Tudo que “Doutor Estranho” tem de esquisito está no nome. Se fosse uma comida, o filme, que estreia na quinta (3), estaria mais para um prato que você comia na infância do que para um de um restaurante de vanguarda. Num ano cheio de filmes cheios de personagens, com vários heróis (ou vilões) eutando juntos ou uns contra os outros, “Doutor Estranho” chama a atenção por ser, de certa forma, mais tradicional. É um filme sobre as origens de um herói só: o Doutor Estranho do título — sua versão do clássico “tio Ben + mordida de uma aranha radioativa” que já vimos mil vezes.
No início da história, Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) é um cirurgião tão brilhante quanto arrogante. Tempos atrás, teve um romance com Christine (Rachel McAdams, infelizmente desperdiçada), que naufragou por causa de — tudo leva a crer — seu ego inflado. Stephen trata seus colegas como inferiores e seleciona a dedo os casos que pega: têm que ser difíceis, para serem dignos de seu tempo, mas não tão difíceis a ponto de significar uma possível mancha em seu currículo. Sua vida é operar — e gastar o dinheiro com relógios, carros, um apartamento incrível em Nova York –, até que ele sofre um acidente de carro que destrói suas mãos.
Christine, a clássica ex-namorada compreensiva que dá apoio ao herói atormentado, lhe diz que a vida continua. Ele não pode mais salvar vidas com seu bisturi, mas certamente pode arranjar outras formas de fazê-lo, afirma, prevendo o resto da trama. Obcecado, Strange ouve falar que há uma cura possível em Catmandu, no Nepal. Lá, ele conhece a Anciã (Tilda Swinton), uma maga que, com seus discípulos, protege a Terra de forças do mal. Um de seus alunos (Mads Mikkelsen), porém, vai para o lado negro da força, rouba uma página de seu livro secreto de rituais, e tenta colocar o mundo nas garras do supervilão Dormammu.
Stephen quer aprender magia só para curar as mãos e, no começo, não liga muito pra essa história de salvar o mundo. Bom, como essa história termina você já deve saber mesmo sem ter visto nenhum filme de super-herói. “Doutor Estranho” é um filme clássico desse gênero, sem grandes surpresas, mas com muito mais cores e visuais saídos de uma viagem de ácido. É “A Origem” elevado à enésima potência, com muito mais psicodelia. Visualmente, é interessante — o tipo de filme que fica melhor numa sala de cinema, e no qual o uso de 3D não é completamente desnecessário.
Depois de ver Apocalipse (dois, igualmente horríveis: o de “Batman vs Superman” e “X-Men”) e Magia (“Esquadrão Suicida”), Kaecelius, o vilão mais proeminente de “Doutor Estranho”, é uma alegria. É bom ver a cara dele e o ator atuando (parece uma coisa óbvia, mas não é). Também é possível entender qual é seu plano e qual é sua motivação (novamente: nem todo vilão cumpre esses requisitos que parecem básicos). É interessante também ver a história de Mordo (Chiwetel Ejiofor), um vilão nos quadrinhos, mas parte dos discípulos da Anciã, lutando pelo bem nesse filme. Dá pra ver que é um filme construído com o futuro em mente.
Strange também é bem construído e tem um bom arco: de médico metido a vítima desesperada, passando por cético que só acredita na ciência até se tornar um super-herói, disposto a arriscar seu pescoço pela humanidade. Apesar dessa jornada ser meio rápida (afinal, o filme não é tão longo), cada etapa do seu percurso faz sentido. Benedict Cumberbatch, acostumado a fazer papéis de gênios hiper-racionais, mostra aqui seu carisma e chega até a fazer umas piadinhas — é um filme com referências bem pop, que chega a citar Beyoncé.
Mas apesar do visual bonito e de ser um filme competente, “Doutor Estranho” não se diferencia muito de outros filmes de super-heróis. Tem a mulher doce e inteligente, mas pouco desenvolvida, a figura sábia que ensina tudo o que o herói sabe, o vilão todo poderoso, a cidade destruída, um portal no céu. O que mudam são os detalhes. Não é um problema, nem todo prato precisa de ser vanguarda — familiar também é bom. “Doutor Estranho” só não é lá muito memorável. No fim das contas, o filme não é tão estranho assim.
Saindo da sessão de “O Bebê de Bridget Jones”, sala cheia em um sábado no shopping, um sentimento estranho, meio nostálgico pairava no ar. Uma lembrança de 2003, 2004, quando assistir a uma comédia romântica no domingo à tarde era um programa comum. Explica-se o estranhamento: as comédias românticas estão em extinção. Pare uns minutos para aceitar esse fato — nem todo o mundo aceita essa afirmação de primeira. “Ah, mas eu vi uma comédia romântica outro dia”, você pode dizer. Repare na data desse filme. É recente mesmo? E depois: tem certeza de que é uma comédia romântica e não só uma comédia ou um drama romântico? Caso a resposta para as duas perguntas seja “sim”, ok, você achou uma exceção. Afinal, as comédias românticas estão em extinção, não completamente extintas.
Dos anos 1980 aos 2000, as comédias românticas viveram uma era de ouro — não só em quantidade, mas em qualidade. “Harry & Sally: Feitos um para o Outro”, de 1989, concorreu ao Oscar de roteiro original; Renée Zellweger disputou a estatueta de melhor atriz em 2002; atores como Tom Hanks e Sandra Bullock, ambos vencedores do Oscar, eram figurinhas fáceis em filmes do gênero. Você sempre podia contar com Meg Ryan ou Hugh Grant, o rei da comédia romântica, para protagonizar outra história em que garoto conhece garota, garoto e garota enfrentam algum empecilho (um deles está num relacionamento, o outro não quer compromisso, os dois não querem arruinar uma amizade), até que garoto e garota descobrem que foram feitos um para o outro e vivem felizes para sempre. Comédias românticas, com algumas exceções, costumam seguir um roteiro básico. Mas seu atrativo não é a previsibilidade, e sim uma sensação confortante de que tudo vai ficar bem.
Tom Hanks e Meg Ryan — que fizeram juntos “Joe Contra o Vulcão” (1990), “Sintonia de Amor” (1993) e “Mensagem pra Você” (1998) — passaram o bastão para Hugh Grant — de “O Diário de Bridget Jones” (2001), “Amor à Segunda Vista” (2002), “Simplesmente Amor” (2003), “Letra e Música” (2007) — e Drew Barrymore , que fez (segura que a lista é longa): “Afinado no Amor” (1998), “Nunca Fui Beijada” (1999), “Como se Fosse a Primeira Vez” (2004), “Amor em Jogo” (2005), “Letra e Música”, “Ele Não Está Tão a Fim de Você” (2009) e “Amor à Distância” (2010). A comédia romântica deu um último suspiro com Ashton Kutcher, que tem um currículo cheio de filmes do gênero e Katherine Heigl, cuja última comédia romântica no currículo é a mesma de Kutcher: “Noite de Ano Novo”, no distante ano de 2011.
Desde o início da década, caiu muito o número de estreias de comédias românticas. Sim, são lançadas comédias em que há um quê de romance (“Como Ser Solteira”, deste ano, por exemplo) e são lançados filmes românticos que tenham alguns momentos engraçados. Mas um verdadeiro filme do gênero é uma comédia em que a principal trama seja romântica — “Legalmente Loira”, por exemplo, não entra na lista, já que o romance de Reese Witherspoon e Luke Wilson é secundário. São esses os filmes em extinção. Mesmo quando uma comédia romântica é feita, ou ela chega sem estardalhaço (“Será Que?”, com Daniel Radcliffe, que estreou no Brasil dois anos atrás) ou nem estreia por aqui, caso de “Sleeping with Other People”, bom filme com Alison Brie e Jason Sudeikis.
Há vários fatores jogando contra a comédia romântica, que talvez possam explicar porque ela foi deixada de lado. Hoje o foco dos grandes estúdios é fazer filmes que possam virar franquias, se desdobrar em outros muitos filmes. Além dos filmes de super-heróis, da Marvel e da DC, há a franquia de Star Wars, a nova série de filmes do universo de Harry Potter (serão cinco filmes sobre criaturas mágicas), Jason Bourne, 007, Jurassic Park, Jack Reacher… Até “Truque de Mestre” ganhou uma continuação neste ano. Com comédias românticas, isso não é tão fácil: o “felizes para sempre” não é tão legal de ver quanto o caminho até ele. Tem exceções, como Bridget Jones, que chegou ao terceiro filme. Mas são raras.
Além disso, comédias românticas — como comédias, de modo geral — são mais difíceis de traduzir, de serem entendidas por outras culturas, que têm outro humor. E o mercado internacional, principalmente a China, é responsável por grande parte dos lucros de um filme. É mais fácil que um “Mad Max”, com pouquíssimo diálogo e muita ação, seja um sucesso internacional do que uma história sobre os percalços enfrentados por um casal jovem e branco em Nova York. Tem também o mito de que só mulheres gostam de comédias românticas. Para atrair também o público masculino, coloca-se às vezes um elemento de ação na trama — caso de “Par Perfeito”, com… Ashton Kutcher e Katherine Heigl. Também pesa a favor dos filmes com mais efeitos especiais e cenas de ação que é maior o atrativo para que as pessoas os vejam na sala de cinema. Um romance pode ser visto tranquilamente em casa, sem que se perca muita coisa, diferente de um “Gravidade” ou “Avatar”.
Mas talvez tudo isso fosse diferente se a geração de Hugh Grant e Sandra Bullock tivesse passado o bastão para atores melhores. Uma comédia romântica depende 100% de química entre os atores e roteiro. Não há efeitos especiais e grandes cenas de batalha para distrair o espectador, como em “Batman v. Superman”. Se os atores não tiverem sintonia, o filme não dá certo. Tom Hanks é puro carisma, Hugh Grant é o charmoso canastrão, Sandra Bullock era a desengonçada mais preocupada com a carreira do que com o amor, Drew Barrymore era a fofa. Ashton Kutcher não tinha essa magia — assista “Sexo sem Compromisso” pra ver. Katherine Heigl tampouco — e ainda foi prejudicada pela fama de antipática. Uma boa comédia romântica tem alguém tão famoso quanto simpático, por quem você torça, com quem você sofra junto. Não era o caso dessa última geração, e depois deles ninguém mais assumiu o trono. Quem poderia fazer isso? Emma Stone, por exemplo, tem carisma pra tanto. Mas quem poderia ser seu par? Zac Efron não é nenhum Hugh Grant.
A última safra de comédias românticas foi tão fraca, que não é bem surpresa que as pessoas tenham um pé atrás com o gênero — atores, estúdios, diretores, público. As boas comédias românticas ficaram nos anos 1990 e 2000. Mas “O Bebê de Bridget Jones” — por mais surpreendente que isso pareça — está aí para provar que com bons atores e um roteiro redondo, o gênero ainda dá um caldo. Nada como uma boa comédia romântica num fim de domingo.
Seis anos atrás, Petr “Harmy” Harmáček assistiu a uma reconstrução da versão original de “O Império Contra-Ataca”, feita por um fã, sem as alterações que George Lucas fez em seus filmes ao longo dos anos. Harmy pediu ao criador que lançasse uma versão do vídeo numa resolução melhor, em alta definição. “E ele me disse: ‘Se você quer tanto, por que não faz você mesmo?’”, conta ele. Sem experiência alguma com edição de vídeo, Harmy resolveu tentar mesmo assim. A primeira vez que tinha assistido a “Star Wars” foi aos cinco anos, e durante a infância teve batalhas de sabre de luz épicas com os amigos. “Eu tinha a cópia de uma cópia de um VHS velho da versão original de ‘Star Wars’, que vi tanto quando criança que gastou. Nos casos de ‘O Império Contra-Ataca’ e ‘O Retorno de Jedi’, vi as versões especiais antes e tive muita dificuldade para achar as originais em VHS aqui na República Tcheca”, diz.
Para quem não é particularmente fã da obra de George Lucas, o parágrafo acima talvez não faça muito sentido. Uma explicação, nas palavras de Harmy. “Em 1997, a chamada Edição Especial de ‘Star Wars’ foi lançada, com muitas alterações de áudio e vídeo, e todo o mundo achou que seria só uma versão alternativa divertida. Mas George Lucas disse: ‘Essa é minha visão original. Era isso que eu queria e agora será a única versão disponível’. Mas em 2004 saiu um DVD com mais alterações. Então onde estava a ‘visão original’ de 1997? E então, em 2011, o Blu-ray saiu com mais mudanças e até hoje a versão original não foi lançada numa qualidade decente.” Para quem não viu “Star Wars” quando os filmes foram lançados no cinema, ver as versões originais ficou muito difícil. Por vias oficiais, impossível.
O problema, para Harmy e muitos fãs de “Star Wars”, não é a existência de várias versões. Muitos filmes têm versões diferentes, cortes do diretor. “O problema real é a supressão intencional da versão original, historicamente importante e que ganhou sete estatuetas do Oscar — e que teve boa parte de seus aspectos que o fizeram levar tantos prêmios alterados depois”, afirma. Harmy conta que viu palestras em que os técnicos de efeitos especiais falavam sobre as técnicas utilizadas, os modelos de naves espaciais, o trabalho de câmera e os efeitos de óptica, enquanto uma tela atrás mostrava os efeitos computadorizados de 1997. “Isso é simplesmente errado.”
Com apenas uma experiência limitada com Photoshop no currículo, Harmy resolveu tentar fazer sua versão mesmo assim, assistindo a tutoriais na internet para fazer as coisas que precisava. Lançou, ao final, a versão “anti-especial”, chamada de “Partly Despecialized Edition”, da trilogia original de George Lucas. “Chamei assim porque peguei as Edições Especiais e tirei só as piores alterações”, lembra. Quando lançou a primeira versão, tinha aprendido tanto sobre edição de vídeo que quis recomeçar o processo, porque achava que já conseguiria fazer algo melhor. “Consegui remover a maioria das mudanças. Então tirei o ‘Partly’ do título e virou só ‘Despecialized Edition’.”
Antes de pensar em editar “Star Wars”, Harmy era fascinado por efeitos especiais, principalmente sobre como eles eram feitos antes dos computadores. “Eu só tinha as edições especiais de ‘Star Wars’ em VHS e queria muito ver os efeitos originais. Então fui atrás das versões originais ainda quando criança. Quando comecei a faculdade, em 2008, descobri o HD e achei as versões em HDTV da edição em DVD de 2004 na internet. De repente, ver ‘Star Wars’ na qualidade do laserdisc não bastava. Como eu queria ver o original, comecei a procurar uma versão em HD disso”, conta. Fãs antes dele já haviam tentado chegar às versões originais de “Star Wars”. “Mas acho que fui o primeiro a fazer isso em alta definição.”
Foi um processo trabalhoso. Como base, ele utilizou as versões da edição especial em Blu-ray, com imagens em alta definição. Para tirar as partes alteradas por George Lucas, utilizou “as melhores fontes com qualidade” que encontrou. “Quando dava, não trocava a cena inteira, porque os materiais disponíveis sem alterações têm qualidade tão ruim que você não pode colocar num vídeo em HD sem ficar muito esquisito. Então quando as alterações eram pequenas, eu trocava só um pedaço pequeno da imagem por aquilo que tirei de uma fonte de menor qualidade.” Para isso, utilizou imagens da versão original gravadas por fãs de exibições antigas na televisão, que algumas pessoas do site originaltrilogy.com lhe forneceram.
Para versões mais recentes — o trabalho continua –, contou com a ajuda de entusiastas de “Star Wars”, que compraram rolos de filme original no eBay e os escanearam em equipamentos caseiros — as imagens foram depois tratadas por Harmy. “Alguns desses rolos estavam com uma coloração rosada, então tive que restaurar as cores originais.” Há outros projetos de fãs que buscam a versão perfeita de “Star Wars” tal qual a vista nos cinemas, como a Silver Screen Edition, que restaurou uma versão em película de 35mm comprada na Espanha, e Harmy acompanha as novidades. “Essa versão tem alguns problemas, mas é brilhante pelo que é — uma restauração de 35mm”, diz. Ele cita o projeto “Revisited” do fã Adywan, que já lançou uma versão de “Uma Nova Esperança” com novos efeitos, mudanças no som, correções de cor e centenas de pequenas alterações — Adywan se incomodava, por exemplo, com o fato de que os famosos letreiros no início dos filmes passavam pela tela em velocidades diferentes e, em uma cena, tirou um fio do pescoço de C-3PO. “Estou muito ansioso pra versão dele de ‘O Império Contra-Ataca’, que é basicamente uma Edição Especial feita direito.”
Até agora, a Lucasfilm está “graciosamente tolerando a pequena comunidade” de fãs de “Star Wars” e Harmy nunca teve nenhum problema legal por disponibilizar na internet uma versão dos filmes de George Lucas. “É uma área legal cinzenta”, diz ele. De qualquer forma, ele pede no site para que só faça o download quem tiver uma versão oficial do filme — um DVD, um Blu-ray. “Claro que não tem um jeito de impor essa regra, mas tenho a convicção de que 99% das pessoas que fazem o download tenham uma versão oficial, então o estúdio não está perdendo dinheiro”, afirma. Segundo ele, a maior parte das pessoas que baixa “Star Wars” na internet faz o download da versão oficial do Blu-ray, e que as versões de fãs representam perto de 5% de total de downloads. As restaurações de fãs, aliás, ajudam o estúdio, ele opina. “Ajudam a base descontente de fãs a ficar razoavelmente contente e disposta a comprar mais produtos de ‘Star Wars’.”
Com o celular desligado na bolsa, é impossível precisar quanto tempo dura a primeira cena de “O Silêncio do Céu”, escolhido como o melhor filme do Festival de Gramado pelo júri da crítica e vencedor do prêmio especial do júri neste mês. Mas a sensação é de que, logo na abertura, Diana, personagem de Carolina Dieckmann, é estuprada por uma eternidade. Não há nenhum tipo de introdução. Se há trilha sonora, não se ouve. O filme de Marco Dutra, que estreia na próxima quinta, dia 22, começa com Diana imobilizada por dois homens, que se alternam na hora de estuprá-la, enquanto uma faca é apertada contra seu pescoço. Ela grita e chora enquanto a câmera fica bem perto de seu rosto, alternando entre mostrar sua reação e aquilo que ela está vendo. A sensação de assistir àquilo é horrível.
Como o espectador, seu marido, Mario (Leonardo Sbaraglia, de “Relatos Selvagens”), também vê a cena, como aprendemos logo na sequência. Novamente o público é obrigado a assistir a Diana sendo estuprada, dessa vez do lado de fora do quarto, acompanhando o ponto de vista de Mario, que chegou em casa mais cedo e, ao ver a cena, não faz nada para interromper. “Pra mim, a questão do ponto de vista era essencial. Por isso eu tratei a primeira cena com duas formas de encenação”, disse Marco Dutra a jornalistas depois da exibição do filme. “Isso teria que contaminar o filme todo, essas variações de ponto de vista. Pra incomunicabilidade dos dois pontos de vista ficar palpável, ficar forte”, continua. “Os dois estão vivendo uma situação de trauma, mas não é o mesmo trauma, apesar de ser o mesmo evento. A consequência não é a mesma pros dois personagens e era muito importante ter acesso a ambos. Por isso era importante cada um ter seu espaço, seu momento, e pegar as rédeas de seu ponto de vista.”
Depois que Diana é estuprada, ela toma um banho, prepara o jantar, e não conta a Mario o que aconteceu durante o dia. Ele também não conta a ela que viu o que aconteceu, e tenta arrancar dela uma confissão ao mesmo tempo em que vai atrás dos culpados. Apesar de o diretor afirmar que era uma preocupação retratar o ponto de vista dos dois, é mais uma história sobre como o estupro afeta Mario do que sobre as consequências para a Diana, um defeito comum em produções em que há violência contra a mulher, muitas vezes um acontecimento para dar o pontapé na história de um homem. “O Silêncio do Céu” começa e termina com a perspectiva de Diana, mas o verdadeiro narrador da trama é Mario, um homem cheio de medos e fobias tentando enterrar o que aconteceu e salvar o relacionamento, que já andava em crise. Até os 45 do segundo tempo só vemos Diana sob seu olhar — sempre de longe, no chuveiro, pela janela da loja onde trabalha. No terceiro ato, lá para o final do filme, ela assume a narração.
Segundo o produtor, Rodrigo Teixeira, o estupro é um assunto que “tem que ser discutido, todo o mundo é contra a violência doméstica”. Mas o que o atraiu no projeto foi a questão do silêncio entre o casal e a reação de Mario vendo a mulher sendo violada por dois homens e não fazendo nada. “Aquilo era uma premissa, independente da violência da cena, que eu não tinha visto em nenhum lugar. É tão forte que a gente tem um agente de vendas que comercializou o filme fora que fala pra mim que se esse filme feito em língua inglesa, ele teria um impacto muito grande”, afirma. Quando o filme foi feito, as conversas no Brasil sobre violência contra a mulher estavam bem mais fortes, e aí os produtores perceberam que o filme geraria ainda mais discussão por isso. “Não gosto de me aprofundar muito pra não entrar num lado político da história, mas eu sou contra a atitude feita pelo personagem da Carolina. Acho que foi extremamente bem retratado no roteiro, pelo diretor, pelos dois atores. Foi um mega desafio pra Carolina, que se entregou pra fazer essa cena.”
O SILÊNCIO
Sbaraglia conta que retratar o porquê de Mario não ter entrado no quarto quando vê Diana sendo violentada foi uma de suas maiores dificuldades. No livro “Era el Cielo”, de Sergio Bizzio, no qual o filme é baseado, está explicado que Mario tem tantas fobias que não conseguia reagir. “No romance está muito bem descrito. Contar isso no cinema, através de imagens, é muito difícil. Isso foi o mais complicado, que me preocupava. Ele queria se meter, mas não podia, afirma. Também foi complicado entender por que Mario não conversou abertamente com Diana sobre o que aconteceu. “Creio que o filme fala disso, como esse drama, essa tragédia que vivem esses personagens, é uma metáfora desse silêncio que termina sepultando uma relação. Terminei encontrando o personagem por aí, tratando de entender isso que não podia ser dito”, diz. “Encontrei o personagem de momento em momento, cena em cena. É um personagem de detalhe. Foi um trabalho muito bonito.”
Sobre filmar a cena do estupro, Carolina diz que quando vê que terá uma cena forte, a primeira coisa que sente é alegria. “Adoro uma cena difícil pra fazer, adoro um desafio.” Só queria fazê-la mais para o fim das filmagens, para se sentir confortável com a equipe — o filme foi gravado no Uruguai e é praticamente todo falado em espanhol. “[Eu queria] que eu tivesse com eles um pouco mais de intimidade pra lidar com aquilo, porque sei que é uma cena difícil, que é um desafio, que apesar de eu ser a única pelada tá todo o mundo um pouco exposto”, conta. Seu desejo não se realizou e ela gravou a cena na primeira semana de filmagem, mas diz que todos foram muito delicados com ela. “Emocionalmente a gente se conectou.”
Quando Carolina entrou no projeto, a ideia era que o filme fosse gravado no Brasil — o personagem de Sbaraglia seria um estrangeiro morando aqui. Por questões de produção a história migrou para o Uruguai e Carolina se tornou a estrangeira da produção, falando em espanhol a maior parte do tempo. “Foi um trabalho muito duro pra mim, porque eu sou uma atriz muito natural. Eu gosto de ir ficando cada vez mais natural. E você ficar natural numa língua que você não conhece exige um trabalho de mesa muito duro mesmo. Eu tive que dissecar o texto e criar uma margem praquele texto pra chegar na filmagem e não me sentir amedrontada diante do texto. Precisei criar uma intimidade maior com o que estava sendo dito”, diz.
Ela não tem muito diálogo, é verdade. Sua personagem fala pouco durante praticamente todo o filme, mas Carolina consegue transmitir bastante mesmo em seu silêncio. Sbaraglia, que tem mais tempo em cena (além dos dois, há poucos personagens de destaque), também é bom e o clima de suspense e tensão dura o filme inteiro. A última cena, como a primeira, é bem silenciosa e a sala de cinema permaneceu assim por bastante tempo — enquanto os créditos passavam, quase todo o mundo presente na sessão ficou sentado em silêncio, sem levantar ou dizer nada.
Mas mesmo que Marco Dutra reconheça que os protagonistas tiveram traumas diferentes após o estupro de Diana e que era importante ter o ponto de vista dos dois, quando o filme finalmente apresenta o lado dela é muito pouco e muito tarde. A situação foi difícil para Mario, mas foi muito mais para Diana, e no fim das contas saímos sem saber muito sobre sua experiência, não importa quão expressivo seja o olhar de Carolina Dieckmann — o silêncio dele é tratado no filme como mais importante que o silêncio dela, mais significativo. Teria sido melhor se fosse realmente uma história sobre o casal, e não só outro filme sobre um homem em crise.
Termos como bom e ruim não bastam para explicar o que você sente quando vê um filme. Existem filmes ruins que você pode ver mil vezes (pra mim, “Diário de uma Paixão”), filmes bons que são um suplício de assistir (“A Árvore da Vida”), filmes ruins que te ofendem (“Tudo Vai Ficar Bem”) e filmes bons que são prazerosos de ver sempre (“Quanto Mais Quente Melhor”). É importante deixar isso claro ao falar de “Esquadrão Suicida”. Primeiro, a má notícia: o filme, que estreia na quinta (4) é ruim — como a péssima avaliação no Rotten Tomatoes, de 32%, deixa claro. Mas tem uma boa notícia: não é um filme ruim que te deixa irritado.
É uma pena porque, no papel (ou mesmo no trailer), “Esquadrão Suicida” é promissor. Em meio a uma série de filmes com vários super-heróis lutando contra uma ameaça comum lançados em um intervalo de poucos meses (“Capitão América: Guerra Civil”, “X-Men – Apocalipse”, “Batman vs Superman”), “Esquadrão” parecia ser diferente: engraçado, anárquico, sem pieguismo. Pelo trailer sabemos que a personagem de Viola Davis é uma funcionária do governo americano que irá juntar uma equipe de supervilões para combater uma ameaça, conhecemos os protagonistas e suas habilidades e ouvimos mais piadas do que no “Batman” inteiro. Parece bom.
Porém, há muito que o trailer não revela: o plano de Viola Davis não faz sentido, os supervilões não são tão maus assim, praticamente não descobrimos nada sobre boa parte dos personagens além daquilo que o trailer mostra e o filme está bem longe de ser engraçado. “Esquadrão Suicida” começa com o que vemos no trailer, logo depois dos acontecimentos de “Batman vs Superman”. Num jantar, Amanda Waller (Davis) apresenta a uma equipe seu plano de formar um time com os mais malvados dos malvados, atualmente presos, para proteger a cidade do “próximo Superman”. Seu raciocínio: caso outro ser poderoso dê as caras por ali, sem as boas intenções de Superman, o mundo precisará se defender. Então antes que qualquer ameaça concreta apareça e esquecendo-se de que o Batman já cumpre essa função, Amanda resolve soltar no mundo alguns dos criminosos mais perigosos do pedaço.
Não chega a ser um plano tão sem pé nem cabeça quanto o de Lex Luthor em “Batman vs Superman”, mas é uma ideia bastante idiota. Até porque a missão do esquadrão no filme é resolver um problema criado pela própria existência do esquadrão — uma das vilãs selecionada por Amanda, chamada Magia (Cara Delevingne), escapa do seu controle e destruirá a humanidade se o grupo de vilões não entrar em ação. A premissa estúpida poderia ser perdoada se houvesse alguma qualidade na vilã. Não há. Delevingne, mais conhecida por fazer parte de outro esquadrão famoso na vida real (o de Taylor Swift) e por sua carreira como modelo, é uma péssima atriz em um péssimo papel. Sua única função no filme é rebolar enquanto cria uma espécie de portal da destruição (sabe aquele portal no céu aberto em “Os Vingadores”? Aquele mesmo) e cospe clichês numa língua estranha com uma voz de monstro que parece ter saído de um aplicativo. Perto dela o Apocalipse de “X-Men” é um vilão quase do calibre de Darth Vader — nem vamos comentar do outro vilão do filme, que parece saído de um filme B dos anos 90.
O esquadrão suicida não é muito melhor desenvolvido. Logo no início, Amanda apresenta os vilões que selecionou, com uma ou duas frases sobre cada um. Pistoleiro (Will Smith) é um matador de aluguel que nunca erra um tiro, Arlequina (Margot Robbie) é a namorada louca do Coringa (Jared Leto), El Diablo (Jay Hernandez) controla o fogo e agora quer viver uma vida pacata, Crocodilo (Adewale Akinnuoye-Agbaje), bem, se parece com um crocodilo, e Capitão Bumerangue é um assaltante que usa um bumerangue como arma. Todos eles são controlados pelo militar Rick Flag (Joel Kinnaman), sobre quem não há muito o que dizer além de que ele é o centro moral da história. Em algum momento aparecem ainda Katana (Karen Fukuhara) e Amarra (Adam Beach), mas não dá pra entender quem eles são ou por que eles foram parar naquela história. Tudo isso é apresentado no trailer e é tudo isso, praticamente, que você saberá sobre eles ao fim da sessão.
Tirando Pistoleiro e Arlequina, nenhum vilão é bem explorado. Durante meses ouvimos os atores falando sobre como ficaram amigos, como fizeram tatuagens juntos e como isso contribuiu para a química em cena. Se isso é verdade, pedaços importantes foram cortados na edição, porque parece que todos se conheceram ontem. Em nenhum momento eles parecem verdadeiramente um time, apesar de o filme tentar convencer o público de que eles são uma espécie de família.
Pistoleiro e Arlequina são o que o filme tem de melhor a oferecer — dá para imaginar algum filme com uma história melhor centrado nos dois. Will Smith é quem mais se aproxima de um protagonista e é carismático o suficiente para fazer com que você se sinta curioso a seu respeito. Margot Robbie, com sua personagem ao mesmo tempo infantil e hipersexualizada, também se destaca na multidão — as poucas vezes em que você sorri ou dá risada são cortesia de sua Arlequina. É só uma pena que o filme esteja mais interessado em dar closes em sua bunda ou desenvolvê-la pouco além do seu relacionamento com Coringa, cuja presença não acrescenta absolutamente nada na história — ela é bem mais legal quando interage com os outros personagens e, apesar de provavelmente não agradar a todos, tem potencial e chama a atenção.
“Esquadrão Suicida” é uma bagunça. O roteiro não faz muito sentido, a edição é atrapalhada (em uma cena um personagem abandona o grupo, no quadro seguinte ele está de volta sem explicação), a trilha sonora é tão óbvia que distrai (a personagem de Viola Davis é apresentada ao som de “Sympathy for the Devil”, dos Rolling Stones, pra ficar num exemplo), os vilões são caricaturas com planos que se resumem a “quero dominar o mundo”, a maior parte dos personagens são simplórios demais. Mas vários desses defeitos são também encontrados em “Batman vs Superman” ou “X-Men – Apocalipse” e o filme fica cada vez pior à medida em que você pensa nele. É bom? Não. Mas não é do tipo de filme ruim que ofende, que te faz querer sair do cinema ou que será incluído na lista de piores filmes da história de muita gente. Tem filme ruim estreando no cinema toda semana. É frustrante porque poderia ser bom, porque tem um orçamento gigante e porque a expectativa em torno dele era alta. Mas se estiver passando no avião, pode ver tranquilo. Vai ser melhor que olhar pela janela.
Chris Strompolos e Eric Zala eram colegas de escola com duas coisas em comum no início dos anos 1980: pegavam o mesmo ônibus para ir e voltar para casa e tinham visto “Os Caçadores da Arca Perdida”. Sabendo que Eric trabalhava em um filme como parte de um projeto da sexta série, Chris se aproximou dele um dia no trajeto com um gibi sobre as aventuras de Indiana Jones e uma proposta: fazer a própria versão do filme de Steven Spielberg, recriando a aventura quadro a quadro. “Foi assim que a gente se conheceu”, lembra Chris.
Sua experiência com cinema era nenhuma, mas Chris estava decidido a ser Indiana Jones. “Eu vi o filme em junho ou julho de 1981, quando estreou. Tinha muita expectativa porque era muito fã de ‘Star Wars’. Vi com meu pai e lembro que o personagem Indiana Jones era incrivelmente acessível. Ele era enorme, mas parecia muito real, como se ele pudesse realmente existir num mundo historicamente verdadeiro”, conta Chris por telefone, dos Estados Unidos.
“O filme se passava em 1936 e parecia um mundo real. E ele fazia todas aquelas coisas fantásticas nesse mundo. Era um personagem que eu precisava interpretar. Colocar o chapéu, o casaco, aprender a usar o chicote e lutar contra os caras do mal. Como seria fazer todas as coisas que ele fazia. Então criei esse playground”, diz Chris. Eric conta uma história parecida. “Vi o filme quando tinha 11 anos. Não esperava ser tão atraído por ele, mas fui. Quando vi a cena da pedra fiquei cativado, queria viver naquele mundo, conquistou toda a minha atenção.”
Com o amigo Jayson Lamb, a dupla começou a filmar em 1982. Foram necessários mais sete anos para que sua versão, conhecida como “Raiders of the Lost Ark: The Adaptation”, ficasse pronta. Ou praticamente pronta, pelo menos: uma das cenas, que envolvia a explosão de um avião, era impossível de ser feita por um grupo de adolescentes, e só foi finalizada 25 anos depois. Por isso, o vídeo que circula na internet tem seu Indiana Jones em diferentes estágios da puberdade, mudando de cena para cena — as gravações não foram feitas em ordem cronológica. “Se eu soubesse que ia levar tanto tempo ficaria aterrorizado. As primeiras imagens ficaram horríveis, mas continuamos”, diz Eric.
Disponível em qualidade de um VHS antigo, com a imagem levemente desfocada e tremida, o filme impressiona pela semelhança com o original, dos figurinos aos diálogos, passando pela famosa cena da pedra gigante que rola e ameaça o arqueólogo. Não havia internet ou mesmo cópias em vídeo disponíveis para eles usarem como referência, então eles precisaram ser engenhosos. “Não vimos o filme tantas vezes quanto as pessoas pensam. Vimos duas ou três vezes. Entramos com um gravador no cinema e captamos o áudio e a música, então conseguimos copiar o diálogo”, conta Chris. Um storyboard e um roteiro foram comprados em uma livraria, e eles adquiriam todos os tipos de coisa que tivessem alguma coisa a ver com Indiana Jones. “Eric e eu sentamos e juntamos tudo para fazer um storyboard, com umas 600 imagens baseadas na nossa memória da cena. Usamos esse roteiro nos sete anos seguintes. Quando filme saiu em laser disc em 1984 vimos que tínhamos chegado bem perto.”
“Minha mãe teve a reação que provavelmente qualquer pai teria. Seu filho chega e te fala que quer fazer um remake de um blockbuster de Hollywood e você sorri, dá um tapinha nas costas e diz: ‘Que ótimo, querido. Vá em frente’”, diz Chris. A grande ajuda dos pais veio em forma de mesada, presentes de aniversário e Natal. Toda oportunidade de ganhar um presente era uma oportunidade de conseguir objetos e roupas úteis para o filme. Acharam também coisas em closets, doações, porões e feiras. “A gente pedia e implorava. Fomos juntando todo o tipo de coisa na medida em que avançávamos. Mas não tínhamos orçamento.”
Como atores e equipe, os amigos e crianças do bairro eram escalados — ao longo dos sete anos Chris calcula que cerca de cem pessoas participaram do projeto. Conseguir atores foi tranquilo, a complicação foi fazer com que eles quisessem voltar para filmar no verão seguinte. “Crianças querem fazer algo por umas horas e depois fazer outra coisa completamente diferente. Essa foi a parte difícil. Tínhamos uma lista de telefones, contato dos pais, endereços… Aí o Eric ia caçar essas crianças no começo de cada verão.” Eles também pensaram em desistir algumas vezes. “Várias vezes você perde o entusiasmo e não é tão divertido quanto você acha que vai ser. Mas há uma lição aí: o processo criativo é muitas vezes mais agonizante que agradável. Foi algo bom de aprender. Eric eu brigamos uma vez por uma garota e outra por uma questão técnica no áudio. Batíamos cabeça, mas voltávamos atrás e continuávamos trabalhando.”
Além de dirigir o remake, Eric fez parte do elenco como coadjuvante para o Indy de Chris. “Apesar de eu ter interpretado o Indiana Jones, nunca me machuquei. Era sempre o Eric que sofria. Ele quebrou o braço, colocamos fogo nele, ele quase se queimou todo quando jogamos gasolina nele. O máximo que tive foi uma insolação gravando uma cena num caminhão”, diz Chris. “Nenhum de nós estava pronto para as cenas de ação.”
Mas deu-se um jeito para tudo (“até hoje eu manteria o cachorro interpretando o macaco. Foi conceitual”, diz Eric), com exceção da cena em que, depois de uma briga, Indy salva a mocinha enquanto um avião explode. “Era mais importante para Eric completar o filme. Foi ele quem ficou um pouco assombrado por isso. Pra mim teria sido ótimo ter feito, mas era logisitcamente inviável”, diz Chris. Mas quando Chris conheceu o produtor Jeremy Coon, de “Napoleon Dynamite”, surgiu a oportunidade de finalmente fazer a cena. Jeremy soube da história deles e sugeriu que fizessem um documentário sobre o filme — acrescentando a tal cena do avião. “Quando estávamos discutindo o documentário eu tive a ideia de ressuscitar a ideia do avião. Parecia uma narrativa legal para o documentário, meio que o presente misturado com o passado. Depois disso convenci o Eric de que seria legal, brutal e certo fazer isso. E fizemos.” Para Eric, terminar foi uma sensação de outro mundo. “Fiquei muito grato e aliviado”, diz, ressaltando que foi difícil ter que fazer a cena em dias — e não ter mais sete anos disponíveis.
Jeremy não foi o primeiro cineasta a procurar Eric e Chris para tentar contar sua história. “Mas nunca deu certo por causa do background deles, do que eles queriam, do timing, ou da falta de recursos. Mas quando você conhece Jeremy vê que ele vai fazer o que diz que vai fazer. E suas intenções eram boas, ele entendia a história, a amava e tinha uma objetividade grande. Tipo: ‘Eu adoraria contar isso, mas acho que a história tem que ser contada de qualquer jeito’. Em 20 minutos comendo hambúrguer e fritas a gente resolveu.” O filme “Raiders!” começou a ser exibido nos Estados Unidos no mês passado, numa turnê que vai até setembro e talvez ganhe uma turnê internacional.
Nas apresentações que fazem, os dois conhecem vários cineastas amadores e crianças que sonham em trabalhar com cinema. “Sempre falamos que ser criança é uma coisa maravilhosa, você não tem consciência do que não pode fazer, e isso te dá abertura. O caminho está aberto, você tem menos obstáculos assim. Dizemos a jovens cineastas: não deixem que te digam o que fazer. Parece clichê, mas você ouve não, não e não e continua insistindo e consegue um sim”, diz Chris. “Também digo: escolha bem sua equipe. Cinema é um esforço colaborativo. E tem muita gente que não te leva a sério quando você tem 14 anos, mas não aceite não como resposta. Continue perguntando. E, finalmente: sempre termine. É quase milagroso terminar um filme. Mas se você não termina, aquilo vira só uma coleção de imagens que não vai ter aquele impacto na vida das pessoas, então é importante terminar o projeto mesmo que seja difícil”, completa Eric.
Nesse processo, Eric e Chris — que hoje têm uma pequena produtora chamada Rolling Boulder Films (em referência à pedra que rola em “Caçadores”) — conheceram Steven Spielberg, uma experiência que foi tudo aquilo que eles imaginavam. “Ele foi muito caloroso, paternal e gentil. No nosso encontro ele disse: ‘Ei, vi o filme de vocês, gostei muito, e queria conhecer vocês pra dizer que vocês me inspiraram’”, diz Chris. O diretor inclusive mostrou para eles erros de gravação e cenas que não entraram no corte final. “Foi tipo: ‘O que acabou de acontecer?’. É ótimo conhecer seu herói de infância e ver que você escolheu bem”, lembra Eric.
Diferente do que se imagina, porém, “Os Caçadores da Arca Perdida” não é o filme favorito da dupla. “Eu amo, mas definitivamente não é meu preferido, porque representa muitas outras coisas que a experiência de ver um filme geralmente não representa. Virou quase um… Não sei. Parece bobo dizer, mas virou quase um estilo de vida esquisito”, diz Chris. “Está numa categoria à parte, porque mudou minha vida”, completa Eric.
Refazer “Tarzan” a essa altura do campeonato não parece, a princípio, a mais sábia das decisões. Na história original de Edgar Rice Burroughs, publicada em 1912, Tarzan (nome que significa “homem branco” — dá pra imaginar o que vem por aí) é um filho de ingleses criado por macacos na África. Inimigo dos negros que lá vivem, tratados como bárbaros, Tarzan é o rei (branco) das selvas africanas. É uma história espinhosa para um filme, ainda mais em um ano de forte debate racial, principalmente nos EUA – do movimento Black Lives Matter ao Oscar com baixa representatividade. “A Lenda de Tarzan”, que estreia na quinta, dia 21, é um filme ciente dessas questões e cheio de boas intenções. Mas só isso.
Sua Jane (Margot Robbie) é uma mulher com opiniões, destemida, engenhosa, nada submissa. Os vilões são brancos europeus colonialistas que escravizam e matam congoleses para poder explorar os recursos naturais do país. Há um herói negro, George Washington Williams (Samuel L. Jackson), que encara qualquer perigo para denunciar os horrores que acontecem no Congo e seus nativos não são retratados como inimigos nem como selvagens. Mas, no fim das contas, continua sendo a história de Tarzan, o homem branco responsável por salvar tanto sua mulher — que apesar de dizer com todas as letras que não é “a donzela em perigo”, é a donzela em perigo — quanto os africanos, incapazes de se libertar sem ele.
Logo no início, um letreiro explica que na Conferência de Berlim o continente africano foi dividido por países europeus e que o Congo, rico em diamantes, ficou com a Bélgica. Dado esse contexto, a história começa com Tarzan (o sueco Alexander Skarsgård, cujo abdômen faz Chris Evans parecer um cara normal) diferente daquele que conhecemos, descamisado e cruzando a selva por seus cipós. Casado com Jane, vive na mansão de sua família na Inglaterra e atende por seu nome de batismo, John — ou por seu título, Lorde Greystoke. Leva uma vida pacata, até que recebe um convite do rei da Bélgica, Leopoldo II, para ir ao Congo numa missão diplomática. Tarzan não quer voltar às origens, mas é convencido por Jane, saudosa da África e das aventuras, e por Washington Williams, um americano que quer a ajuda de Tarzan para coletar provas de que a Bélgica está escravizando os congoleses.
O que Tarzan não sabe é que o convite para ir ao Congo é uma armadilha arquitetada por Leon Rom (Christopher Waltz, adicionando mais um vilão à sua coleção), braço direito do rei belga. Ele promete entregar Tarzan para o líder de uma tribo no Congo, que quer sua cabeça, em troca de diamantes, dos quais a Bélgica precisa para sair de uma situação financeira delicada. Como o trailer revela, Jane é capturada por Rom e cabe a Tarzan tirar a camisa para salvar não só a África como a mulher que ama, com Washington Williams ao seu lado.
A partir daí “A Lenda de Tarzan” vira um tipo de filme de super-herói. Os poderes de Tarzan são uma força descomunal (ele luta com um gorila. Crescer com gorilas não torna alguém forte como um gorila, é bom notar), uma capacidade de se mover por cipós que praticamente equivale a voar, e a habilidade de se comunicar com animais. Em vez de salvar Nova York, como os Vingadores, ou outra cidade americana qualquer, Tarzan quer libertar a África da escravidão e tornar o mundo um lugar melhor. Seu arqui-inimigo, um vilão que só falta torcer o bigode, também tem um ou outro truque na manga. E o que não faltam são efeitos especiais e cenas grandiosas.
Mas, se você quer ver um filme de super-herói, é melhor alugar um da Marvel em casa. Não ajuda que o foco seja colocado no personagem menos interessante entre os protagonistas — tanto Jane quanto George Washington Williams, ou até Rom, seriam melhores escolhas, personagens mais interessantes, complexos e divertidos que Tarzan. Skarsgård claramente se preparou horrores para o papel e passou meses em dieta para ficar com aquela barriga, mas seu Tarzan meio soturno, meio atormentado, não gera muita empatia. “A Lenda de Tarzan” tenta ser um Tarzan moderno, mas é previsível do começo ao fim. Da primeira cena ao confronto final, passando pelos flashbacks da origem de Tarzan, que todo o mundo conhece, não há surpresas, não há emoção.
Na tentativa de ser uma versão mais politicamente consciente do que as outras, “A Lenda de Tarzan” não só não atinge plenamente seus objetivos (não tem como, enquanto Tarzan for protagonista ele será um “branco salvador”) como é pouco original — um pecado grave no cinema. Depois de “Caça-Fantasmas” e com um novo “King Kong” à vista, fica o desejo de ver algo novo. Refazer “Tarzan” não é a mais sábia das decisões.
Marcada por superações, a história do lutador José Aldo da Silva Júnior é daquelas que daria um filme. O campeão das artes marciais mistas, o MMA, venceu sua origem pobre e seu núcleo familiar violento para virar estrela do UFC, evento mundial mais importante da modalidade, em 2010. Seis anos depois, veja só, sua trajetória deu em filme mesmo: “Mais Forte que o Mundo”, de Afonso Poyart (diretor de “Presságios de um Crime”, com Anthony Hopkins), que estreia nesta quinta (16).
É bem verdade que o cinema brasileiro carecia de filmes “de lutador”, levando em conta que somos um “celeiro de craques” do UFC. Em conversa com jornalistas após a pré-estreia, Claudia Ohana até se confundiu: “É o primeiro filme de lutador brasileiro, não é? Para mim, ao menos, é”. Não é, embora seja a produção sobre esse universo mais relevante desde o documentário “Anderson Silva: Como Água”, de 2011. Com o bônus de abordar causas sociais pertinentes: o rincão amazonense nem sempre retratado no cinema, a violência doméstica, a pobreza.
A história começa com um jovem José Aldo, interpretado por José Loreto, frequentando aulas de jiu-jitsu de dia e se divertindo com amigos à noite. A Manaus em que vive é retratada de maneira sombria, e isso nada tem a ver com as chuvas equatoriais diárias — mesmo porque a locação real é a cidade de Santos, berço do diretor. É lá que habitam os demônios de José Aldo: o pai alcoólatra, que espanca a mãe, o inimigo da juventude que humilha sua família.
O tempo abre com sua chegada ao Rio de Janeiro, marcada por uma fotografia mais iluminada. Lá um antigo amigo, interpretado por Rafinha Bastos (uma “escolha polêmica”, como reconhece o diretor), lhe arranja estadia na academia de Dedé Pederneiras, papel de Milhem Cortaz. Para retribuir a hospedagem, o rapaz trabalha na limpeza e espera pelo dia em que o treinador lhe aceitará como pupilo. A semelhança com “Karatê Kid” vira até piada em cena.
O garoto finalmente chama a atenção de seu professor ao se meter em uma briga na lanchonete onde faz bicos por tentar proteger Vivianne Oliveira, par romântico de José Aldo, vivido por Cleo Pires. O casal se apaixona durante as aulas de muay thai da moça, o que ilustra bem a relação vindoura de intensidade e atritos. A partir daí, a jornada do herói foca mais em sua construção e conflitos que em seus feitos.
A certa altura, a personagem de Thaila Ayala, namorada do esportista e amigo Tony Mendigo (interpretado por Felipe Titto), diz: “Bom lutador é aquele que sabe brigar consigo mesmo”. A metáfora que dá forma ao conflito psicológico do protagonista surge logo no início do filme, com uma história de seu pai, que adora contar parábolas. Uma delas discorre sobre o abate de um boi por uma sucuri: o mamífero não percebe a serpente se esgueirando enquanto bebe água. A cobra sorrateiramente envolve sua presa, que, quando se dá conta, já é tarde demais.
José tem de lidar constantemente com a figura paterna em sua vida. A atuação de Jackson Antunes como o pai, inclusive, é brilhantemente delicada: não é vilão, mas também não é um herói. O nome não é o único atributo que José Aldo herda do progenitor, um dos principais responsáveis pela raiva destemperada do filho, ao mesmo tempo em que é apontado pelo atleta como seu “maior incentivador”. O ódio é um sentimento dicotômico, a gasolina que pode ser combustível para o sucesso ou explosivo para o fracasso. Essa é preocupação de seu treinador: “Você gosta de brigar, eu quero te ensinar a lutar”. Será José Aldo o boi ou a sucuri?
O diretor calcula que “cerca de 30%” da trama foi inventada. A personagem de Paloma Bernardi, por exemplo, é um dos recursos fictícios usados. A garota é meio amiga, meio caso adolescente do protagonista e serve como ponte entre ele e seu passado. Do lado da realidade, fica a boa ideia de usar o cinturão real na cena de seu triunfo no UFC, artigo emprestado do próprio lutador.
O elenco reúne nomes conhecidos, inclusive em papéis menores, como o humorista Robson Nunes e os atores Thaila Ayala, Jonathan Haagensen e Felipe Titto. As personagens femininas têm importância na trama e são fortes, não tolerando os abusos que sofrem.
O filme tem a intenção de ser um “divisor de águas na carreira de José Loreto”, como profetiza o colega Jackson Antunes. Primeiramente oferecido a Malvino Salvador, a expectativa é de que o papel principal transforme o ator — apesar de pálido demais para viver o manauara— em mais que um rostinho bonito. A direção de Poyart traz a característica violência já conhecida em “2 Coelhos”, com cenas de brigas bem coreografadas, perseguições em automóveis e embates no octógono. O filme funciona em várias camadas: a ação, o romance, o drama. Quem vai ao cinema para assistir a um filme “de lutador” sairá da sala mais que satisfeito.
Enquanto Chuck Norris soltava o braço nos vietcongues em “Braddock: O Super Comando” pouco mais de 30 anos atrás, a Romênia era um dos lugares mais fechados dentro da Cortina de Ferro, o grupo de países do Leste Europeu sob influência da União Soviética. Seus cidadãos viviam enclausurados dentro de um sistema totalitário em que qualquer referência ao Ocidente era proibida e delações de “traição” mesmo entre familiares eram estimuladas. A programação de TV se resumia a duas horas de transmissão de reuniões do Partido Comunista capitaneadas pelo ditador comunista Nicolae Ceausescu e muita propaganda patriótica. O único culto permitido era o da personalidade do ditador. Mas um outro mundo era possível em meados da década de 1980, no período mais sombrio do país. E esse mundo chegava aos lares romenos por meio de milhares de fitas VHS pirateadas, cheias de som e fúria de filmes como “Rambo”, “Rocky” e “Top Gun”.
Dentro dos conjuntos habitacionais em tons de cinza, a tela da televisão iluminava pequenos grupos que se reuniam para assistir a filmes americanos. “Flashdance”, “Uma Linda Mulher”, “9 ½ Semanas de Amor”, “Era Uma Vez na América”; todos eles dublados em “voice over” por uma mesma voz feminina muito aguda e levemente rouca. “Era a voz mais conhecida da Romênia depois da de Ceausescu”, lembra um dos personagens do documentário “Chuck Norris vs Communism”, filme que, em linhas gerais, conta a história de como as fitas de vídeo ajudaram a forjar o ambiente para a derrubada do ditador – e de como aquela voz misteriosa, de uma mulher chamada Irina Nistor, se tornou o símbolo da liberdade, do cinema e do Ocidente para toda uma geração de romenos. Dirigido por Ilinca Calugareanu, romena de 34 anos radicada na Inglaterra há dez, o filme foi exibido no Festival de Sundance em 2015 e está disponível no Netflix Brasil.
É um filme muito pessoal sobre o poder do cinema e da memória. As primeiras experiências de Ilinca em relação ao cinema são semelhantes às das crianças retratadas no filme. “Eu vi meus primeiros filmes através da voz de Irina Nistor, então algumas memórias minhas de fato inspiraram algumas das dramatizações que fizemos, particularmente as do menino indo para a sua primeira exibição e as das crianças brincando de luta”, conta a diretora em conversa por e-mail.
Na década de 1980, a jovem Irina trabalhava como tradutora em um birô de censura do governo romeno. Cabia a ela traduzir os diálogos dos filmes enquanto um comitê avaliava as cenas que deveriam ser extirpadas da versão final: de imagens de mesas fartas e lojas com prateleiras cheias de doces a detalhes cada vez mais ridículos, como balões coloridos que por acaso poderiam lembrar a bandeira da Romênia em um desenho animado russo. Foi nessa época que ela recebeu um convite extraoficial para dublar filmes estrangeiros em VHS. O trabalho seria feito na residência de um certo senhor Zamfir, homem de relações que trazia os filmes da Hungria. Até 1989, ela calcula ter dublado mais de 3 mil filmes, às vezes três ou quatro por dia. “As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”, diz Irina no filme. Atualmente, ela continua muito conhecida no país, onde trabalha como crítica de cinema e eventualmente participa de programas de rádio e TV.
[olho]“As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”[/olho]
De acordo com Ilinca Calugareanu, nascida em Cluj-Napoca, a segunda maior cidade da Romênia, a ideia de contar a história de Irina Nistor e dos filmes VHS surgiu por acaso. “Eu estava em um festival de cinema em Londres, sentada na plateia durante uma sessão de perguntas e respostas e eu ouvi a voz de Irina Nistor fazendo uma pergunta. Eu a reconheci imediatamente e fiquei paralisada como uma fã. Eu tentei explicar aos meus amigos quem ela era e as coisas fantásticas que ela conseguiu fazer durante o comunismo na Romênia. Foi naquele momento que eu percebi que eu deveria fazer um filme sobre ela e sobre as fitas de VHS”, conta.
No filme, Irina Nistor só surge “em pessoa” na tela no terço final da história. Antes disso, ela é interpretada pela atriz Ana Maria Moldovan, do mesmo modo que outros personagens são vividos por atores. O que há de material “real” no documentário são os trechos de diversos filmes americanos e algum pouco material da TV oficial romena, além das entrevistas com pessoas daquela geração e uma breve cena do início da Revolução Romena de 1989, que pôs fim ao comunismo. A dramatização da história, em chave realista, procura recriar o ambiente frio dos espaços públicos da Romênia em contraposição ao calor e à tensão das reuniões secretas de cinema.
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Isso abre caminho, no filme, para duas instâncias que se entrelaçam nos relatos pessoais: a memória (romena) e a imagem (ocidental). Duas passagens são ilustrativas, como a do jovem adulto que se recorda de, na infância, colocar o relógio para despertar às 5h para correr pelas ruas como Rocky Balboa e a mulher de meia-idade que conta sobre o primeiro filme a que assistiu naquelas sessões secretas, “O Último Tango em Paris”. “Não imaginava que um filme daquele pudesse existir. Foi como um raio”, ela se recorda. Os depoimentos são entremeados com cenas dos filmes – e é curioso perceber que Sylvester Stallone e Maria Schneider falavam em romeno com a mesma voz.
Em um de seus trabalhos mais conhecidos, “Introdução ao Documentário”, o crítico e teórico de cinema americano Bill Nichols escreve sobre a tendência dos filmes de não-ficção, a partir da década de 1970, de mudarem o foco de sua estratégia retórica, que “passam do apoio a representações do mundo histórico, feitas por especialistas e autoridades, para o apoio a representações que transmitam perspectivas mais pessoais, mais individuais”. Para ele, as melhores obras são aquelas que conseguem “unir relatos pessoais com ramificações sociais e históricas”. O relato pessoal proporciona ao documentário uma credibilidade que, de algum modo, se estende aos temas abordados. Nas palavras dele, é a “aceitação sincera de uma visão parcial; situada, mas apaixonada”.
A capacidade que “Chuck Norris vs Communism” tem de unir relatos pessoais a essas ramificações sociais e históricas se deve, em muito, à solução encontrada de encenar com atores as memórias e situações daquele período. Ilinca conta que, nos dois primeiros anos do projeto, a equipe se concentrou em filmar as entrevistas. “Eu queria encontrar a história. Meu empenho na época era encontrar o melhor jeito de contá-la, trazer aquela década de volta à vida e levar a audiência por uma jornada emocional. No início eu pensei em fazer uma animação, mas ‘Chuck Norris vs Communism’ é um filme sobre filmes e o poder que eles têm de nos comover e mesmo nos transformar, então qual jeito melhor de contar essa história do que por cenas ficcionais? Ficou bastante claro para mim que dramatizações com atores eram a melhor escolha, e foi muito emocionante para toda a equipe de criação trabalhar com esse conceito e com as referências aos filmes em VHS que a gente assistia nos anos 1980”, lembra.
Menciono a ela que, nessa mesma época, quando chegaram os primeiros videocassetes ao Brasil, até o início dos anos 1990, a maioria dos filmes VHS que circulavam por aqui também eram piratas. E os títulos que faziam sucesso eram exatamente os mesmos que na Romênia. A diferença, claro, é que o Brasil passava por um momento de abertura, enquanto a Romênia se fechava cada dia mais. “Acho que nós estávamos esperando que o documentário fosse encontrar esse tipo de universalidade e falar com todas as pessoas que amam cinema”, diz a diretora. “É fantástico que nós estivéssemos vendo os mesmos filmes nos anos 1980, mas em contextos tão diferentes e extraindo tantas coisas diferentes deles. Quer a gente os tenha visto como uma janela para o Ocidente, como exemplos de democracia, como escape para um mundo colorido e cheio de ação ou como puro entretenimento, esses filmes nos deixaram uma marca, e agora eles conseguem nos unir em um diálogo como esse, por exemplo”.
Em um dos depoimentos do filme, um personagem diz, sobre o regime de Ceausescu, que aquele era um país mantido na ignorância. Mais do que as “histórias” daqueles filmes em VHS, o impacto, para essas pessoas, era ver um DeLorean na tela da TV ou descobrir como vida se desenrolava nas ruas americanas. Era um evidente contraponto às filas pela comida, à falta de energia elétrica e ao estado de constante vigilância do regime comunista.
É curioso que, nos dias que antecederam a Revolução Romena, no final de 1989, Ceausescu tenha perdido também a força de sua imagem. No YouTube é possível encontrar as cenas do último discurso público do ditador, em 21 de dezembro: diante de uma multidão que, num crescendo, começa a vaiá-lo, seu rosto muda de expressão. Aparvalhado, estende a mão e pede calma. A câmera da TV oficial – que transmitia ao vivo para milhões de pessoas naquele momento – desvia do palanque e sobe para mostrar o céu. Embaixo, grupos avançam em direção ao prédio do Comitê Central. Aquela foi a senha para o fim do regime. No dia de Natal, Ceausescu e sua mulher, Elena, seriam fuzilados sob acusação de genocídio e abuso de poder. As imagens da sentença e da execução foram largamente divulgadas pelo mundo na ocasião e continuam disponíveis na internet.
Pergunto a Ilinca se há alguma intenção política no filme, principalmente ao mostrar o quanto o regime havia se tornado ridículo em alguns momentos. “Eu não acho que o filme tenha uma agenda. Acima de tudo, é um filme sobre o poder e a magia do cinema. Mas, claro, ele se passa na Romênia comunista, em uma das décadas mais ásperas do regime e ilustra como o sistema funcionava – ou, melhor dizendo, como não funcionava, como a polícia secreta estava tecendo uma teia de medo e paranoia e como a censura estava se tornando totalmente absurda, e em geral como o regime estava se despedaçando e sendo devorado por dentro” diz a diretora. “Não era nossa intenção fazer um documentário histórico, mas queríamos dar vida a um contexto à história de Irina e das fitas de VHS e esperamos deixar a audiência com algumas questões interessantes no final”, conclui.
Quando “Mad Max: Estrada da Fúria” estreou em maio do ano passado, George Miller já havia passado mais de uma década trabalhando no projeto. Catorze anos antes, o diretor atravessava a rua quando teve uma ideia para mais um “Mad Max” — coisa que não pensava em fazer. Deixou o pensamento de lado. Mas dois anos depois, num voo dos Estados Unidos para a Austrália, não conseguiu dormir e começou a desenvolver a ideia. A princípio, o protagonista seria Mel Gibson, o mesmo dos três filmes anteriores da série. Mas depois do 11 de Setembro, em 2001, o dólar americano se desvalorizou em relação ao australiano e eles perderam boa parte da verba para fazer o filme.
O projeto atrasou, mas de vez em quando uma notícia ou outra a respeito do filme pipocava. Em 2013, por exemplo, o site IGN afirmou que uma de suas fontes havia assistido a uma versão não finalizada do filme e que estava incrível. “‘Mad Max’ talvez seja ótimo”, dizia o título da reportagem. Mas quando estreou, “Mad Max” era mais um de uma série de sequências, remakes, reboots que tanto aparecem hoje em dia em Hollywood. Quando o último “Mad Max” tinha chegado aos cinemas, em 1985, o ator Nicholas Hoult — o Nux de “Estrada da Fúria” — não era nem nascido. Fazia muito tempo. Entre esses filmes, Miller havia dirigido dois filmes sobre o porquinho Babe e duas animações sobre pinguins que cantam e dançam (“Happy Feet”). O que esperar de um novo “Mad Max”?
UM ANO ATRÁS
Qualquer que fosse a expectativa, a realidade provavelmente a superou — só o fã mais incrivelmente otimista poderia ter esperado um sucesso maior. A crítica foi praticamente unânime e “Mad Max: Estrada da Fúria” foi um dos filmes mais bem avaliados do ano passado. No Rotten Tomatoes, que dá uma nota aos filmes baseado em críticas de muitos veículos, o longa tem hoje 97% de aprovação — um pouco mais que o vencedor do Oscar de melhor filme deste ano, “Spotlight”, que tem 96%.
Um exemplo, da Atlantic: “Foram 30 anos desde que o diretor George Miller (ou qualquer um) fez um filme de Mad Max, e era fácil ver essa nova sequência/reboot/o que for com certa quantia de ceticismo. Mas o ceticismo queima como vapor no calor da árida distopia que Miller criou. Estrada da fúria é um filme B nota A+, um filme de ação tão vívido e visceral, tão impactante em concepção e extraordinário em execução, que é quase uma revelação”. Para a New Yorker, é uma das raras ocasiões em que uma continuação é melhor que os filmes anteriores e que, embora não dê pra saber se vai sobreviver ao tempo “pro bem ou pro mal, ‘Mad Max: Estrada da Fúria’ tem tudo que a gente deseja de um filme agora e leva isso ao limite”.
Além de sucesso de crítica, “Mad Max” foi bem em público. Segundo o site Box Office Mojo, o filme arrecadou no mundo US$ 378,4 milhões — o custo foi de aproximadamente US$ 150 milhões. Mais: o filme ganhou mais prêmios no Oscar deste ano que qualquer outro (foram seis vitórias). Não só dominou as categorias técnicas como também chegou como candidato com chances em categorias como melhor filme e, principalmente, diretor. Mas como “O Discurso do Rei” (sucesso de crítica e vencedor do Oscar) e “Star Wars: A Ameaça Fantasma” (sucesso de público) estão aí para provar, nada disso basta para que um filme não caia no esquecimento ou seja lembrado com carinho.
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NOS DIAS DE HOJE
Na semana passada, um ano depois do lançamento de “Mad Max: Estrada da Fúria”, um novo trailer do novo “Os Caça-Fantasmas” — com uma equipe de mulheres caça-fantasmas — foi recebido com desdém no YouTube — o primeiro foi o trailer com mais avaliações negativas no site (mais de 800 mil). Alguns exemplos de comentários, entre os primeiros na página do vídeo enquanto este texto era escrito (sério, não é preciso muito esforço pra achar opiniões do gênero): “Vamos arruinar um filme original e colocar só mulheres pra agradar feministas misândricas! Se isso não é sexista, eu não sei o que é” ou “Tá vendo? Feminismo e igualdade não funcionam”.
No dia 16, um usuário do YouTube postou um vídeo que já passou de 1 milhão de visualizações em que diz que não irá assistir ao filme, irritado com o fato de que o elenco original não voltou e que o uso do nome “Os Caça-Fantasmas” é uma forma fácil de o estúdio ganhar dinheiro. No caso, ele não chega a dizer que não quer assistir ao filme porque as protagonistas são mulheres, mas em um minuto é fácil elencar pelo menos 20 filmes que sejam reboots/continuações de outros com atores diferentes — de “Jurassic World” a “Onze Homens e um Segredo” passando por vários filmes de super-heróis. Vamos ter o terceiro Homem-Aranha desde 2002 e ninguém reclamou assim quando Tom Holland ganhou o papel.
Nem o sucesso de “Mad Max: Estrada da Fúria” foi capaz de mudar essa discussão. Apesar de o personagem de Tom Hardy estar no título, a verdadeira protagonista do filme é a Furiosa de Charlize Theron. A história toda é sobre mulheres, na verdade, e Max é apenas um auxiliar na história delas. Furiosa é parte da equipe do tirano Joe, que controla o acesso da população à água num mundo árido. Mas, sem que ele saiba, ela resgata suas cinco jovens esposas, selecionadas para que ele se reproduza, e parte de carro em busca a um paraíso verde controlado por mulheres. Em uma das cenas, bastante simbólica, Furiosa usa Max para se apoiar enquanto atira. Elas não são donzelas em perigo, são personagens completas, que partem para a ação. Não à toa, grupos de direitos masculinos manifestaram seu descontentamento à época do lançamento. Familiar?
Outro exemplo recente: neste mês, Kevin Feige, da Marvel, disse que, dentre os personagens dos filmes lançados até agora que não tinham ganhado um filme solo, eles estavam “mais comprometidos emocionalmente e criativamente” em fazer um longa da Viúva Negra. Scarlett Johansson estreou no papel em “Homem de Ferro 2”, em 2010. Desde então Capitão América, Thor e Homem Formiga ganharam seus próprios filmes, e já há datas para que Homem-Aranha (de novo: o terceiro desde 2002!) e Pantera Negra se juntem a eles. Que bom que a Marvel está comprometida a fazer um filme da Viúva Negra — uma personagem com ótima história e interpretada por um dos nomes mais conhecidos do universo dos Vingadores –, mas enquanto não houver planos concretos isso significa pouco mais que nada.
Uma última notícia relacionada, também da última semana (não precisa ir longe): Shane Black, diretor de “Homem de Ferro 3”, declarou que o papel de Rebecca Hall no filme, como vilã, seria bem maior, mas que a Marvel vetou a ideia, dizendo que eles venderiam menos brinquedos assim. Afinal, todo o mundo sabe que meninas não gostam de brincar com bonecas, né?
Nesse sentido, “Mad Max” continua tão relevante um ano depois quanto no dia de seu lançamento. Pra quem, surpreendemente, ainda duvida que mulheres possam protagonizar bons filmes de ação ou acha que fazer sequências/reboots/remakes com mulheres nos papéis principais só pode dar errado, o filme prova que tudo isso é uma grande bobagem. Porque “Mad Max: Estrada da Fúria” é um filme de ação muito bom.
George Miller quis fazer algo que qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo pudesse entender sem legendas e deu muito certo. São poucas falas e um roteiro bem simples — tanto que foi pensado como um storyboard –, e o espectador já é jogado no meio da ação, sem muita explicação para quem são aquelas pessoas ou o que está acontecendo. Não é um filme que destaca as atuações, não é um filme para quem gosta de histórias complicadas e nem tem diálogos que as pessoas citarão daqui anos. Mas não há buracos, acontecimentos sem sentido, personagens incoerentes. É o anti “filme isca de Oscar” que alcançou o feito de competir de igual com igual com os dramas, raro para comédias ou filmes de ação.
Por ser um filme mais visual, vê-lo fora do cinema, numa tela de computador, por exemplo, é bem pior. Taí um filme para não ver no avião. Quanto maior a tela e melhor a resolução, melhor. Também sempre há o risco de que os efeitos especiais envelheçam mal, como em “Star Wars: A Ameaça Fantasma” (e, possivelmente, “X-Men: Apocalipse” — palpite pessoal). Por enquanto, não é o caso. Um ano depois de estrear nos cinemas, “Mad Max: Estrada da Fúria” continua 100% atual.
O novo filme dos X-Men estreia nesta semana, né?
Sim, na quinta (19). “X-Men – Apocalipse”.
E aí, é tão bom quantos os últimos?
Nossa, não.
Mas é ruim?
Não chega a ser ruim, ruim. Mas é bem médio. Pra se ver uma vez na vida — no avião, se não der pra ver no cinema.
O filme tem o Oscar Isaac, não? Como pode ser ruim?
Sim, ter o Oscar Isaac costuma ser ótimo, mas nesse caso não é tão legal na prática quanto parece na teoria.
Mas é o Oscar Isaac.
Verdade, mas…
Ai, jura?
Infelizmente. É um desperdício de Oscar Isaac.
Por quê?
Bom, pra começar a gente só vê o Oscar Isaac de verdade durante uns 30 segundos, no comecinho do filme. Depois ele aparece todo azul — mas não de um jeito legal, tipo Noturno azul, ou Fera azul ou Mística Azul (tem muita gente azul nesse filme). É um azul meio tosco, meio vilão dos Power Rangers. Você escala o Oscar Isaac, o namorado dos sonhos de metade da internet, e deixa ele irreconhecível! Seria ok se a maquiagem fosse bem feita, se o Apocalipse desse medo, fosse imponente. Mas não. Longe disso.
Ok, tudo bem que a aparência dele não seja das melhores, mas e o papel? Deve ser um bom vilão, né? Afinal, é o Apocalipse. Não faz sentido escalar o Oscar Isaac se for pra cobri-lo completamente e ainda ser um papel ruim.
Concordo, não faz sentido mesmo. Mas a vida é assim. As motivações do Apocalipse não chegam a ser incompreensíveis como as do Lex Luthor em “Batman vs. Superman” e esse é o maior elogio que podemos fazer a ele.
Mas qual é a dele?
A história começa no Egito antigo, com o En Sabah Nur, o primeiro mutante da Terra, adorado como um Deus. Ele é hiper poderoso e consegue transferir sua consciência de um corpo pro de outro mutante. Assim, ele fica eternamente jovem e ainda consegue pegar os poderes da pessoa. No comecinho do filme ele se transfere para o corpo do Oscar Isaac, só que durante essa passagem ele é traído, acaba soterrado e passa milênios debaixo da terra, adormecido. Esses são os primeiros cinco minutos do filme.
Certo, e aí?
Aí ele acorda nos anos 1980 de uma forma bem idiota que vamos deixar passar porque é spoiler. Ele acorda meio chocado com o fato de que os humanos estão dominando a Terra e resolve acabar com o mundo e recomeçar do zero com os mutantes que estiverem do seu lado. O plano não é lá muito elaborado mesmo: recrutar uns mutantes pra ajudá-lo (apesar de que ele conseguiria fazer tudo sozinho), tocar o terror e destruir tudo.
E esse En Sabah Nur é o Apocalipse?
Isso, apesar de não se referir a si mesmo assim. Quando a Moira MacTaggert, da CIA, vai explicar qual é a dele pro Professor Xavier, ela diz que ele é capaz de causar um… Apocalipse.
Uau.
Sim.
Continua.
Certo. O Apocalipse sempre tem quatro capangas mutantes. A primeira que ele recruta é a Tempestade, no Egito mesmo. Além do poder dela de controlar o clima, é a primeira mutante que ele encontra, então faz sentido ele trazer ela pro time. Entre os poderes do Apocalipse está fortalecer o poder dos outros e criar uniformes super legais. Depois de deixar a Tempestade mais forte e, no processo, deixar o cabelo dela branco, eles viajam e encontram a Psylocke, que também se junta a eles — apesar de ela não acrescentar muito ao time. É ela quem apresenta o Anjo, que é ainda menos relevante como guarda-costas de um vilão tão poderoso — tipo muito poderoso mesmo. Quase nem tem graça ver um vilão desses em ação.
Pô, mas legal, eu adoro esses personagens novos!
Não se anime muito, cada um deles tem tipo três falas no filme todo. O capanga que importa mesmo é o Magneto.
Por que eles escolhem o Magneto?
Não fica muito claro. Mas deve ser porque ele ficou famoso no último filme, depois de tentar assassinar o presidente americano. Não questiona muito, vai.
Ok.
Agora que esses quatro mutantes estão mais fortes e bem vestidos (com exceção da Psylocke, que podia estar menos “sexy” e mais confortável pra lutar), eles resolvem ir atrás do Professor Xavier. O Apocalipse é quase onipotente, mas ele acha o poder do Xavier o máximo e quer isso pra ele. Então ele vai atrás do Xavier e é aí que entram na história Mística, Fera e Mercúrio — que já apareceram nos dois últimos filmes da série — e Ciclope, Jean Grey e Noturno, que lutam pra destruir o Apocalipse.
É bastante personagem.
Sim, e é feito de um jeito em que nem todas as histórias ganham o espaço que merecem. É tudo bem corrido, muitas tramas diferentes.
Mas todos se encontram numa grande luta final?
Isso mesmo.
Então, no fim, tem vários super-heróis lutando uns contra os outros? Parece que eu já vi isso antes.
Sim, só neste ano aconteceu com o Batman e o Superman e com uma dúzia de heróis em “Capitão América: Guerra Civil”.
E esse filme tá mais pra Batman ou Capitão América?
Rapaz, bem no meio. No “Guerra Civil” a gente conhece bem todos os personagens e dá pra entender tanto as motivações de cada lado quanto as consequências dessa briga. Nesse X-Men não dá pra entender exatamente o que leva os capangas do Apocalipse (com exceção do Magneto, cuja versão Michael Fassbender já conhecemos de outros carnavais) a se juntarem a ele. O conflito simplesmente não é muito interessante. Não que seja uma briga totalmente sem pé nem cabeça, mas é só… um pouco previsível. Dominar o mundo é um plano genérico. O objetivo do Apocalipse é bem parecido com o do Cérebro de “Pinky e o Cérebro” em nível de profundidade.
Que desperdício de Oscar Isaac.
Nem me fale.
Tá, e a parte boa do filme?
As atuações são boas, apesar de o roteiro ser bem mais ou menos. O “bromance” entre o Magneto de Fassbender e o Professor Xavier de James McAvoy continua forte e os dois fazem o que podem com a história que recebem. Os novos atores também estão bem, principalmente aqueles do time Xavier, que têm mais tempo de cena. É legal ver o começo da relação do Ciclope com a Jean Grey, ver a Tempestade ganhar seu cabelo branco e ver o Professor Xavier finalmente ficar careca. O Mercúrio de Evan Peters também é bem legal, apesar de sua melhor cena ser repetida de “Dias de um Futuro Esquecido”.
Aquela em que ele vai mexendo nas coisas enquanto tudo está em câmera super lenta?
Essa mesmo. Foi a melhor parte do último filme e a demonstração dos poderes dele é um dos destaques desse. O papel não é dos maiores, mas Evan Peters mostrou que tinha carisma e humor lá em 2004 no filme tão ruim que chega a ser (quase) bom “Dormindo Fora de Casa” (que também tem a atual vencedora do Oscar Brie Larson, surpreendentemente) .
Peraí, não muda de assunto. E as lutas? São boas? Diz que sim?
Olha, pra quem gosta de destruição (pontes caindo, prédios indo pelos ares, explosões variadas) é um prato cheio. Tem muitos efeitos especiais — julgue como quiser. O trailer dá uma boa ideia.
Ok, então no fim das contas, é pra eu ver ou não?
Vá ver, claro. Você não vai sair achando que gastou duas horas e meia da sua vida à toa. Mas, como na primeira trilogia de “X-Men”, o terceiro é o pior. Depois de “Primeira Classe” e “Dias de um Futuro Esquecido”, e depois de filmes como “Deadpool” e “Capitão América: Guerra Civil” lançados neste ano, a gente esperava mais.
Quando escrevo para Pedro Bromfman para confirmar nossa entrevista para dali cinco minutos, ele responde que seu compromisso com o novo episódio de “Narcos” tinha sido adiantado e que ele teria que sair logo. Remarcamos. Mesmo o espectador mais atento do mundo provavelmente não reconheça o nome de Pedro, mas sua assinatura está em todos os episódios da primeira temporada da série do Netflix. É um tipo curioso de trabalho: se você está entretido na trama, é capaz de nem perceber o que Pedro fez. Porém, não dá pra saber como a série seria sem ele ali. Quer dizer: dá. Seria esquisitíssima. Como em outros trabalhos de José Padilha (“Robocop”, os dois “Tropa de Elite”, “Rio, Eu Te Amo”), Pedro é o compositor da trilha sonora da série.
Uma rápida passada de olhos por sua página no IMDb, o currículo de qualquer um envolvido em cinema ou televisão, revela trabalhos em outras produções bem variadas, passando pela comédia romântica “Qualquer Gato Vira-Lata”, com Cleo Pires e Malvino Salvador, o documentário “Mataram Irmã Dorothy” e, mais recentemente, “Em Nome da Lei”, filme de Sergio Rezende com Mateus Solano e Paolla Oliveira que estreou no fim de abril. A pré-estreia do filme, aliás, é motivo para a visita de Pedro, que mora nos Estados Unidos, ao Brasil. É a melhor parte do trabalho, diz ele, rindo. No resto do tempo, escrever trilhas “é mais transpiração que inspiração”, conta. Não dá pra ficar de papo pro ar, com a página em branco na frente, esperando a ideia chegar.
Pedro começou a fazer trilhas um pouco que por acaso, numa época não havia muita gente especializada nisso no Brasil. Começou a estudar música por volta dos dez anos de idade, quando ganhou o primeiro violão, dedicando-se à prática desde o início. “Queria realmente levar a sério, estudar composição e arranjo. Aos 18 anos fui pro Berklee College of Music, em Boston”, conta. Lá, estudou performance e composição. Voltou para o Brasil, montou uma banda, produziu discos e aí começou a fazer algumas coisas para comerciais, o primeiro passo pra nova carreira. Naquela época, gostava de cinema, mas nunca tinha pensado em trabalhar com isso. Seu negócio mesmo era tocar. Foi por iniciativa da mulher, diretora de cinema, que ele voltou aos Estados Unidos, para Los Angeles, onde sua trajetória profissional mudou.
“Eu estava um pouco frustrado com o mercado de música instrumental aqui no Brasil. Isso foi no começo dos anos 2000. Acabamos indo juntos pra Los Angeles e lá entrei de cabeça nesse mercado de trilhas”, lembra. “Fiz uma especialização lá e comecei a trabalhar com alguns compositores de trilha, fazendo música adicional, ajudando com programa de televisão, coisas assim. Eventualmente comecei a ter a minha chance.” Quando vinha para o Brasil batia na porta de produtoras para se apresentar, aproveitando o fato de que ainda não tinha muito gente que fizesse o que ele fazia. “Naquela época era um país com músicos maravilhosos, mas com pouca gente que entendia realmente como a trilha funciona. Hoje tem muito mais gente capacitada trabalhando. Mas em 2004, 2005, pouca gente se dedicava exclusivamente a isso. Começou a me abrir portas aqui também.”
O primeiro grande projeto fez barulho: “Tropa de Elite”, primeira colaboração sua com José Padilha. A continuação do filme, então, era a maior bilheteria nacional no Brasil até “Os Dez Mandamentos”, neste ano. “Estar lá [nos Estados Unidos] me abriu portas aqui, porque eu tinha especialização e experiência de longa data de composição e orquestração. E o fato de fazer filmes aqui — e um filme como ‘Tropa’, que viajou — começou a me abrir portas lá”, diz Pedro. “Sempre digo que não basta estar preparado e ter talento. Precisa de sorte nesse mercado de cinema. Você tem que estar no lugar certo na hora certa, conhecer as pessoas certas e aí estar preparado pra entregar e fazer o trabalho direito quando te chamarem.”
INTERLÚDIO
Ouça a cena prestando atenção na trilha sonora.
LIBERDADE CRIATIVA
Mas o que significa, exatamente, saber fazer trilha sonora? Não é como compor músicas para um disco próprio. Pra começo de conversa, tudo tem que estar de acordo com a visão do diretor. Numa produção americana, por exemplo, costumam chamar o compositor quando já há um primeiro corte do filme ou programa de TV. As fases de roteiro e filmagem já ficaram bem pra trás. “A cabeça de Hollywood é de que não é só arte, é indústria. É mais uma cabeça de cronograma, orçamento, bem certinha”, diz Pedro. Chegar tão tarde na produção não é o ideal para ele. “Eu gosto — é como trabalho com o Zé Padilha — de me envolver o quanto antes. Ler o roteiro, nem pra começar a gravar coisas, mas pra ter ideias, conversas criativas com o diretor, entender os personagens, qual a instrumentação que deve ser usada.”
No caso de “Narcos”, Pedro não foi à Colômbia, onde a primeira temporada foi gravada, mas recebia imagens assim que as filmagens começaram. “Eu já tinha lido o roteiro do piloto [primeiro episódio] e comecei a compôr música lá no início. Muitas das músicas que compus lá viraram os temas principais. Mas muitas vezes acontece também de você começar cedo, fazer algumas coisas e depois olhar as imagens e falar ‘não é bem por aí, vamos repensar’. Às vezes você lê o roteiro e acha que sabe tudo de que o filme precisa, mas aí você vê as primeiras cenas e realmente vê o tom do filme e das atuações, e é aí que você vê.”
Quanto antes o compositor entra no projeto, maior sua liberdade criativa. Quando um filme já chega nas suas mãos em um primeiro corte, muitas vezes já vem com uma música temporária. Sem música, fica estranho ver um filme e os editores colocam algo para ajudar no ritmo. “A música muitas vezes funciona de uma maneira subconsciente. Você nem está ouvindo realmente, mas se ela não estiver ali você não sente a parte emocional do mesmo jeito. Se você passa um filme sem a música a pessoa não chora, mas se você põe a sala inteira vai ficar emocionada porque é pele”, opina.
No caso de “Em Nome da Lei”, por exemplo, Pedro também participou desde o início e pôde dar suas opiniões a respeito de como deveria ser a música. “Obviamente se eu entrego uma faixa que [o diretor] não gosta ele diz que não é bem por aí. Mas num esquema bem colaborativo, de mandar uma coisa, ele responder, eu defender minha ideia”, diz. “Eu acho que é isso que o cinema é, realmente. Uma grande colaboração de todas as artes. O trabalho do diretor é conseguir unificar aquela visão e passá-la pra todos os departamentos do filme.”
Para ser um compositor de trilhas também é preciso ser versado em músicas de diferentes tipos. Cada projeto, ou cada gênero de filme, pede um tipo de música. “Já fiz trilha que era quase só tango do começo ao fim. ‘Robocop’ tinha uma orquestra de 80 músicos com mistura de música eletrônica”, diz. Hoje, acaba mais fazendo mais filmes de ação, o que considera normal pelo caminho de sua carreira. “As pessoas veem um filme de ação ou de drogas e falam ‘ah, gostei da música dele, vamos chamar pra fazer outro filme assim’. Qualquer oportunidade de sair um pouco disso, fazer uma comédia romântica, uma animação que for, eu abraço. Principalmente se for um projeto interessante. Obviamente a primeira decisão do sim ou do não é se o tema me interessa.”
E, é claro, produzir independente de inspiração. Nem sempre é fácil. “Toda vez que eu começo um projeto eu penso que não tenho ideia do que fazer. É como se eu esquecesse o que eu faço cada vez que eu começo. Aí passo duas semanas com o filme, digerindo, experimentando uma coisinha ou outra até a hora que a coisa engrena. Aí a gente encontra o tom e a instrumentação, e a partir dali a coisa flui”, diz. Mas mesmo antes de pegar no tranco ele se compromete a sentar no estúdio todo dia às 9h e trabalhar até as 18h. “Talvez no dia seguinte eu não goste de nada do que fiz. Mas todos os dias tem alguma coisa produzida. Música pra cinema é muito mais transpiração que inspiração. Inspiração é o que você absorveu ao longo da vida, de filmes que viu, músicas que ouviu, estudos que fez, instrumentos que aprendeu a tocar. No dia a dia a coisa é sentar e produzir.”
https://www.youtube.com/watch?v=U7elNhHwgBU
O resultado de tudo isso é fazer com que trilha e filme casem perfeitamente. Pedro diz que sabe que está diante de um grande filme quando ele presta atenção na trilha, mas nem tanto assim. Nesse caso ele ouve de novo a trilha em casa (entre os ídolos aponta Ennio Morricone, atual vencedor do Oscar por “Os Oito Odiados”, Thomas Newman, indicado a 13 Oscar — o último por “Ponte dos Espiões”, neste ano –, e Gustavo Santaolalla, que ganhou o Oscar por “Babel” e “O Segredo de Brokeback Mountain”).
Para quem quer começar a trabalhar com trilhas hoje há mais caminhos, inclusive especializações no Brasil. Há um mercado grande, particularmente, para trilha sonora de videogames, conta ele, que trabalhou no jogo “Max Payne”. “Foi meu primeiro e único trabalho até agora, mas é um mercado que cresce muito. Os fãs jogam o dia todo e aquela música fica embrenhada, eles são mais apaixonados pelas trilhas que os fanáticos por cinema”, diz. A experiência foi boa, mas no cinema há mais controle sobre a obra. “No videogame você faz a música, mas não tem como saber se aquilo que você escreveu vai tocar exatamente naquele momento. Todas as músicas têm que poder voltar pro começo e não terminar nunca até que você passe de um ponto, ou mude de fase. Aí começa uma nova música”, diz. No cinema, se ele escreveu aquilo para a cena X, sempre irá tocar na cena X.
Agora, além de trabalhar na segunda temporada de “Narcos” (acabou de terminar o quinto episódio e faz mais ou menos um capítulo a cada dez dias), faz a trilha da série “Rio Heat”, com Harvey Keitel. Também cita um projeto com José Padilha sobre o qual não pode falar (dias depois da entrevista, o Netflix revelou que vai exibir uma série do diretor sobre a Operação Lava Jato). O ritmo é forte, diz. “Não estou fazendo a música só pela música. Não interessa se ela é a mais bonita do mundo, se a melodia é a mais linda, estou fazendo a música pro bem de uma obra maior, ajudando uma cena e personagens. Esse é o grande lance.”