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O fenômeno ‘Hamilton’

Na próxima semana Lin-Manuel Miranda e boa parte de seus companheiros de elenco deixam o musical “Hamilton”, em cartaz na Broadway há cerca de um ano. Mesmo que você estivesse em Nova York até lá, as chances de colocar as mãos num ingresso para o espetáculo seriam próximas de zero. Não só os valores são altíssimos (um recorde de US$ 849 pelo ingresso mais caro) como os poucos ingressos são disputados a tapa. Mas de alguma forma, apesar de toda essa exclusividade, o frisson em torno de “Hamilton” saiu da Broadway, de Nova York, dos Estados Unidos, e atingiu até pessoas que nunca viram um musical na vida e nem gostam particularmente do gênero. É um fenômeno — e felizmente pode ser aproveitado mesmo por quem não for ao teatro.

Para entender o sucesso de “Hamilton” é necessário conhecer seu criador. Lin-Manuel Miranda trabalhava como professor de inglês na escola em que estudou quando começou a escrever seu primeiro musical, “In the Heights”, que usava o hip hop para contar a história de uma comunidade latina em Nova York. O espetáculo de 2008, que vai virar filme e teve uma versão no Brasil anos atrás, ganhou quatro prêmios Tony, o mais importante do teatro. Foi o suficiente para colocar Miranda no mapa. No ano seguinte, ele foi chamado à Casa Branca para se apresentar numa noite de poesia e música. “Estou muito feliz por a Casa Branca ter me chamado para hoje. Estou trabalhando num disco de hip hop, conceitual, sobre alguém que acho que encarna o hip hop: o Secretário do Tesouro Alexander Hamilton. Vocês riem, mas é verdade!”, disse ele na ocasião.

Miranda havia comprado uma biografia de Hamilton num aeroporto para levar numa viagem e não conseguiu mais largá-la. A história de Hamilton, um dos pais fundadores dos Estados Unidos e autor de vários artigos de “O Federalista”, era, para ele, puro hip hop. Foi graças à escrita que Hamilton conseguiu sair do Caribe, onde levava uma vida pobre, ir para Nova York e se tornar braço-direito de George Washington. Com isso em mente, Miranda escreveu uma primeira música. Só por ela dá para ter uma ideia do que é o musical “Hamilton”, e como é possível aproveitá-lo sem ir à Broadway. Veja a cara do Obama.

Lin-Manuel Miranda, 36, nasceu em Nova York, filho de porto-riquenhos e, já na faculdade, fez parte de um grupo de hip hop chamado Freestyle Love Supreme. Sua capacidade de improvisação é impressionante e documentada em vários vídeos — de aparições em talk shows até em discursos de agradecimento ao receber prêmios. No programa de Jimmy Fallon, competiu com um dos membros do grupo The Roots numa batalha de freestyle e conseguiu misturar as palavras “dinossauro”, “torta de abóbora” e “Darth Vader” em um rap curto. Dê duas palavras para ele e ganhe uma canção. Miranda tem o pensamento rápido e, como Hamilton, é hábil com as palavras. Não só no rap — recitou um soneto escrito naquele dia ao receber um Tony semanas atrás, falando do atentado em Orlando e de sua família numa tacada só.

Ganhador do Prêmio para Gênios da Fundação MacArthur no valor de US$ 625 mil (para o qual não se candidata, se é escolhido), Miranda escreveu uma canção para o sétimo episódio de “Star Wars”, está fazendo a trilha sonora da animação da Disney “Moana” e fará parte do elenco de uma nova versão de “Mary Poppins”, com Emily Blunt. Do jeito que as coisas andam, é um forte candidato a completar o grand slam das artes, o EGOT — que significa levar prêmios no Emmy, Grammy, Oscar e Tony (ele venceu o Emmy em 2014 por uma música escrita para a cerimônia do Tony). Em breve será muito difícil escapar de Miranda, mesmo para quem não tem o menor interesse em teatro.

Mas voltemos a “Hamilton” e à primeira apresentação para os Obama. Naquela época, o musical não era nem um embrião e o conceito de um espetáculo em hip hop sobre Hamilton era no mínimo esquisito. “Sete anos atrás um jovem rapaz veio a um evento de poesia que Michelle e eu organizamos na Casa Branca”, disse Barack Obama ao apresentar o musical no Tony neste mês. “Ele estava trabalhando num projeto sobre a vida de alguém que representava o hip hop: o primeiro Secretário do Tesouro americano, Alexander Hamilton”, completou Michelle. “Eu confesso que dei risada. Quem está rindo agora? ‘Hamilton’ virou não só um sucesso, mas uma aula de cívica da qual nossas crianças não se cansam”, disse o presidente americano, fã do musical. Anos depois daquela primeira visita, Lin-Manuel Miranda se apresentou de novo para os Obama na Casa Branca, acompanhado por seu elenco, e cantou a mesma música, dessa vez no arranjo que se tornou conhecido.

Nessa segunda visita, “Hamilton” já era uma realidade, um musical que estreou na Broadway em agosto de 2015 e vendeu perto de US$ 30 milhões em ingressos mesmo antes de abrir por lá — tinha tido uma temporada no circuito fora da Broadway antes. Neste ano, recebeu 16 indicações ao Tony, um recorde, e levou 11 troféus para casa, incluindo melhor musical, ator (Leslie Odom Jr.), ator coadjuvante (Daveed Diggs) e atriz coadjuvante (Renée Elise Goldsberry). Também levou um Pulitzer e um Grammy.

“Hamilton” é um sucesso de público, arrasa-quarteirão em premiações e também queridinho da crítica. Um exemplo, do New York Times. O texto, com o título “Hamilton: jovens rebeldes mudando a história e o teatro”, começa com a frase “sim, é tão bom assim”. “Reluto em dizer às pessoas que coloquem suas casas na hipoteca e aluguem suas crianças para conseguir ingressos para um hit da Broadway. Mas ‘Hamilton’, dirigido por Thomas Kail e estrelado pelo Sr. Miranda, talvez valha isso — pelo menos para quem quiser provas de que os musicais americanos não estão só sobrevivendo, mas também evoluindo de formas que devem permitir que eles prosperem e se transformem nos próximos anos”, escreveu o crítico Ben Brantley na estreia.

Com os poucos trechos de apresentações disponíveis na internet, em premiações como o Grammy e o Tony, dá para ter uma ideia de como os figurinos e coreografias impressionam, mas só as músicas de “Hamilton”, disponíveis no Spotify, valem a pena. São canções que poderiam tocar no rádio, misto de rap, balada e músicas pop que estariam no repertório de Beyoncé, executadas por um elenco e tanto (Daveed Diggs canta a música mais rápida da história da Broadway, “Guns and Ships”, com 6,3 palavras ditas por segundo, e Renée Elise Goldsberry não fica atrás em habilidade com a linda “Satisfied”). As canções são tão boas que a Atlantic elegeu o disco como o melhor de 2015. Não o melhor disco de trilha sonora. O melhor disco do ano, em qualquer gênero, de qualquer artista. E como o espetáculo é praticamente todo cantado, com poucos diálogos, ouvir o álbum inteiro é uma experiência próxima de ir ao teatro (quer dizer, falando como alguém que não foi ao teatro, é bom deixar claro. Pode ser ilusão, claro, mas é a sensação que fica).

Miranda chegou a passar um ano compondo uma só música, “My Shot” (“Hamilton é tão mais inteligente que eu. Essa é a música em que ele entra na sala e impressiona todo o mundo com a força da sua oratória. Todo verso tem que ser incrível”, disse ele), e o esmero é perceptível. O Wall Street Journal criou até um algoritmo para analisar os versos, constatando diferentes tipos de rimas e paralelos com músicas de artistas como Kendrick Lamar e Lauryn Hill. Tudo isso enquanto constrói personagens complexos como Aaron Burr, o antagonista, e Angelica Schuyler, que se apaixona por Hamilton e abre mão dele por causa de sua irmã, Eliza — gaste alguns minutos escutando “Helpless” e “Satisfied” na sequência, com as letras em mãos e os comentários de Lin-Manuel Miranda, mostrando as inspirações por trás de cada verso e suas bases em documentos históricos (sim, você ainda sai tendo aprendido alguma coisa. Dois pelo preço de um).

Soma-se à qualidade do trabalho de Lin-Manuel Miranda a modernidade do musical. Alexander Hamilton viveu de 1755 a 1804, mas em tempos de grandes discussões sobre imigração mundo afora — e particularmente nos Estados Unidos de Donald Trump –, “Hamilton” traz algumas lições importantes (“Imigrantes, nós fazemos o trabalho”, diz um verso). “É uma lembrança de que os imigrantes construíram este país, seguidas vezes, repetidamente, ao longo de seus cerca de 200 anos. Alexander Hamilton foi uma das primeiras histórias disso”, disse Miranda à Folha. “Acredito que, dada a retórica anti-imigrante que está meio que dando as cartas nessa temporada eleitoral, é bom ter algo para lembrar que o cara que construiu o nosso sistema financeiro não havia nascido aqui [risos]. É um contrapeso a essa narrativa.” Suas letras falam de feminismo, ativismo, preconceito. Escolha um tema do noticiário e provavelmente encontrará algum paralelo no musical.

Para contar essa história, Lin-Manuel Miranda selecionou um elenco com negros, latinos e descendentes de asiáticos para interpretar personagens brancos. “Nosso elenco tem a cara da América de hoje e é certamente intencional”, disse ele ao New York Times. “É uma forma de te puxar para dentro da história e de permitir que você deixe qualquer bagagem cultural que tenha sobre os pais fundadores na porta. Hollywood tem muito a aprender com “Hamilton.”

Antes de deixar o elenco, Lin-Manuel Miranda filmará duas apresentações de “Hamilton” com o elenco original, inclusive com membros que já deixaram a produção, caso de Jonathan Groff (que também fez “Glee”). Ele ainda não sabe o que fazer com as gravações, nem dá para saber se algum dia as veremos. Pode ser também que um dia “Hamilton” vire filme, como tantos outros musicais da Broadway, mas segundo Miranda isso é coisa para daqui uns 20 anos. Por enquanto, já ajuda o fato de termos as músicas disponíveis. “Hamilton” é um fenômeno (não à toa ajudou a manter o rosto de Alexander Hamilton na nota de dez dólares). Vale cada segundo.

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O tabuleiro de ‘Game of Thrones’

George R.R. Martin não é bom com prazos e provavelmente não esperava que a série “Game of Thrones” fosse, em alguns anos, superar sua saga literária “As Crônicas de Gelo e Fogo” (“Como raios você escreve tantos livros tão rápido?”, perguntou ele recentemente a Stephen King — com uma palavra menos educada que “raios”). Os showrunners da série da HBO, David Benioff e D.B. Weiss, conversaram com Martin e sabem o ponto final da história, mas os caminhos tomados para chegar até lá são diferentes, para o bem e para o mal.

(Este post contém spoilers, teorias e especulações sobre “Game of Thrones”. Leia por sua conta em risco.)

A quinta temporada, a primeira mais fora do roteiro dos livros, foi um mau sinal. Foi o ano em que Jaime Lannister partiu numa jornada para Dorne para buscar sua filha, Myrcella, que só rendeu cenas de batalhas toscas, reviravoltas sem pé nem cabeça, diálogos terríveis, personagens rasos (nomeie as três filhas de Oberyn se puder) e um final anticlimático. Foi o ano em que Daenerys continuou sem sair do lugar e enfrentou uma rebelião enfadonha e o ano que Arya gastou afastada de todos os outros personagens vendendo ostras na rua. Foi arrastado, com poucas surpresas (ninguém acreditou que Jon Snow fosse ficar morto pra sempre). Desanimador.

Por outro lado, a temporada seguinte, que terminou no último domingo, deu uma boa guinada na história. Apesar de alguns episódios um pouco parados ali pro meio, a história avançou — às vezes até um pouco rápido demais, todo o mundo viaja tão rápido que parece que Westeros tem uma frota de aviões — e todos os personagens estão posicionados para a reta final, já que há boatos fortes de que a série só terá mais duas temporadas com sete episódios. Arya saiu do exílio, como Daenerys (aleluia!), Bran está a caminho de casa, dois Stark se encontraram, a origem de Jon Snow foi revelada (ou confirmada para pessoas que leem teorias na internet), Ramsay Bolton morreu, Theon Greyjoy deu a volta por cima, Lyanna Mormont se revelou a personagem de que nós precisávamos (e merecemos), os White Walkers estão a caminho e o inverno finalmente chegou. Até a história de Dorne ganhou um propósito.

A imagem que o público irá guardar de “Game of Thrones” até o ano que vem, quando estrear a sétima temporada, é a dos últimos episódios, dirigidos por Miguel Sapochnik. E que imagem: o penúltimo tem uma das melhores cenas de batalha que vêm à memória e o último tem uma sequência de abertura para se ver de novo, com um piano marcando a preparação dos envolvidos para o julgamento de Cersei e Loras.

Quem frequenta fóruns ou sites que falam de “Game of Thrones” possivelmente já antecipava o incêndio de Cersei (a tese da Rainha Louca), a origem de Jon Snow (R+L=J) e até a vingança de Arya. O roteiro também está longe de ser à prova de buracos (como Arya sobreviveu àquelas facadas na barriga? Por que Sansa não contou que tinha reforços chegando para a guerra? Onde foi parar a feiticeira contratada por Tyrion? Nada disso foi muito bem explicado). Mas não importa muito: a história finalmente engatou a terceira marcha e entreteve. Pela posição de cada personagem ao fim da sexta temporada a perspectiva para o final é muito boa.

ONDE ESTÁ CADA PEÇA NO JOGO DOS TRONOS?

Antes de tudo, um mapa ajuda a explicar o estado atual de Game of Thrones:

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Arya: Depois de duas temporadas vendendo ostras, limpando o chão e apanhando em Braavos (em tempo de série é difícil de saber, já que não são dadas muitas dicas de passagem de tempo), Arya finalmente se juntou ao resto da história em Westeros. Em vez de ir direto para casa reencontrar a família, ela passou nas Gêmeas para riscar um nome na sua lista da morte e matou Walder Frey (e dois de seus muitos filhos). Agora ela pode tanto voltar para casa, no Norte, ou tentar tirar mais alguém da lista, como Cersei, em Porto Real.

Sansa: Reencontrou Jon Snow depois de comer o pão que o diabo amassou desde o começo da série (exemplos: noivou com um psicopata, casou à força, casou à força com um psicopata). Depois de salvar a pele de Jon na Batalha dos Bastardos com reforços que tinha escondido dele, agora divide o controle de Winterfell e do Norte — Jon deu o quarto de Ned e Catelyn pra ela, mas quem é chamado de rei é ele. Trocou um olhar misterioso com Petyr Baelish no final que pode tanto indicar que ela vai se juntar a ele pra passar a perna em Jon quanto uma preocupação.

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Bran: Virou o corvo, seja lá o que isso significa ao certo (sabemos que ele tem poderes, mas não exatamente o que vai fazer com eles). Foi deixado pelo tio Benjen perto da Muralha, com Meera Reed. Se eles conseguirem cruzá-la, estarão bem perto de encontrar com Jon e Sansa em Winterfell. Mas ainda há algumas dúvidas para a próxima temporada: Como eles farão para cruzá-la? Se eles passarem para o outro lado, vão liberar a passagem pros White Walkers? Que outros acontecimentos históricos tiveram o dedo de Bran? Qual é o papel dele na guerra que está por vir?

Jon Snow: Bran agora sabe que Jon é filho de Lyanna Stark, e não de Ned. Não fica 100% claro porque Lyanna sussurra em cena ao falar do bebê para o irmão, mas o mais provável é que seu pai seja Rhaegar Targaryen (e ele seja sobrinho de Daenerys). Quando descobrirem sua verdadeira origem ele deve ter menos direitos a Winterfell, mas ganhar força para disputar o trono dos Sete Reinos com a tia. Por enquanto ele tem que se preparar para lutar contra os Caminhantes Brancos (o inverno chegou), manter o Norte unido e dormir de olho aberto enquanto Baelish estiver por perto.

Cersei: Depois de causar o suicídio do filho, Tommen, e matar quase todos seus inimigos numa tacada só, assumiu o trono dos Sete Reinos (quem diria que seria ela, e não Daenerys, a primeira rainha?). Mas depois de ter instaurado o caos em Porto Real, matado boa parte das pessoas que poderiam lhe dar conselhos e ter criado mais inimigos, está numa situação precária. Jaime, seu maior (único?) aliado, pareceu não ter aprovado sua estratégia de colocar fogo na cidade — ele matou um rei e arruinou sua reputação para impedir que isso acontecesse antes. Uma profecia dos livros diz que ela seria morta pelo irmão mais novo. Tanto Jaime quanto Tyrion são candidatos.

Jaime: Fez uma viagem rapidíssima das Gêmeas (onde escapou de encontrar com Arya) para Porto Real e chegou a tempo de ver a irmã ser coroada, fato que pareceu não aprovar muito. Nos livros, Jaime se afasta de Cersei e parece encontrar o caminho da redenção, o que pode acontecer a partir de agora na televisão. É um dos candidatos a matar Cersei em algum ponto da história.

Tyrion: Sua temporada em Meereen felizmente chegou ao fim e ele faz parte da comitiva de Daenerys rumo a Westeros como seu principal conselheiro. Como os trajetos e o tempo não fazem muito sentido em “Game of Thrones” ele pode chegar já no próximo episódio e finalmente se vingar de Cersei e conquistar o respeito e a posição que merece.

Daenerys: Passou cinco temporadas sendo menosprezada por homens e lançando mão dos seus dragões e da sua imunidade ao fogo para destruí-los, numa história que pouco saiu do lugar. Mas agora finalmente partiu rumo a Westeros, com uma equipe e tanto: Tyrion e Varys como conselheiros, apoio dos Martell, dos Tyrell e de parte dos Greyjoy, com um exército de Dothraki e de Imaculados. E, claro, três dragões. Vai enfrentar os enfraquecidos Lannister chegando lá.

Theon e Yara: Theon recuperou sua identidade depois de uma temporada com Ramsay Bolton e não só ajudou Sansa a escapar como ainda deu apoio à irmã na disputa pelo trono das Ilhas de Ferro. Os dois agora fazem parte da equipe de Daenerys e rumam a Porto Real, onde devem participar da batalha.

Euron: Construindo mil barcos nas Ilhas de Ferro? Não sabemos ao certo.

Família Martell: Deram apoio a Daenerys. Talvez estejam em algum barco rumo a Westeros ou talvez estejam acompanhando à distância de Dorne (de preferência bem à distância).

Brienne e Pod: Foram vistos pela última vez saindo de Correrrio, onde tentaram convencer sem sucesso o Peixe Negro a ajudar Sansa na Batalha dos Bastardos. Provavelmente estão indo rumo ao Norte, encontrar Sansa. Podem cruzar com muita gente no caminho.

Melisandre: Expulsa do Norte por Jon Snow depois que Davos (finalmente, diga-se de passagem) descobriu que ela queimou Shireen. Está indo rumo ao sul, onde pode cruzar com Brienne, com Sandor Clegane…

Sandor Clegane: Se juntou à Irmandade Sem Bandeiras com rumo desconhecido. Apesar de não sabermos ao certo onde ele está e nem para onde vai, tudo indica que eles estão bem ali no miolo de Westeros, e ele pode cruzar com várias pessoas no meio do caminho (Melisandre? Brienne? Arya?).

Petyr Baelish: Está em Winterfell tramando alguma coisa e sonhando em casar com Sansa. Sem dúvidas causará problemas para muitas pessoas ainda. Jon Snow é um forte candidato a alvo.

Davos: Está em Winterfell sendo uma das melhores pessoas da série.

Tormund: Está em Winterfell sendo mais uma das melhores pessoas da série.

Lyanna Mormont: Idem. Melhor pessoa.

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Pense bem antes de recusar o chamado.

Varys: Um dos capitães do time Daenerys, num barco de Meereen rumo a Westeros. Costurou bem a parceria Martell-Tyrell-Daenerys.

Daario Naharis: Ficou em Meereen e deve sumir da série. Sua ausência não será (muito) sentida.

Sam e Gilly: Chegaram à Cidadela, depois de passarem uma temporada viajando, no trajeto geográfico que mais fez sentido durante este ano. Ele deve descobrir algo útil na luta contra os White Walkers numa das tramas mais tediosas rolando agora.

Jorah: Deixou Meereen com a ingrata tarefa de achar uma cura para sua doença raríssima que o transforma em pedra. É um coringa: pode estar em qualquer canto do mundo e cruzar com qualquer personagem a qualquer momento. Com certeza sonha com Daenerys todas as noites.

Gendry: Provavelmente remando, ainda.

Pelo arranjo das peças, a próxima temporada promete vários encontros: reunião Stark em Winterfell, vingança de Arya no centro do continente (Melisandre, Sandor Clegane e outros de sua lista estão por lá) e uma grande batalha em Porto Real que deve envolver metade do elenco. Até Jorah e Gendry podem encontrar alguém no meio do caminho. Com poucos episódios restantes, não há muito tempo a perder e a história tem que chegar ao clímax logo. E os personagens finalmente estão posicionados para que isso aconteça.

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“Muito” além das aspas irônicas

A poucos metros um do outro, dois restaurantes na Faria Lima, em São Paulo, fazem um uso curioso de aspas em seus letreiros. “Por uma alimentação mais saudável”, diz um. “Grande variedade” de lanches, diz o outro. O uso de aspas em contextos esquisitos está em todos os cantos: nas placas nas ruas, em comunicados de condomínio nas paredes de elevadores, em posts nas redes sociais (como aquele do Neymar, desejando “parabéns” para o filho), em textos no jornal (Pergunta Delfim Netto em sua coluna: “Alguém duvida da importância da ‘cultura’ na construção de uma sociedade civilizada?”). Erros de aspas são comuns, mas há mais usos para a pontuação do que mostrar ironia – esse sentido, aliás, é recente se considerarmos a longa vida das aspas.

A história do sinal de pontuação começa antes de Cristo, na Grécia — pelo menos até onde se tem registro e pode-se afirmar com certeza. “Eles usavam aquela marquinha como uma flecha na margem dos manuscritos da Grécia antiga para chamar a atenção para algo (como uma flecha faz), às vezes como um sinal de que algo era corrupto, duvidoso, ou que precisava de algum tipo de atenção”, conta Ruth Finnegan, autora do livro “Why Do We Quote? The Culture and History of Quotation”, em que revê a origem das aspas.

Aspas em um papiro grego do segundo ou terceiro século. Fonte: Universidade de Michigan
Aspas em um papiro grego do século I ou II. Fonte: Universidade de Michigan

Desde então, as aspas ganharam um monte de usos. Alguns deles, enumerados por Ruth: destacar, dar dignidade, conferir autoridade, ligar quem escreve a algo, afastar o autor do que ele está dizendo (“não sou eu quem estou falando, só estou passando adiante”), marcar diálogos (um uso mais recente, de dois séculos para cá) e citações de outras pessoas (muito utilizado na academia) e mostrar ironia.

Em inglês existe, inclusive, um termo específico para as aspas irônicas: são as scare quotes, definidas pelo dicionário Merriam-Webster como “aspas usadas para expressar ceticismo ou escárnio a respeito do uso da palavra ou frase dentro delas”. Nem todas as aspas seriam do tipo scare. Escreve Merrill Perlman, que trabalhou 25 anos no jornal The New York Times, onde chefiava os redatores: “Nem toda aspa que contém uma ou duas palavras é uma ‘scare quote’, claro. Às vezes essas aspas curtas são utilizadas para destacar um termo em discussão. Às vezes são usadas para apresentar um termo não muito familiar”. Aspas podem, por exemplo, destacar uma palavra usada fora do contexto, um neologismo, um estrangeirismo.

Para entender o significado da aspa, contexto é importante, diz Merill, que hoje trabalha no departamento de jornalismo da Universidade de Columbia, em Nova York. Exemplo: se em uma reportagem um jornalista escreve que Fulano ficou “embasbacado” com algo, há duas interpretações possíveis. O autor pode ter colocado a palavra entre aspas para mostrar que aquele foi exatamente o termo usado pelo entrevistado ou para mostrar um estranhamento com a palavra — como se Fulano não estivesse ou não devesse estar embasbacado. “Se o contexto não é claro, a mensagem não vai ser clara. Uma razão para evitar aspas para uma só palavra é que há uma possível confusão”, diz Merill. “Na maior parte das vezes, na minha visão, autores usam aspas em uma palavra para resolver um problema, quando não conseguem pensar numa forma de usar mais palavras. É resolver um problema às custas do leitor.”

Se um restaurante diz que serve comida “saudável”, então, o contexto diz que é pouco provável que haja alguma ironia aí — o restaurante quer enfatizar que sua comida faz bem à saúde. Não quer dizer que não seja esquisito. “A Sociedade Americana de Redatores mostra um slide no seu treinamento de uma placa que oferece comida ‘fresca’. Não sei se é uma falta de compreensão do que uma aspa de uma palavra só deva ser, ou uma tentativa de destacar algo quando nenhuma outra fonte está disponível, mas é muito irritante pra mim”, afirma Merill.

"Grandes variedades" de lanches
“Grande variedade” de lanches

Segundo Merill, o uso de scare quotes é relativamente recente, rastreado a partir da metade do século 20, “apesar da ideia de mostrar ao leitor que você não quer dizer aquilo que está dizendo seja muito mais velha que isso”. Em suas pesquisas, constatou que a popularidade das aspas irônicas aumentou muito no final do século, em 1995, assim como aquelas aspas feitas com os dedos, no ar, quando alguém está falando (em “Friends”, série clássica dos anos 90/início dos 2000, Joey é zoado por não saber usar as aspas irônicas quando fala).

“Também acho que essas aspas estão sendo usadas mais politicamente hoje também. Por exemplo, quando o Affordable Care Act passou nos Estados Unidos, os republicanos o chamaram de Obamacare para mostrar seu desgosto com ele. Quando os repórteres citavam os republicanos, colocavam Obamacare entre aspas para indicar que o termo era usado como forma de ridicularização, zombaria, como se fosse um nome falso. Depois os democratas começaram a usar Obamacare também, tentando eliminar a conotação negativa. A Associated Press continua usando ‘Obamacare’, entre aspas, como usam para apelidos. O problema, pra mim, é que não fica claro para o leitor se eles usam as aspas ironicamente, ou se é para mostrar que é um apelido, ou outra coisa.”

O uso de aspas em textos noticiosos pode gerar outras situações desconfortáveis. Até 2008, por exemplo, o jornal Washington Times utilizava aspas em casamento gay (“casamento” gay), e neste ano o New York Times se referiu à “ocupação” da faixa de Gaza por Israel. Na dúvida, Merill diz para usar aspas irônicas com moderação. “Escritores devem pensar em como usam as scare quotes e se um bom leitor pode interpretar errado.”

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O ‘Rocky’ brasileiro

Marcada por superações, a história do lutador José Aldo da Silva Júnior é daquelas que daria um filme. O campeão das artes marciais mistas, o MMA, venceu sua origem pobre e seu núcleo familiar violento para virar estrela do UFC, evento mundial mais importante da modalidade, em 2010. Seis anos depois, veja só, sua trajetória deu em filme mesmo: “Mais Forte que o Mundo”, de Afonso Poyart (diretor de “Presságios de um Crime”, com Anthony Hopkins), que estreia nesta quinta (16).

É bem verdade que o cinema brasileiro carecia de filmes “de lutador”, levando em conta que somos um “celeiro de craques” do UFC. Em conversa com jornalistas após a pré-estreia, Claudia Ohana até se confundiu: “É o primeiro filme de lutador brasileiro, não é? Para mim, ao menos, é”. Não é, embora seja a produção sobre esse universo mais relevante desde o documentário “Anderson Silva: Como Água”, de 2011. Com o bônus de abordar causas sociais pertinentes: o rincão amazonense nem sempre retratado no cinema, a violência doméstica, a pobreza.

A história começa com um jovem José Aldo, interpretado por José Loreto, frequentando aulas de jiu-jitsu de dia e se divertindo com amigos à noite. A Manaus em que vive é retratada de maneira sombria, e isso nada tem a ver com as chuvas equatoriais diárias — mesmo porque a locação real é a cidade de Santos, berço do diretor. É lá que habitam os demônios de José Aldo: o pai alcoólatra, que espanca a mãe, o inimigo da juventude que humilha sua família.

O tempo abre com sua chegada ao Rio de Janeiro, marcada por uma fotografia mais iluminada. Lá um antigo amigo, interpretado por Rafinha Bastos (uma “escolha polêmica”, como reconhece o diretor), lhe arranja estadia na academia de Dedé Pederneiras, papel de Milhem Cortaz. Para retribuir a hospedagem, o rapaz trabalha na limpeza e espera pelo dia em que o treinador lhe aceitará como pupilo. A semelhança com “Karatê Kid” vira até piada em cena.

 

O garoto finalmente chama a atenção de seu professor ao se meter em uma briga na lanchonete onde faz bicos por tentar proteger Vivianne Oliveira, par romântico de José Aldo, vivido por Cleo Pires. O casal se apaixona durante as aulas de muay thai da moça, o que ilustra bem a relação vindoura de intensidade e atritos. A partir daí, a jornada do herói foca mais em sua construção e conflitos que em seus feitos.

A certa altura, a personagem de Thaila Ayala, namorada do esportista e amigo Tony Mendigo (interpretado por Felipe Titto), diz: “Bom lutador é aquele que sabe brigar consigo mesmo”. A metáfora que dá forma ao conflito psicológico do protagonista surge logo no início do filme, com uma história de seu pai, que adora contar parábolas. Uma delas discorre sobre o abate de um boi por uma sucuri: o mamífero não percebe a serpente se esgueirando enquanto bebe água. A cobra sorrateiramente envolve sua presa, que, quando se dá conta, já é tarde demais.

José tem de lidar constantemente com a figura paterna em sua vida. A atuação de Jackson Antunes como o pai, inclusive, é brilhantemente delicada: não é vilão, mas também não é um herói. O nome não é o único atributo que José Aldo herda do progenitor, um dos principais responsáveis pela raiva destemperada do filho, ao mesmo tempo em que é apontado pelo atleta como seu “maior incentivador”. O ódio é um sentimento dicotômico, a gasolina que pode ser combustível para o sucesso ou explosivo para o fracasso. Essa é preocupação de seu treinador: “Você gosta de brigar, eu quero te ensinar a lutar”. Será José Aldo o boi ou a sucuri?

O diretor calcula que “cerca de 30%” da trama foi inventada. A personagem de Paloma Bernardi, por exemplo, é um dos recursos fictícios usados. A garota é meio amiga, meio caso adolescente do protagonista e serve como ponte entre ele e seu passado. Do lado da realidade, fica a boa ideia de usar o cinturão real na cena de seu triunfo no UFC, artigo emprestado do próprio lutador.  

Cleo Pires em 'Mais Forte que o Mundo'. Crédito: Divulgação
Cleo Pires em ‘Mais Forte que o Mundo’. Crédito: Divulgação

O elenco reúne nomes conhecidos, inclusive em papéis menores, como o humorista Robson Nunes e os atores Thaila Ayala, Jonathan Haagensen e Felipe Titto. As personagens femininas têm importância na trama e são fortes, não tolerando os abusos que sofrem.

O filme tem a intenção de ser um “divisor de águas na carreira de José Loreto”, como profetiza o colega Jackson Antunes. Primeiramente oferecido a Malvino Salvador, a expectativa é de que o papel principal transforme o ator — apesar de pálido demais para viver o manauara— em mais que um rostinho bonito. A direção de Poyart traz a característica violência já conhecida em “2 Coelhos”, com cenas de brigas bem coreografadas, perseguições em automóveis e embates no octógono. O filme funciona em várias camadas: a ação, o romance, o drama. Quem vai ao cinema para assistir a um filme “de lutador” sairá da sala mais que satisfeito.

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Pasquim na TV:
sem filtro e sem roteiro

Entrevistas em que celebridades fogem do roteiro pré-aprovado por seus assessores de imprensa são cada vez mais raras. Quando acontecem, costumam viralizar e resultar em um monte de pedidos de desculpas. Para ficar num caso da semana passada, com um ator pouco conhecido: Noah Galvin, da série “The Real O’Neals”, deu uma entrevista ao site Vulture, em que contou de suas dificuldades em conseguir papéis por ser gay, fez críticas a como personagens gays são representados — citando o personagem de Eric Stonestreet em “Modern Family”, “uma caricatura de um estereótipo” — e mencionou um boato tão grave envolvendo o diretor Bryan Singer que foi até excluído do texto do site depois. Batata: em poucas horas as declarações já haviam se espalhado e ele fez uma longa retratação nas redes sociais, pedindo desculpas a quem tinha e não tinha ofendido.

Lembrar de algumas das conversas de atores, cantores e políticos com a equipe do Pasquim, jornal que circulou entre 1969 e 1991, encenadas por atores no programa “As Grandes Entrevistas do Pasquim”, que estreou na segunda (13), às 20h, no Canal Brasil, é especialmente impactante nesse contexto. Difícil ver alguém falar com tanta sinceridade. Leila Diniz, por exemplo, declarou (em meio a muitos palavrões e revelações sobre seus relacionamentos com outras celebridades) que não gostava de teatro — Caio Castro fez o mesmo anos depois e, sob uma avalanche de críticas de outros atores, recuou um pouco na afirmação (“não é que eu não goste, só não gosto muito”). Já Agnaldo Timóteo falou mal de Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil e de Tom Jobim (exemplo: “Caetano é uma merda!”).

Dirigido pelo documentarista André Weller, o programa do Canal Brasil apresenta a cada episódio uma entrevista publicada no Pasquim encenada por um grupo de atores e gravada em uma só tomada, incluindo os trechos em que o elenco sai do roteiro para fazer alguma interjeição pessoal. As cenas de conversa, feitas pelo jornal regadas a álcool e cigarro, são intercaladas por depoimentos de pessoas que participaram da história do Pasquim, num misto de documentário e ficção.

André Weller conta que sempre foi fã do jornal, que o pai comprava e ele folheava por causa dos desenhos. “Nasci em 1971, peguei criança o auge do jornal”, lembra. “A parte gráfica era muito forte, me interessava bastante. Depois descobri as entrevistas do Pasquim, foi uma coisa que li e reli muito na minha vida.” Anos atrás, relia a polêmica entrevista de Agnaldo Timóteo quando percebeu que existia ali uma dramaticidade grande. Quando a primeira edição saiu, o cartunista Jaguar foi o responsável por transcrevê-la e editá-la. Sem ter feito aquilo antes, escreveu tudo exatamente como ouvia, sem editar ou tirar marcas de coloquialidade. Não havia tempo para corrigir o erro antes de mandar o jornal para a gráfica e foi daquele jeito mesmo. Um sucesso.

As entrevistas, que tinham até rubricas (estilo “Agnaldo fala irritado”), viraram marca registrada do Pasquim e tinham toda cara de teatro mesmo. “Cada personagem tinha uma certa função dentro do texto. O Sérgio Cabral era mais apaziguador, o Tarso de Castro é mais ácido, o Millôr com aquelas tiradas dele, o Ziraldo falando muito”, diz Weller. “Eles deixavam muito o entrevistado à vontade. Eles embebedavam o entrevistado, ele falava coisas que nunca tinha falado. Deu um estalo e eu pensei que dava pra transformar num texto dramático e colocar atores pra ler esses textos.”

Ana Kutner, que interpreta papel da mãe, Dina Sfat. Crédito: Juliana Torres/Divulgação
Ana Kutner, que interpreta papel da mãe, Dina Sfat. Crédito: Juliana Torres/Divulgação

Das 1.072 entrevistas publicadas pelo Pasquim, a equipe de André escolheu 13 para a primeira temporada, buscando diversidade de personagens — musas, como Leila Diniz, Dina Sfat e Elke Maravilha, políticos, como Lula e Jânio Quadros, músicos, como Chico Buarque, Agnaldo Timóteo e Cazuza. Para interpretar cada um desses entrevistados foi escolhido um ator por afinidade. Leila e Dina, por exemplo, são vividas por suas filhas, Janaína Diniz e Ana Kutner. Chico Buarque, que canta na entrevista, é interpretado pelo cantor Marcos Sacramento. Já Elke Maravilha é papel de Michel Melamed, que a escolheu. “A entrevista mais forte de todas é do Gabeira no exílio, ele fala de tortura, do sequestro do embaixador americano, e essa intensidade coube muito bem no Matheus Nachtergaele”, exemplifica.

Não houve ensaio com os atores, que gravaram tudo em uma só tacada. “Veio meu lado documentarista, não encarei aquilo como ficção. Não gravei como ficção. Era uma mesa redonda, dois carrinhos circulares com câmera e a partir do momento que eu falava ação eles faziam a entrevista inteira”, conta Weller. “Documentei essa leitura. Você percebe que tem um momento em que a Janaína está falando o texto da mãe, como Leila Diniz, falando que o pai não falava palavrão. Aí ela fala: ‘Posso fazer um parênteses? Meu avô passou a falar muito palavrão’. Aquilo ficou. Falo muito que o cinema é a arte do diretor e o teatro, do ator. No programa os atores ganharam a batalha. Eles comandaram ali, vestiram a camisa do Pasquim e levaram a entrevista.”

Ver as conversas encenadas como aconteceram (Janaína Diniz, por exemplo, fica o tempo todo com uma toalha enrolada na cabeça, como a mãe) causa uma impressão diferente do que lê-las. Para Weller, a entrevista mais impactante no palco foi a de Dina Sfat. “Ela tinha acabado de se separar do Paulo José e fala da separação. Chamei a Ana Kutner, filha dela. A Ana reencarnou a mãe. A gente ficava muito surpreso. Ela passava a não ler mais a entrevista, como se soubesse aquilo, as palavras saíam. Tem muita emoção”, diz. “Essa entrevista foi a única póstuma do Pasquim, ela morreu logo depois. Demorou um pouquinho pra publicar e ela morreu.”

Depoimentos dos jornalistas envolvidos nas entrevistas são entremeados com as cenas de conversa, para ajudar o espectador o que estava acontecendo naquela época, no que a equipe do jornal estava pensando. “No do Lula, eu queria saber o que era ter um operário do ABC lá em Ipanema. O Jaguar fala no programa que nunca gostou do Lula, desde que ele entrou na sala. Eu queria misturar essa parte documental com a ficção”, diz o diretor, que foi auxiliado nisso por Ricky Goodwin, que editou as entrevistas do Pasquim por 14 anos e foi roteirista da série.

A princípio o programa iria ao ar depois da Copa do Mundo, em 2014, mas atrasou dois anos. Weller diz, porém, que a demora foi oportuna. “Porque a gente está falando do maior jornal subversivo que a gente teve, que se posicionava contra o governo que estava instaurado. A gente vai ver essas entrevistas num tempo em que as pessoas estão se posicionando de alguma forma, seja de que lado for”, afirma. “Acho que esse atraso foi bom, na verdade. Ele vai ser lançado num momento político efervescente, como era. Costumo falar que o Pasquim não era um jornal, era um espírito.”

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Fogo cruzado no combate à cocaína na Colômbia

Entre o governo colombiano e os traficantes de cocaína há uma importante parcela da população do país que fica no meio do fogo cruzado. Essas pessoas cujas histórias são menos contadas — não estão em séries como “Narcos” ou outras produções do gênero, por exemplo –, são agora centro de um documentário da HBO, “Guerras Alheias”, que estreia na segunda (13), às 22h. O filme analisa os resultados de uma parceria entre Estados Unidos e Colômbia — o Plano Colômbia — para combater o tráfico de cocaína, que envolveu a pulverização de glifosato, um herbicida, nas plantações de coca colombianas com aviões. A teoria: o herbicida acabaria com os pés de coca, diminuindo a produção de cocaína, a oferta da droga e o tráfico. Já o uso de aviões tornaria o processo todo mais seguro — tentar matar um pé de coca manualmente poderia resultar em violência e morte de humanos. Todo o mundo sairia ganhando, certo?

Na prática, o que acontece é bem diferente. Primeiro, o glifosato foi apontado pela Organização Mundial de Saúde no ano passado como um agente potencialmente cancerígeno — a Colômbia, aliás, foi durante anos o único país que disseminava a substância pelo ar. Muitos camponeses atingidos pelo herbicida passaram a sofrer com problemas de saúde: machucados na pele, nos olhos, abortos, defeitos congênitos em crianças. Nenhuma dessas pessoas foi indenizada e o governo colombiano contesta que essas doenças sejam causadas pelo glifosato — embora estudos de pesquisadores franceses mostrem que a substância destrói as células humanas.

Tanto autoridades colombianas quanto americanas, envolvidas na pulverização, afirmam que têm um estudo que mostra que nada disso é verdade. Importante ressaltar: um estudo financiado pela Monsanto, líder mundial na produção do herbicida glifosato. Apesar disso, a Colômbia indenizou o Equador, que reclamou que o glifosato estava chegando lá durante as pulverizações. É um reconhecimento de que o glifosato é ruim — para os equatorianos, não os colombianos.

Há também outros impactos, já que a pulverização de herbicida não atinge só as plantações de coca, mas tudo o que os camponeses plantam. Sem conseguir produzir, muitos ficam em situações de muita pobreza e devem migrar para cidades, onde encontram um cenário igualmente precário — a Colômbia é um dos países do mundo com maior número de pessoas deslocadas de suas casas, à frente de países em guerra. É não só uma questão de saúde como uma questão social. Uma massa de camponeses e de populações indígenas é atingida por uma guerra alheia. E segundo dados do documentário pouca coisa mudou no tráfico de drogas desde o início do Plano Colômbia.

Segundo Paul Drago, produtor da HBO, uma das grandes dificuldades na produção do documentário foi não ficar enviesado e dar para todos os lados a oportunidade de falar, permitindo que todos dessem sua opinião, contra ou a favor do uso dos herbicidas. Foram entrevistadas mais de 30 pessoas para o filme, entre políticos, camponeses, sociólogos, historiadores, entre outros. As afirmações das entrevistas, dos dois lados da questão, são contestadas ou apoiadas por pesquisas e estatísticas, exibidos em forma de infográfico ao longo da produção. “Um dos grandes desafios virou uma das grandes qualidades do documentário, que foi separar aquilo que pudemos verificar do que não pudemos”, diz Drago.

Joani Londono, 5, cuja mãe teve problemas na gravidez depois de comer vegetais de área que recebeu herbicidas. Crédito: Fernando Vergara/AP Photo
Joani Londono, 5, cuja mãe teve problemas na gravidez depois de comer vegetais de área que recebeu herbicidas. Crédito: Fernando Vergara/AP Photo

Quando o documentário estava em fase de edição, prestes a ser concluído, a OMS declarou que o glifosato é potencialmente cancerígeno e a pulverização aérea do herbicida foi proibida na Colômbia. O próprio presidente do país, Juan Manuel Santos, declara no filme que o combate às drogas deve ser pensado como uma questão de saúde pública e social, e não como uma guerra, que tem afetado a vida de tanta gente. Esses desdobramentos tiveram tempo de serem incluídos às pressas no filme. “O projeto meio que se dividiu em duas partes. Quando começamos, dois anos e meio atrás, filmamos as entrevistas, juntamos os materiais. E quando estávamos acabando, editando, várias coisas importantes aconteceram. Uma delas foi a declaração da OMS de que é o glifosato é perigoso e o fato de que o governo colombiano suspendeu a pulverização área”, diz o produtor.

No entanto, a pulverização terrestre ainda é permitida, então a história ainda continua. De acordo com reportagem do El País, o governador de uma das regiões afetadas pelo glifosato é contra, dizendo que o herbicida não é efetivo para combater a cocaína, além de gerar efeitos colaterais. O Ministério de Saúde do país, por outro lado, afirma que as fumigações seguirão protocolos e não prejudicarão ninguém.

Os resultados da pulverização aérea também são debatidos. Segundo dados das Nações Unidas, o cultivo de coca cresceu entre 15% e 20% desde que aviões pararam de jogar herbicida nas plantações. O Ministro da Defesa concluiu, com isso, que a pulverização aérea é eficaz. Estudiosos, por outro lado, afirmaram que o aumento das plantações se deu porque o cultivo de outras plantações não deu os resultados esperados e, com o aumento do preço da coca, os camponeses não viram outra opção a não ser plantar mais coca.

É uma discussão ainda em andamento, mas “Guerras Alheias” é uma boa lembrança do impacto que as políticas antidrogas têm nas vidas de milhares de pessoas que não estão envolvidas no tráfico, e sim presas no meio de uma guerra que não é sua. O filme dá voz a essas pessoas que costumam estar de fora das conversas, inclusive na própria Colômbia. Lançado agora, o filme faz parte de uma conversa que continuará atual por tempo indefinido. “A gente poderia fazer uma segunda versão do filme em julho, depois outra em agosto”, diz Drago. E é uma história em andamento, para se seguir de perto.

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Alice Braga, nova rainha do tráfico na TV

Na televisão, hoje, a realeza do tráfico de drogas é brasileira. O rei é Wagner Moura, o Pablo Escobar de “Narcos”, série do Netflix. A rainha agora é Alice Braga, que protagoniza “A Rainha do Sul”, que estreia neste mês nos Estados Unidos e em 7 de julho aqui, no canal Space. “Eu falei pro Wagner: ‘É nóis na cocaína!’. Ele é um irmão pra mim, foi muito engraçado ele ser o rei e eu, a rainha do tráfico”, diz Alice para um grupo de jornalistas em São Paulo. Na série americana ela é Teresa, que se envolve com as drogas após a morte do namorado traficante. A trama é baseada em livro de Arturo Pérez-Reverte, que também deu origem à novela mexicana “La Reina del Sur”, com Kate del Castillo — aquela que colocou Sean Penn em contato com El Chapo.

A história de Alice com a série começou oito anos atrás, quando ganhou o livro de presente de uma amiga. “[Ela] me deu e disse: ‘Você tem que ler esse livro, a história é linda e é uma super personagem. Você tem que ler, independente de querer fazer ou não. Mas é uma personagem que você pode fazer, ela é latina e tal’. Aí eu li e me apaixonei pela Teresa”, conta a atriz. Na época estava previsto que o texto virasse filme, possivelmente protagonizado por Eva Mendes. O projeto caiu por terra, a história virou novela e o livro continuou na estante de Alice.

Anos depois, quando ela gravava o filme ‘O Duelo’ — ainda inédito — nos Estados Unidos, recebeu um e-mail dizendo que dois roteiristas queriam conversar com ela sobre o projeto “Queen of the South”. “Eles me mandaram a sinopse e eu pensei: ‘Não é possível, depois de oito anos voltou esse projeto pra mim’. Foi muito especial.” Eles se encontraram, conversaram e logo Alice topou. Ajudou que sua estreia em séries fosse em uma produção com 13 episódios por temporada. “Eu não fecharia se tivesse 22. Porque com 22 você fica o ano todo fazendo ela. E eu amo muito fazer cinema”, diz. “Meu desejo é esse: sete meses do ano tentar fazer outros projetos e cinco na série. É engraçado, pensei muito nisso quando fui assinar o contrato de cinco anos. Meu Deus, cinco anos. Nunca assinei uma coisa que você fica conectada.”

 

A série tem algumas diferenças em relação ao livro que a originou e à novela que a antecedeu. No original, Teresa foge do México após a morte do namorado e vai para a Espanha e o Marrocos. Na série, ela vai para o Texas, local escolhido parte porque o Estado deu incentivos à produção e parte porque fica próximo da fronteira entre México e Estados Unidos. Lá, Teresa, garota que não tinha muita família ou amigos e veio das ruas, se transforma na Rainha do Sul, chefe do tráfico. Há também novos personagens e tramas. “Eles ainda estão escrevendo e desenvolvendo essa jornada. O que eu achei interessante, também pra se diferenciar do que a gente já viu na série em espanhol.”

[citacao credito=”” ]Meu desejo é esse: sete meses do ano tentar fazer outros projetos e cinco na série[/citacao]

Sua Teresa, porém, é totalmente baseada na versão do livro, que ela chama de sua Bíblia. “Eu falei [para os roteiristas]: ‘Vamos nessa, mas vou honrar ela. Tudo que vocês jogarem pra mim eu vou querer sentar com vocês e falar que isso ela não faria e isso ela faria’. Foi muito legal, porque eles foram muito generosos comigo nesse sentido, de entender, de querer saber”, conta. A Teresa do livro, por exemplo, é uma mulher que não se vitimiza. “Teve uma fala que eles escreveram em que ela estava se vitimizando. Liguei pra eles e falei: ‘Não posso falar essa frase, porque isso compromete pra onde a gente está indo. Como é uma série em que a gente sabe onde ela vai chegar, que ela é a Rainha do Sul, a gente tem que tomar muito cuidado.”

Alice fala com bastante empolgação da personagem, que descreve como uma traficante que não é má nem usa violência se puder evitar. “Ela é quase uma diretora de empresa. É uma mulher de negócios, que foi construindo o império dela pelas condições que a vida foi levando, mas que é uma mulher que trabalha nesse business de cocaína, que é um mundo extremamente masculino”, diz. Viver um tipo de personagem geralmente interpretado por homens, aliás, foi um dos grandes atrativos, segundo ela. “Normalmente quando a gente é protagonista de alguma coisa relacionada ao universo masculino ou a gente está procurando marido ou separando do marido. Ou é sobre o universo feminino e por isso é interpretado por uma mulher”, afirma. “Ela tem a força de uma mulher e esse é o diferencial, mas não é interpretada por uma mulher porque é feminino. Nesse tempo em que a gente está tendo essa discussão foi muito especial.”

Gravar “A Rainha do Sul” foi uma experiência bem física. “Quando vi os roteiros pensei: ‘Vocês realmente me acharam a heroína da ação, né?”, ri Alice. “Teve uma vez que o câmera e o foquista estavam num carrinho, eles vinham correndo com o carrinho e eu correndo. E eu comecei a bater o carrinho. Eles diziam: ‘Você tem que ir mais devagar!’. E eu: ‘Gente, não dá pra eu ir mais devagar, eu tô correndo pela minha vida!’. Era eu apostando corrida com o carrinho. Foi muito divertido, esse tipo de coisa eu adoro fazer.”

Alice tinha três dublês disponíveis, mas tentou fazer tudo o que dava, incluindo cenas de explosão e uma em que a personagem dirigia recebendo tiros de um lado, vidros do outro, no escuro (“videogame total!”). “Você ver a cara do personagem até o limite faz diferença. Você ficar com ela até aquele segundo. Talvez seja eu que ache isso, mas quando vejo um filme eu gosto disso”, diz. Mexer com armas não foi novidade. “Sou muito tipo medrosa, mas por uma feliz coincidência fiz muita coisa de ação.” Aprendeu, por outro lado, a contar dinheiro muito rápido. “Gente, ela troca dinheiro todo dia.” Pequenas coisas.

Depois da polêmica do sotaque de Wagner Moura, seria Alice a próxima vítima? Ela diz que quis muito tentar um sotaque mexicano, mas o canal optou por deixar seu acento original. “Foi engraçado, eu passei anos limpando o inglês e eles falam: ‘Esquece a limpeza, usa seu inglês!’. Foi um desafio legal.” Deixar a língua mais neutra é parte de uma estratégia para atrair também as segundas e terceiras gerações de latinos nos Estados Unidos, comunidade alvo de investimento do canal. “A comunidade latina lá é gigante, cada vez maior, cada vez crescendo. Existe um desejo [de trazer latinos para a TV], assim como de um protagonismo feminino, como eu disse, algo que eu quero trazer cada vez mais pra mesa”, diz. “É muito bom pra comunidade latina se ver na tela. Ter esse entretenimento em que você se vê, em que as pessoas têm sotaque como você que mudou praquele país em busca de uma vida melhor, em busca de realizar um sonho, de ligar a TV e estar lá.”

[citacao credito=”” ]É muito bom pra comunidade latina se ver na tela. Ter esse entretenimento em que você se vê, em que as pessoas têm sotaque como você que mudou praquele país em busca de uma vida melhor[/citacao]

Na versão brasileira, Teresa será dublada pela própria Alice. “É muito legal as pessoas do meu próprio país me verem falando a minha língua. Teve uma vez, num filme que eu não conseguiu fazer [a dublagem], que a minha mãe não conseguiu ver, mudou de canal!”, conta. “E é um desafio, você revisitar uma coisa que você já fez, é um personagem que está pulsando, vivo dentro de você, mas trazendo uma leitura dele. A música é diferente, a maneira que você imposta sua voz é diferente. É uma releitura daquilo”, continua. “Não tinha como não ser minha voz. Até ia ficar com ciúmes se alguém mais fizesse, ela é minha!”

Depois de passar tanto tempo nos Estados Unidos, Alice se confunde às vezes no português e usa termos em inglês. “Quando eu conversei com os roteiristas a primeira coisa que eu perguntei foi: isso não é uma ‘glamouralização’ da droga? Pelo amor de Deus. O que está acontecendo no mundo, principalmente no México, é muito sério. Muito sério. Então se a gente faz uma glamouriza… Gla-mou-ra-li-za-ção? Desculpa, gente. Glamourização. Glamourization! Mais fácil”, diz, rindo. Glamourizar a droga iria contra o que ela acredita, diz.

“O que eu acho que é o diferencial de ‘A Rainha do Sul’ é que a gente segue ela [a personagem]. A gente não fala ‘ah, é legal a cocaína’, a cocaína é um coadjuvante. A gente está vendo essa mulher sobrevivendo nesse mundo movido por violência, um mundo extremamente masculino. É uma jornada de busca pela sobrevivência, pragmatismo, foco, de buscar segurança”, opina. É que nem “Breaking Bad”. “Por que a gente pirou? Por causa da jornada dele como personagem.”

Ela conta que no último dia de filmagem, levantou as mãos enquanto chorava, momento registrado em foto. “É diferente de um filme, quando você lê um roteiro, discute com diretor e roteirista, faz começo, meio e fim, entregou, próximo projeto. Eles continuam montando, mas em três meses você fez sua jornada. Pela primeira vez estava em contato com uma coisa de ela estar pulsante, os roteiros estavam chegando e a gente mudando ela, vendo pra onde ela vai”, diz. “Você vai quase criando e vivendo com o coração dela. Você vive das cinco da manhã quando senta na cadeira de maquiagem até as oito da noite quando volta pra casa. Foi muito legal. Agora ela é um corpo vivo. É total cenas do próximo capítulo, eu não sei o que vai acontecer na segunda temporada.”

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As origens do crime

Reportagens sobre crimes pipocam diariamente em jornais e sites pelo mundo. Se há bastante repercussão, acompanha-se por algum tempo as investigações, depois o julgamento e a história geralmente morre por aí. O crime começa quando é cometido e termina quando alguém é declarado culpado. É a concepção mais comum, com a qual o jornalista Eli Sanders, que escreve para o jornal semanal gratuito de Seattle The Stranger, não concorda. Quando, no verão de 2009, seu editor lhe pediu para escrever sobre um crime no bairro de South Park, no sul da cidade, ele não tinha muitos detalhes sobre a história, mas foi a fundo nela. Fez uma matéria. Depois outra. Dois anos depois, outra — pela qual ganhou, em 2012, o Pulitzer de reportagem. E depois, neste ano, um livro, chamado “While the City Slept”, no qual investiga as origens do crime, deixando de lado os detalhes mais horripilantes do crime em si.

Em 2009, um homem com uma faca invadiu a casa em que Jennifer Hopper e sua noiva, Teresa Butz, moravam e durante mais de uma hora as estuprou repetidas vezes. Jennifer foi esfaqueada, mas conseguiu fugir da casa, nua, para pedir socorro aos vizinhos. Ela sobreviveu. Teresa, não. A história chocou as pessoas do bairro, com quem Teresa e Jennifer eram bastante ligadas e era esse luto o foco da primeira reportagem de Sanders. “Enquanto eu trabalhava naquele texto estava acontecendo uma caça à pessoa que tinha atacado elas. Quando eu terminei a matéria, Isaiah Kalebu tinha sido preso pelos crimes. Foi assim que comecei. Olhei para o luto, o choque, o alarme no bairro e fiz um retrato breve, da melhor forma que pude, de quem eram Jennifer e Teresa. Depois descrevi a prisão do homem que era suspeito de ter atacado as duas”, conta o jornalista pelo telefone, dos Estados Unidos.

Continuou seguindo o caso de perto depois da prisão, e a reportagem seguinte narrava os meses anteriores ao crime na vida de Isaiah Kalebu, sob o título “The Mind of Kalebu – What the Alleged South Park Killer Was Thinking” (a mente de Kalebu – o que o suposto assassino de South Park estava pensando). O texto tenta entender como ele chegou àquele ponto, passando pelas condições sociais em que ele cresceu e também pela sua saúde mental, humanizando o assassino. É um texto difícil de ler, porque ao tentar decifrar quem era o assassino de Teresa, o que o tinha levado a cometer os crimes, Sanders mostra que se os sistemas de saúde mental e judicial dos Estados Unidos fossem melhores, o estupro das duas e a morte de Teresa poderia ter sido evitados, descoberta que desenvolveu no livro. “Tracei um retrato das fendas pelas quais Kalebu escapou, e hoje as entendo melhor. Acho que no livro tentei demonstrar isso com mais profundidade.”

Os sinais de que Isaiah Kalebu precisava de ajuda começaram na infância, quando um professor percebeu que ele tinha dificuldades na escola, apesar de ser inteligente, e recomendou que ele procurasse um psicólogo. Os pais não só se recusaram a levá-lo como o matricularam numa escola religiosa, que era contra intervenção médica nesses casos. Para a família de Kalebu a solução para problemas mentais não era buscar ajuda. Tudo se resolveria se ele se esforçasse mais, pedir ajuda seria um sinal de fraqueza.

Nos anos seguintes, intensificaram-se os sinais de que ele precisava de tratamento. Em 2008, Kalebu entrou em um prédio comercial com um pitbull, disse que havia comprado o imóvel com dinheiro ganho com comércio de açúcar, “demitiu” várias pessoas e se instalou por lá até ser levado a um hospital psiquiátrico para avaliação, onde deu declarações como “eu sou o rei”. Saiu dali com o diagnóstico de que era bipolar e maníaco. Entre essa primeira avaliação e a morte de Teresa, Kalebu foi preso diversas vezes. Ameaçou matar a mãe, brigou com policiais, aterrorizou uma funcionária de um hospital e a tia, que o expulsou de casa — na semana seguinte o imóvel pegou fogo e ela morreu (ele era um dos suspeitos). Duas vezes um psicólogo do Estado afirmou que ele representava um risco para a sociedade e mesmo assim, menos de uma semana antes da morte de Teresa, um juiz permitiu que ele saísse do hospital e cuidasse do próprio tratamento psicológico, sem acompanhamento.

Isaiah Kalebu com sua advogada no julgamento pela morte de Teresa Butz. Crédito: Mike Siegel/AP Photo
Isaiah Kalebu com sua advogada no julgamento pela morte de Teresa Butz. Crédito: Mike Siegel/AP Photo

O sistema de saúde mental americano, escreveu Sanders no Stranger, é tão criticado quanto mal financiado. “Permitiu que Kalebu seguisse sua vida normal quando deveria ter sido contido, como fica aparente em quase cem páginas de documentos da polícia e de tribunais que ele gerou nos 16 meses seguintes ao seu exame em Harborview, assim como em vídeos de suas numerosas aparições no tribunal naquele período”, diz sua matéria. Em um julgamento dias antes da morte de Teresa, o promotor não levou em consideração passagens mais recentes de Kalebu pela polícia porque não havia um sistema unificado nos computadores que permitisse que se checasse tudo relacionado a uma determinada pessoa. Se o sistema fosse melhor, ele talvez estivesse preso no dia em que entrou na casa de Jennifer e Teresa.

Tudo isso estava na mente do jornalista quando, em 2011, foi ao julgamento de Kalebu, sem saber ainda se escreveria algo a respeito. “Eu me sentia conectado à história e queria ver no que ia dar. E quando Jennifer deu seu depoimento ficou muito, muito claro para mim que algo precisava ser escrito. Me senti compelido a escrever algo sobre a clareza e a coragem do seu depoimento. Esse texto ganhou o Pulitzer um ano depois”, conta. No relato, Sanders deixa as partes mais escabrosas daquela noite de lado, para colocar os holofotes na coragem da mulher em contar sua história. Segundo o texto, Jennifer sentou no banco das testemunhas para dizer: “Isso aconteceu comigo. Vocês precisam ouvir. Isso aconteceu com a gente. Vocês precisam ouvir quem foi perdido. Vocês precisam ouvir o que ele fez. Vocês precisam ouvir como Teresa lutou contra ele. Vocês precisam ouvir o que eu amava nela. Vocês precisam ouvir o que ele tirou de nós. Isso aconteceu”. O texto foi publicado com o título “The Bravest Woman in Seattle” (a mulher mais corajosa de Seattle).

O autor não achava que os pormenores da violência fossem necessários à narrativa. Pelo contrário, tinham o potencial de distrair o leitor de seu objetivo, que era contar a história de Jennifer. Seu relato é poderoso, sem sensacionalismo. “Você tem que entender o horror do crime para compreender o poder de seu testemunho. Mas é sobre seu testemunho. Sua coragem, o amor que ela e Teresa tinham, a forma como elas tentaram apelar para a humanidade de Isaiah Kalebu. O custo e as constequências das ações. Não achei que precisasse colocar mais horror em algo que já era horrível.”

“Eu já achava que talvez tivesse um livro ali, porque para todo canto que eu olhava na história tinha indivíduos — Jennifer, Teresa, Kalebu, suas famílias — cujas vidas tinham lições importantes. Depois que ganhei o Pulitzer tive a oportunidade de realmente escrever o livro”, lembra o autor. “Senti uma responsabilidade de tirar lições úteis do que foi uma tragédia terrível. Não vi um motivo para seguir com isso a não ser que tivesse um propósito. Espero que tenha alcançado isso.”

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Depois do julgamento, em que Kalebu foi condenado à prisão perpétua, Jennifer se aproximou de Sanders, escrevendo com a ajuda dele um texto para o Stranger. Quando a oportunidade de escrever um livro se concretizou, buscou também as famílias de Teresa e Kalebu. “Normalmente, como jornalista, tenho prazos muito definidos. Nesse caso eu tinha muito tempo para dizer, ok, agora não é uma boa hora para a gente falar disso, talvez a gente possa se falar em uma semana, ou um mês. Podemos falar um pouco agora e um pouco depois. Essa questão do tempo foi fundamental para minha habilidade de trabalhar com todas as pessoas envolvidas.”

Essa falta de tempo na vida de um jornalista explica, em sua opinião, por que a cobertura de crimes na imprensa não explora as causas do crime. “Mas é importante que façamos isso quando podemos. É importante que empresas de mídia coloquem recursos nesse tipo de trabalho quando podem. É caro, em termos do tempo de um repórter, mas acho que é mais esclarecedor do que só cobrir os detalhes do crime, o julgamento e o veredito e pronto”, opina. “É como se falássemos pras pessoas que o crime começa quando é cometido e termina com o veredito. Isso é um episódio da série ‘Law & Order’, não é a vida. Acho que o crime começa antes e suas consequências permanecem muito tempo após o julgamento.”

Segundo Sanders, os Estados Unidos gastam muito mais dinheiro construindo presídios do que investindo em saúde mental. “Chegamos num ponto em que há dez vezes mais pessoas com doenças mentais em cadeias do que em hospitais no país. Está de ponta-cabeça, é um uso muito ruim de recursos”, afirma. “Há décadas falhamos em prestar atenção na saúde mental das pessoas, no sistema criminal e nas necessidades individuais das pessoas.” O sistema criminal, diz, não está na pauta de nenhum dos candidatos à eleição presidencial americana, que será realizada neste ano. “Políticos às vezes falam disso logo que crimes acontecem. Mas mesmo assim não é uma conversa muito esclarecedora”, diz. “Quem está seguindo as eleições deste ano vê que falam de um carnaval de outras questões. Mas disso, não.”

Ele ressalta que a grande maioria das pessoas que vivem com doenças mentais não são violentas. Pelo contrário, há mais chances de que elas sejam vítimas de crimes do que responsáveis por eles. “Não acho que um leitor cuidadoso vá ler meu livro e terminar pensando que pessoas com doenças mentais sejam todas violentas e criminosas em potencial. Se você pensar um pouco, vê que isso é um pouco ridículo. ‘Doenças mentais’, em primeiro lugar, é um termo casual muito amplo sobre o qual nem há um consenso. Engloba tudo desde uma ansiedade leve à esquizofrenia. Acho que qualquer um que parar pra pensar vai perceber o quão louco é dizer que qualquer um que viva algo que chamamos de doença mental seja violento.”

É só importante que para casos como os de Isaiah Kalebu, que tinha um histórico de violência, o tratamento correto seja dado o quanto antes. Contar histórias como essa e aprofundar-se nas raízes do crime, em sua opinião, ajuda as pessoas a prestar mais atenção na origem da violência e a entender que o problema não se resolve só com presídios. “Esse é nosso trabalho como jornalistas. As pessoas não estão ouvindo dos políticos. Temos que tentar fazer nossa parte.” Não era seu sonho, quando começou a carreira, escrever sobre crimes. “Mas minha trajetória me levou até aqui. Desenvolvi com o tempo o sentimento de que há mais coisas em histórias de crimes do que dá pra contar nas matérias pequenas que escrevia. Vi nesse livro uma oportunidade de contar uma história mais abrangente e, espero, oferecer algum significado e lições.”

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‘Broad City’: demorou, mas chegou no Brasil

Enquanto séries antigas como “Friends” e “Two and a Half Men” ainda passam direto na televisão, algumas boas produções demoram um pouco para chegar ao Brasil. É o caso de “Broad City”, que depois de dois anos finalmente estreia por aqui, nesta sexta (3) às 21h30 no canal pago Comedy Central. A comédia protagonizada por Abbi Jacobson e Ilana Glazer é praticamente uma unanimidade entre a crítica: suas três temporadas têm, respectivamente, os impressionantes índices de 96%, 100% e 100% no site Rotten Tomatoes, que dá uma nota com base com textos de diversos veículos.

Em tempos não muito bons para comédias com episódios de meia hora de duração — só dar uma olhada nas categorias de humor e drama nas principais premiações de TV para ter uma ideia –, “Broad City” é uma lufada de ar fresco. Criada pelas duas protagonistas, a série estreou na internet em 2009, onde foi exibida até 2011. Na televisão, tem como uma das produtoras-executivas Amy Poehler, um dos principais nomes da comédia hoje e que já havia participado da versão para internet. O maior elogio que se pode fazer à série é que ela não se parece com mais nada que esteja no ar hoje. A princípio, pode parecer que tem um quê de “Girls”, talvez, com suas personagens de vinte e poucos/tantos anos que moram em Nova York (mas não em Manhattan) e que ainda não têm nada resolvido na vida.

Abbi (à esquerda) e Ilana em cena de 'Broad City'. Crédito: Divulgação
Abbi (à esquerda) e Ilana em cena de ‘Broad City’. Crédito: Divulgação

Abbi, na versão televisiva (as protagonistas levam os nomes das atrizes), é funcionária de uma academia, responsável pela limpeza e manutenção do local, com o sonho de virar treinadora. Mora com uma amiga — que nunca aparece, mas que tem um namorado que vive lá também às custas delas — e tem uma paixão platônica por um vizinho, na frente do qual sempre passa vergonha. Já Ilana trabalha num escritório, onde aparece vestindo roupas inapropriadas — como uma miniblusa sobre sutiã aparecendo — e passa o dia ou dormindo de olhos abertos na própria mesa ou de olhos fechados sentada na privada. Como a Hannah de Lena Dunham, nenhuma das duas é a funcionária do mês. Falando nesses termos, “Broad City” parece mais uma das séries cuja moral é “millenials são narcisistas com vidas fora dos eixos”. Longe disso.

Não só a série é bem mais engraçada e solar que “Girls”, como suas personagens são verdadeiramente amigas, estranhamente um fato raro na TV (Mindy Lahiri, de “The Mindy Project”, deixou de se relacionar com mulheres na primeira temporada, e as mulheres de “Girls” hoje raramente aparecem juntas em cena, pra ficar em dois exemplos). No terceiro episódio da primeira temporada, uma montagem inicial dá bem o tom da série. Em cada metade da tela, as duas vivem seus dias separadas — Abbi limpando privadas, Ilana dormindo sobre a privada –, até que vão jantar, no que parece um encontro romântico. Ainda com a tela dividida em dois, vemos as duas comendo juntas, uma roubando algo do prato da outra, um retrato da intimidade.

Ilana e Abbi também são, ao mesmo tempo, cheias de defeitos — como gente normal, ressalte-se — e pessoas com as quais você gostaria de conviver. Não representam nem a fofura de Zooey Deschanel (“New Girl”) nem a acidez de Aya Cash (“You’re the Worst”). As duas são quem são, sem se preocupar em entrar em moldes, em agradar aos outros e sem pedir desculpas por isso. Fumam (muita) maconha, transam com quem querem e como querem, dançam peladas pela sala quando estão sozinhas e dão a melhor resposta do mundo para homens que pedem para que elas sorriam — elas sorriem se tiverem vontade.

Entre as séries a que assistimos aspirando àquela vida boa que os personagens levam — ganhando bem, trabalhando pouco, convivendo diariamente com os amigos, conhecendo só gente linda e maravilhosa (“Sex and the City”, “Friends”, “How I Met Your Mother”…) — e aquelas que vemos para pensar que felizmente nossa vida não é tão ruim (“Girls”, “Love”, “Flaked”…), “Broad City” está bem no meio. E, mais importante: ao mesmo tempo em que é original, jamais deixa de ser engraçada, vendo sempre a bizarrice nas situações mais corriqueiras. Demorou, mas chegou no Brasil.

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Televisão

‘Superstore’ vê EUA pelos olhos da classe trabalhadora

Sem um grande papel na televisão desde o fim de “Ugly Betty”, em 2010, America Ferrera resolveu voltar às séries por um motivo que parece um pouco esquisito. O papel que lhe ofereceram era de uma pessoa normal, que vivia no mundo real (não seriam quase todos?). Explica-se: numa época em que a oferta de televisão está maior do que nunca — mais de 400 seriados foram exibidos no ano passado –, não há tantas opções que retratem pessoas comuns, com trabalhos e vidas comuns. E é bem isso que é Amy, sua personagem em “Superstore”, que estreia na segunda (6) na Warner.

A premissa da série é tão simples que, falando assim, não parece que seja lá grandes coisas. Todos os episódios se passam na megaloja Cloud 9, uma espécie de Wal-Mart, com todos os tipos de produtos e funcionários vestindo coletes azuis com seus nomes nos crachás circulando pelos corredores. Não há propriamente uma trama, cada episódio conta uma história fechada em si, mostrando algumas horas na vida dos empregados, que interagem com os vários tipos de visitantes que passam por lá diariamente. Foi essa “ideia de ver o clima social e político e o que significa ser americano hoje, pelos olhos da classe trabalhadora” que inspirou America, vencedora de um Globo de Ouro, a voltar à televisão em um papel fixo. “Cresci com séries como ‘Cheers’, ‘Roseanne’ e ‘All in the Family’. Ver pessoas comuns era muito normal na televisão e era algo com que eu me identificava muito.” Panorama diferente do de hoje, com tantas séries cheias de glamour e efeitos especiais e menos espaço para comédias mais modestas. “Achei que era uma visão muito excitante.”

Amy é a protagonista da história, ao lado de Jonah (Ben Feldman, de “Mad Men” — descrito com precisão na série como uma mistura de urso panda com princesa da Disney). Ela é a gerente que trabalha há dez anos no mesmo lugar, insatisfeita com a vida que leva, e ele é o funcionário novo e de uma família com mais dinheiro, que faz questão de ressaltar no primeiro dia que não é do tipo de pessoa que costuma trabalhar em uma loja daquelas. “Amy não tem a ingenuidade e o idealismo do Jonah. Ela está meio que se virando, sobrevivendo. Vi muito valor nessa perspectiva. É a forma como a maior parte das pessoas, não só nos Estados Unidos, mas no mundo, vive. Não trabalham por paixão e realização, mas para sobreviver. Mas pode haver inteligência e humor na vida dessas pessoas.”

“Vai ser divertido ver o show progredindo e ver o relacionamento de Amy e Jonah, pessoas que vêm de perspectivas de vida tão diferentes. Não vai demorar muito pra eles começarem a impactar na vida um do outro. Eles não têm como evitar de se sentirem desafiados pelas crenças do outro, o que influencia no seu modo de ver o mundo”, diz ela, por telefone a um grupo de jornalistas da América Latina. America nem precisava dar essa dica. Conhecendo os mecanismos de séries de comédia, fica claro pelas personalidades contrastantes que em algum momento os dois vão se apaixonar (será que eles vão ficar juntos? Será que não? Aquela coisa de sempre). Mas, pelo menos no início, o romance tem um papel menor.

[citacao credito=”” ]Na minha experiência, quando um personagem não é definido, ele é branco. É o padrão[/citacao]

“Superstore” é uma série mais política do que parece pela sinopse. A começar pelo elenco, com latinos, negros, asiáticos, mulheres, personagens deficientes. “Fiquei muito impressionada com a forma como os produtores e criadores escolheram o elenco. Quando chegaram a mim já tinham escolhido vários atores, e quando li o roteiro fiquei surpresa por que nenhum personagem foi escrito com uma etnia em mente. Eram só pessoas na página. E mesmo assim eles estavam contratando pessoas que pareciam com todos os tipos de pessoas”, conta a atriz. “Vieram atrás de mim, uma latina, para fazer a protagonista, que não foi escrita como latina. Foi muito interessante. Na minha experiência, quando um personagem não é definido, ele é branco. É o padrão.”

Com esse elenco, a série pôde abordar questões pertinentes como assédio sexual e racismo — tema do terceiro episódio. Nele, o chefe pede às funcionárias latinas que usem sombrero e carreguem no sotaque mexicano para vender salsa, mas Amy recusa. Quando um colega asiático topa fazer o papel, ela aponta o racismo de sua caracterização e faz uma imitação estereotipada de um asiático para provar sua afirmação, o que ele considera racista. É uma discussão bem feita, com graça e sem grosseria. Algo como faz “Black-ish”, outra série que gira em torno de uma família padrão — negra, não branca –, e uma das boas novidades dos últimos anos.

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America Ferrera e Ben Feldman em 'Superstore'. Crédito: Trae Patton/NBC
America Ferrera e Ben Feldman em ‘Superstore’. Crédito: Trae Patton/NBC

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“Fiquei positivamente surpresa porque a escolha do elenco não foi pra preencher caixinhas num formulário ou ter uma diversidade simbólica. Foi genuinamente uma escolha baseada em quem eram essas pessoas e quem era certo para o papel. Como fazer esse elenco parecer real no mundo em que vivemos?”, diz America. “É uma abordagem nova à diversidade, que não é criada por motivos políticos. É para entender que diversidade é autenticidade, porque nosso mundo é diverso. No nosso caso, é uma oportunidade de contar histórias melhores. Podemos ser mais engraçados, abordar questões mais ousadas, falar de raça, gênero, preconceito, por que vem da nossa experiência.”

America é bastante vocal a respeito da necessidade de mais diversidade, em todos os pontos da indústria do entretenimento. “O problema não está em uma parte de indústria. Está em todos os lugares. Na frente das câmeras, atrás, no financiamento, na promoção, nas premiações. Em todos os pontos da linha de produção falta diversidade de experiências, gênero e etnias. É uma conversa que precisamos ter em voz bem alta”, opina. Para isso, diz que todas as minorias devem se unir — atores asiáticos, por exemplo, se manifestaram depois de terem sido motivo de piada justamente no Oscar que os negros criticavam por ser branco demais.

“Quando vamos estar dispostos, como indústria e cultura, a encarar a realidade de que o que vemos na tela não representa o público, o mundo? Como alguém que cresceu vendo TV e filmes, posso dizer que há muito impacto em crescer numa cultura em que você não se sente visto e refletido”, continua. “Televisão é cultura. É o que dizemos que somos, é o que somos. Fico feliz por estarmos falando disso. Talvez estejamos chegando num ponto em que a conversa não será superficial e que ações de verdade sejam tomadas. Que levemos a indústria para o mundo real, para o século 21.”

[citacao credito=”” ]Quando vamos estar dispostos, como indústria e cultura, a encarar a realidade de que o que vemos na tela não representa o público, o mundo? Como alguém que cresceu vendo TV e filmes, posso dizer que há muito impacto em crescer numa cultura em que você não se sente visto e refletido[/citacao]

A atriz está diz estar contente com o projeto e não se preocupar com audiência nem com repetir o sucesso de “Ugly Betty”, já que isso está fora do seu alcance. “Se eu desvendasse essa equação eu seria muito bem-sucedida”, ri. “Tento não me preocupar com o que não posso controlar. Se eu quero que encontremos um público? Sim. Mas não tenho ideia. ‘Superstore’ já está achando um público e é muito legal ver as pessoas encontrarem alegria e significado nisso. Vai ser um público diferente de ‘Ugly Betty’. É um território novo, não dá pra comparar.”

Por enquanto, America tem razões para ser otimista. A série foi a estreia com maior audiência no canal NBC nos últimos anos e vai particularmente bem entre o público preferido dos anunciantes: pessoas com idade entre 18 e 49 anos em lares com renda superior a 100 mil dólares anuais. Tanto que, em fevereiro, a produção criada por Justin Spitzer, de “The Office”, foi renovada para uma segunda temporada. “Estou vivendo um período incrível. Rimos o dia todo. Trabalhar com esses roteiristas e atores me faz sentir que estou aprendendo. Me sinto muito apoiada nesse desafio.”

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Literatura

‘Missoula’: questões essenciais sobre o estupro

Mesmo depois da circulação de um vídeo em que uma adolescente de 16 anos está nua e desacordada enquanto um grupo de homens no Rio de Janeiro diz que ela foi estuprada por mais de 30, o delegado que comandava as investigações afirmou que a polícia não podia “ser leviana de comprar a ideia de estupro coletivo” quando, na verdade, não se sabia realmente o que tinha acontecido. O caso é ilustrativo de como é difícil acusar alguém de estupro — nem um vídeo é suficiente para que a vítima convença o mundo de que está falando a verdade. O caso é da semana passada, no Brasil, mas encontra paralelo nas várias histórias contadas por Jon Krakauer, autor de “Na Natureza Selvagem”, em “Missoula”, livro americano do ano passado lançado há um mês aqui. O tempo passa, o cenário muda, mas as histórias contadas por Krakauer poderiam muito bem estar acontecendo aqui e agora.

Segundo o autor, o livro nasceu de seu choque com a descoberta de que uma amiga sua havia sido estuprada duas vezes durante a adolescência — uma delas por um amigo da família. Envergonhado por saber tão pouco sobre o trauma provocado por esse tipo de violência, começou a pesquisar. Deparou-se, então, com o caso de Allison Huguet, estuprada pelo amigo de infância Beau Donaldson na cidade americana Missoula, no Estado de Montana. Como no caso de sua amiga, Allison não havia sido atacada por um psicopata escondido nos arbustos numa rua deserta: quem a violentou foi alguém próximo, que ela considerava como da família. As duas não são exceção. Pelo contrário: segundo dados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a cada cinco estupros, quatro são cometidos por conhecidos da vítima.

Krakauer comprovou isso empiricamente. Só em Missoula, sede da Universidade de Montana, encontrou vários outros casos de estudantes universitárias estupradas por colegas, amigos próximos ou aqueles caras que você conhece numa festa e que parecem super legais e esclarecidos até não serem mais. Ainda sem saber que aquilo seria um livro, o escritor foi até a cidade acompanhar o julgamento de Beau. “O que foi interessante a respeito de Allison foi que era um caso que era uma barbada e ela teve que lutar tanto. Foi tão traumatizante para ela fazer com que os promotores levassem o caso a sério e não dessem apenas uma palmadinha no cara”, disse ele em uma conversa com blogueiras feministas em Nova York. “Pensei que era uma das partes mais interessantes do livro, ver como era difícil até em um caso desses conseguir prestação de contas, justiça, retribuição, como você quiser chamar. Pareceu óbvio, então, que uma vez que eu fiquei sabendo de Allison eu deveria escrever sobre essa série de ataques.”

missoula capa

Com base em entrevistas com os envolvidos, documentos judiciais e gerados por processos disciplinares universitários, e-mails, boletins de ocorrência e transcrições de audiências, Krakauer faz um retrato bastante representativo das dificuldades enfrentadas por quem denuncia um estupro. A história começa e termina com Allison, que foi a uma festa na casa de um amigo, bebeu e caiu no sono no sofá da sala, pensando estar segura. Acordou com Beau, seu melhor amigo, penetrando sua vagina por trás com o pênis. Com medo de ser mais machucada caso se debatesse — jogador de futebol americano, Beau pesava mais de cem quilos ante os menos de 60 de Allison –, fingiu continuar dormindo. Quando o ataque terminou, ela fugiu correndo, descalça e com a calça aberta (ele havia arrancado o botão e destruído o zíper). A mãe a resgatou e a levou a um hospital coletar um kit de estupro — quando foi “praticamente estuprada de novo”, com todas as áreas íntimas vasculhadas por estranhos durante horas.

As consequências daquela noite foram sentidas por muito tempo. Allison ouviu boatos maldosos a seu respeito, teve dificuldades em retomar os estudos e foi hostilizada pela cidade, que idolatrava o time de futebol, quando decidiu denunciá-lo para a polícia, mais de um ano depois. Até seus amigos a chamaram de puta mentirosa e disseram que ela só queria chamar a atenção, como se ganhar a fama de mulher estuprada fosse algo a ser almejado.

Com a ajuda de um detetive, ela conseguiu gravar uma confissão de Beau, mas mesmo assim o promotor encarregado do caso disse que iria brigar por uma pena branda, que poderia nem ter tempo de prisão. O fato de que ele não tinha antecedentes criminais e de que tinha um futuro promissor pela frente, por exemplo, contariam a favor de Beau — afinal, ele era estuprador arrependido da casa ao lado, não o psicopata com uma faca. O melhor a fazer, segundo o promotor, era não brigar muito e se contentar com a pena que o réu estivesse disposto a aceitar.

Allison representa boa parte das dificuldades encontradas por quem é vítima de estupro: a dificuldade que é passar pela coleta do kit de estupro e fazer a denúncia, as consequências psicológicas não superadas (“a sentença dele é de anos, a minha é para a vida inteira”, diz ela em um ponto do julgamento), a desconfiança de todos — da polícia aos amigos –, a culpabilização pela violência que sofreu, os xingamentos recebidos. É particularmente triste que o seu seja o caso “feliz” do livro: Beau foi preso, mas quase escapou, mesmo que tenha confessado o crime. Outros ataques narrados no livro saíram impunes, em relatos tão pesados quanto importantes.

O autor Jon Krakauer. Crédito: Linda Moore/Divulgação
O autor Jon Krakauer em foto de divulgação de 2003. Crédito: Linda Moore

Outra estudante, por exemplo, foi estuprada por cinco jogadores de futebol americano da universidade depois de beber numa festa, perdendo e recobrando a consciência repetidas vezes enquanto eles se revezavam para fazer sexo com ela durante duas horas. Assim como Allison, ela realizou exames que atestaram seus machucados e fez a denúncia à polícia. Os detetives, porém, duvidaram de seu relato com os motivos clássicos para questionar a vítima. Ela não teria traído o namorado e inventado que tinha sido estuprada por ter se arrependido depois? Será que os homens não tinham achado, por algum motivo, que aquilo era consensual? Será que ela não se enganou sobre o que aconteceu? No fim das contas, o detetive responsável concluiu que não havia “causa provável para oferecer denúncia contra nenhum dos envolvidos no incidente”. Afinal, era a palavra dela contra a de cinco.

Qualquer semelhança com o caso da adolescente estuprada por 30 homens no Rio não é mera coincidência. Segundo “Missoula”, pelo menos 80% dos estupros não são denunciados e uma pequena parcela dessas denúncias resulta em condenação. “Há uma mitologia de que mulheres mentem sobre terem sido estupradas. Algumas mulheres mentem — entre dois e 10% segundo pesquisas. Muitos estudos dizem isso. É um número pequeno, não muito diferente dos outros crimes”, disse Krakauer em entrevista à NPR. “A diferença é que nos outros crimes não se assume que a vítima está mentindo. Você acredita na palavra da vítima. As vítimas de estupro são tratadas de um jeito diferente do que as de outros crimes. O livro é um olhar de perto sobre o que é ser vítima de estupro: a dor e os obstáculos pelos quais você passa para conseguir qualquer tipo de justiça.”

“Missoula” tem o nome de uma pequena cidade americana, mas é sobre muito mais do que ela. Vem à memória, por exemplo, a denúncia de alunas da USP de estupros em festas promovidas na faculdade de medicina e a existência de uma cultura machista nos trotes universitários. Segundo elas, não só as denúncias não eram investigadas pela faculdade como elas ainda eram perseguidas pelos colegas, que as chamavam de mentirosas — como várias personagens do livro.

“É sistêmico pra caramba. Missoula é, infelizmente, um caso típico. Tem bons policiais e promotores, mas até mulheres detetives têm essa sensação de resignação, tipo… Você sabe que os promotores não vão atrás desse cara, por que vamos gastar nosso tempo? Literalmente, se eles não têm uma confissão nem levam à justiça. Temos um longo, longo caminho pela frente”, disse Krakauer no ano passado.

Meticuloso, “Missoula” é uma leitura importante, não só nesta semana, em que houve grande repercussão de um caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro. É importante porque acontece sempre, uma vez a cada 11 minutos no Brasil — como a maioria dos casos não é registrado, o número deve ser ainda maior. Enquanto 30 homens violentarem uma mulher sem que um só se manifeste, enquanto as pessoas duvidarem das vítimas, enquanto disserem “ninguém merece ser estuprado, mas…”, precisaremos discutir o estupro. Precisamos discutir o estupro. E as questões que “Missoula” levanta são fundamentais.

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Cinema Entrevista

Fitas de alta periculosidade

Enquanto Chuck Norris soltava o braço nos vietcongues em “Braddock: O Super Comando” pouco mais de 30 anos atrás, a Romênia era um dos lugares mais fechados dentro da Cortina de Ferro, o grupo de países do Leste Europeu sob influência da União Soviética. Seus cidadãos viviam enclausurados dentro de um sistema totalitário em que qualquer referência ao Ocidente era proibida e delações de “traição” mesmo entre familiares eram estimuladas. A programação de TV se resumia a duas horas de transmissão de reuniões do Partido Comunista capitaneadas pelo ditador comunista Nicolae Ceausescu e muita propaganda patriótica. O único culto permitido era o da personalidade do ditador. Mas um outro mundo era possível em meados da década de 1980, no período mais sombrio do país. E esse mundo chegava aos lares romenos por meio de milhares de fitas VHS pirateadas, cheias de som e fúria de filmes como “Rambo”, “Rocky” e “Top Gun”.

Dentro dos conjuntos habitacionais em tons de cinza, a tela da televisão iluminava pequenos grupos que se reuniam para assistir a filmes americanos. “Flashdance”, “Uma Linda Mulher”, “9 ½ Semanas de Amor”, “Era Uma Vez na América”; todos eles dublados em “voice over” por uma mesma voz feminina muito aguda e levemente rouca. “Era a voz mais conhecida da Romênia depois da de Ceausescu”, lembra um dos personagens do documentário “Chuck Norris vs Communism”, filme que, em linhas gerais, conta a história de como as fitas de vídeo ajudaram a forjar o ambiente para a derrubada do ditador – e de como aquela voz misteriosa, de uma mulher chamada Irina Nistor, se tornou o símbolo da liberdade, do cinema e do Ocidente para toda uma geração de romenos. Dirigido por Ilinca Calugareanu, romena de 34 anos radicada na Inglaterra há dez, o filme foi exibido no Festival de Sundance em 2015 e está disponível no Netflix Brasil.

É um filme muito pessoal sobre o poder do cinema e da memória. As primeiras experiências de Ilinca em relação ao cinema são semelhantes às das crianças retratadas no filme. “Eu vi meus primeiros filmes através da voz de Irina Nistor, então algumas memórias minhas de fato inspiraram algumas das dramatizações que fizemos, particularmente as do menino indo para a sua primeira exibição e as das crianças brincando de luta”, conta a diretora em conversa por e-mail.

Na década de 1980, a jovem Irina trabalhava como tradutora em um birô de censura do governo romeno. Cabia a ela traduzir os diálogos dos filmes enquanto um comitê avaliava as cenas que deveriam ser extirpadas da versão final: de imagens de mesas fartas e lojas com prateleiras cheias de doces a detalhes cada vez mais ridículos, como balões coloridos que por acaso poderiam lembrar a bandeira da Romênia em um desenho animado russo. Foi nessa época que ela recebeu um convite extraoficial para dublar filmes estrangeiros em VHS. O trabalho seria feito na residência de um certo senhor Zamfir, homem de relações que trazia os filmes da Hungria. Até 1989, ela calcula ter dublado mais de 3 mil filmes, às vezes três ou quatro por dia. “As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”, diz Irina no filme. Atualmente, ela continua muito conhecida no país, onde trabalha como crítica de cinema e eventualmente participa de programas de rádio e TV.

[olho]“As pessoas associavam liberdade e esperança com a minha voz”[/olho]

De acordo com Ilinca Calugareanu, nascida em Cluj-Napoca, a segunda maior cidade da Romênia, a ideia de contar a história de Irina Nistor e dos filmes VHS surgiu por acaso. “Eu estava em um festival de cinema em Londres, sentada na plateia durante uma sessão de perguntas e respostas e eu ouvi a voz de Irina Nistor fazendo uma pergunta. Eu a reconheci imediatamente e fiquei paralisada como uma fã. Eu tentei explicar aos meus amigos quem ela era e as coisas fantásticas que ela conseguiu fazer durante o comunismo na Romênia. Foi naquele momento que eu percebi que eu deveria fazer um filme sobre ela e sobre as fitas de VHS”, conta.

No filme, Irina Nistor só surge “em pessoa” na tela no terço final da história. Antes disso, ela é interpretada pela atriz Ana Maria Moldovan, do mesmo modo que outros personagens são vividos por atores. O que há de material “real” no documentário são os trechos de diversos filmes americanos e algum pouco material da TV oficial romena, além das entrevistas com pessoas daquela geração e uma breve cena do início da Revolução Romena de 1989, que pôs fim ao comunismo. A dramatização da história, em chave realista, procura recriar o ambiente frio dos espaços públicos da Romênia em contraposição ao calor e à tensão das reuniões secretas de cinema.

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Ana Maria Moldovan interpretando Irina Nistor. Crédito: Divulgação
Ana Maria Moldovan interpretando Irina Nistor. Crédito: Divulgação

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Isso abre caminho, no filme, para duas instâncias que se entrelaçam nos relatos pessoais: a memória (romena) e a imagem (ocidental). Duas passagens são ilustrativas, como a do jovem adulto que se recorda de, na infância, colocar o relógio para despertar às 5h para correr pelas ruas como Rocky Balboa e a mulher de meia-idade que conta sobre o primeiro filme a que assistiu naquelas sessões secretas, “O Último Tango em Paris”. “Não imaginava que um filme daquele pudesse existir. Foi como um raio”, ela se recorda. Os depoimentos são entremeados com cenas dos filmes – e é curioso perceber que Sylvester Stallone e Maria Schneider falavam em romeno com a mesma voz.

Em um de seus trabalhos mais conhecidos, “Introdução ao Documentário”, o crítico e teórico de cinema americano Bill Nichols escreve sobre a tendência dos filmes de não-ficção, a partir da década de 1970, de mudarem o foco de sua estratégia retórica, que “passam do apoio a representações do mundo histórico, feitas por especialistas e autoridades, para o apoio a representações que transmitam perspectivas mais pessoais, mais individuais”. Para ele, as melhores obras são aquelas que conseguem “unir relatos pessoais com ramificações sociais e históricas”. O relato pessoal proporciona ao documentário uma credibilidade que, de algum modo, se estende aos temas abordados. Nas palavras dele, é a “aceitação sincera de uma visão parcial; situada, mas apaixonada”.

A capacidade que “Chuck Norris vs Communism” tem de unir relatos pessoais a essas ramificações sociais e históricas se deve, em muito, à solução encontrada de encenar com atores as memórias e situações daquele período. Ilinca conta que, nos dois primeiros anos do projeto, a equipe se concentrou em filmar as entrevistas. “Eu queria encontrar a história. Meu empenho na época era encontrar o melhor jeito de contá-la, trazer aquela década de volta à vida e levar a audiência por uma jornada emocional. No início eu pensei em fazer uma animação, mas ‘Chuck Norris vs Communism’ é um filme sobre filmes e o poder que eles têm de nos comover e mesmo nos transformar, então qual jeito melhor de contar essa história do que por cenas ficcionais? Ficou bastante claro para mim que dramatizações com atores eram a melhor escolha, e foi muito emocionante para toda a equipe de criação trabalhar com esse conceito e com as referências aos filmes em VHS que a gente assistia nos anos 1980”, lembra.

Menciono a ela que, nessa mesma época, quando chegaram os primeiros videocassetes ao Brasil, até o início dos anos 1990, a maioria dos filmes VHS que circulavam por aqui também eram piratas. E os títulos que faziam sucesso eram exatamente os mesmos que na Romênia. A diferença, claro, é que o Brasil passava por um momento de abertura, enquanto a Romênia se fechava cada dia mais. “Acho que nós estávamos esperando que o documentário fosse encontrar esse tipo de universalidade e falar com todas as pessoas que amam cinema”, diz a diretora. “É fantástico que nós estivéssemos vendo os mesmos filmes nos anos 1980, mas em contextos tão diferentes e extraindo tantas coisas diferentes deles. Quer a gente os tenha visto como uma janela para o Ocidente, como exemplos de democracia, como escape para um mundo colorido e cheio de ação ou como puro entretenimento, esses filmes nos deixaram uma marca, e agora eles conseguem nos unir em um diálogo como esse, por exemplo”.

Em um dos depoimentos do filme, um personagem diz, sobre o regime de Ceausescu, que aquele era um país mantido na ignorância. Mais do que as “histórias” daqueles filmes em VHS, o impacto, para essas pessoas, era ver um DeLorean na tela da TV ou descobrir como vida se desenrolava nas ruas americanas. Era um evidente contraponto às filas pela comida, à falta de energia elétrica e ao estado de constante vigilância do regime comunista.

É curioso que, nos dias que antecederam a Revolução Romena, no final de 1989, Ceausescu tenha perdido também a força de sua imagem. No YouTube é possível encontrar as cenas do último discurso público do ditador, em 21 de dezembro: diante de uma multidão que, num crescendo, começa a vaiá-lo, seu rosto muda de expressão. Aparvalhado, estende a mão e pede calma. A câmera da TV oficial – que transmitia ao vivo para milhões de pessoas naquele momento – desvia do palanque e sobe para mostrar o céu. Embaixo, grupos avançam em direção ao prédio do Comitê Central. Aquela foi a senha para o fim do regime. No dia de Natal, Ceausescu e sua mulher, Elena, seriam fuzilados sob acusação de genocídio e abuso de poder. As imagens da sentença e da execução foram largamente divulgadas pelo mundo na ocasião e continuam disponíveis na internet.

Pergunto a Ilinca se há alguma intenção política no filme, principalmente ao mostrar o quanto o regime havia se tornado ridículo em alguns momentos. “Eu não acho que o filme tenha uma agenda. Acima de tudo, é um filme sobre o poder e a magia do cinema. Mas, claro, ele se passa na Romênia comunista, em uma das décadas mais ásperas do regime e ilustra como o sistema funcionava – ou, melhor dizendo, como não funcionava, como a polícia secreta estava tecendo uma teia de medo e paranoia e como a censura estava se tornando totalmente absurda, e em geral como o regime estava se despedaçando e sendo devorado por dentro” diz a diretora. “Não era nossa intenção fazer um documentário histórico, mas queríamos dar vida a um contexto à história de Irina e das fitas de VHS e esperamos deixar a audiência com algumas questões interessantes no final”, conclui.