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O retorno de Neville D’Almeida

Neville D’Almeida começa o papo perguntando quanto tempo a entrevista vai demorar. Sugere duas conversas, de 15 minutos cada uma, para não cansar. Sabe como é, não é lá muito confortável falar tanto tempo seguido no celular. Mas logo de cara dá pra perceber que é impossível conversar por apenas 15 minutos com Neville. A conversa vai crescendo, crescendo, indo por caminhos improváveis — passando pelos dois únicos estadistas do mundo, em sua opinião, pela fase pornográfica de Picasso e pela série “Breaking Bad” — até que, quando você vê, já se passou uma hora. Neville também é daqueles que pergunta, como se estivesse numa conversa mesmo, não numa entrevista. Pergunta minha idade, minha opinião sobre o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e não fica satisfeito com uma resposta evasiva. “Quando você vier pro Rio a gente faz um vídeo”, promete.

Diretor de “A Dama do Lotação”, uma das cinco maiores bilheterias do cinema brasileiro, Neville volta ao cinema depois de 18 anos sem lançar um longa, com “A Frente Fria que a Chuva Traz”, que estreou no dia 28 de abril. O cineasta não mede as palavras para explicar a ausência de quase duas décadas das salas de cinema. “A resposta é: [por causa da] mediocridade e hipocrisia dos produtores brasileiros. Falta de visão, burrice, incapacidade diante dos verdadeiros talentos, que é o meu caso”, diz. Fazer cinema hoje sem fazer parte de panelinhas é praticamente impossível, em sua opinião. “Dá pra fazer, sim, mas os produtores não vão querer produzir e os exibidores não vão querer exibir.”

Segundo Neville, o Brasil é uma “república de filhos”. Só quem é parente de alguém bem relacionado consegue fazer cinema. “Os filhos estão sempre fazendo, fazendo. É uma coisa… Como chama isso? Essa coisa de família, dentro da política?” Nepotismo? “Isso, total. O cinema também é vítima disso.” Sem ter contatos em festivais, por exemplo, é dificílimo de emplacar um filme. “O Festival do Rio é um exemplo de nepotismo total e absoluto. Mais do que isso. Da falta de alternância de poder”, diz. Como dois casos positivos, cita os festivais de Brasília e Gramado, em que há uma rotatividade maior de curadores (“déspotas medíocres”, diz Neville). “Isso é muito saudável pra democracia. Mas aqui no Rio não é assim que se faz. Está há 20 anos a mesma turma. E é a ditadura do gosto. ‘Aqui é o que eu gosto, o que eu acho, o que eu penso.’ A censura acontece através das comissões dos festivais, de uma forma violenta, ditatorial, sem dar nenhuma satisfação pro cineasta. Seu filme não foi escolhido e acabou.”

O hiato terminou graças a um convite do produtor Carlos Alberto de Carvalho, que lhe chamou para fazer um filme baseado num texto do dramaturgo e ator Mário Bortolotto. “A gente escolheu ‘A Frente Fria que a Chuva Traz’ pela originalidade de falar de festas em favela”, diz ele. No filme, um grupo de fúteis jovens ricos do Rio de Janeiro aluga uma laje na favela para fazer festas cheias de sexo e drogas pelo fetiche de estar no morro. É um longa bem teatral: poucos personagens, ação que se passa em um único dia, concentrada em pouquíssimos cenários e muitos diálogos carregados de palavrões. Caras menos conhecidas dividem espaço com Bruna Linzmeyer e Chay Suede, em papéis que pouco lembram seus trabalhos em novelas da Globo — ela, uma prostituta que vai às festas atrás de drogas; ele, um cara que troca drogas por boquetes das amigas.

O cineasta Neville D'Almeida. Crédito: Acervo pessoal
O cineasta Neville D’Almeida. Crédito: Acervo pessoal

Mesmo sendo convidado para fazer o longa, a jornada de Neville não fácil nem curta. Foram sete anos desde o início do projeto até sua conclusão, “devido a censura dos editais e da Ancine”, segundo o cineasta. Sem financiamento, o filme demorou a sair. “Eles preferem diretores que fazem tudo politicamente correto. É espantoso”, reclama o diretor.

Se tem algo que Neville não é é politicamente correto. Um dos fundadores do cinema marginal, teve vários filmes censurados na época da ditadura militar. “A coisa mais importante pra um artista é um instrumento chamado liberdade. Eu, numa ditadura militar, numa caretice total, fiz um cinema desses a vida inteira. As consequências foram terríveis. Cinco filmes proibidos, jamais exibidos, falta de dinheiro, frustração, sofrimento, ansiedade. Mas valeu a pena. Não vou fazer o que a censura diz”, afirma. “Vou fazer o que não pode. Outros pensaram de forma diferente. Não faço filme pra puxar saco, pra agradar. Faço o que tem que ser feito porque sou um artista. Até no Vaticano tem o Davi pelado com o pau pra fora. O cinema hoje não tem isso.”

[olho]”Cansaram de matar na Terra, foram matar no espaço. Mas alguém fez sexo no espaço? O amor verdadeiro não existe no espaço, lá é só pra matar”[/olho]

A cruzada contra a caretice, usada para garantir público, é uma coisa que ele leva a sério. Quase não vai ao cinema “pra não ficar mal influenciado, pra não ficar vendo essas porcarias”. “Star Wars”? Careta. “Agora reeditaram ‘Star Wars’. ‘Star Wars’ é uma chanchada. Chanchada é o nome daquela porcaria. E os caras voltaram a fazer. A moda continua anos 70 careta. A caretice continua. Hoje é tudo anos 60 e 70: Batman, Superman, Star Wars. Só porcarias. O mundo está perdido”, diz. “Eles levaram a guerra pro espaço. Cansaram de matar na Terra, foram matar no espaço. Mas alguém fez sexo no espaço? O amor verdadeiro não existe no espaço, lá é só pra matar. Isso é lixo total.” Também não poupa críticas a seriados americanos. “Sei de todos, mas acho todos um lixo, um retrato medíocre da sociedade americana. Mais ainda: são todos iguais.” “Breaking Bad”? Porcaria. Em série americana, diz, só se reafirma a cultura da violência, do “quanto mais escroto melhor”. “Todo cara acaba com um revólver na mão e daqui está matando um, ou por causa de dinheiro ou sexo. Quem faz sexo tem que morrer. É um moralismo.”

Para seu jovem elenco, só elogios, justamente pela disponibilidade em sair da zona do conforto. Bruna foi a única convidada pelo diretor, que já tinha visto alguns de seus trabalhos e ficado impressionado com sua força dramática. “Ela tem 23 anos, mas parece que tem 40 em maturidade, em coragem de viver intensamente um personagem marginal”, elogia. Em sua opinião, muitos atores censuram os próprios personagens e só querem saber de fazer propaganda de sandália Havaianas. “É fácil ficar fazendo novela: abre a porta, fecha a porta, atende o telefone, desliga o telefone. Essas coisas medíocres estão em alta. Atrizes medíocres gostam de fazer propaganda de produtos medíocres mais do que de grandes personagens”, opina. Bruna foi chamada à casa de Neville, que lhe perguntou se ela estava disposta a viver o personagem intensamente. Topou. Já Chay Suede chegou ao diretor por meio de testes e foi “brilhante”. “Eu o considero um ator extraordinário. É muito bom trabalhar com ele, nos tornamos amigos. É um homem simples, honrado, sério, honesto, talentoso. Não é mascarado.”

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Chay Suede em 'A Frente Fria que a Chuva Traz'. Crédito: Divulgação
Chay Suede em ‘A Frente Fria que a Chuva Traz’. Crédito: Divulgação

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Depois de estourar como protagonista da primeira fase da novela “Império” e de interpretar um mocinho em “Babilônia”, Chay Suede realmente mostra outra faceta. “A Frente Fria que a Chuva Traz” mostra, de fato, pouca coisa. Moças de sutiã e olhe lá. Mas os diálogos são bem carregados e os temas, bem diferentes do que se vê na televisão, de onde veio. Liberdade, afirma Neville, é a única coisa que resta ao cinema para se manter relevante frente às outras formas de produção audiovisual. O que não sair da casinha ou a TV ou a internet podem fazer tranquilamente, e fazem. O bom cinema deve ser livre — o que não acontece no momento. “O cinema não é uma arte livre. É uma arte cativa, amarrada em correntes. Isso pode, isso não pode. É cheio de amarras. Não pode ser com a luz acesa, tem que ser com a luz apagada. O cinema do futuro é um cinema de arte”, diz. “Deus não está aqui pra reprimir. Ele quer os artistas livres. ‘Não pode fumar, não pode foder, não pode peidar.’ Deus quer os artistas com liberdade pra expressar sua época. Ele não trabalha na censura.”

Agora, Neville D’Almeida trabalha em dois projetos. Um deles se chama “A Dama da Internet”, sobre a mulher no Brasil de hoje. O segundo, “Bye Bye Amazônia”, é sobre a morte anunciada da floresta, causada por quatro fatores: “o etanol, a soja, o gado e a madeira”. “Você vê, por exemplo, que a Dilma colocou como ministra da agricultura a Katia Abreu, líder do agronegócio, da destruição não só da Amazônia, mas dessas coisas todas.” Espera não ficar mais tanto tempo afastado do cinema. “Acho que vou poder fazer”, diz, otimista.

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‘Wolfpack’: Juventude enclausurada

Quando Crystal Moselle cruzou com um exótico grupo de jovens, com cabelos bem compridos e roupas que pareciam fazer parte do figurino do filme “Cães de Aluguel”, ela não fazia ideia de que ali nascia seu primeiro documentário, “The Wolfpack”. “Eles passaram por mim e eu tive uma experiência de ‘o que está acontecendo? Quem são essas pessoas?’”, lembra, rindo. Alguma coisa naquela visão em uma rua de Nova York a deixou intrigada e a fez correr atrás dos seis irmãos para se apresentar. A primeira surpresa veio de cara, quando perguntou de onde eles vinham e eles responderam que de uma rua ali do lado, no East Village. De alguma forma, ela nunca tinha visto aquele grupo de irmãos de terno e gravata circular por ali. Mais pra frente, ela descobriria a razão: eles tinham sido criados praticamente presos dentro de casa e não circulavam em lugar algum. Podiam sair só acompanhados do pai, normalmente poucas vezes ao ano; ou até nenhuma vez, dependendo do ano. Mas por enquanto era só uma conversa despretensiosa, resultado de um instinto de saber mais sobre aquelas figuras.

O interesse dos irmãos Bhagavan, Govinda, Jagadisa, Krsna, Mukunda e Narayana Angulo, com idades entre 11 e 18 anos na época, foi capturado quando Crystal contou que era cineasta. “Eles tinham interesse em trabalhar com cinema. Virou uma amizade. Comecei a mostrar filmes, passar tempo com eles. Conversávamos sobre cinema, esse tipo de coisa”, diz. Até então, era só uma amizade, não um projeto. “Um dia perguntei pra eles se eles queriam fazer um documentário. Eu pensava em segui-los e mostrá-los sendo quem eles eram. Mas conforme o tempo foi passando as coisas ficaram mais intensas e eles contaram sua história pra mim.”

E a história realmente era digna de filme. Uma sinopse, segundo o Netflix, que passou a exibir o filme neste ano: “sete irmãos criados quase em isolamento são moldados pelos filmes que assistem obsessivamente, embora anseiem por mais liberdade”. Crystal sabia de cara que estava diante de uma família incomum, mas foi só depois de meses de convivência que ela descobriu que aqueles seis rapazes e sua irmã haviam passado a maior parte de suas vidas enfurnados em casa, por ordens do pai. Oscar guardava a única chave da casa, à qual nem a mãe, Susanne, tinha acesso. O peruano conheceu Susanne em uma viagem para Machu Picchu. Casaram-se e mudaram-se para os Estados Unidos, onde nasceram os filhos. Mas para ele, Nova York e seus habitantes eram perigosos demais e a saída que viu para o problema foi isolar os filhos. Nas raras vezes em que deixavam a casa, para ir ao médico ou algo assim, as crianças não podiam interagir com ninguém. A família era como uma pequena tribo fechada em si.

Cena do documentário 'The Wolfpack'
Cena do documentário ‘The Wolfpack’

Mas os garotos criados entre quatro paredes (a menina, Visnu, tem síndrome de Turner e mal aparece no filme) não cresceram numa experiência estilo “O Quarto de Jack”, sem saber nada do mundo lá fora. Suas estantes eram ocupadas por milhares de filmes de todos os gêneros, fornecidos pelo pai, aos quais eles assistiam sem parar. Os filmes eram sua válvula de escape para o mundo fora do apartamento, e depois de vê-los os meninos os reencenavam em detalhes. As falas das produções favoritas eram transcritas para o papel, todos decoravam seus papéis e copiavam com detalhes aquilo que viam em cena.

Com materiais encontrados em casa, os irmãos montavam seus próprios cenários e figurinos. Uma fantasia de Batman vestida por eles, por exemplo, foi toda feita com pedaços de tapete de yoga e caixas de cereais e, cheia de detalhes, não fica devendo muito à usada por Ben Affleck em “Batman vs. Superman”. Não à toa eles ficaram maravilhados quando Crystal contou que trabalhava com cinema. Graças a essa paixão em comum os irmãos Angulo superaram a barreira de não conversar com estranhos e abriram as portas de sua casa para ela — a primeira visita de alguém de fora da família que eles tiveram.

Crystal encontrou com os garotos em uma de suas primeiras excursões em grupo para fora do apartamento. O primeiro a se aventurar e conhecer o mundo foi Mukunda, cansado das limitações que lhe impunham. Aos 15 anos, aproveitou uma saída do pai para fazer compras, vestiu uma máscara do filme “Halloween” para não ser reconhecido caso se deparasse com ele e escapou. Circulou pelas ruas da cidade até ser pego pela polícia depois de uma denúncia — embora Mukunda não tenha feito nada, algumas pessoas ficaram assustadas. Não é todo dia que se vê um adolescente cabeludo vestido como um personagem de filme de terror vagando por bancos e lojas.

De lá, Mukunda foi levado para um hospital psiquiátrico, onde passou uma semana e pôde pela primeira vez conviver com pessoas que não eram de sua família. Daí pra frente, a vida dos irmãos nunca mais foi a mesma. Aos poucos, os outros garotos Angulo começaram a questionar a autoridade do pai e seguir Mukunda em seus passeios pelas redondezas. Sempre juntos, como uma família de lobos (“wolfpack”, apelido dado a eles por um amigo da diretora). Por um acaso, seus caminhos se cruzaram com os de Crystal, que estava no lugar certo na hora certa.

Contar uma história dessas foi bem mais difícil do que a cineasta imaginava quando sugeriu fazer um documentário com eles. A ideia de segui-los e retratar sua vida ganhou uma dimensão maior do que apenas mostrar um grupo de irmãos que se vestiam como personagens de Tarantino. Crystal conseguiu um acesso impressionante à família para fazer um retrato de como é descobrir o mundo. Se eles diziam que queriam ir à praia pela primeira vez, Crystal ia atrás com a câmera para mostrar a reação deles ao ver o mar e o medo que um teve de molhar os pés. Quando tinham dúvidas sobre como conversar com uma garota, Crystal também estava lá para captar essa experiência vivida pela primeira vez. Por mais que tivessem visto tudo aquilo nos filmes, a vida real é bem diferente, como eles percebem ao pegar um metrô, despreparados com a velocidade do trem. Tudo isso está no filme e no livro “Wolves Like Us”, de Dan Martensen, amigo de Crystal.

“Não é possível fazer um filme desses e não se envolver emocionalmente”, conta a diretora, rindo de leve. “Não foi fácil. Foi por isso, provavelmente, que levei cinco anos para fazer esse filme. Estávamos numa jornada juntos, tinha um monte de questões de confiança, que eles tinham na vida. A questão era encontrarmos essa confiança uns nos outros.” Os pais Angulo também se mostraram abertos a conversar com ela, principalmente a mãe. A certa altura, em um vídeo feito por um dos filhos, vemos Susanne ligar para sua mãe pela primeira vez em anos, contrariando uma proibição do marido, dizendo estar saudosa e tentando marcar uma visita. Durante todo aquele tempo, não eram só os filhos quem viviam num tipo de prisão — Susanne também.

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Os irmãos Angulo, em foto de Dan Martensen, que lançou o livro “Wolves Like Us”. Crédito: Divulgação

Oscar é uma figura mais misteriosa, quase que um líder de culto. Nos poucos momentos em que aparece em cena, diz coisas como “meu poder influencia todo o mundo” e não admite ter errado de nenhuma forma na criação dos filhos, a maior parte dos quais já não conversa mais com ele. Parte de uma comunidade Hare Krishna quando mais jovem, Oscar se inspirou em Krishna, que teve dez filhos, e além de dar nomes em sânscrito para todas as crianças os estimulou a manter os cabelos grandes, como uma demonstração de poder e força, tal qual Sansão.

A documentarista, que conversou com Oscar em várias ocasiões para tentar compreendê-lo, diz que tentou deixar seu julgamento de fora do filme. “Eu só queria capturar o que eu pudesse nele. Não sei se entendo o que ele fez. Posso ver o ponto de vista dele, mas não estou certa de que concordo”, afirma. A maior dificuldade, conta, não foi fazer com que Oscar se dispusesse a conversar com ela, mas com que ele olhasse para si mesmo e para tudo o que tinha feito. “Acho que foi difícil para ele.”

“The Wolfpack”, vencedor no ano passado do grande prêmio do júri em Sundance, maior festival de cinema independente dos Estados Unidos, acompanha os Angulo até o ponto em que Govinda muda de casa. Hoje a vida deles mudou ainda mais: dois mudaram de nome (Jagadisa agora é Eddie e Krsna é Glenn), vários criaram perfis no Facebook, quase todos cortaram os cabelos e um chegou a ficar loiro. Crystal diz que continua muito próxima dos garotos. “Estava com eles hoje. Vamos fazer o MTV Movie Awards na semana que vem. Eles vão fazer um tipo de comentário para o prêmio”, diz ela, que concorre ao troféu de documentário.

Os irmãos não se envolveram de nenhuma forma na produção do documentário e só assistiram a tudo já no final, pronto. “Foram sempre muito positivos em relação ao filme, até o pai. Foi meu pior medo, mostrar o documentário para meus personagens”, diz ela. Mas graças à experiência adquirida fazendo os próprios filmes, vários trabalham na indústria do cinema. “Eles fazem de tudo, tem gente que trabalha com fotografia, em salas de cinema, com produção. Mukunda está fazendo curtas e estamos trabalhando juntos. Eles estão fazendo várias coisas diferentes, mas querem, principalmente, inspirar mudanças”, conta. Para os garotos, contar sua história pode inspirar as pessoas a lutar pelo que querem e não aceitar a opressão. “Eles estão muito inspirados em ajudar o planeta e outras pessoas. Todos eles estão dividindo suas experiências para ajudar outras pessoas.”

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‘Mundo Cão’: violência e um pouco de futebol

Antes da sessão de “Mundo Cão” para jornalistas começar cada um recebeu um papel que pedia: por favor, não deem spoilers para os leitores. Parece um pedido esquisito. Não contar demais de uma história sem aviso e estragar a experiência de quem quer ver um filme é que nem lavar as mãos depois de ir ao banheiro: tem gente que não faz, mas é senso comum. Na coletiva de imprensa, realizada logo depois da exibição emSão Paulo, percebe-se o porquê do panfleto. Quase nenhuma das respostas dadas pela equipe do filme, que estreia na quinta (17), pode ser usada numa reportagem sem que alguma reviravolta da história seja revelada.

Dirigido por Marcos Jorge, de “Estômago” (2007), o filme mostra as repercussões do encontro entre Santana (Babu Santana), funcionário do centro de zoonoses, e Nenê (Lázaro Ramos), que cria cachorros para aterrorizar quem atrapalhar seu negócio de máquinas de jogo em bares. Quando um de seus cachorros escapa e vai parar em uma escola, Santana e seu parceiro capturam o animal e o levam para o centro. Pela lei, se em três dias o dono não aparecer, o cachorro é sacrificado. Mordido na bunda pelo cachorro, o colega de Santana tem pressa para dar o fim no cão assim que o prazo termina, e o animal acaba por morrer minutos antes de Nenê chegar para buscá-lo.

Até então, Santana levava uma vida sossegada com os filhos, João (Vini Carvalho) e Isaura (Thainá Duarte), e a mulher, Dilza (Adriana Esteves), uma evangélica que vende calcinhas sexy — mas não de enfiar na bunda — pelo bairro. Depois de conhecer Nenê e entrar num confronto tenso com ele, acaba a paz. Santana chama o dono do cachorro de animal, e, como vingança, Nenê sequestra João, começando um jogo de gato e rato entre os dois no qual tabuleiro vira algumas vezes. Não dá pra contar mais nada. Como diria Marcos Jorge, é um filme cheio de “truquinhos do diretor”.

A história nasceu de uma obsessão de infância do cineasta pelo homem da carrocinha e de sua vontade de falar sobre amor entre pai e filho. Ainda quando fazia “Estômago”, o filme foi ganhando forma. Não à toa Babu Santana interpreta Santana: quando os dois filmavam juntos o longa de 2007, anos atrás, Marcos pensava em seu protagonista como “um cara bonachão, de coração muito bom”, como Babu.

O papel veio a calhar, diz Babu. “Foi um filme que me confortou. Eu tinha acabado de perder minha mãe, foi uma ação que não permitiu minha cabeça de se desmotivar. Segurou muito minha onda e minha autoestima”, diz ele sobre a experiência. “O Santana foi lindo. É a figura mais humana com quem me deparei. Como na nossa vida, alguma atitude que a gente toma ou alguma coisa em que a gente tropeça pode mudar tudo.” Depois de Babu, foi a vez de Lázaro entrar no projeto. “Eu me senti à vontade pra convidar qualquer ator brasileiro que eu sentisse no nível que eu queria. E o Lázaro foi escolha quase que natural. Ele é um dos maiores atores brasileiros”, afirma o diretor, questionado sobre o fato de seus dois personagens principais serem negros.

“Não escolhi esses dois caras por eles serem negros. Escolhi porque eles são dois dos melhores atores brasileiros. Depois eu fui fundo na questão black, porque desde que eu fiz o roteiro a música estava impregnada no personagem do Santana, que é baterista”, continua o cineasta. “A família tem esse tom de pele lindo que representa fundamentalmente o Brasil. Até nas minhas publicidades — sou diretor de publicidade — tenho o costume de colocar muita gente negra. Acho que isso é um valor. Eu procuro a verdade. Como o Brasil é um país com muita gente misturada, eu sou misturado, quase todos nós somos misturados, acho natural que o cinema reflita isso. É curioso que não faça e que esse seja um filme que de certa forma se diferencie dos outros por esse motivo. Esse não deveria ser um motivo.”

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Lázaro Ramos e Vini Carvalho. Crédito: Divulgação
Lázaro Ramos e Vini Carvalho. Crédito: Divulgação

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Para Lázaro, a motivação foi poder abordar um tema em que pensa muito, mas não entende: a vingança pelas próprias mãos. Também diz ter se sentido pronto, pela primeira vez, para interpretar um vilão (com direito a risada maquiavélica e tudo). “Sempre fugi um pouco desse tipo de personagem. E em ‘Mundo Cão’ me senti preparado, achei que era o momento certo pra fazer um personagem muito diferente de mim, muito impulsivo, mais apaixonado por futebol e por cachorro do que por seres humanos. Exatamente o oposto de mim”, diz. “Tentei investigar como o ser humano consegue chegar ao limite por esses dois motivos.”

O amor de Nenê por cachorros e o Palmeiras trouxe duas grandes dificuldades para o diretor. A primeira foi trabalhar com os animais. “Eu me meti numa enrascada nesse filme, porque você começa a escrever o roteiro dizendo ‘cachorro ataca, cachorro é preso, cachorro foge’ e cada uma dessas palavras que você coloca no roteiro dá um trabalho infernal”, lembra. “É muito mais fácil treinar o cachorro pra ser simpático do que pra parecer agressivo sem ser agressivo.” Cada plano tem um truque, diz, como uma corda que manteve o cachorro parado na marca apagada na finalização. Foram 12 diárias com cachorros e 12 noites não dormidas, diz ele. Apesar do trabalho, Marcos é grato aos cães, “verdadeiros atores”, que são citados pelo nome nos créditos finais depois dos atores humanos. “O cachorro é um pouco a metáfora. Eles me permitem passar agressividade sem que gere um filme violento.”

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Babu Santana em 'Mundo Cão'. Crédito: Divulgação
Babu Santana em ‘Mundo Cão’. Crédito: Divulgação

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Segundo desafio: o futebol. Em uma das cenas — que aparece no trailer, então tudo bem falar dela –, Nenê leva João, filho de corintiano, ao estádio para ver o Palmeiras e um plano sequência mostra a sensação do menino de chegar à arquibancada pela primeira vez. Outra cena daquelas que você coloca no roteiro e depois causam dor de cabeça, lembra Marcos. “É o plano mais difícil do filme, um plano sequência feito com duas câmeras separadas, fundidas na finalização. Ali tem 3D, 2D, drone, steadicam”, conta, acrescentando que a cena levou meses para ficar pronta. “[Foi] essa sensação de ir ao estádio pela primeira vez que eu quis passar e quis fazer com plenitude. Inventei um plano que depois me deu muito trabalho pra fazer, mas acho que passa essa energia do estádio.”

Mas futebol é um penduricalho. O tema principal do filme fica claro logo no início, quando os dois protagonistas se enfrentam no centro de zoonoses. Por que Santana não disse pra Nenê que o principal responsável pela morte do cachorro era seu parceiro? Há, em primeiro lugar, um elemento de lealdade à corporação. “Ele se sente ofendido como profissional. O trabalho dele é caçar cachorro. A carrocinha que a gente usou, que nos foi emprestada pelo centro de zoonoses de São Paulo, tinha furos de bala na traseira. Os caras andavam pela cidade e levavam tiros. Os laçadores de cães são uma categoria profissional vituperada. No entanto, nos anos 70 e 80 eles erradicaram a raiva no Brasil. São pessoas que fazem seu trabalho. Não é culpa deles. Eles têm orgulho do trabalho deles, fazem um trabalho útil para a sociedade”, diz. “O Santana toma essas dores porque é da natureza dele. Ele é o cara que toma a frente, que tem a pegada de defender.”

É também mais que isso. Tanto a cena quanto o filme falam sobre a escalada da violência e a dificuldade em identificar onde ela começa — esse sim o ponto central da história. “Uma hora você não sabe mais por quê, você não entende mais por que começou aquilo tudo. O fato é que aconteceu o que aconteceu, não interessa se eu tive ou não tive culpa”, diz Babu. Marcos concorda: “O que se diz é mais importante do que o que originou a discussão. Ontem, na rua, eu vi um guarda e um ciclista brigando fisicamente, numa discussão que começou com um bate-boca e num momento um dos dois pegou um martelo de uma construção. Me lembrou muito essa discussão. Começa por um motivo meio banal, as pessoas dizem coisas erradas e de repente aquilo é mais importante, a falta de paciência. Isso é a violência que a gente vive hoje”.

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Ascensão, queda e evolução dos trailers

Uma ameaça, uns super-heróis capazes de enfrentar a ameaça, os socos, pontapés e explosões que acontecem nesse enfrentamento e uma frase espertinha no final. Poderia ser a descrição do trailer de vários filmes de super-heróis — e é. De acordo com Dana Polan, professor do departamento de cinema da Universidade de Nova York, essa é uma das receitas para as prévias de blockbusters de ação. A semelhança entre trailers lançados numa mesma época não é mera coincidência: cada época tem seu tipo. Muita coisa mudou desde o nascimento dos trailers, por volta de cem anos atrás – com as mudanças tecnológicas e socioculturais, transformou-se não só a forma como eles são produzidos e consumidos, como também sua cara.

Segundo Polan, os trailers parecem ter começado por volta do meio da década de 1910 — é difícil precisar a data e definir qual foi o primeiro filme a usar esse tipo de vídeo curto para promover seu lançamento. No início, eram exibidos depois do filme no cinema, e foi daí que nasceu seu nome, já que um dos significados da palavra “trail”, em inglês, é vir em seguida. Os pequenos filmes mostravam alguns trechos importantes do longa, dando ênfase para cenas de ação ou romance, com um aviso de “em breve no cinema”. No início, os trailers serviam como propaganda não só para o filme como também para a indústria cinematográfica. “Eles diziam: ‘Olhem como é dinâmico o mundo dos filmes! Você realmente quer perder isso?’”, diz Polan, lembrando a presença de grandes letreiros e efeitos ópticos que marcavam os trailers até os anos 1950.

Entre os anos 1930 e 1950, as prévias destacavam o elenco. “Enfatizavam muito o nome da estrela e, em segundo lugar, como seu personagem se encaixava no filme sendo promovido. Em outras palavras, não era a trama que era vendida, e sim como a estrela aparecia no filme”, afirma ele. Para Keith Johnston, autor do livro “Coming Soon: Film Trailers and the Selling of Hollywood Technology”, sem edição em português, até 1930 ainda estavam sendo testadas estruturas e diferentes estéticas para os trailers, resultando em vinhetas mais experimentais. Durante os anos 1920, havia três grandes tipos de trailers: os curtos, com menos de um minuto, o título do filme e algumas fotos; os regulares, de um a dois minutos, com o título, animações e uma ou duas cenas; e os de luxo, com dois a três minutos de duração e cenas do filme.

Alexander S. Davis, doutorando do departamento de cinema da Universidade de Nova York, diz que as tendências nos trailers acompanham a evolução da tecnologia no cinema. “Se os trailers são feitos para mostrar o que há de mais único e valioso em um filme, as inovações na tecnologia (uso de widescreen, 3D, efeitos especiais etc.) devem impactar o modo como eles são construídos”, diz. “Com o widescreen os filmes passaram a ser um espetáculo de imagem e os trailers poderiam focar nas grandes paisagens em vez de na narrativa ou no filme em si. Quando essa tecnologia envelhece, os trailers voltam a ser propagandas da narrativa.”

[citacao credito=”Alexander S. Davis” ]Se os trailers são feitos para mostrar o que há de mais único e valioso em um filme, as inovações na tecnologia (uso de widescreen, 3D, efeitos especiais etc.) devem impactar o modo como eles são construídos[/citacao]

Johnston dá outro exemplo. Com a chegada do som ao cinema, começou uma nova tendência, com um mestre de cerimônias apresentando o filme, caso do trailer de “The Jazz Singer”, de 1927. Quando ficou comum ter som no filme e a edição de sons ficou mais sofisticada, aumentou o balanço entre letreiros, cenas, música e narração — o que ficou conhecido como o estilo “clássico” dos trailers.

“Não estou dizendo que a tecnologia ajuda o trailer a evoluir — porque isso não é uma questão de evolução, e sim de tentativa e erro por parte da indústria. Mas há momentos claros em que novas tecnologias forçam ou encorajam produtores de trailers a experimentar”, diz Johnston. Até os anos 1960, o monopólio da produção de trailers estava nas mãos da National Screen Service, que produzia as prévias de modo industrial, com uma fórmula um pouco parecida. Letreiros que contavam um pouco da história e faziam promessas como “se você busca aventura, vai encontrar neste filme”, um narrador, algumas cenas não muito reveladoras do filme e apresentação do elenco e personagens — como o caso de “Casablanca”.

AGILIDADE

Nos anos 1960, começaram a aparecer outras empresas, como a Kaleidoscope, mais dispostas a experimentar. Andrew J. Kuehn, que fundou a companhia em 1968, produziu mais de mil trailers, incluindo os de “Tubarão”, “E.T” e “Star Wars”. Seus trailers eram mais ágeis, ainda com a presença de narração — mas narradores com mais personalidade –, bastante música e que contavam a história por meio de cenas, abrindo mão dos letreiros explicativos. Em uma entrevista citada pela revista Variety em seu obituário, Kuehn afirmou: “Um trailer tem um objetivo: levar o público das suas casas para uma sala de cinema. Para fazer isso você tem que gerar um senso de urgência. No processo de chegar a esse ritmo avançamos o estilo de edição. Realmente forçamos os limites do que o público poderia aceitar”.

Com o sucesso de franquias e blockbusters como “Star Wars”, os estúdios passaram a querer ter mais controle sobre seus trailers, afirma Polan. O lançamento de um filme passou a significar também a venda de outros produtos: livros, quadrinhos, brinquedos, e depois vídeos. “A partir dos anos 1970 cada vez mais a qualidade e a cara dos trailers passou a ficar nas mãos dos estúdios e seus diretores, para que o trailer fizesse parte do mesmo universo narrativo que o filme”, diz ele.

Populares anos atrás, as narrações viraram tão clichê que hoje são mais usadas por comédias que querem tirar um sarro — ou por vídeos engraçadinhos como os do Honest Trailers, que mostrariam “a realidade” do filme. “Agora estamos num momento em que montagens estão mais populares, com menos coisas escritas e narrações. Mas é provável que isso mude de novo, com trailers como os de ‘Magic Mike XXL’ e ‘Independence Day: Ressurgence’ mostrando que letreiros estão crescendo em popularidade novamente”, palpita Johnston.

ERA DA INTERNET

A internet representou outra grande mudança no universo dos trailers. “Ela definitivamente mudou a forma como consumimos trailers. Agora há múltiplos trailers lançados para construir interesse, teasers lançados muito antes do filme para garantir que ele estará na cabeça das pessoas desde já, e trailers que podem mostrar violência, sexo e palavrões que cinemas não podem, prometendo aos espectadores um reflexo mais preciso do filme”, diz Davis. Para ele, embora a internet não tenha mudado muito a cara dos trailers, agora são produzidos vídeos especificamente para o consumo na internet, perfeitos para serem pausados e analisados.

Quando os trailers só existiam na sala de cinema, eram um aviso de que o lançamento do filme estava próximo. Na internet, divulgar um trailer novo não tem necessariamente como objetivo principal tirar alguém de sua casa para comprar um ingresso. É o caso do sétimo episódio de “Star Wars”: muita gente já queria ver o filme quando ele foi anunciado. O primeiro trailer não convenceu as pessoas a ir ao cinema, só as deixou com mais vontade de ir.

“Muitos blockbusters lançam trailers um ano antes do filme. O trailer não faz com que ninguém fique pronto pra ir no cinema no ano seguinte, mas aumenta o reconhecimento e a antecipação e torna o filme uma parte da conversa cultural que as pessoas têm. Provavelmente os filmes menores, independentes, se beneficiam mais dos trailers [como estratégia para atrair público]”, diz Dana Polan. “Trailers são ferramentas inestimáveis para contar as pessoas que seu filme existe e merece ser visto, mas são de alguma forma supérfluos na era da internet, em que a expectativa é cultivada pela discussão online”, concorda Alexander S. Davis.

Já vemos na internet várias versões de um mesmo trailer — teaser, versão internacional, trailer 1, trailer 2 –, mas segundo o livro “Promotional Screen Industries”, de Paul Grainge e Cathy Johnson, o número é muito maior e mais de 200 versões são feitas para um blockbuster moderno. Os estúdios encomendam diversas opções e as versões que chegamos a ver compilam os trechos favoritos do estúdio. Como blockbusters dependem muito do fim de semana de estreia, a expectativa do público tem que ser a maior possível, e por isso diferentes versões de um trailer, com uma ou outra cena diferente, são lançadas. Cada vídeo novo contribui para os comentários na internet — gerando muita propaganda gratuita, segundo Keith Johnston.

De acordo com uma de suas pesquisas, mais de 60% das pessoas têm a internet como fonte primária de trailers. “O que é interessante é que essas pessoas estavam quase sempre procurando um trailer específico — não apenas vendo o que estava pra estrear — ou respondendo a recomendações que viram nas redes sociais. As pessoas veem os trailers como parte de suas interações sociais, compartilhando e discutindo, querendo estar atualizadas e também mostrando suas preferências”, conta.

SPOILER?

Com tanta quantidade de informações sobre um filme disponível na internet anos antes de seu lançamento, os trailers já não precisam apresentar personagens, atores e elementos básicos da trama como as prévias de antigamente. Uma reclamação comum hoje, aliás, é que os trailers revelam demais da história e estragam as surpresas do filme. Tanto que Zack Snyder, diretor de “Batman v. Superman” teve que garantir aos fãs que seu trailer não contou a trama toda. “É legal que eles achem que é demais e aprecio o fato de que as pessoas não querem saber, mas tem muita coisa que eles não sabem. Muito do filme não está ano trailer”, disse ele à MTV.

Segundo Polan, um produtor de trailers foi a uma aula de sua mulher, professora de publicidade, e disse para um estudante que é “óbvio que trailers revelam muito do enredo”. “Precisamos fazer com que você queira ir ver o filme. Damos muitas informações, mas sabemos que isso vai fazer com que você vá ao cinema. Se você comprar seu ingresso e sair achando que tudo estava no trailer a gente não liga. Nosso objetivo é levar você à sala de cinema, não o que acontece depois que você vê o filme”, disse ele.

Ele vai além e diz que vivemos uma cultura de repetições e que estamos dispostos a ver tudo mais de uma vez. Assim, tanto faz se já sabemos a história toda do filme ou não. Esse seria o “efeito spoiler”, segundo Davis. Segundo uma teoria psicológica, as pessoas tendem a gostar mais de um filme ou de uma série de TV se sabem o que vai acontecer. “Fazendo com que você saiba demais sobre um filme antes de vê-lo, um estúdio pode fazer com que você goste mais dele, o que vai te levar a recomendá-lo para seus amigos. Mas é incrivelmente especulativo, apesar de ser uma teoria que eu adoro”, afirma ele.

[citacao credito=”Keith Johnston” ]O desafio é: o que é informação demais? Isso varia drasticamente de pessoa pra pessoa — então como você decide? Provavelmente você opta por algo no meio do caminho[/citacao]

Além disso, ressalta Johnston, não dá para saber se um trailer revelou demais antes de ver o filme pronto. “O clipe dos velociraptors correndo ao lado do Chris Pratt em ‘Jurassic World’ — eu vi aquilo no trailer e em outros vídeos sobre o filme. Estragou a experiência pra mim? Não, porque é legal visualmente, mas o filme não é sobre isso”, opina. “O desafio é: o que é informação demais? Isso varia drasticamente de pessoa pra pessoa — então como você decide? Provavelmente você opta por algo no meio do caminho, o que significa que você vai irritar algumas pessoas por mostrar demais e outras por não contar o suficiente.”

Embora exista uma fundação que guarda 60 mil trailers — disponíveis para consulta presencial em Los Angeles, na coleção do Packard Humanities Institute –, Johnston ressalta que eles não estão na maior parte dos arquivos de filme, e que quando estão não são prioridade para restauração. “É uma perda real para a história do cinema. Há lacunas que nunca serão preenchidas, o que reduz a possibilidade de mostrar o verdadeiro escopo dos trailers que existiram nos últimos cem anos”, diz ele. “Há mais pesquisa para se fazer sobre trailers? Com certeza. Só alcançamos a superfície.”

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‘Cassiopéia’, 20 anos

Bem antes de “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu, ser indicado ao Oscar, uma animação brasileira disputava outro importante título internacional. Pouco mais de vinte anos atrás, “Cassiopéia”, de Clóvis Vieira, brigava com “Toy Story” pelo reconhecimento de primeira animação 100% digital. O filme começou a ser produzido antes e com bem menos recursos, mas foi lançado alguns meses depois do longa da Disney. Mesmo assim, há uma controvérsia em torno da primazia de “Toy Story”, já que o longa usou escaneamento de bonecos modelados em argila, enquanto o filme brasileiro foi feito completamente no computador, sem usar imagens ou modelos feito fora dele.

Depois do lançamento, os dois filmes seguiram trajetórias completamente diferentes: enquanto “Toy Story”, lançado em dezembro de 1995, virou uma franquia de sucesso pelo mundo, com um quarto filme em fase de pré-produção, “Cassiopéia”, que saiu em 1996, encontrou dificuldades na distribuição, não conseguiu ser exibido no exterior e teve sua continuação cancelada por falta de dinheiro. Hoje em dia pouco se fala do filme brasileiro pioneiro, que pode ser visto inteiramente no YouTube, com a aprovação do diretor, que trabalha agora no filme espírita “Deixe-me Viver”. Até imagens do filme são escassas.

Cena de "Cassiopéia"
Cena de ‘Cassiopéia’

Mas um lugar não se esqueceu de “Cassiopéia”. Duas décadas depois de seu lançamento, um cartaz de “Cassiopéia” ainda enfeita um dos salões do restaurante Nello’s, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Foi por ali que o filme começou a tomar forma, quando Clóvis Vieira conheceu Nello De Rossi, dono do restaurante e, na época, também da produtora NDR. Nello era um ator italiano que havia se mudado para o Brasil em 1973 e que, mesmo com um restaurante de sucesso, não conseguia se afastar do cinema, sua grande paixão. “Quando papai abriu a produtora, foi um êxodo do restaurante. Todo mundo foi trabalhar lá”, lembra Patricia De Rossi, filha de Nello, numa conversa no restaurante. “Minha mãe dizia que aqui era o pão de cada dia. A gente trabalhava de dia lá e de noite ajudava aqui. Todo o mundo preferia trabalhar na produtora.”

Clóvis, que animava filmes de publicidade e fazia vinhetas desde os anos 1970, conheceu Nello nos anos 1980, quando o italiano produzia o filme “Jeitosa, um Assunto Muito Particular”, com Lúcia Veríssimo e John Herbert, cujo cartaz também enfeita o restaurante. “Meu estúdio também prestava serviços para longas, fazia coisas como efeitos especiais e letreiros de apresentação. O Nello gostou do meu projeto do ‘Pifft’ e queria produzir, mas naquela época era muito caro e não foi para frente”, conta Clóvis, referindo-se ao seu projeto de animação sobre um morcego chamado Pifft, que acabou não virando filme. “Em 1991 sugeri substituir o projeto do ‘Pifft’ pelo ‘Cassiopéia’, devido à diminuição dos custos. A introdução da imagem digital viria a nos beneficiar.”

Segundo Patricia, que foi assistente de montagem de “Cassiopéia”, Nello se apaixonou pela nova história de Clóvis — ambientada num planeta na constelação de Cassiopéia, que vive em paz até a chegada de invasores que sugam sua energia vital — apesar de não entender nada de animação ou computadores. “Durante a produção ele dizia: ‘Nossa senhora, eu gostei da ideia, apostei no Clóvis, mas nunca mais vou me envolver numa coisa que eu não sei’.” Era uma tecnologia nova e que Nello, morto em 2013, não entendia. Mas esse nem foi o maior dos problemas. No making of do filme, também disponível no YouTube, ele diz ter feito uma coisa que nunca se deve fazer no cinema: começar um filme sem saber como financiar o filme até o último fotograma.

Quando Nello entrou no projeto, “Cassiopéia” era só um embrião, ainda sem roteiro. Foi ele quem apresentou a Clóvis a roteirista Robin Geld, que se juntou a uma equipe formada por Aloisio de Castro e José Feliciano. “Trocávamos ideias. O filme foi sendo feito sem roteiro. Na medida que avançávamos, criávamos as situações, como nas novelas. Um dia a Robin me disse: ‘Sonhei com uma lua, o filme precisa ter uma lua’. Então criei a cena da Lua que foi o desfecho do filme”, diz o diretor.

INVESTIMENTO E ROUBO

A produção começou com um investimento do próprio Nello em 1992. No ano seguinte, foi aprovada a Lei do Audiovisual, que dá incentivos fiscais para quem direciona recursos a projetos audiovisuais, e com ela, conta Clóvis, a equipe conseguiu captar por volta de R$ 700 mil. O filme todo foi feito no Brasil, enviado para os Estados Unidos apenas para ser transposto para película cinematográfica no laboratório DuArt, em Nova York. Por volta de seis meses antes da finalização do filme, houve uma invasão na produtora e alguns CDs com o trabalho de “Cassiopéia” foram roubados. “Isso atrasou o lançamento”, lembra Patrícia. Até hoje não se sabe direito o que aconteceu. “Foi proposital pra Disney dizer que lançou [um filme 100% digital] antes. Os americanos gostam de fazer primeiro. A gente acredita que foi uma sabotagem intencional”, diz ela.

[olho]”A gente acredita que foi uma sabotagem intencional”[/olho]

As dificuldades não acabaram por aí. Depois de pronto, conta Patricia, foi complicado arrumar uma distribuidora para levar o filme às salas de cinema. “É a segunda parte do drama. ‘Cassiopéia’ foi lançado pela PlayArte na época da Olimpíada. Queimou nossa primeira semana, porque o foco era totalmente a Olimpíada. O filme morre”, afirma. “E era um filme importante, o primeiro todo digitalizado no Brasil, e não deram a atenção necessária. A distribuição foi ruim e, por consequência, a repercussão foi morosa, triste.” Clóvis concorda: “O filme foi mal lançado, no dia da abertura da Olimpíada de Atlanta. Os distribuidores queimaram o filme. Mas em vídeo foi bem lançado, havia lista de espera nas locadoras”, diz. Por causa da distribuidora, diz, “Toy Story” chegou aos cinemas antes mesmo tendo começado a ser produzido depois.

Personagens de 'Cassiopéia'
Personagens de ‘Cassiopéia’

Ainda que tenha sido lançado depois de “Toy Story”, há quem diga que “Cassiopéia” é o primeiro filme totalmente digital por não ter feito o escaneamento dos bonecos. Clóvis não liga muito para o título ou para a polêmica. “Isso não tem muita importância. O que vale no mundo é o marketing e a data do lançamento nos cinemas”, diz o diretor. “Contudo, nós saímos na frente. A Disney soube que estávamos fazendo um filme totalmente digital. Quando perceberam que estávamos na frente, correram para a Pixar, de Steve Jobs, que tinha projetos na área. Então a Disney jogou US$ 30 milhões no colo de Jobs para terminar antes que nós. Pessoalmente, fico feliz em fazer a Disney e Jobs terem corrido atrás de nós por algum tempo. Hoje perdemos de mil a zero. Mas essa disputa fez bem a ambas as partes.”

NO EXTERIOR

Fora do Brasil, “Cassiopéia” também não emplacou. “Conseguimos distribuição nos Estados Unidos, mas precisaríamos investir na dublagem em inglês. Fomos à Ancine pedir autorização para captar R$ 400 mil. Negaram dizendo que o Nello não era naturalizado brasileiro, só residente. Ele ficou desgostoso depois de tanto fazer pelo cinema brasileiro. Então desistimos do projeto”, diz Clóvis.

[olho]”Durmo feliz sabendo que um dia rivalizei com Steve Jobs e a Disney”[/olho]

Patricia diz que Nello esperava ganhar dinheiro com produtos relacionados a “Cassiopéia” — brinquedos, roupas, mochilas e outras mercadorias com a imagem de seus personagens — e que não quis que ceder esse lucro de licenciamento a distribuidoras estrangeiras que manifestaram interesse no filme. “Se alguém investe no filme, tem que ter a certeza de que pode fazer o merchandising e ganhar pela venda”, diz ela. “Todo mundo conversava com o pai pra ele ser mais flexível, mas ele não queria abrir mão da possibilidade do lucro do merchandising. Ele não entendia que no primeiro filme ele tinha que ceder. No segundo filme, se o primeiro for um sucesso, você pode ditar regras. Isso papai não entendeu.”

Uma continuação de “Cassiopéia” chegou a ser anunciada, mas por falta de financiamento o projeto foi engavetado. Depois disso, a NDR fechou as portas. “Foi nossa última produção. Mas papai viveu com o cinema dentro dele a vida toda”, diz Patricia. Apesar dos pesares, ela conta que Nello ficou feliz com o resultado. Clóvis segue a mesma linha: diz que sempre assiste ao filme e que não mudaria nada em toda sua trajetória. “Tínhamos limitações técnicas, pois a tecnologia de hardware e software estava nos primórdios. Tiramos leite de pedra. Fizemos o máximo que alguém no Brasil faria nas mesmas condições”, afirma. “Não rendeu dinheiro, mas durmo feliz sabendo que um dia rivalizei com Steve Jobs e a Disney.”

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O Evangelho segundo ‘A Bruxa’

 

E num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles.
Jó 1:6

A primeira cena de “A Bruxa” mostra um pai de família discutindo, de forma ríspida, com os sacerdotes de uma vila do século 17. William (Ralph Ineson) acredita que todos aqueles presentes na vila não temem e oram a Deus o suficiente. É preciso mais. Para William, há algo muito latente: o Bem e o Mal existem em sua forma mais pura. E, mesmo com séculos de distância, o filme de estreia do diretor Robert Eggers é capaz de causar a mesma crença no espectador.

Após o debate, a família deixa a vila e decide criar sua própria fazenda – e seu próprio mundo – próxima a uma floresta. William e sua esposa, Katherine (Kate Dickie), levam os cinco filhos para uma nova vida, uma vida calvinista. A filha mais velha, Thomasin (Anya Taylor-Joy), com feições angelicais, fica encarregada de cuidar do irmão mais novo, um bebê que, durante uma brincadeira boba, some de forma repentina. Daí em diante, a vida da família em sua pequenina fazenda se transforma. William e todos passam a ser uma espécie de Jó, da Bíblia, mas em uma versão em que todos pecam e, por consequência, perdem a batalha para Satanás.

Se hoje vivemos em tempos em que tudo é racionalizado e cientificamente esmiuçado, como entender e ter empatia com os sentimentos e reações que um povo sentia perante ameaças externas e, possivelmente, espirituais? Se hoje há teorias de que comidas estragadas causaram delírios em Salem na época das famosas queimas das bruxas, e se não damos mais espaço ao que pode não ser terreno, como mostrar o medo e o terror de quem acreditava, sem sombra de dúvida, que o Bem e o Mal disputavam o espaço na Terra?

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"O Grande Bode", de Francisco de Goya
“O Grande Bode”, de Francisco de Goya

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O esforço de Eggers e da produção do filme em nos transportar para a região da Nova Inglaterra, nos EUA, no século 17 é impressionante. O diretor diz ter estudado diversas publicações da época e criado uma gigantesca paranoia para conseguir criar uma pequena fazenda de época em seus mínimos detalhes – do figurino ao jeito em que as plantações eram feitas, passando pela linguagem da época e a iluminação à base de luz de velas. Tal esforço poderia ser apenas um TOC desenfreado de toda a produção, mas é extremamente necessário para acreditarmos e nos conectarmos com o que acontece durante todo o filme. Com uma paleta de cores escura e fria e bom uso da iluminação natural, Eggers criou a sensação de estarmos dentro de um quadro de Goya – fascinante, mas ao mesmo tempo assustador.

Além do trabalho de figurino e cenário, “A Bruxa” atinge isso com sua trilha sonora. Composta por Mark Kovern e executada com instrumentos incomuns, como a Nyckelharpa e o Waterphone, a música do filme cria a tensão necessária, com seus crescendos acompanhados de bons cortes, e é tão poderosa que faz com que o close em animais, como um coelho e uma cabra, crie um medo e uma tensão palpável, real, temerosa.

A construção desse cenário faz com que “A Bruxa” não seja um filme de terror da escola mais popular nos tempos atuais. Ele não irá lhe dar sustos repentinos, nem abusar de cortes frenéticos para causa confusão. O filme mora mais próximo de filmes como “O Iluminado”, mexendo com o imaginário do espectador de uma forma cruel e bem alimentada. Isso faz com que, ao aproximar-se da conclusão, em que o Mal toma forma e mostra seu verdadeiro plano, mesmo nós, racionais e céticos seres do século 21, consigamos acreditar que, sim, o mundo nada mais do que uma eterna batalha entre a luz e a escuridão.

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Perfil

O crítico

Um painel ocupa a parede mais ampla da sala da casa de Rubens Ewald Filho, quase 71 anos, o crítico de cinema mais conhecido do país, rosto do Oscar na TV brasileira por mais de três décadas. A imagem na parede mostra um set de filmagem, a atriz principal à frente, imponente. Mas não é nenhuma diva de Hollywood. O nome dela é Vanja Orico (1931-2015) e a cena é de “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, vencedor do festival de Cannes de 1953, o maior expoente dos filmes de cangaço, gênero conhecido como o faroeste brasileiro. “Vanja era uma pessoa completamente doida”, diverte-se Rubens. Rubricas como essa se repetem na longa conversa com o crítico em sua casa, numa tarde de sábado chuvosa e abafada em dezembro passado.

Na noite anterior, Rubens havia perdido a amiga Nydia Licia, atriz e diretora teatral falecida aos 89 anos, a quem considerava uma espécie de “madrinha” no mundo artístico. “É, tenho um velório para ir hoje.” Ele mal havia se recuperado do choque pela morte de Marília Pêra, ocorrida exatamente uma semana antes. Rubens considerava a atriz mais que uma amiga, uma “cúmplice”. “Ela era uma estrela, uma figura única, cantava, dirigia. Marília foi um mito do teatro brasileiro, a gente nunca achava que Marília fosse morrer. Ela ia estar com 90 anos representando, dirigindo”, diz. Na opinião dele, Pêra foi uma artista até maior que Fernanda Montenegro. “Fernanda é uma senhora atriz, mas nunca dirigiu, não cantava, era outro lance”.

Rubens conta que se aproximou de Marília Pêra quando escreveu um roteiro baseado em um livro de Mario Prata e a convidou para o papel principal. Por algum motivo, os direitos do filme foram parar nas mãos de outro produtor, e a produção acabou nunca saindo. “Marília achou que eu havia dado para outra pessoa, imagina! Mas isso nos uniu”, conta. Ele lembrou a história no Festival de Gramado de 2015, ocasião em que a atriz foi premiada. Marília já estava doente, mas não falou sobre isso para ninguém. “Foi a despedida dela. Ela estava linda”.

Rubens mora sozinho em uma casa confortável, algo rústica, em um condomínio fechado em Cotia, a cerca de 30 quilômetros do Centro de São Paulo. De lá ele só costuma sair para ir ao cinema. Filmes nacionais de grande apelo, como as comédias da Globo Filmes, ele prefere ver junto com o público nas salas de cinema dos shoppings mais próximos (Raposo e Granja Vianna). Ele tenta ir ao máximo possível de cabines (sessões fechadas para a imprensa), que costumam acontecer pela manhã em cinemas mais centrais em São Paulo, mas o trânsito da rodovia Raposo Tavares, ligação entre Cotia e a Capital, está cada vez pior. Quando consegue chegar, aproveita para emendar dois ou três filmes na sequência, geralmente no shopping Frei Caneca.

Além da grande imagem de “O Cangaceiro”, inúmeros quadros de filmes ocupam as paredes da casa, inclusive as do banheiro – em um deles há um pôster com dedicatória do ator John Forsythe. Pilhas de DVDs e revistas se concentram numa espécie de mezanino que faz as vezes de pequeno escritório e sala de projeção (ele vê os filmes em uma TV comum de tela plana, diante de um sofá bastante próximo ao aparelho). Ultimamente tem visto muitos filmes enviados pelas distribuidoras em plataformas digitais. “Adoro Vimeo. Esse filme filipino de quatro horas e quinze eu vi no Vimeo”, diz, em referência a “Norte, O Fim da História”, de Lav Diaz.

Rubens prefere ficar em casa – “eu e meus filminhos”. A ele não interessa aparecer em colunas sociais ou virar nome de prato no restaurante Paris 6. “Você não me vê em boate, em estreia de filme… eu só saio de casa pra ir ao cinema ou ao teatro. Não vou a coquetel, não vou a nada. Não é minha proposta sair na Caras, não tenho o menor problema com eles, me tratam muito bem, mas esse tipo de coisa eu fujo como o diabo da cruz, eu vou cada vez menos”, diz. Na casa, comprada na época em que foi executivo da HBO, Rubens recebe a visita da empregada três vezes por semana (frequência que ele pretende diminuir por conta da crise econômica, que já lhe tirou alguns trabalhos) e eventualmente de um jardineiro. A piscina não parece ter sido utilizada nos últimos meses. Um vendaval havia derrubado duas árvores do terreno recentemente. Pergunto das visitas, que são poucas.

“Mas você tem bastante amigos”, digo.

“Estão morrendo. Um por semana.”

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Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato.

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O cinema é a única janela para as memórias da infância de Rubens, nascido e criado em Santos. Ele costuma dizer que nunca jogou bola na rua e nunca teve amigos quando era criança. A diversão eram as sessões de cinema e as horas e horas recortando os anúncios dos filmes no jornal e montando sua própria programação de cinema. “Até os nove anos eu não lembro nada a não ser os filmes que eu vi. É uma infância bloqueada, é como seu eu tivesse nascido com nove anos. Eu só tinha os filmes para me segurar, e eu começo a anotar num caderninho, de nove para dez anos. É por isso que eu tenho todos os filmes que vi”, recorda-se.

No final de 2015, essa conta chegava a mais de 35.300 filmes assistidos, uma média que nem vale a pena tentar estabelecer, de tão fora da realidade de uma pessoa comum. Rezava a lenda que Rubens assistia a dois ou mais filmes ao mesmo tempo – o que ele confirma. “O segredo é simples: se você está vendo um filme em português e outro com legenda, é fácil seguir. O jovem hoje faz cinco coisas ao mesmo tempo e isso é absolutamente normal para eles. Eu só estava diante do meu tempo, nada mais”, brinca. Hoje, sem precisar editar guias de filmes, ele parou com esse hábito.

[olho]”Até os nove anos eu não lembro nada a não ser os filmes que vi”[/olho]

Além dos caderninhos, quando criança Rubens fazia um livreto só com filmes do Oscar, outro só com diretores. Como em um romance em que as premissas da trama são lançadas no primeiro capítulo para serem retomadas ao longo da história, décadas depois Rubens lançou um dos mais importantes livros de consulta sobre cinema no Brasil, o “Dicionário de Cineastas”, editado pela primeira vez em 1977. “Na verdade tudo já tinha a semente”, observa.

Duas revistas foram fundamentais em sua formação: a “Filmelândia”, adaptação da americana “Screen Stories”, que trazia roteiros de filmes adaptados como uma pequena novela; e a “Cinelândia”, versão brasileira de “Modern Screen”. Ambas eram editadas no Brasil pela Globo, e os editores locais recheavam esta última com informações sobre a vida dos diretores e incluíam filmes de outros países, como França e Argentina. “O que importava não era se o artista ia se separar ou não. Tinha isso, mas tinha também Hitchcock, John Ford, Cecil B. DeMille… quer dizer, ainda garoto eu consegui pegar esses diretores graças a isso. Você tinha uma informação de cinema que te permitia ser autodidata, que foi o que aconteceu, eu fui atrás de livros. Aprendia línguas muito fácil: francês, italiano, inglês. Isso tudo foi o alimento para eu querer correr atrás, porque era impossível sonhar em fazer cinema. Não existia, né? A chanchada terminou e aí veio um nada e só depois o Cinema Novo, que vem com perseguição de governo e tudo mais”, conta.

Rubens não faz questão de esconder como a relação com a família – “extremamente repressiva” – era difícil. Quando criança, os pais o levavam ao cinema – ele lembra que iam todos juntos, mas o hábito de recortar e colar jornais e revistas era motivo de luta constante com a mãe. Ela achava tudo aquilo “uma porcaria”. “Era aquela família, que era muito comum na época, que quem mandava era a avó, sabe? A avó era uma bruxa. Quando eu escrevi a novela ‘Drácula’, eu pus a Cleide Yaconnis fazendo a minha avó. Quando eu fiz ‘Éramos Seis’ também tinha uma avó que era… eu tentei pôr pra fora diversos fantasmas”, diz.

Rubens diz que não tem mais família. Cortou relações com o irmão, a quem acusa de ter se aproveitado financeiramente dele. Consequentemente, não fala mais com os sobrinhos. Cuidou dos pais na velhice e levou a mãe, Elza, para viajar. A infância em Santos foi abastada, a família era dona de fazendas de banana no litoral. O pai, que gostava muito de praticar esportes, foi presidente do tradicional Clube de Regatas Saldanha da Gama. Aos 60 anos, porém, Rubens pai quebrou. “Ele era um homem acostumado a mandar, acostumado a ter tudo, também acostumado a trair a minha mãe com vedetes do teatro de revista – não tô julgando nada, se ele era feliz assim não tenho nada com isso… enfim, ele era um conquistador. Mas quando perde tudo ele se senta numa cadeira e nunca faz mais nada. Passa vinte anos assim até morrer com 80”, lembra.

Muitas vezes, Rubens narra suas recordações usando verbos no presente, como se alguns fragmentos do passado voltassem a acontecer no momento em que sua fala é projetada. Uma pergunta objetiva pode dar margem a uma longa digressão em cima de uma lembrança periférica; mesmo em seus e-mails ele emenda uma frase na outra obedecendo somente ao fluxo de seu pensamento. Ele é mais alto e mais corpulento do que aparenta na televisão – muito de sua saúde se deve, segundo ele, à natação que praticava na juventude. Voltou a fazer exercícios regulares nos últimos 15 anos e procura levar uma vida saudável. Parece estranho dizer isso, mas a indefectível barba lhe dá uma aparência de menino.

“Como é curiosa a trajetória de vida”, ele diz. Para um pouco, suspira e retoma o fôlego. “Eu não planejei ficar sozinho, mas fiquei. As pessoas nem sabem porque eu nunca conto isso, mas eu fui casado… e ela faleceu de erro médico. Quer dizer, mais uma coisa desagradável da vida, uma coisa que te marca… aí você não quer nada mais.” Ao final da entrevista, retomo o assunto do casamento, mas Rubens fica muito desconfortável. “É uma coisa triste, não vejo porque falar. Dá raiva, dá tudo, desperta as emoções que você por tanto tempo controlou.” Eu não peço mais detalhes.

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Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens em Hollywood. Crédito: Rafael Roncato

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No domingo, dia 28, quando entrar no ar direto de Los Angeles pelo canal pago TNT para apresentar e comentar a entrega do Oscar, Rubens Ewald Filho terá participado das transmissões de 33 edições do prêmio pela TV brasileira. Embora as sementes estivessem lá na infância nos caderninhos, ele também não planejou ser o “crítico do Oscar”. “Pois é! Por que não me chamam para apresentar o prêmio Davi de Donatello?”, brinca. Depois volta a falar sério: “É o ônus que eu tenho que carregar”, admite. No passado, Rubens não gostava quando ficava sabendo de colegas de crítica e jornalismo que o consideravam “vendido” a Hollywood. “Mas todos eles voltaram atrás. A melhor maneira de conviver com isso é estar com a cabeça sossegada. Nesses dois últimos anos, se você for ver o que eu tenho falado mal do cinema americano, é muito forte. Nunca deixavam antes. Hoje eu critico abertamente… não que eles se incomodem com isso.” E solta uma gargalhada.

O crítico de cinema Inácio Araujo, da Folha de S.Paulo, foi contemporâneo de Rubens no início de ambos no Jornal da Tarde. Para ele, a associação da imagem do colega, hoje amigo, ao Oscar é muito justa e quase obrigatória, por todo o trabalho que ele fez nessas últimas décadas. “Para mim, uma transmissão do Oscar, que é coisa muito chata, diga-se de passagem, ficaria insuportável sem o Rubens”, diz. E conclui: “Tínhamos maneiras bem diferentes de ver o cinema, mas acho que o tempo apagou essa distância. Distância que era muito boa”.

Rubens começou sua carreira de jornalista escrevendo para o jornal A Tribuna de Santos. Cursou a graduação em jornalismo ao mesmo tempo em que fazia faculdade de direito pela manhã – “tenho carteira e tudo” – e história e geografia à tarde. No final dos anos 1960 chegou a São Paulo para trabalhar no Jornal da Tarde. Era copidesque no caderno de Variedades, mas também produzia reportagens e críticas. Foi contemporâneo do crítico e diretor Rubem Biáfora – um de seus grandes inspiradores. Nessa época, começou a conhecer as pessoas que orbitavam a produção de cinema e teatro no Brasil. Uma dessas pessoas foi o diretor Walter Hugo Khoury, que o levou para a frente da tela.

“Eu estava no Jornal da Tarde e passa o Walter Hugo Khoury, olha pra mim e diz: ‘você tem a cara muito boa’. No dia seguinte eu estava filmando”, diz. Rubens chegou a participar de “Amor, Estranho Amor”, o clássico maldito de Khoury em que a jovem Xuxa Meneghel contracena lascivamente com um menino de 12 anos. A experiência de ser requisitado por sua aparência física abriu uma nova perspectiva para Rubens. “Eu era meio gordinho e toda aquela repressão familiar, a avó, não tinham me dado autoestima nenhuma. Eu me achava um horror. Minha autoestima até hoje não é muito alta. Eu não conseguia me gostar”, conta.

Para ajudar a resolver essas questões, até tentou a psicanálise nos primeiros anos em São Paulo – passou por dois analistas, mas a experiência não foi adiante. “A análise me ajudou a raciocinar, a pensar. Isso eu peguei meio rápido, foi útil, mas eu não consigo ficar muito preso. Tem um momento em que o analista passa a te irritar. Eu podia entrar mudo e sair calado e acabou”, lembra. E dá uma banana: “Aham, meu rico dinheirinho!”

Para um jovem no Brasil da década de 1970, o cinema representava uma abertura e trazia algo de resistência ao momento político da ditadura militar. O fato de dominar outras línguas o ajudou muito a entrar a fundo nos filmes da Nouvelle Vague, da Comédia Italiana, na obra de Federico Fellini, até hoje seu diretor preferido, e nos novos cinemas de diversos países. Era um período de efervescência, para usar sua expressão. Inclusive no Brasil. “Para uma pessoa jovem, não há como não gostar do Cinema Novo”, diz.

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Rubens, à direita, ao lado de Rubem Biáfora, nos anos 70. Crédito: Arquivo pessoal

“Rubens tem fome de cinema”, diz o professor Máximo Barro, da faculdade de cinema da FAAP. “Aceitando ou não o que ele estava escrevendo no jornal, a gente pelo menos sabia que ele tinha visto o filme.” Na época, não era raro aparecer nos jornais críticas baseadas em publicações estrangeiras ou “de ouvir falar”. Rubens chegou a ser professor de cinema na FAAP na época da criação do curso, mas ficou por pouco tempo. Anos depois, voltaram a trabalhar juntos na Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que Rubens coordenou. “Ele é uma pessoa que leva muito a sério aquilo a que ele se dedica”, afirma Máximo.

A chegada à Globo, no início dos anos 1980, catapultou a imagem de Rubens como crítico de cinema. Na interpretação dele, a TV o queria para “falar as verdades” nos anos de abertura política. “Eles me usavam – num bom sentido, e eu concordei com isso – em falar coisas que a única pessoa que falava em televisão era eu. Criticar alguém, por exemplo”, diz.

[olho]”Estavam querendo proibir um filme e eu falei: ‘Não tem nada que proibir, o filme é tão ruim que as pessoas já vão fugir da sala, não vão nem aguentar ficar até o final’”[/olho]

Um dos alvos da crítica foi o diretor Neville D’Almeida, diretor de “Os Sete Gatinhos”, adaptação da obra de Nelson Rodrigues. “Fiz uma crítica no Jornal da Globo. Estavam querendo proibir o filme e eu falei: ‘Não tem nada que proibir, o filme é tão ruim que as pessoas já vão fugir da sala, não vão nem aguentar ficar até o final’. Você sabe que tempos depois eu fiquei sabendo que o Nelson Rodrigues estava assistindo ao jornal, passou mal e quase morreu vendo o meu comentário?”, lembra. Segundo Rubens, Neville ficou com ódio dele por muitos anos até que o diretor reconheceu que o filme era ruim mesmo e não fazia sentido ficar brigado.

A transição dos comentários sobre cinema na Globo para a cobertura do Oscar veio com um episódio curioso. Quando a atriz Ingrid Bergman morreu, em 1982, Rubens foi chamado às pressas para fazer uma passagem ao vivo, algo que ele não estava acostumado. Tudo armado, a transmissão começa. “A Leda Nagle fala ‘o cinema perdeu blá blá… Rubens, o que você acha?’ aí eu começo a falar e a câmera tinha se afastado, eu não usava óculos na época e não enxergava nada, então eu fiz assim [olha para baixo em silêncio, lê um papel] e retomei. Na saída estava o chefe do jornalismo dizendo o seguinte: ‘Puxa vida, até que enfim você se emocionou com alguma coisa. Você gostava muito dela, né’. Eu falei: ‘Muito, muito’. Mal sabia o pânico, que eu tinha pensado ‘me fodi’, vou errar aqui. E eles encararam como emoção, olha que bonito! Como as pessoas se enganam!”, ri.

Das transmissões do Oscar, a fase preferida de Rubens é com Marilia Gabriela no SBT, onde fez a cobertura por oito anos. Atualmente, na TNT, ele gosta da parceria com a âncora Domingas Person e com o fato de não precisar nem traduzir nem fazer nenhuma passagem. “Ir a festival é outra coisa que me encheu o saco. Para Cannes eu fui 23 anos seguidos, e para mim era a coisa mais importante que tinha. Para conseguir ir pela primeira vez, eu fui sorteado pela Air France, ganhei a passagem, o resto o jornal pagou com toda dificuldade.” Lá ele entrevistou “quase todo mundo”: Godard, Truffaut, Kurosawa.

Hoje, no entanto, já não sabe mais que caminho Cannes quer seguir. “O que tem de porcaria em circuito de arte é um absurdo, eu não sei como as distribuidoras sobrevivem, porque aquilo não se paga.” O último vencedor do festival francês, “Dheepan”, ele considera “um filmeco”. Para ele, a entrada das celebridades nos festivais, que ocupam as atenções da imprensa e das redes sociais, tornou-se até mais importante do que os filmes exibidos. “Imagina fazer aqueles tapetes vermelhos, que só falam idiotice. O que eu mais odiaria na vida seria fazer tapete vermelho. Eu sempre me recusei a fazer. Não quero, é uma fria, um horror”, diz.

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Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Parte do acervo de DVDs e Blu-rays na casa de Rubens. Crédito: Rafael Roncato

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Duas impressões são mais evidentes quando Rubens fala de Hollywood. A primeira é que nada mais – o cinema, as premiações – tem muita importância, tudo está meio diluído. A outra é que o jeito de fazer cinema é muito diferente. “Existia uma Hollywood de estúdios, que acaba na década de 1960, que eu ainda consegui ver quando era criança e, por causa das revistas, acompanhar. Que é um outro mundo, não tem nada mais a ver com Hollywood atual ou com a maneira de fazer cinema hoje. Com o digital, as pessoas estão reaprendendo cinema, e eu também estou reaprendendo a lidar”, diz. Ele chega a dizer que em alguns momentos se sente uma espécie de Indiana Jones que vai atrás de um mundo perdido. “São outros valores, outra estética, outra civilização. Não que seja melhor ou pior, mas é outra coisa.”

[olho]“O que tem de porcaria em circuito de arte é um absurdo, eu não sei como as distribuidoras sobrevivem, porque aquilo não se paga”[/olho]

O cinema digital, diz Rubens, trouxe outros cacoetes. Um deles é o “pseudo” plano-sequência. Sem precisar trocar o rolo de filme a cada intervalo de tempo, o diretor hoje pode criar cenas longas aparentemente sem cortes e “ir na nuca” dos personagens. “Quantos filmes você vê hoje que acompanham a pessoa andando, ou entrando em casa ou saindo de casa? Antes, em Hollywood, a pessoa estava em casa e a situação estava resolvida”, compara.

Naquela semana, Rubens havia assistido à versão mais recente de “Macbeth”, com o ator Michael Fassbender. “Macbeth é filmado com digital. Você não vê porrrra nenhuma, porque não tem iluminação, tem velas! Você vê sombras na cara deles. Como você quer que tenha interpretação – de Shakespeare! – sem a cara da pessoa? É uma escuridão, é o Macbeth das trevas… ou seja, estamos vivendo um momento de mudança e de ajuste. As pessoas acham lindo a escuridão. É insuportável! Kubrick em Barry Lyndon usava velas, mas você conseguia ver a luminosidade, e não as trevas”, observa.

Muito por conta da cobertura do Globo de Ouro, ele se obriga a ver “todas” as séries de TV e do Netflix, plataforma da qual ele gosta muito. “Eu adorei ter acesso hoje a um filme que eles colocaram ontem. A crítica do Hollywood Reporter está no ar hoje e eu já vi o filme”, diz. Das séries, sua preferida é Fargo. “É uma obra-prima, tem humor negro e fiel ao filme dos irmãos Coen. A violência muito bem resolvida, atores ótimos. A minha paixão agora é o Fargo, eu fico esperando os capítulos”, conta.

Falar das séries do Netflix leva o assunto a “Narcos” e a Wagner Moura, a quem considera um amigo. Ele se exalta ao falar das críticas ao sotaque do ator brasileiro na série, em que interpreta o colombiano Pablo Escobar. “Brasileiro não gosta de brasileiro, tem raiva, tem inveja, tem ciúme. Acha que entende de tudo. Ninguém pode fazer sucesso no Brasil que as pessoas querem destruir”. Para ele, Moura é o grande ator brasileiro hoje, alguém que nem precisa ser dirigido porque já “vem pronto”. Ele só acha uma “ideia de jerico” o projeto de Moura dirigir o filme sobre a vida de Marighella no cinema. “O que o Marighella fez? É uma tragédia.”

Além de Wagner Moura, Rubens enxerga um momento único para os atores masculinos no Brasil. “Lázaro Ramos, Caio Blat, Daniel de Oliveira, Mateus Nachtergaele, que é maravilhoso. Temos uns sete ou oito atores (de alto nível), nós nunca tivemos isso. A gente sempre teve mulheres”, diz. Entre as atrizes atuais, ele cita Deborah Secco – “muito interessante, até como pessoa” – e Glória Pires – “uma estrela”. “Se há uma coisa que eu tenho prazer é que os atores gostam de mim. Primeiro que eu os trato com muito respeito – se é muito ruim (a atuação) eu dou um conselho produtivo, eu evito detonar ator. Porque eu sei que no cinema brasileiro a culpa não é do ator. Os diretores não sabem dirigir ator, têm medo de falar com eles”, comenta.

Mesmo com as críticas, ele vê uma safra interessante de novos diretores brasileiros surgindo nos festivais, gente produzindo filmes bons, mas que não conseguem chegar ao público. “Esse filme ‘Ausência’, que ganhou Gramado, é muuuito bom. Agora, você, leigo, iria ao cinema ver um filme chamado ‘Ausência’? Não é verdade? Gente, as pessoas não têm noção, não sabem vender nada. Tem cada título brasileiro que dá terror”.

O cinema brasileiro é um terreno delicado para Rubens. Tanto que ele costuma dizer que seu filme preferido é “Limite”, do Mario Peixoto, filme experimental dos anos 1930 pouco conhecido fora dos círculos cinéfilos. “Eu acho um filme excepcional, e também é uma forma de não brigar com ninguém.” Sua abordagem em relação a filmes brasileiros que ele considera muito ruins também mudou: hoje ele simplesmente não faz mais a crítica. “Eu ligo para a assessoria e falo: ‘Olha, querida, obrigado, mas eu já tenho inimigo o suficiente…’”, explica.

Rubens não se considera um crítico maldoso ou que tem prazer em destruir um filme – o que poderia ser um bom atalho para ganhar audiência nos dias atuais, caso ele se interessasse pelo que rola no Facebook, por exemplo. De fato, a crítica dele não costuma ter esse tom. O problema, segundo o próprio, é ele ser sincero demais. “Por que cazzo eu tenho que falar a verdade? Ninguém fala a verdade nesse país!”

Se a experiência em frente às câmeras foi breve, se resumindo à meia dúzia de pequenas aparições, a carreira de Rubens como roteirista é considerável. Em parceria com o diretor Silvio de Abreu, que conheceu em meados da década de 1970, escreveu pornochanchadas como “A Árvore dos Sexos” e “Elas São do Baralho”, esta última considerada um dos grandes expoentes do gênero. Mas o seu trabalho clássico é a novela “Éramos Seis”, que teve duas versões: a primeira na TV Tupi, em 1977, e a segunda em 1994, no SBT, até hoje lembrada como uma das melhores produções de dramaturgia da TV brasileira.

Coube a Rubens vender para Silvio Santos o projeto da novela no SBT. “Eu, do jeito tímido que eu era, vender para o Silvio, o maior vendedor! E ele comprou e pagou bem pela novela, deu todas as condições para trabalhar. O Silvio (de Abreu) não podia trabalhar porque estava na Globo. Eu pus o elenco que eu queria, acompanhei a novela o tempo inteiro”, conta. Não só pôs o elenco como aproveitou para exorcizar algumas questões. “Eu tinha colocado minha avó, uma série de coisas que eu queria falar para o meu pai, coisas que eu queria falar para a minha mãe. Um diretor geralmente começa com um filme autobiográfico. Então ‘Éramos Seis’ é meu filme autobiográfico”, diz.

Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato, para Risca Faca
Rubens Ewald Filho, por Rafael Roncato.

Mesmo em ritmo mais lento, Rubens ainda tem muito o que fazer. Ele está preparando uma nova versão do “Dicionário de Cineastas”. “Era um absurdo não ter um livro sobre cineastas no Brasil, então durante dois anos eu fui nos arquivos do Estado de S.Paulo, eu trabalhava lá, mexendo, sozinho”, recorda-se. À época, o “Dicionário” era uma obra revolucionária e trazia, dentro de um oceano de informações, o título dos filmes originais em português – algo que o iMDB, a maior base de dados de cinema da internet, só foi fazer recentemente. A ideia agora é que o livro também tenha uma extensão online. Rubens também está preparando uma nova versão de “O Cinema vai à mesa” livro que mistura filmes e culinária.

O interesse em voltar a ser roteirista é quase nenhum, e não parece haver arrependimentos em não ter seguido uma carreira diferente – como ator, talvez. “Eu nunca quis ser ator, minha timidez é muito grande. E as propostas também não eram nenhuma maravilha”, diz. “Eu construí um personagem, que é esse aqui, com essa barbicha, com essa cara aqui, que é muito forte. E é marcado por 40 anos de carreira. Porra, eu não posso fazer outra coisa”.

No ambiente das redes sociais, pautado pelas opiniões definitivas, Rubens Ewald Filho tem pouco a falar. Sua página no Facebook – alimentada por um amigo – reproduz as críticas que ele posta em um blog escondido, e chega a uma audiência mínima. Ele não joga esse jogo, essa não é a praia dele. Mesmo assim, diz que se relaciona bem com as novas gerações que encontra nas cabines de imprensa. “As pessoas têm um pouco de medo de mim. Mas eu vejo toda essa geração nova nas cabines. Respeito a opinião deles, acho interessante. Essa turma de quadrinhos, que gosta de livros ‘young adults’, eu procuro ouvi-los falar”, conta.

A tentação de se sentir um “pastor de almas” em relação às novas gerações pode até ser grande, mas não parece ser o que lhe move. O que o anima é perceber que despertou o interesse sobre cinema em alguém. “Minha maior alegria é ir num festival e o cara que ganhou o prêmio depois chegar para mim e falar: ‘Olha, queria te agradecer, foi você que me fez gostar de cinema, vendo a Globo em tal ano’. Eu penso que não foi tudo em vão”, diz. A impressão é que, enquanto for possível, Rubens Ewald Filho continuará fazendo o papel de Rubens Ewald Filho, o crítico de cinema mais conhecido do país. “Katherine Hepburn dizia: se você sobreviver, você vira um monumento da história. E eu acabei virando um pouquinho isso. Eu não posso me elogiar, mas virei o crítico do Oscar, que tá até hoje aí trabalhando… Enfim…”

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‘Deadpool’ quebra o molde de heróis

Logo de cara, na abertura, “Deadpool” mostra que, sim, você vai ver um filme de super-herói — apesar da insistência do protagonista em dizer que não é herói coisa nenhuma –, mas um filme que não se leva a sério e está ciente de todos os clichês por trás do gênero. “Deadpool” não tem músicas épicas, olhares dramáticos para o vazio, lágrimas ou a mensagem de que com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Nos créditos iniciais, o filme anuncia “uma garota gostosa”, “uma adolescente geniosa”, “um personagem feito digitalmente”, “um vilão britânico”, “uma participação especial gratuita”. Sim, está tudo lá, mas pelo menos o filme tira um sarro.

Do ponto de vista de alguém que nunca tinha ouvido falar em Deadpool até ver o trailer, é refrescante poder ver um filme da Marvel sem precisar estar em dia com uma penca de outros longas (é bom ver o primeiro “Capitão América” antes do primeiro “Vingadores” e ver o segundo “Vingadores” antes do terceiro “Capitão América” e por aí vai num grande loop). Os X-Men aparecem de leve, mas dá para entender a história toda sem saber quem é Mística ou Ciclope — apesar de que uma boa piada com as diferentes versões do Professor Xavier se perde se você não souber absolutamente nada sobre os mutantes no cinema.

Em tempos em que o Homem-Aranha ganha uma terceira cara em menos de 15 anos, qualquer novidade é bem-vinda. E “Deadpool” é cheio de pequenas novidades. Para começar, como em todo filme que apresenta um herói, há uma história de origem (a aranha radioativa, a chegada de Clark Kent à Terra… Wolverine ganhou um filme inteiro sobre seu passado), mas que só vem depois de já termos conhecido Deadpool e ligarmos minimamente para ele. Já sabemos que Deadpool, interpretado por Ryan Reynolds, é bocudo, convencido e vingativo quando conhecemos Wade Wilson, um mercernário que passa por um tratamento experimental para curar um câncer e ganha uma habilidade de cura rápida e uma aparência pouco atraente.

Wilson não tem intenções honradas nem a menor vontade de se juntar aos X-Men para combater o mal e salvar o mundo. Sua motivação é encontrar o homem que o deixou assim (o tal vilão britânico, papel meio canastrão de Ed Skrein) para que ele recupere sua cara normal e possa voltar para a namorada, a prostituta Vanessa (Morena Baccarin, que nos faz esquecer de que um dia já foi a chatíssima Jessica Brody de “Homeland”).

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Morena Baccarin e Ryan Reynolds em 'Deadpool'
Morena Baccarin e Ryan Reynolds em ‘Deadpool’

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Vanessa, aliás, é um capítulo à parte. Deadpool, que também narra o filme e conversa o tempo todo com o espectador, diz em certo ponto algo como “os homens no cinema devem ter convencido as namoradas a ver o filme falando que era uma história de amor”. Uma história de amor é completamente desnecessária para levar uma mulher ao cinema. Mulheres também gostam de quadrinhos, filmes de ação e super-heróis. O problema é a ausência de boas personagens femininas nos filmes do gênero (cadê o filme da Viúva Negra? É capaz de o Gavião Arqueiro ter um longa solo antes dela).

Ao lado de outras personagens femininas menores Vanessa cumpre esse papel em “Deadpool”. Mesmo quando é colocada na posição de vítima ela parte para a ação e não deixa Deadpool resgatá-la sozinha. Ela não é a mocinha perfeita e inatingível, não é a Mary Jane do “Homem Aranha”, nem a Rachel de “Batman Begins” (um Google foi necessário para lembrar o nome da personagem de Katie Holmes no filme, de tão pouco memorável), e sim alguém que poderia perfeitamente existir no mundo real, com seus defeitos e qualidades.

“Deadpool” não é perfeito porque é tão piadista que às vezes exagera na dose. Ryan Reynolds já tinha feito uma piada consigo mesmo, citando seu fracasso em “Lanterna Verde”, quando faz um comentário sobre o fato de que o ator é mais conhecido pelo rostinho bonito do que pela atuação. Ok, já entendemos que vocé capaz de rir da própria cara. Mas às vezes o filme parece querer ser engraçado demais, fazendo uma piada atrás da outra só para mostrar que consegue. “Deadpool” é tão pop e tão frenético que parece saído de um fórum na internet.

É uma referência atrás da outra, do começo ao fim — na última cena, depois dos créditos, “Deadpool” remete a “Curtindo a Vida Adoidado”, de 1986, um filme “muito, muito velho”, segundo um adolescente que saía da sala de cinema impressionando o amigo por ter captado uma referência tão cult (já eu, por outro lado, não reconheci Stan Lee — a participação especial gratuita anunciada no início. Tem citações para todos os gostos).

O filme era um projeto caro a Ryan Reynolds, que batalhou por anos para conseguir fazê-lo. Foi só quando uma cena teste vazou na internet e empolgou os fãs que o estúdio resolveu de fato fazer o filme, com um orçamento menor do que produções como “Os Vingadores”. E a aposta deu tão certo que o filme bateu o recorde de bilheteria nos Estados Unidos para a estreia de um filme em que menores de 17 anos devem entrar acompanhados, arrecadando 132,7 milhões de dólares de sexta a domingo. É uma prova de que dá para fazer filmes de heróis diferentes do molde tradicional. Dá para fazer humor, dá para inovar na trilha sonora (que tem de George Michael a Salt-N-Pepa), dá para ter bons personagens femininos, dá para ter um herói que não seja um machão, dá para fazer com menos dinheiro e mesmo assim ser um sucesso.

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‘O Quarto de Jack’ acha luz no horror

Transformar o livro “Quarto” em filme não era uma tarefa simples. Publicada em 2010, a obra da irlandesa Emma Donoghue, 46, é narrada por um menino de cinco anos, preso num pequeno quarto com sua mãe desde o nascimento. Conduzido por Jack, o leitor desvenda aos poucos a situação em que os dois se encontram, colecionando os pedaços de informação que a criança dá e que ela própria não sabe interpretar. O quebra-cabeças formado não é bonito: a mãe de Jack foi raptada quando adolescente por um estranho que a prendeu naquele quarto à prova de som e hermeticamente fechado. Estuprada ao longo de anos, ela engravidou, e a chegada de Jack a manteve sã. Para proteger o filho, disse a ele que aquele quarto era o mundo todo e que tudo o que ele via na televisão não era real.

A história fica menos sombria contada por Jack, com sua inocência, sua visão peculiar de mundo (o sol, que via pela claraboia, era chamado por ele de Deus) e seus erros de inglês, e foi justamente esse olhar que serviu de ponto de partida para o livro. “Minha ideia, na verdade, era ter o ponto de vista da criança nesse cenário particular, como ele poderia oferecer uma visão fresca desse horror todo e essa mistura comovente entre alegria e dor que uma infância dessas pode envolver”, conta Emma por e-mail. Mas encontrar luz nesse horror em um filme — que em português ganhou o nome “O Quarto de Jack” e estreia no dia 18 — tinha duas grandes dificuldades: como levar para a tela esse ponto de vista infantil e como encontrar um ator dessa idade capaz de sustentar o drama.

A tarefa de resolver a primeira questão ficou nas mãos da própria Emma, que foi responsável pela adaptação — foi seu primeiro longa, que já lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Ela já havia recebido vários pedidos para transformar “Quarto” em filme, mas sentiu algo de diferente na oferta do diretor Lenny Abrahamson, que até então tinha um currículo pequeno, que inclui “Frank”, com Michael Fassbender. “A maioria das pessoas faz propostas vagas, focando nos nomes de grandes atores que podem escalar. Lenny escreveu uma descrição de dez páginas sobre sua compreensão do livro e sua visão detalhada de como recontar essa história na tela”, lembra Emma. “Tão inteligente, tão sensível, tão amável.”

Passar a adaptação para outra pessoa foi uma hipótese que nem cruzou sua cabeça. “Acho que foi mais difícil que escrever o livro, porque envolveu aprender novas habilidades (não só de fazer um roteiro, mas o processo de colaboração. Na verdade, de subordinação, porque você sempre tem de se lembrar que o filme pertence ao diretor!). Mas foi um desafio agradável, não sofrido”, diz. “Não considerei deixar outra pessoa adaptar o livro não porque eu fosse a única pessoa que pudesse conseguir, mas porque eu realmente queria o trabalho. Não diria que fui calma e objetiva, mas acho que isso seria verdade caso fosse um roteiro original, já que eu ficaria apegada a ele também. Os cortes são sempre doloridos!”

Vez ou outra, Emma usou o recurso da narração, na voz de Jacob Tremblay, 9, escolhido para o papel de Jack. São poucos trechos, que remetem ao livro e ajudam a entrar na mente do menino e nunca servem de muleta narrativa — sem as narrações do menino, o filme ainda se sustentaria. Como no livro, o espectador não sabe mais do que Jack. Na verdade, talvez saiba um pouco mais se tiver visto o trailer, que revela boa parte da trama (no caso, é mais importante ver como acontece do que o que acontece). Quando o sequestrador aparece para ver sua mãe, papel de Brie Larson, Jack se esconde no armário. Vemos a interação dos dois pelas frestas e ouvimos o que acontece enquanto a câmera fica no rosto do menino. O espírito do livro se mantém, embora alguns detalhes mudem: no filme, por exemplo, descobrimos que a mãe se chama Joy (nome não revelado no livro), que amamenta o filho bem menos em cena do que na versão por escrito.

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Jacob Tremblay e Brie Larson
Jacob Tremblay e Brie Larson

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Jacob Tremblay merece um parágrafo à parte: sem ele, o filme perderia muito do impacto. Indicado como ator coadjuvante ao prêmio do sindicato dos atores, que perdeu para Idris Elba, Jacob carrega pelo menos metade do filme nas costas. Brie Larson é a favorita ao Oscar de melhor atriz e é merecido, mas num mundo ideal os dois seriam indicados juntos, num combo — a química ali é impressionante e num filme em que personagens importam mais que enredo a performance é ainda mais essencial.

O diretor afirmou num evento em outubro que “suava à noite” aterrorizado com a perspectiva de achar uma criança que desse conta do recado. “Vimos centenas de crianças. Muitas extraordinárias, que você podia ver pra sempre, mas dava pra saber que com certeza elas não conseguiriam lidar com o drama desse filme”, disse o cineasta. E então Jacob Tremblay apareceu. “Foi o maior desafio e a maior recompensa que tive como cineasta. Encontrá-lo foi a maior sorte.”

Apesar de ter sido inspirado no caso real de Elizabeth Fritzl, mantida em cativeiro durante anos na Áustria, período no qual teve vários filhos do captor, “Quarto” não gira em torno do crime. Não é uma trama policial (embora tenha polícia), não é uma história particularmente triste (embora tenha vários momentos assim). Tem um quê do mito da caverna de Platão, com Jack no papel dos presos que só conheciam o mundo pelas suas sombras na parede. Mas é principalmente uma história sobre a relação de mãe e filho. Uma história bem pessoal, que carrega muito da autora. Nas palavras de Emma: “Gosto de contar histórias esquisitas — ou, na verdade, histórias únicas que iluminem nossa condição universal e cotidiana. Então, por exemplo, nunca vivi num quarto fechado, mas fui mãe de crianças pequenas e coloquei tudo o que conhecia em ‘Quarto’”.

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‘O Filho de Saul’ torna horror palpável

Quando “O Filho de Saul” começa, as imagens que se vê são bem desfocadas. O espectador desavisado logo percebe que não é um problema do projetor, e sim uma escolha do diretor estreante László Nemes. Só vemos com clareza o rosto do protagonista, Saul (Géza Röhrig), e aquilo que ele enxerga próximo a ele. Os horrores do campo de concentração em que ele vive ficam nublados, não vemos rostos dos mortos, só um grande borrão de corpos misturados. Houve quem dissesse que, assim, só a dor do protagonista importasse. Houve quem achasse a falta de identidade dos mortos ainda mais incômoda do que conhecê-los. Mas mesmo que não se veja muito, dá para ouvir tudo que se passa, sentir o desespero de Saul e o horror da situação.

No filme que estreia hoje (4), Saul faz parte de um grupo de judeus que ganha alguns meses de vida a mais ao trabalhar para os nazistas nos campos de concentração. Em Auschwitz ele é responsável por tarefas como limpar câmaras de gás, recolher os pertences das roupas dos mortos, cremá-los e jogar suas cinzas no rio. Ver os corpos como uma massa anônima e borrar o cenário que o rodeia parecem ser formas que Saul encontra para desempenhar seu trabalho.

Sua rotina muda, porém, quando um menino sobrevive ao gás e, asfixiado por um médico, é encaminhado para uma autópsia para que se descubra como ele não morreu na câmara. Saul reconhece naquele menino seu filho e ele resolve roubar o corpo para enterrá-lo de acordo com os preceitos da religião. Pegar o corpo não é fácil, achar um rabino é menos ainda e encontrar um rabino disposto a ajudá-lo é quase impossível. Mas Saul não desiste da missão e no curto período de tempo em que o filme se passa ele atravessa o campo inteiro — mostrando seu funcionamento como uma fábrica, pouco visto em outros filmes — em busca de uma saída.

Enquanto Saul procura um rabino, seus colegas preparam uma fuga, com a ajuda de um grupo de mulheres que trabalham nos campos e lhes fornecem pólvora — evento que aconteceu na vida real em 1944. O problema é que Saul está mais preocupado com o corpo do filho, já morto, do que com a possibilidade de um grande grupo de homens escapar com vida dali. Nenhum deles é tratado como herói, nenhuma missão é apresentada como superior.

Favorito ao Oscar de filme estrangeiro, “O Filho de Saul” pode se juntar a tantos outros vencedores de prêmios da Academia que falam sobre a Segunda Guerra (“O Pianista”, “O Leitor”, etc. etc.). Porém, como “Phoenix”, um dos melhores filmes do ano passado, seu olhar sobre a época é mais original do que se espera de um filme sobre o Holocausto. Não só a câmera fica próxima do protagonista o tempo todo como a proporção da imagem é pouco usual, praticamente quadrada, o que deixa tudo mais claustrofóbico e incômodo de ver. O filme se concentra no drama de uma pessoa só, mas ganha força em vez de perder. O espectador se sente na pele de Saul e, apesar de o horror ser menos gráfico que em outros filmes, poucas vezes ele foi tão palpável.

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‘O Regresso’: imagens de dor e sofrimento

Leonardo DiCaprio sofre menos em “Titanic”, em que morre de frio num mar gelado após um naufrágio, que em “O Regresso”. Sofre menos em “O Homem da Máscara de Ferro”, em que passa anos preso com uma máscara na cara a mando de seu próprio irmão, que em “O Regresso”. Sofre menos em “Romeu + Julieta”, em que se mata ao achar que sua mulher morreu, que em “O Regresso”. DiCaprio quase sempre sofre nos filmes, mas nada se compara a “O Regresso”, que estreia nesta quinta (4). Em mais de duas horas e meia, seu personagem, Hugh Glass é atacado por um urso, abandonado pelos companheiros, quase morre sufocado, afogado, esfaqueado, alvejado por flechas e a lista só cresce.

Fica difícil saber o quanto do que se vê é atuação e o quanto é sofrimento real — o ator disse em entrevistas que realmente comeu fígado cru de bisão, dormiu em carcaças de animal, entrou em rios congelados e quase teve hipotermia mais de uma vez. Com meia dúzia de falas no filme todo, DiCaprio não demonstra tantas nuances quanto em outros trabalhos. Hugh Glass não tem o charme de Jack, de “Titanic”, ou o humor de Jordan Belfort, de “O Lobo de Wall Street”. É só dor e sofrimento, dor e sofrimento. Como o Oscar tende a recompensar os atores por esforço e comprometimento, DiCaprio finalmente deve levar o prêmio e acabar com as piadas, apesar de ter tido outras performances mais, digamos, interessantes no passado.

Mas, como história, “O Regresso” não é nada demais. Tanto que tem o maior número de indicações ao Oscar, disputando 12 categorias, mas roteiro não é uma delas. Hugh Glass faz parte de um grupo de americanos caçadores e vendedores de peles, até ser atacado por um urso que o vê como ameaça a seus filhotes. Todo machucado e sem poder falar, Glass é abandonado pelos companheiros, que deixam um pequeno grupo encabeçado por Fitzgerald (Tom Hardy) com ele para que seja enterrado quando finalmente morrer. Só que Fitzgerald não está a fim de esperar: ele enterra o companheiro vivo e parte sem olhar para trás.

Durante o resto do filme, Leonardo DiCaprio grunhe, cambaleia e se arrasta pela neve para se vingar de Fitzgerald. No caminho, enfrenta tempestades, pesca com as próprias mãos e come o peixe cru (parece até bom comparado ao fígado que vem depois), cauteriza as próprias feridas e foge de diferentes inimigos — de índios a outros grupos de caçadores. Sozinho em outro planeta, Matt Damon tem a vida mais fácil que DiCaprio em seu “Perdido em Marte”, também uma história de sobrevivência, mas bem mais otimista.

Iñárritu e DiCaprio no set de 'O Regresso'
Iñárritu e DiCaprio no set de ‘O Regresso’

“O Regresso” é bruto: em um momento, a lente da câmera fica manchada de sangue. Hugh Glass não chega a ser estuprado por um urso, como dizia um boato bizarro que circulou meses atrás, mas o ataque é violentíssimo. Quando você acha que acabou e respira aliviado, o urso volta para um repeteco e joga DiCaprio pra lá e pra cá.

O filme  impressiona pelo aspecto técnico. Foi feito para ser visto no cinema, como “Gravidade”, que tem o mesmo diretor de fotografia, atual bicampeão do Oscar, Emmanuel Lubezki. As imagens são maravilhosas e foi tudo filmado com luz natural, em condições climáticas bem difíceis. Valeu a pena, dá vontade de viver num mundo em que ele seja diretor de fotografia. Em alguns momentos, o filme lembra “A Árvore da Vida”, de Terrence Malik, e não é gratuito: Lubezki também foi responsável pela fotografia. É um filme lindíssimo, mas como história bate numa tecla só e são horas de pura tortura. Quem diria que algum personagem de DiCaprio conseguiria ter uma experiência mais infeliz com gelo que o Jack, de “Titanic”.

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‘Tangerine’: humor e realismo trans

No filme “Tangerine”, Sin-Dee acabou de sair de uma curta temporada na prisão quando a amiga Alexandra conta, no banco da loja de donuts que frequentam, que seu namorado a traiu. Ao longo de um dia, as duas percorrem Los Angeles em busca de retaliação contra o namorado e a tal mulher, sobre quem a única coisa que elas sabem é que o nome começa com D. É uma história clássica de vingança e amizade. O fato de Sin-Dee e Alexandra serem mulheres trans é mais uma de suas características, não aquilo que as define. Diferente de outras produções com personagens trans, como “A Garota Dinamarquesa”, “Transparent” ou “Meu Nome É Ray”, não vemos a transição e sim um dia na vida que elas levam depois disso, com vários problemas, mas também muito humor, a pedido das próprias atrizes, que participaram do projeto desde o início.

Sean Baker, diretor do filme que estreou no Festival Sundance no ano passado e que tem estreia prevista para dia 4 de fevereiro no Brasil, não tinha roteiro ou ideia definida até conhecer Mya Taylor, que interpreta Alexandra, perto de sua casa. Seu último filme, “Starlet”, lançado em 2012, também era sobre uma amizade entre duas mulheres: a idosa Sadie e a jovem atriz pornô Jane, e foi a primeira inspiração para “Tangerine”. “Talvez o interesse pelo trabalho sexual não tenha deixado meu organismo, porque me senti atraído por um cruzamento famoso perto de minha casa em Los Angeles, na esquina de Santa Monica e Highland, conhecida por ser um distrito da luz vermelha para trans que trabalham com sexo”, me contou Baker.

Ali no cruzamento ele e seu corroteirista, Chris Bergoch, viram Mya pela primeira vez. “Ela nos impressionou de cara. Eu a vi do outro lado da rua e sabia que tínhamos que falar com ela”, lembra. Baker disse a Mya que pretendia fazer um filme e ela o ajudou apresentando várias de suas amigas, que foram entrevistadas pelo cineasta para ajudar a construir o projeto. Mas o filme só ganhou forma mesmo quando Kitana Kiki Rodriguez, a Sin-Dee, apareceu por lá. “No momento em que vi Mya e Kiki juntas sabia que tínhamos uma dupla dinâmica nas nossas mãos. Elas se complementavam, mas tinham um contraste. Chris e eu sabíamos que devíamos construir uma história com duas protagonistas para Mya e Kiki.”

Em cena, a Sin-Dee de Kiki é a mais exuberante. Com cabelo loiro tipo Beyoncé e uma roupa curta, desfila com confiança pela cidade em busca da tal garota — que não é trans, ainda por cima — que estava com seu namorado (e cafetão), chamando a atenção por onde passa. Alexandra é a voz da razão, que tenta conter a amiga enquanto se prepara para cantar num bar à noite, uma grande oportunidade. As diferenças de personalidade entre as duas são tão grandes quanto sua amizade. O tempo todo uma apoia a outra: Sin-Dee interrompe seu plano de vingança para ver o show de Alexandra, que retribui ao lhe oferecer a própria peruca quando a amiga é atingida por um copo de urina na rua.

O caso da urina, como outros eventos do filme, é inspirado numa história real. “Mya contou que isso aconteceu com algumas de suas amigas ou conhecidas”, diz Baker. A traição do namorado também tem um pé na realidade e veio de uma suspeita real de Kiki sobre seu relacionamento. “Pegamos isso e ficcionalizamos, vimos o que aconteceria se ela fosse atrás da mulher cisgênero envolvida no caso”, diz o diretor. “O processo de pesquisa nos ajudou a chegar num ponto em que nos sentíamos confiantes com o fato de que a ficção seria verdadeira e honesta.”

[olho]”Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades”[/olho]

Mas mesmo com o roteiro pronto, Mya e Kiki, ambas estreando no cinema, ficaram à vontade para improvisar, incentivadas pelo diretor. “Muitas vezes acho que o frescor de uma fala improvisada tem uma autenticidade que nenhuma palavra escrita pode ter. E em casos como ‘Tangerine’ existem gírias das ruas pras quais eu e Chris precisávamos de consultoria. Mya e Kiki nos falavam se o que tínhamos escrito era preciso ou não.”

Baker não considerou contratar atores que não fossem trans, ainda que fossem mais conhecidos, para participar do filme — caso de produções como “A Garota Dinamarquesa”. Num mundo ideal, um bom ator, diz, deveria ter a oportunidade de fazer qualquer tipo de papel. Um ator cisgênero poderia viver um papel trans e vice-versa. Mas o momento não é esse. “A situação triste é que pessoas trans têm uma taxa de desemprego que é o dobro da população em geral, e para pessoas de cor o desemprego chega a ser quatro vezes maior que a média nacional [dos EUA]”, diz. “Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades. Espero que no futuro, quando a igualdade for alcançada (pensamento positivo), cisgêneros e transgêneros poderão competir por esses papéis. Mas em 2016 acho que temos de fazer o que podemos para ajudar aqueles que a sociedade ignorou por tanto tempo.”

Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez em "Tangerine"
Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez em “Tangerine”

COM HUMOR

Além de emprestar suas histórias e suas palavras para Baker, Mya fez logo de cara dois pedidos importantes, que deram um norte para o filme. Primeiro, queria que a história fosse realista. “Ela disse que faria o filme se eu não segurasse a mão no realismo. Queria que eu capturasse a realidade brutal que as trabalhadoras do sexo trans enfrentam. Mesmo que fosse difícil de ver ou que não fosse politicamente correto”, conta.

A segunda demanda foi que o filme fosse engraçado. “Ela queria que ele apreendesse o humor que as garotas usam para lidar com as coisas. Fiquei abalado, porque ela me pediu para tentar um equilíbrio muito difícil, que podia dar muito errado. Mas quando avançamos percebi que fazer um filme abertamente político que só tratasse nossos personagens como vítimas seria condescendente”, diz. “Foi um momento importante na construção do filme e devo muito a Mya por me colocar na direção certa.”

“Tangerine” não esconde as dificuldades nas vidas de suas personagens. Alexandra leva um calote de um cliente e é chamada pelo nome masculino pela polícia, que se recusa a tratá-la como mulher, enquanto Sin-Dee é agredida na rua e começa a história saindo da prisão. Mas não é um filme triste. A fotografia, bem solar, com cores quentes e saturadas, ajuda a dar esse clima. No início, Baker tinha optado pelo contrário: tirou a saturação de todas as cores para deixar o filme com uma cara mais realista. “Mas assim que vi as imagens senti que algo estava errado. O estilo contrastava com as personalidades coloridas delas. Então fui pro outro lado e joguei as cores lá em cima. De repente pareceu certo.”

Vendo o filme não se percebe, mas “Tangerine” é uma produção que começou tão modestamente que teve de ser filmada inteiramente num iPhone. Baker não tenta disfarçar dizendo que foi uma escolha puramente estética, e sim orçamentária, pelo menos no início. “Mas tinha um instinto de que seria o jeito perfeito de fazer o tipo de filme de que eu gosto — gravado clandestinamente, socialmente realista, que mistura atores não profissionais, gente atuando pela primeira vez e gente experiente”, afirma. “O iPhone diminuiu as inibições e aumentou a confiança de quem normalmente ficaria intimidado com uma câmera tradicional. Acho que isso afetou tudo de uma maneira muito boa. Captei alguns momentos espontâneos que não teria conseguido com nenhuma outra câmera.”

A cara de filme profissional, e não amador, ficou por conta de uma lente que ainda estava em fase de protótipo de um grupo que arrecadava dinheiro em campanha de financiamento coletivo, acoplada ao telefone. Com essa lente, Baker conseguiu fazer com que a proporção entre altura e largura do vídeo fosse aquela que desejava para o filme.

O filme que começou pequeno, logo ficou grande. Foi um hit em Sundance no ano passado e as críticas foram bem positivas (o filme tem nota 96% no Rotten Tomatoes) e concorre agora a um dos principais prêmios da organização GLAAD (aliança de gays e lésbicas contra a difamação, na sigla em inglês). O desempenho de “Tangerine” deixou Baker contente. Agora, para seu próximo projeto — uma história para crianças ambientada na Flórida — diz que vai manter a mesma equipe, mas espera ter uma verba “bem maior”.