e comprou seus primeiros discos de vinil por telefone, de uma loja britânica descoberta através do livro “Rough Guide”. “Aqui não havia discos de vinil de reggae, era mais pop e rock. Em Londres, sim, a loja se chamava Dub Vendor. Liguei e tive a sorte de ser atendido por uma portuguesa. Fiz uma seleção dos produtores que eu mais gostava e deu certo”, recorda-se sobre o início da saga. “Aproveitei que minha tia estava na casa da melhor amiga, na Inglaterra, ela que me trouxe os discos. Ainda me lembro: foram 15 vinis de sete polegadas; Lloyd Parks, King Tubby, Johnny Clark… Coisas que toco até hoje.”

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Yellow P e o onipresente Jimmy the Dancer. Crédito: Divulgação
Yellow-P e o onipresente Jimmy the Dancer. Crédito: André Freitas

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Com os discos em mãos e algumas parcerias firmadas, não levou muito tempo para que pintassem as primeiras festas e o pseudônimo, Yellow-P, trocadilho com a ascendência japonesa (Yellow Power). Afinal, “DJ Fabinho” lembrava uma coisa meio rádio FM e festa de praia, tudo o que à época ele queria evitar. O primeiro evento com organização própria, oficialmente, aconteceu no fim de 2001, na Green Express, pico tradicional da comunidade maranhense em São Paulo. Falantes ruins, mais de dois mil cartazes colados à mão, trabalho braçal de divulgação. Ali nascia o coletivo de sound system Dubversão, que alcançaria, anos mais tarde, grande projeção devido às famigeradas noites no Susi, culminando na festa mensal Java, que rola desde 2006, e influenciando as novas gerações de DJs que surgiriam ao longo da década.

Aqueles foram anos de militância. Onde quer que abrisse um espaço para o reggae, lá estaria Yellow-P e o Dubversão. A casa de show KVA — conhecida pelo forró –, uma praça na Lapa e até um acampamento do MST abrigaram suas caixas de som e seus vinis. A convite de uma amiga, para um dia cultural na ocupação, ele foi parar em um acampamento do movimento, perto de Mairiporã, debaixo de uma chuva torrencial. “Essa festa no MST foi inesquecível, legal pra caralho. Fomos muito bem recebidos. No dia, caiu um temporal absurdo e, na cabana onde estávamos, entrava água por todos os lados, o equipamento ficou encharcado. Foi a primeira vez que tomei uma chuvarada na cabeça”, diverte-se ele.

Se o pessoal do MST recebeu a festa de braços abertos, não se pode dizer o mesmo do público clássico do reggae, acostumado às tradicionais versões tupiniquins do roots internacional, feitas por bandas como Tribo de Jah e Planta & Raiz. “Cadê os músicos?”, indagavam. É só um DJ? É instrumental e não tem vocal? O que é isso? A estranheza era tamanha que, no início, nos versos dos flyers das festas, a equipe se prontificava a explicar, como numa cartilha, que dub é um recurso de mixagem das bases do reggae em estúdio, com efeitos eletrônicos, criado nos anos 70. Para Yellow-P, o público do reggae não só não entendeu o que era como virou as costas. E os leigos nem frequentavam, porque existia uma imagem estereotipada do gênero. Algo que o Dubversão em muito ajudou a desconstruir.

De lá para cá, tudo mudou. Se no início, Fabio discotecava com apenas 100 discos, ou menos, hoje ele possui aproximadamente dois mil. Não sabe nem dizer. Além disso, tocou em eventos como a Virada Cultural, e recepcionou a vinda de muitos artistas estrangeiros ligados à cena ao Brasil. “Realmente, os gringos descobriram São Paulo. A cena hoje é grande e completamente diferente. Não tínhamos pretensão alguma naqueles primeiros anos, mas sonhávamos com isso. Quem pensou que um dia teríamos dois artistas jamaicanos tocando na mesma semana?”, questiona, fazendo referência a junho deste ano, quando apenas alguns dias separaram as apresentações de Johnny Osbourne e Danny Red.

As facilidades, de certa forma, impuseram uma realidade não programada à ideia de crescimento. Atualmente, é possível encontrar discos de reggae até na feirinha da Teodoro Sampaio. Vendedores na internet disputam compradores ávidos por montarem seus próprios sistemas de som. Há lojinhas espalhadas por todos os lugares, mas este fácil acesso, diz ele, diminuiu a pesquisa e a profundidade necessárias. Tudo está mais superficial. “Há 10 anos, ninguém sabia o que era dub, hoje muitos pensam que conhecem tudo”, comenta o DJ, que enxerga o panorama com certa desconfiança: “Tá bizarro. Claro que o crescimento, a popularização, isso tudo é bom, mas existem poréns. Todo mundo, agora, quer ter um sound system, mas ser DJ, seletor, não é apenas colocar o vinil pra rodar; há um conceito por trás, e, para atingir este nível, exige estudo e dedicação”, sentencia Yellow.

Do outro lado do atlântico

Em 2005, Yellow-P já fazia sucesso tocando dub em São Paulo, mas foi na cidade portuária de Santos que um grupo de skinheads – adeptos da tradicional cultura nascida no fim dos anos 60, mescla da troca entre jovens ingleses e imigrantes jamaicanos, que nada tem a ver com a cena neonazista inventada a partir da década de 80 –, inaugurava uma nova fase na cena sound system regional. Nada de dub ou reggae dos anos 70: o que fazia a cabeça dessa rapaziada eram os antigos sons da ilha, chamados de “oldies”, a música jamaicana produzida até 1969. Ou seja, o ska, o rocksteady e o early reggae. “Entrei em contato com a cultura sound system através das subculturas skinhead e punk. Já frequentávamos festas de reggae em São Paulo, mas nada do que a gente gostava era tocado. A gente curtia as músicas dos anos 60 e foi por isso que as coisas começaram a acontecer”, conta o DJ e produtor musical Felix Barreira, um dos fundadores do que viria a ser o coletivo Reggay 420, um dos mais atuantes do sound system paulista na atualidade.

O Gordão, como é conhecido, fala pausadamente e quase que de maneira enciclopédica. Lembra-se da primeira festa, a Bomboclat, ocorrida no clube Atlético, no canal 3. Um ônibus inteiro de skinheads paulistanos descendo a serra, sentido à Baixada Santista, para curtir a velharia jamaicana, que, naquele momento, ainda era tocada em stereos domiciliares e através de CDs. As informações e os vinis foram chegando aos poucos, as festas cresceram, o reconhecimento do público, também. Ele, que é designer, mas segue na luta tentando viver dos eventos e de música, chegou a ser colunista da revista Sexy por sua pesquisa em relação aos ritmos jamaicanos.

Convidado para tocar fora do país, mostrou a força do sound system brasileiro nos vizinhos Argentina, Paraguai, Colômbia, e também na Europa, quando esteve na Espanha e na Holanda. Deve tudo o que tem conquistado à música jamaicana, que considera como a sua escola. O sucesso e os frutos colhidos, no entanto, não chegam nem aos pés do que lhe aconteceu em 2010, quando atravessou o atlântico para materializar algo experimentado só nos mais loucos devaneios.

Com quase dois mil discos na coleção, decidiu ir buscar na fonte a matéria-prima de seu trabalho. Foi na Jamaica, em dez dias de viagem, acompanhado por outros parceiros de cena, que Felix conseguiu seus discos mais importantes e vivenciou situações impagáveis. Experimentou a sensação de estar perto de seus ídolos jamaicanos, de aprender com eles, e, sobretudo, entender que, por maior e mais significativo que seja o trabalho do seletor e DJ, nada pode superar o que os verdadeiros artistas fizeram, e o que a música jamaicana representa.

[citacao credito=”Felix Barreira” ]Se eu hoje eu gosto de música, de jazz, de soul, de tudo, é por causa do reggae[/citacao]

“Teve época de eu ser mais marrudo, entrar na dança, falar e me achar demais. Isso aconteceu, sim. Mas hoje, especialmente depois do rolê que fiz em 2010, só agradeço o reggae por ter entrado na minha vida. Foi uma felicidade conhecer tudo isso. Uma graça. Fizemos as primeiras festas, mas perto dos caras, do que eles construíram, a gente não é nada. Só devemos a eles. Se eu hoje eu gosto de música, de jazz, de soul, de tudo, é por causa do reggae. Os amigos que eu fiz, aqui e lá fora, são por causa da música. A cultura sound system, acima de tudo, é amizade e amor pelo som, não status”, confessa, com voz embargada, a lição aprendida.

Na capital Kingston, além de acrescentar algumas dezenas de discos ao seu repertório, Felix conheceu ícones como Derrick Harriot, Stranger Cole e King Stitt. Presenciou, inclusive, os caras na ativa, ali, na sua frente, soltando a voz. Visitou lojas e estúdios, a exemplo da mítica Randys, na North Parade 17, onde Peter Tosh gravou “Whistling Jane”, o Gaylads, “I Love The Reggay”, e onde muitos outros clássicos do early reggae foram registrados. Caminhou por ruas e lugares que até então conhecia somente através de canções.

Lá, notou logo que as principais raridades não se encontravam em lojas oficiais, mas na mão do cidadão corriqueiro. Muitas vezes são parentes que estão se desfazendo da coleção de um ente já falecido; uma viúva vendendo os discos de um marido ou um filho se livrando das velharias do pai. Eles descobrem, de boca em boca, que grupos de turistas estão à procura de discos antigos e vão até os hotéis com caixas de vinis. Sem cerimônia, batem à porta e os oferecem. Para eles, é apenas um disco senil de ska ou rocksteady. Para colecionadores, como o Gordão, a chance de adquirir uma joia rara, um tune para o baile. E foi numa visita assim, de um vendedor comum, que Felix fez valer a visita.

Felix Barreira. Crédito: Divulgação
Felix Barreira. Crédito: Divulgação

Era logo cedo quando um deles apareceu no hotel para oferecer sua mercadoria. E a rapaziada toda acordou para garimpar as preciosidades entre caixas e mais caixas. Menos Felix, que dormiu até mais tarde, e chegou atrasado ao leilão. “Fiquei até puto que os caras não me acordaram.” Esbaforido, foi metendo a mão no primeiro arquivo que viu e, no terceiro disco zapeado, encontrou uma raridade. “Tea House From Emperor Rosko”, do Dice The Boss, de selo amarelo, prensagem original de 1970, alcançava a bagatela de 300 libras esterlinas na internet e, ainda por cima, era a música que representava a Moonstompers Crew, a turma skinhead de Santos. Sem titubear, falou: “Eu quero esse”. “Não, não, eu disse para ninguém mexer nessa caixa”, retrucou o vendedor, visivelmente irritado. “Eu acabei de chegar, você não falou nada pra mim.” Argumentação vai, conversa vem, e o acordo foi selado.

Se a sorte bateu à porta de Felix, ela o brindou por mais de uma vez na mesma viagem. Voltando para o hotel depois de um dia de andanças, os brasileiros, por insistência de um deles e a despeito do cansaço que sentiam, resolveram entrar em uma praça onde parecia acontecer um show. Era O show. Ainda que apenas poucas pessoas o assistissem. Ali, viram monstros da música jamaicana, ao vivo e de graça: Ken Boothe, U-Roy e Dennis Alcapone, este último após oito anos sem se apresentar em sua própria terra natal. “A gente parecia louco, os dez brasileiros mais animados que todo mundo. A gente tava tipo chorando. Os caras olhavam aquilo como um evento na praça, não era uma virada cultural ou algo do tipo, era um show na praça. E foi uma coincidência termos entrado ali”, conta, surpreso como no dia.

Conseguiu, inclusive, tomar umas cervejas com os ídolos – para falar de música, das origens da cultura, trocar experiências e até ser agradecido por um gesto de solidariedade. Enquanto bebia com Stranger Cole, Felix deu um trocado para uma moça, uma pedinte de rua que o abordou de repente. “Não foi muito que eu dei, talvez alguns poucos centavos de dólares.” Mas a ocasião tornou-se especial segundos mais tarde. “O Stranger me pegou pelo braço e disse: ‘Isso o que você fez é lindo, filho, e Deus vai te dar em dobro’. Porra, eu fico arrepiado até de contar.” A cena de humildade lhe arrebatou. Felix teve a plena consciência da dádiva de estar ali. Compreender que os caras são os protagonistas da história e o resto, apenas meros expectadores. Sem eles, nada haveria. Ainda bem.

A novidade de meio século atrás

Ao mesmo tempo em que a internet auxiliou na difusão dos ritmos jamaicanos em São Paulo, impulsionando o colecionismo e habilitando novos ouvintes, houve um período em que o Youtube, e suas sugestões de artistas similares, não reinava soberano. A música por streaming ainda estava a galáxias de distância do panorama atual e o garimpo musical era feito através de programas pouco intuitivos, como o Soulseek, e divulgado por canais hoje tidos como obsoletos. Quem não se lembra das comunidades do Orkut e os infindáveis blogs repletos de mp3 à disposição? A época de ouro dos Ipods Classic e da máxima “quanto mais espaço, melhor”. Foi justamente nesse contexto, da era arqueozóica da digitalização musical, no qual veio à luz uma das mais importantes contribuições da internet para a cena sound system e a música jamaicana em geral: o blog You And Me On A Jamboree.

No ar desde o dia 31 de março de 2006, o blog surgiu da interação entre alguns usuários da comunidade “Skinhead Reggae”, até então a mais efervescente do gênero no Orkut, e não demorou muito para que se tornasse referencial da música caribenha na rede. Aqui e lá fora. Todos os dias por volta de 40 e 50 mil visitantes, metade eram brasileiros e a outra metade formada por estrangeiros – principalmente vizinhos latinoamericanos –, baixavam freneticamente as coletâneas compartilhadas em mp3 e liam as resenhas que contavam um pouco sobre a história das canções, dos ritmos e da cultura sound system.

“Até o surgimento da comunidade ‘Skinhead Reggae’ do Orkut, o público era disperso. Existia quem gostasse de música jamaicana, os ‘oldies’, ska e rocksteady, por exemplo, mas essas pessoas não se conheciam. Eu mesmo passei muito tempo isolado, e minha vontade era interagir mais, conhecer gente, falar sobre o assunto. Foram anos reprimidos”, conta o jornalista Greg Fernandes, 28 anos, um dos primeiros colaboradores do You And Me, como era carinhosamente chamado o blog. Sobre o início, ele recorda: “Lembro quando o Sono, ele fez o blog, postou a página na comunidade. O primeiro post se chamava ‘Skinhead Generation’ e tinha uma coletânea para baixar. Eu achei sensacional e mandei uma mensagem para ele, dando sugestões de conteúdo, porque eu queria participar. De tanto que eu enchi o saco, virei colaborador, no segundo dia de existência do blog”, gargalha.

A diligência foi tanta que resultou em sucesso. Com a disponibilização das músicas para download – agora era possível escutar o que antes apenas se lia sobre – e a organização e concentração da informação em somente um único espaço, sedimentou-se um nicho de público voltado, exclusivamente, para os “oldies”. E foram necessários 21 meses para que o You And Me extrapolasse os limites virtuais da internet e se convertesse em festa.

“A galera começou a se questionar por que não havia festas de som jamaicano dos anos 60 em São Paulo e os pedidos para fazermos uma viraram constantes”, relata Greg. Os primeiros encontros ainda eram rústicos, sem vinis, e tinham a finalidade de divulgar o som, ocupar a lacuna de carência entre os assíduos visitantes do blog e o mundo real. Até que o Alex Jurássico, da Jurassic Sound System, entrou em cena. “Eu e o Sono fomos a um baile em Osasco, em 2007, e lá conhecemos um seletor, com vários discos que curtíamos no case, no meio daquele monte de dub e roots. Convidamos ele, que já conhecia o blog, para fazer uma festa só de ‘oldies’, ele topou na hora. Aprendemos muito com ele, e aí entramos de cabeça no lance de comprar discos, de se aprimorar.” A eles somaram-se Luiz e Neggo. A trupe estava completa.

Pouco mais de dois anos depois das primeiras postagens, um convite vindo da MTV levaria o blog a se hospedar no site da emissora e ingressar na onda dos podcasts. “A MTV, no fim das contas, culminou mais em desaprovação do que resultado. Uma galera, que também havia conhecido a música jamaicana recentemente, começou a nos criticar, porque existe um orgulho de o negócio ser alternativo. Mas, pra mim, sempre vai ser um nicho. Se é moda, para alguém, vai durar um ano. Se alguém se identificar com a coisa, mesmo que sejam 10 pessoas entre 100, é o mais importante”, salienta.

“Para nós, da Jamboree, nunca foi trampo. Eu sempre tive meu trabalho, os caras também. Achar que as festas dão lucro é ingenuidade. Nessa época, comprávamos tunes, como ‘This Life Makes Me Wonder’, do Delroy Wilson, por dois mil reais. A festa apenas sustenta o hobby”, conclui Greg, sem antes acrescentar o significado de todo essa devoção: “Meu sonho sempre foi divulgar ao máximo a música jamaicana. Que todo mundo saiba, pelo menos, o que é rocksteady, o que é ska. Não precisam virar fãs. O mais importante, para mim, é que a música seja conhecida”.

Com o surgimento dos novos modos de se consumir música, o blog, que sofreu o primeiro baque em 2011, depois de seu conteúdo ser apagado da rede por completo, definhou. Já os bailes, não. Após mais dois anos sem atividades e para comemorar o aniversário de oito anos da primeira festa, a You And Me terá uma edição especial, em dezembro. Uma nova oportunidade para que Greg transforme seus anseios em realidade.

Lugar dela é na vitrola

Na cena reggae, como em todos os outros segmentos sociais, não é diferente: as mulheres ainda lutam para ter voz. Elas colam aos grupos nos bailes, dão coro à cultura e, da mesma forma que eles, ajudam a construir a cena. Mas admitir o protagonismo delas, ah, isso é outra coisa. Quando o assunto, por exemplo, é comandar as vitrolas, é inegável perceber que elas não são tantas.

Renata Aguiar Fernandes, 32 anos, é uma das representantes de um movimento em ascensão. Chef de cozinha em um restaurante em São Paulo, ela se desdobra para dar conta de uma rotina atarefada, que, além da gastronomia, envolve criar um filho. Ela é DJ e seletora de música jamaicana, considerada a primeira entre as mulheres paulistanas. Seu som é o dancehall, um ritmo dançante e acelerado, o mais popular entre os jovens da ilha. E o gênero, controverso mesmo lá – existem acusações de homofobia nas letras –, se confunde com o pseudônimo Rude Sistah, adotado por ela em 2008, quando começou a colecionar seus primeiros exemplares.

Renata. Crédito: Divulgação
Renata Aguiar. Crédito: Groovin Mood/Divulgação

Atualmente, ela comanda as picapes de uma das festas mais cultuadas da cidade, Dance Hall Fever, que rola uma vez por mês em uma casa do Centro. O sucesso de suas seleções é inquestionável, mas ainda assim alguns pontos a incomodam. Numa conversa por telefone, ela me explicou, laconicamente, o motivo de não haver tantas garotas discotecando: “Tem muito cara machista na cena.” Contou que, apesar de ter mais amigos homens que mulheres, poucos foram os que lhe deram uma oportunidade. Ainda hoje, escuta que não sabe tocar, e sente seu trampo ser menosprezado. Chegou a ser convidada para se apresentar em um baile e, na hora de acertar o cachê pela noite, veio à tona a frustração. Só os DJs homens foram pagos. Ela, a única mulher, foi ignorada.

“Não é só colocar disco para tocar, eu pesquiso, estudo, crio meu conceito. Cheguei a ouvir que estavam me fazendo um favor, e eu cobrei a pessoa, que no fim acabou me pagando”, disse. Ter de chegar a este limite é péssimo, mas nem de longe isso a desanima. “Dá mais força para continuar. Você não tem ideia o tanto de mensagens que eu recebo no Facebook, de mulheres e de homens. Me elogiam na cena, que eu sou guerreira, mãe, mulher, DJ. Tiram dúvidas sobre como começar a coleção. Para mim, esse reconhecimento vale muito”, confessou, antes de lembrar um causo recente, enquanto ria: “Fui tocar em Brasília faz uns 3 meses. No aeroporto, do nada, uma mina me gritou: ‘Hey, Rude Sistah!’. Eu nem sabia quem era. Mas eu curto muito isso, troco ideia com todo mundo, sou povão”.

Questionei também Andrea Soriano, 29 anos, seletora e DJ brasiliense radicada em São Paulo, sobre a força das mulheres dentro da cultura sound system. Atenta, ela, que é da safra influenciada pelo trabalho seminal da Rude Sistah, desabafou: “O machismo existe no rolê e no mundo. Cada dia mais temos sentido nossa força e temos batalhado pelo nosso espaço. Muitas seletoras estão produzindo suas próprias festas e eventos, com isso estamos fomentando uma cena mais feminina e incentivando as próximas gerações, abrindo caminhos.”

Pensando na abertura de caminhos citada por ela, me vi sentado na fila do serviço militar, com o offbeat invadindo meus fones de ouvido e revolucionando minha breve vida de 18 anos. Depois de uma década, tudo já se modificou ao redor, até que rápido demais. O gosto pela música jamaicana continua. O resto é questão de fase.

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Xênia França é uma força da natureza

“Você não percebeu, mas naquela mesa as pessoas me olharam de um jeito quando a gente chegou”, me diz Xênia França numa padaria bacana na Vila Madalena, em São Paulo. Na verdade eu tinha reparado que as pessoas olharam. Só não sabia se eles estavam olhando por ela ser bonita, por causa de suas roupas estilosas, de seu lindo cabelo volumoso, ou por ela ser negra.

Xênia é a única mulher da banda Aláfia. Ela divide com Eduardo Brechó e Jairo Pereira os vocais da banda de 11 integrantes que combina diferentes gêneros da música negra com letras sobre negritude de uma forma tão bonita que é fácil dizer que Corpura, lançado em setembro, é um dos melhores discos nacionais do ano. E quando se fala de Xênia, não é possível dizer apenas que é uma cantora. É preciso dizer que ela é negra. É preciso dizer que ela é linda. Porque, em 2015, isso ainda importa.

“A minha cor vai ser dissociada lá na frente. Eu vou deixar de ser uma cantora negra pra ser uma cantora, eu vou deixar de ser uma mulher negra bonita pra ser uma mulher bonita”, me diz. O Aláfia é daquelas bandas que não estão no underground, mas também não pertencem ao mainstream. Mesmo assim, Xênia é uma grande referência, especialmente para mulheres negras, o que a deixa desesperada – “porque eu sou uma pessoa”, e não uma fada como algumas crianças acreditam que ela é.

“Diva”, “linda” e “musa” são palavras que se ouve da plateia quando o Aláfia se apresenta. Mas, quando estava na escola, Xênia não era considerada bonita. Não era da turminha das garotas populares, e não era a mais desejada pelos meninos. Era uma das poucas alunas negras de um colégio particular em Camaçari, na Bahia, e nem sempre participava dos passeios e viagens escolares porque a mãe era muito preocupada. Quando falamos sobre a importância da beleza, ela resgata uma “lembrança triste” da infância. Ela tinha nove ou dez anos, era junho e as crianças se preparavam para o São João. Sua mãe havia comprado um vestido lindo, xadrez e rodado, e ela estava na expectativa de dançar quadrilha, mas não foi escolhida.

“Quando as pessoas falam que eu sou linda e maravilhosa eu aceito, porque eu realmente acho que eu sou linda e maravilhosa. Eu não nego isso, não tenho vergonha disso, porque é importante pra mim, pelas coisas que já passei na infância, e por saber que hoje em dia eu tenho uma responsabilidade”, desabafa. “A beleza pra mim não é uma coisa efêmera, é uma ferramenta de trabalho. Como eu trabalho praticamente com militância, a gente precisa pegar tudo que for positivo e transformar em propaganda pra nós.”

[olho]”A minha cor vai ser dissociada lá na frente. Eu vou deixar de ser uma cantora negra pra ser uma cantora, eu vou deixar de ser uma mulher negra bonita pra ser uma mulher bonita”[/olho]

Quando Xênia conheceu Eduardo Brechó, em 2011, apresentada por um amigo em comum, a ideia era que ele a ajudasse a montar seu disco solo. Ela frequentava a casa dele (“tem muito vinil, ele é pesquisador musical, conheci ele como DJ”), que também era visitada por outras pessoas como Jairo Pereira. Um dia o gaitista Lucas Cirillo chegou e eles ficaram tocando Michael Jackson. As pessoas foram chegando, os encontros viraram semanais, e três meses depois o Aláfia fazia seu primeiro show. “Quando fomos ensaiar com o Fi, que era baterista, chegou o [baixista] Gabiru e falou ‘como assim? Ele é meu primo’. Foi tudo muito sincrônico.”

Foi no dia 11 de junho de 2011, no Bar B, em São Paulo, que o Aláfia fez seu primeiro show. Xênia passou na casa de um amigo para se arrumar e chegou em cima da hora do show. “Quando entrei o bar estava lotado e 80% das pessoas que estavam lá eram negras, achei aquilo foda. Era muita gente preta no lugar, e eu nunca tinha visto aquilo em São Paulo. Eu vinha de outra realidade, trabalhava com moda. Nessas festas de moda não tem negro, era eu e mais um, e os outros negros que estão lá são os cozinheiros, os faxineiros.”

Falar de negritude e de racismo sempre foi a intenção da banda, mas Xênia diz que isso tomou uma proporção maior quando eles perceberam que as pessoas iam aos shows para ouvir o que eles tinham para falar. “A gente não tá falando pra eles, a gente tá se comunicando. Essas pessoas também têm um monte de coisa pra dizer.” O Aláfia é uma banda interracial. “Tem preto e tem branco. As pessoas brancas entraram pra tocar, só que a nossa vivência é muito séria e muito forte. Quem não pensava sobre isso acabou entrando [na militância]. Posso garantir que 100% das pessoas no Aláfia estão indignadas com alguma coisa na sociedade.”

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A formação do Aláfia, com Xênia no centro. Crédito: Divulgação
A formação do Aláfia, com Xênia no centro. Crédito: Divulgação

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Me encontrei com Xênia França pela primeira vez num restaurante nordestino simplão na Santa Cecília. Acompanhada de cinco belas amigas, o que fazia com que a mesa em que estavam sentadas se destacasse, ela estava levemente bêbada após tomar uma caipirinha. Por sugestão dela, pedi uma também. Estava nervosa e tinha calculado quais perguntas fazer naquela ocasião e em qual ordem, com medo de ser invasiva demais, e esperando que ela pudesse ganhar confiança em mim pra se abrir. A pergunta “qual seu signo?” estava no fim da lista, mas foi a primeira coisa que ela falou, assim que me sentei. “Sou Peixes com ascendente em Leão e Lua em Virgem. Por isso que sou chata”, brincou. Ela disse que era por isso que, apesar de ser essa pessoa expansiva e “pró-ativa na amizade” quando encontra as pessoas, precisa de um tempo sozinha, só pra ela.

Culpa ou não dos astros, Xênia tem realmente essa dualidade. Ela fala bastante, chora de rir, imita Marília Gabriela, se mostra bem à vontade e usa muitas gírias do universo gay na hora de conversar sobre coisas corriqueiras. Mas também fala baixo, é introspectiva, articulada, e sobretudo inteligente. Xênia pensa muito sobre a sociedade e o mundo em sua volta, mas também se dedica bastante ao auto-conhecimento.

[olho]”Posso garantir que 100% das pessoas no Aláfia estão indignadas com alguma coisa na sociedade”[/olho]

Não tem religião, mas sempre foi ligada com o “invisível”. “Sempre tive muita curiosidade mas também muito medo, porque a religião põe medo nas pessoas.” Na infância, foi batizada na Igreja Católica e fez primeira comunhão, mas na adolescência já não se identificava mais com o catolicismo. Ela vem de um estado onde o candomblé é forte, mas foi se aproximar e pesquisar mais sobre o assunto com o Aláfia. “Tem muitas pessoas no Aláfia que são filhas de santo mesmo, e por causa da pesquisa musical, que passa por esse lugar.” Ela é filha de Xangô e Iemanjá, e procura saber a influência dos orixás em sua vida. Frequenta o Terreiro do Bogum quando vai a Salvador. “Faz parte de um lance de identidade, ancestralidade, mas não tenho a cabeça feita e acho que nunca vou ter.”

A cantora frequenta o Templo Sukyo Mahikari Dai Dojo, onde recebe “umas energias pelas mãos” e consegue estabelecer uma conexão com o invisível. Tudo faz parte de sua busca para se achar e “ser uma pessoa mais confortável dentro de mim”. “Todo mundo que me conhece me acha super engraçada. Sou uma pessoa muito expansiva, tô sempre falando. Falando da minha vida, das minhas coisas, e mesmo assim o que é importante mesmo, o que me choca, o que me magoa, eu não falo.” Foi na terapia de florais que ela encontrou a possibilidade de se abrir e falar sobre o que ficava guardado.

Tudo isso ajudou para que ela saiba lidar “relativamente bem com a minha vida”, mas não impede que ela tenha crises, como todos nós. “Eu me sinto tão realizada cantando, sei que é isso que eu deveria estar fazendo, mas tem horas que bate um negócio assim, que acho que deve ser do meu signo, meu ascendente, da mistura que é meu mapa [astral], um número de frustrações.”

Xênia não fez aula quando começou a trabalhar com música; hoje em dia, faz aula de canto e fonoaudiologia. “Quando escutava qualquer coisa [que gravei] eu ficava triste, porque achava que não tava bom. Não gostava da minha voz.” No Aláfia, ela cumpre a função que lhe é dada – “estou ali mais como instrumento do que como cantora, é como se eu fosse uma guitarrista” –, imprimindo um registro de voz de black music que gosta, mas que não encerra suas ambições estéticas. “Não consigo me expressar tanto como se eu fosse uma cantora solo, colocar pra fora quem eu sou de verdade.”

Fora do Aláfia, ela faz participações em shows de amigos e vem apresentando um espetáculo em homenagem ao Gonzaguinha. “É muito diferente poder cantar canção, poder ser mais sereno. E cantar sozinho é muito diferente, você mostra um outro lado artisticamente.” A ideia do álbum solo, que surgiu em 2011, só está tomando forma agora. Na época ela tinha medo de gravar, e não se sentia preparada. “Não tinha nada em mente, só queria cantar”, lembra. Após dois anos pensando no disco, ela começa a se dedicar mais à escolha do repertório e a linguagem que quer passar.

SÃO PAULO, SP, BRASIL, 10-10-2015, 19h: Retrato da cantora Xênia França. (Foto: Lucas Lima/riscafaca).
Crédito: Lucas Lima/Risca Faca

Quando Xênia era adolescente, queria ser jornalista, inspirada pela Glória Maria, repórter da Rede Globo. “Não pensava muito na coisa da negritude nessa época, mas já sentia uma diferença ali, que só existia uma mulher preta ali na televisão que a gente assistia.” Mas seu professor de português, que já havia sido jornalista, recomendou um texto sobre a falta de liberdade de expressão causada pelas famílias que controlam as grandes mídias, e ela desanimou. Fez Comunicação Social, mas com a especialização em Publicidade. “Na escola eu não suportava estudar, mas quando entrei na faculdade achava o máximo estudar e ler coisas que estavam diretamente ligadas à minha personalidade”, recorda. Mesmo assim, viu que a profissão não era pra ela.

Aos 17 anos, Xênia se inscreveu num concurso da revista Raça Brasil. Não ganhou, mas ficou entre as dez primeiras e foi para São Paulo em 2004 trabalhar como modelo em uma agência especializada em negros. A primeira pessoa que conheceu na capital paulista foi Samira Carvalho, a garota que estava na capa da revista Raça quando ela se inscreveu no concurso. “Ela tava sentadinha no chão, fazendo tricô”, conta Xênia. Samira é top model e agora vende suas belíssimas criações em tricô e crochê na marca que criou, a Sambento. Ela também é uma espécie de consultora de estilo de Xênia, emprestando roupas e ajudando no styling. Foi Samira quem fez o vestido sob medida usado por Xênia no show de lançamento de Corpura, no Auditório Ibirapuera. “Assim que a Xênia chegou rolou uma conexão boa entre a gente”, conta Samira.

A vida de modelo não foi fácil. Eram poucas as ofertas para as negras, e o que ela mais fazia era, ironicamente, trabalhos para publicidade. Grande parte do sustento vinha da mãe, e ela diversas vezes fazia as malas, preparada para voltar à Bahia, até que alguma coisa a fazia ficar. “Cheguei aqui [em São Paulo] querendo ser a Gisele Bündchen e tomei um baque.” Mas ela fez amigos, entre eles os integrantes da banda de rock Sorriso Vertical, que costumava tocar no Sarajevo, casa noturna da rua Augusta que ela frequentava.

Em 2007 ela mudou da região da Augusta para o Itaim Bibi, e os amigos do Sorriso Vertical sempre apareciam para encontros na casa dela. Eles se juntavam para cozinhar, assistir filmes, e principalmente tocar violão na cozinha, quando ela cantava despretensiosamente. O guitarrista da banda, Caio Echem, elogiava sua voz, mas ela não dava muita bola. Porém, na metade daquele ano, Caio a convidou para montar uma banda de samba rock (“nessa época estava no auge”), e ela aceitou. Uma semana depois, ela faria sua primeira apresentação como cantora no aniversário de uma amiga do baterista.

Ela ainda trabalhava como modelo, mas momentos importantes foram acontecendo — rápido e aos poucos — em sua carreira musical. Em 2008, ela foi assistir ao VMB e reencontrou Fred Ouro Preto, também do Sorriso Vertical, que concorria pela direção do clipe “Triunfo”, do Emicida. Fred apresentou os dois, passou o telefone da Xênia para o Emicida, e um belo dia, enquanto ela estava em um casting, o rapper ligou perguntando se ela podia aparecer no estúdio, porque ele precisava de uma voz feminina. Ela saiu da prova de roupa, foi encontrá-lo e gravou pela primeira vez em um estúdio.

A vida de modelo/cantora foi sendo levada, com anos de apresentações na noite paulistana na bagagem. Mas só tocar na noite não a satisfazia mais, e ela começou a montar o Aláfia, onde realizaria seus desejos artísticas no momento. E ser modelo também já não era legal. “Sentia que estava insistindo numa coisa que não era pra mim”, diz. A transição de modelo para cantora foi bem difícil, o dinheiro faltava, e ela passou dez meses trabalhando em uma loja na Oscar Freire, para se sustentar enquanto o Aláfia preparava o primeiro disco. “Mas cada vez que eu tava num estúdio, me sentia muito satisfeita. Muito diferente de quando eu era modelo e tava num trabalho já pensando em quando seria o próximo.” Ser cantora não estava nos planos quando Xênia saiu de Camaçari, na Bahia (ela foi criada lá, mas nasceu em Candeias), mas a música foi um canal para ela encontrar o melhor de si.

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Xênia no show de lançamento do disco "Corpura", do Aláfia. Crédito: Divulgação
Xênia no show de lançamento do disco “Corpura”, do Aláfia. Crédito: Divulgação

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“Ela é uma deusa e vai ganhar o mundo”, me disse a cantora Tássia Reis quando perguntei se ela poderia falar sobre a Xênia. Tássia gravou com o Aláfia, participa dos shows, e acabou “fazendo uma ocupação na casa dela” por alguns meses, quando chegaram a compor juntas. “Ela me chamou pra uma música. Escrevi uma parte, acompanhei de ver ela compondo na sala, ficou incrível. Ainda não gravamos”. A Xênia tinha me dito que “quebra a cabeça para aprender a tocar violão”, e fico surpresa em saber que ela já está compondo com o instrumento. “Ela é muito talentosa e sagaz”, explica Tássia.

A Xênia tem essa aura que encanta, atrai a atenção pra ela. Coisa de deusa mesmo. E ainda essa facilidade de se conectar com as pessoas instantaneamente. “Tenho a imagem daquele dia que, quando olhei pra cara dela e começamos a conversar, foi um tal de dar risada geral. E guardo essa sensação — parece até reencontro, manja?”, recorda Pipo Pegoraro, músico solo e companheiro de Aláfia, sobre o dia em que conheceu a cantora.

Vê-la falar com propriedade sobre política, racismo, ou mesmo os quasares reforça essa impressão de que ela é uma mulher perfeita (e ainda assim acessível). E por mais que Xênia gaste muito tempo falando sobre ter evoluído em sua relação com o mundo e consigo mesma, ela às vezes gosta de lembrar da sua humanidade. “Tenho meus traumas, mas tento resolvê-los, não fico sofrendo. Às vezes fico, porque eu sou uma pessoa.” Se livrar do drama que acompanha todo pisciano é um exercício diário. Ela explica que, no dia anterior, foi dormir às 3h da manhã, em crise, achando que tinha se “comportado de maneira errada com uma pessoa”. Quando acordou, leu um livro (“O Poder do Agora” é sua Bíblia), foi ao templo, e fugiu do limbo do sofrimento. “Pra poder eu ser isso aqui, tenho que me esforçar muito, porque não sou tão calma.”

Xênia tem esse jeito particular de resolver seus conflitos. Seu pai morreu jovem, “acho que com 51 anos”, e chegou a acompanhá-la em um desfile, mas nunca a viu cantar. “Minha mãe é um pouco mais fria com esse lance de música, e acho que meu pai ia pirar. Fico pensando que ele podia ver, e agora não dá mais tempo.” Naquela semana, ela teve um sonho com seu pai. Estava conversando com um amigo – que no momento ela ainda não sabia, mas também era órfão de pai – sobre o assunto, e comentou: “Tanta coisa que a gente tinha pra resolver, né? Como faz pra resolver isso com eles? Acho que só em sonho”.

O pai dela se sentava ao piano e fazia uma música. Ela ouvia com clareza a letra e a melodia. “Acordei arrasada e mandei [uma mensagem de] áudio para o meu amigo na mesma hora. Aí eu cantei a melodia pra ele. Não lembro a letra, mas ele falou que a gente vai fazer essa música.”

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Crédito: Lucas Lima/Risca Faca
Crédito: Lucas Lima/Risca Faca

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Nas duas vezes que nos encontramos, Xênia falou que, se ela estava ali conversando comigo, era por causa de sua mãe. Mais especificamente, por causa de uma professora que se encantou com a dona Dalva Estrela, achou que ela tinha potencial e a levou pra Salvador para estudar. Dalva acabou de se formar em sua segunda faculdade, e pretende cursar a terceira. “O vislumbre que a professora [que ela considera vó postiça] deu à minha mãe, minha mãe passou para mim. Nenhuma outra pessoa na minha família teve o deslumbre de viver de arte, só eu.” Xênia menciona o tempo todo a admiração que tem pela mãe, e como ela é um exemplo de superação.

“Tenho muitas lembranças dela pequenina, nossos passeios no Club da Fábrica onde o pai trabalhava, as peraltices dela, subindo nas árvores, e eu correndo atrás dela para não se machucar. Estava sempre tentando protegê-la”, conta Dalva. Xênia é filha única de mãe solteira, e as duas criaram um laço forte, tornando o impacto da mudança da cantora para São Paulo ainda maior, e bastante sofrido para Dalva.

Os pais de Xênia se conheceram numa festa, “tipo uma quermesse”. Ele era técnico de som, mas tocava violão e cantava. “Era alucinado pelo Emílio Santigao, que é uma das minhas influências musicais por causa dele”, confessa a cantora. O casal se separou, e Xênia cresceu sem muita proximidade do pai, o que tornou a morte ainda mais difícil para ela. E ele pode nunca ter visto a filha cantar, mas com certeza influenciou a veia artística dela. Seus brinquedos de infância eram todos instrumentos, de tecladinho a harpa.

***

Ser uma cantora negra, mesmo de boca fechada, já é ser a própria militância. Xênia faz essa observação antes de me dizer que acha importante se posicionar, para poder quebrar os esterótipos. “Nem posso dizer que sou uma militante; sou uma figura que contribui para que essa falta de representatividade seja menor.” E ela faz isso não só por meio de sua arte, mas também pelo jeito como vive, se dando o prazer e o “direito” de frequentar onde quiser, de andar na rua balançando um leque em um dia de calor. “Não me vejo como uma pessoa negra, eu me vejo como uma pessoa.”

Ela acredita que, em 2015, começamos a ter um vislumbre de democracia racial. Mas ainda há um racismo institucionalizado que impede que as pessoas negras se desenvolvam no Brasil, mantendo os negros em subempregos. Além, é claro, do racismo mais óbvio, na forma de agressões. “Não sei se é porque eu imprimo uma consciência muito forte de quem eu sou, esse racismo não me atinge”, diz, explicando que sabe muito bem o que dizer caso alguém tenha o “equívoco de me agredir com essa pobreza de espírito”, mas que isso nem a ocorre. “Mas não posso achar que porque minha vida é boa que a vida de todo mundo tá legal.”

Alguns dias depois da entrevista, Xênia me envia um texto sobre a solidão da mulher negra, para que eu entendesse melhor do que ela estava falando quando disse que “a mulher negra não namora, ela está sempre ficando”. Vem sendo abordado recentemente por ativistas a preterição da mulher negra nos relacionamentos afetivos heterossexuais, tanto por homens brancos quanto por homens negros. É um reflexo do estereótipo da negra como mulher “quente”, que é objeto de fantasias sexuais mas não “serve” para um relacionamento sério.

Xênia tem 27 anos, e teve seu primeiro namorado aos 24. Antes disso, ela só ficava. “Na hora do ‘vamo ver’ os caras não queriam namorar. Ficava pensando ‘será que sou chata, que sou feia, será que é por que eu sou negra?’ Hoje em dia não penso mais nada disso, mas nessa época tinha esses conflitos.” Ela conheceu Lucas Cirillo, gaitista do Aláfia, quando a banda estava se formando, no começo de 2011. Eles se tornaram grandes amigos, mas só foram ficar em outubro – ele já estava encantado por ela, mas Xênia não dava muita bola. “Ficava eu bobão, aí eu desencanei de correr atrás dela, aí inverteu a história. Foi ela que enquadrou”, resume Cirillo. Xênia foi quem pediu o gaitista em namoro, e em março eles completam quatro anos juntos.

“A gente tenta limitar a hora que vai falar de banda e a hora que vai falar de namoro”, explica Cirillo. A parceria, é claro, se estende na música, e um ajuda o outro na hora de avaliar as composições ou opinar no trabalho. “Quando ele me mostrou ‘Cala’, na cozinha de casa, eu falei ‘essa música é a cara do Aláfia’, porque existe um tipo de composição que é para o Aláfia”, tinha me contado Xênia quando falávamos de Corpura.

Os dois demonstram imensa admiração pelo outro. “A gente conversa sobre tudo, traição, ciúme, eu ser preta, ele ser branco”, diz Xênia. Ela elogia bastante o fato de Cirillo não ter ciúme, ainda mais por ela ser uma pessoa expansiva – dessas que beija, abraça e é atenciosa com todo mundo. “Fui eu que escolhi ele. E foi uma ótima escolha.”

Depois de resolver tantos conflitos internos, a vida afetiva de Xênia é uma aspecto que ela “não tem do que reclamar”. E o sentimento parece mútuo: “É claro ver como ela é encantadora onde ela chega, não só pela beleza mas pelo espírito alegre e contagiante. Ela tem um ímpeto, uma garra, um espírito guerreiro que é muito bonito de ver”, elogia Cirillo.

No show de lançamento de Corpura, no Auditório Ibirapuera, Xênia era inevitavelmente o centro das atenções, com seu vestido longo com fendas nas pernas e brincos enormes. Mas em dado momento, quando Brechó e Jairo cuidavam dos vocais, ela foi para o canto, como se ninguém tivesse olhando, e conversou por alguns momentos com o gaitista. O brilho que ela tinha nos olhos era algo que não dá pra fingir.

***

Xênia Eric Estrela França ganhou esse nome inspirado na jornalista Xênia Bier. “Achava ela incrível e muitíssimo inteligente. Acho que acertei, pois também acho minha filha incrível e inteligentíssima”, ri Dalva, mãe da cantora. Xênia é um nome de origem grega que significa estrangeira, hospitaleira. “Não sei se o significado é tão impactante quanto o nome, porque acho meu nome muito forte. E acho que sou Xênia mesmo. Não teria outro nome. Acho que é assim que me sinto no mundo também, meio estrangeira. Me sinto muito de passagem aqui. Vim aqui pra aprender, muitas vezes fico bastante chocada. Não consigo entender direito o porquê das coisas, das injustiças.”

Ela me diz que gosta de dar conselhos. Já tinha reparado: suas respostas, sempre longas e elaboradas, costumam terminar com algum tipo de conselho (“acho que todo mundo tem que fazer terapia”). Mas Xênia também gosta de aprender, de receitas saudáveis a como tomar vinho até ao cosmos, o assunto que ela mais se dedica. Música ela só ouve em casa se tiver fazendo alguma pesquisa.

A padaria chiquezinha da Vila Madalena fecha, e Xênia senta comigo num parklet. Cai uma chuva fina. Ela fala sobre suas grandes amigas, Indira e Samira, que são como irmãs; sobre a magnitude do planeta; sobre energia. “Esses dias o seu Mateus Aleluia descobriu que tem uma pantera na África que chama ‘tchênia’. Ele ficava no palco falando ‘tchênia’, e eu achava o máximo, ficava me sentindo”, lembra, rindo. Suas roupas coloridas ficam ainda mais estilosas em seu corpo de 1,73m de altura. Seu cabelo volumoso continua impecável. Xênia olha no seu olho, pega no seu braço, por poucas vezes parece calcular as palavras, e quase sempre fala com uma espontaneidade de quem é segura de si. Xênia domina o ambiente. Como uma pantera.

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Cultura

MC Soffia, 11: “Duro é seu preconceito”

São 15h10 de uma terça-feira e cerca de 200 pessoas estão acomodadas num auditório da Fábrica de Cultura da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, enquanto o rapper Thaíde se apresenta. O show vai bem, o cantor caminha pela plateia, há um clima meio família no ar. Mas a coisa esquenta mesmo quando Thaíde diz, depois de três músicas, que tem uma convidada. “Quem vem aí?”, pergunta ele. E o público urra em coro: “Soffia!”.

Em meio a palmas e gritinhos, Thaíde fala: “É uma honra apresentar… Apresentar não, porque ela já é conhecida. Mas é uma honra ter aqui a MC Soffia!”. Parte do público — maioria de crianças e pré-adolescentes — fica de pé para receber Soffia, menina de 11 anos que entra no palco como se o fizesse há anos. Com um laço azul no cabelo black power, MC Soffia chega comandando a massa: “Todo o mundo de pé, família!”. Seu pedido é prontamente atendido.

MC Soffia é diferente dos também jovens MCs Pedrinho, Brinquedo, Pikachu e Melody, que cantam um funk mais pesadão, com citação a uma penca de drogas e muita putaria. O negócio de Soffia é hip hop, com rimas feministas que exaltam a cultura negra. Antes de chamar Soffia ao palco, Thaíde diz que cantar é divertido, mas que é um trabalho “responsa”. A música tem que ter algo positivo, algo a dizer que as pessoas precisem ouvir. Soffia tem a mesma filosofia.

Seus primeiros versos são “joga a mão pra cima pra entrar no clima” e depois vêm “na escola eu apavoro e só tiro dez”, “represento as crianças e o público feminino”, “África, onde tudo começou, África, onde está meu coração”, “eu sou negra e tenho orgulho da minha cor”. As crianças na plateia respondem dançando, cantando junto e tirando fotos enquanto Thaíde e os MCs que o acompanham ficam ao fundo do palco, fazendo backing vocal, claramente se divertindo enquanto Soffia manda suas rimas. “Eu me encho de alegria ao ver uma menina dessa idade falando da sua negritude”, diz ele.

Aí vem o hit de Soffia, “Menina Pretinha”, cujo refrão resume sua mensagem: “Menina pretinha, você não é bonitinha. Você é uma rainha”. Nessa hora, a cantora chama “quem tiver coragem” para subir no palco e dançar com ela. Entre os voluntários há meninos e meninas, que acompanham a rapper até o fim da canção. Thaíde toma de novo a frente e diz que o que falta no mundo hoje é respeito e o reconhecimento de que todos somos iguais. O show continua, mas Soffia sai do palco e o assédio do público começa.

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Crédito: Rodrigo Esper

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No caminho para o camarim, algumas crianças pedem para tirar selfies com ela. Sorridente, atende todos. Chega então uma mulher, que diz que só tirou na vida fotos com dois cantores antes dela: Chico César e Luiz Melodia. Ela fala para Soffia que só quer registro de artistas que admira. Diz ainda que tem um projeto educacional e adoraria que a cantora falasse com seus alunos, já que ela tem tanto a dizer.

Na fila para falar com ela tem também um fotógrafo, que pede para fazer só quatro fotos, prometendo que é rápido. O tempo é curto, ela tem mais gente para atender (entrevistas, fãs, outros fotógrafos), mas ela topa, desde que seja ali mesmo no camarim. Sorri e faz pose de modelo — apoia o pé na parede e coloca as mãos na cintura. “Ergue o queixo”, pede o fotógrafo. Ela ajusta a pose rapidamente e se senta para conversar.

Começa a responder a primeira pergunta quando abrem a porta do camarim: “Soffia, o Thaíde está te chamando pra voltar pro palco. Desce lá um minutinho?”. Ela pede licença e continua a jornada de trabalho. E era só o começo da semana: ela ainda se apresentaria com Thaíde até a outra segunda, com folga apenas no sábado, em outras Fábricas de Cultura — Capão Redondo, Brasilândia, Jardim São Luís e Jaçanã — e em Araras, no interior de São Paulo.

CRIANÇAS DO HIP HOP

De volta ao camarim Soffia conta que sempre gostou de música. “Meu biso tocava vários instrumentos de corda, e eu comecei a cantar quando tinha seis anos”, diz. Como ídolos musicais, cita várias mulheres negras: Beyoncé, Nicki Minaj, Rihanna, Jennifer Lopez, Karol Conká, Flora Matos, Divas do Hip Hop. “Gosto de todas as mulheres que cantam”, resume, depois de pensar um pouco. Entre homens cita Dexter, Racionais, Jay Z.

Sua mãe, Camila Pimentel, foi quem a apresentou ao hip hop. “Eu frequentava os eventos. Trabalhava na Coordenadoria dos Assuntos da População Negra [da Prefeitura de São Paulo] e procurava levar a Soffia. Sempre levei em shows, eventos culturais de hip hop”, conta.

Soffia sempre gostou de cantar. “Mas não assim, em lugares. Cantava em casa.” Foi quando fez uma oficina do projeto Futuro do Hip Hop — que dá aulas de MC, DJ, dança break — que começou a fazer isso em público. Viu seu amigo Tum Tum, outro MC mirim, cantando e quis fazer o mesmo. Aos sete anos, tomou gosto pela coisa.

[citacao credito=”Mc Soffia” ]Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito[/citacao]

Depois, entrou para o coletivo Hip Hop Kidz — formado por sua mãe –, que desenvolve o intercâmbio cultural com crianças e jovens da periferia e que conta com seis rappers mirins. “Nas periferias tem muitas crianças sem perspectiva, que não têm oportunidades, referências ou acesso à cultura”, diz Camila. “Criei esse projeto com algumas crianças que eu já conhecia, trabalhando os quatro elementos do hip hop. Fui contemplada por um edital e fizemos um circuito pelas periferias de São Paulo. Mas não consegui mais incentivo e eu preciso disso pra transporte, alimentação, ajuda de custo.”

Na plateia dos shows, conta Camila, havia uma maioria de crianças, sempre interessadas. “Elas viam uma possibilidade de um futuro diferente, uma outra possibilidade de vida na periferia.” Às vezes o grupo ainda faz shows, mas não com tanta frequência. “Está meio parado, já mandei o projeto pra dois editais. Mas é acertar na loteria, não é garantido.”

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Crédito: Rodrigo Esper

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Com o Hip Hop Kidz, Soffia começou a fazer seus primeiros shows. Só recentemente passou a se apresentar sozinha. Foi se apresentando com o grupo, inclusive, que conheceu Thaíde. “Fiz um show na Praça das Artes e encontrei com ele. A gente começou a conversar. A mulher dele ligou depois pra minha mãe pra falar desse show. Vai ter a semana inteira”, diz, animada.

Antes de subir no palco sente “muito, muito medo”. Quando está lá, porém, o nervosismo passa. “No palco é normal”, afirma. Minutos antes havia mostrado que tem mesmo jeito pra coisa: pedia para a galera ficar de pé e bater palmas, apontava o microfone para a plateia na hora de seus refrões e puxava coros.

Está se acostumando à rotina cheia, às sessões de foto e às entrevistas. “Fui na Fátima agora”, conta, referindo-se ao programa “Encontro com Fátima Bernardes”, na Globo, para o qual foi chamada em setembro. Naquele mês, também foi a Brasília ao ser convidada pelo Ministério da Educação para abrir um seminário internacional de direitos humanos e desenvolvimento inclusivo.

DURO É SEU PRECONCEITO

No começo, as letras de Soffia eram escritas nas oficinas. Agora já começa a compor suas próprias rimas sozinha. “Estou fazendo uma que diz que não tem essa de brincadeira de menino e de menina”, conta. As letras exaltam o estudo, falam do empoderamento feminino e da cultura negra. Quando era mais nova, Soffia sofreu racismo na escola e disse para a mãe que queria ser branca. Camila conversou com ela e hoje Soffia exibe orgulhosa o cabelo black power. “Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito” é a resposta da menina para racistas.

O feminismo também tem o dedo da mãe. Elas estavam em Maceió quando se depararam com um livro sobre mulheres que fizeram história no Brasil, do qual ela não se lembra o nome. “Ela leu o livro e eu disse que ela poderia aproveitar e fazer uma pesquisa mais aprofundada sobre alguma dessas mulheres”, diz Camila. “Falei: ‘Você escolhe algumas delas pra citar na sua música’. Ela pesquisou algumas e agora está pesquisando sobre outras.”

Os estudos sempre foram estimulados em casa. “Crianças da periferia não costumam ter esse incentivo. Sempre incentivei ela a ler, a interpretar texto. Fiz isso dentro de casa até perceber que ela tinha criado o gosto. A professora dela diz que ela é uma das poucas alunas que faz as pesquisas e depois dá seu parecer”, conta a mãe. “Ainda hoje eu falo pra ela: vamos pegar um livro aí.”

A matéria favorita de Soffia na escola, não por acaso, é história, diz ela sem titubear. “Estudo bastante, gosto muito de pesquisar.” E só tira dez como diz na música? “Aham”, sorri. Ela confirma o depoimento da mãe e conta que gosta de pesquisar particularmente a história de mulheres negras. “Estudo Anastácia, Clementina de Jesus, Carolina de Jesus, Chica da Silva, Cleópatra. Já pesquisei sobre todas elas” — todas as mulheres são citadas em suas canções. Na escola, diz, é só Soffia e não MC Soffia. Todo o mundo sabe que ela canta e faz shows, mas lá é uma criança como as outras.

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Crédito: Rodrigo Esper

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Agora, Soffia faz uma campanha na internet para arrecadar fundos para seu primeiro disco, chamado “Menina Pretinha”. Entre seus planos para o futuro mais distante está continuar a cantar, mas também quer ser médica e trabalhar como modelo e atriz. “Agora eu falo tudo isso, mas vamos ver quando eu crescer”, ri. Por enquanto quer estudar medicina para poder ajudar as pessoas, e quer atender especialmente negros e índios. “Eu quero dar medicamentos, fazer hospitais melhores. Quero ser uma médica negra.”

A essa altura da conversa, Thaíde e o resto dos músicos já estão no camarim e Soffia tem muito o que fazer. Vai posar para fotos com os companheiros de palco e depois atender as crianças que fazem fila para dar um oi para ela. Antes de a porta se fechar, ainda dá tempo de ouvir Thaíde elogiar a garota. “Mandou ver, hein, Soffia!”