Desde que o último livro da série “Harry Potter” foi dividido em dois no cinema, em 2010, outras sagas best-seller para “jovens adultos” — “Crepúsculo”, “Divergente” e “Jogos Vorazes” — seguiram o mesmo caminho. Faz sentido para os estúdios, que aproveitam mais um ano de grandes bilheterias, mas não muito para os espectadores. O primeiro filme geralmente sai prejudicado: é devagar, anticlimático, cheio de cenas que poderiam muito bem ter caído na sala de edição. É o caso de “Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1”, do ano passado, o mais fraco da série.
Aviso: este texto contém spoilers do filme.
Felizmente, “Jogos Vorazes: A Esperança – O Final” é bem melhor. Talvez seja, inclusive, o melhor da franquia. O longa começa praticamente do ponto onde parou a primeira parte, como se fosse um filme só e o espectador tivesse feito uma pausa para ir ao banheiro e beber uma água que se estendeu por um ano. Não há uma cena de contexto ou nada que ajude a lembrar o que aconteceu no filme anterior. O bonde já está andando, e rápido — o que pode ser um choque (a pergunta “quem é esse cara mesmo?” pode passar algumas vezes na cabeça de alguém menos apaixonado pela franquia).
Em pouco tempo, porém, o estranhamento passa. O ritmo continua rápido no resto do filme, mas isso é uma qualidade. “O Final” mistura bem os pontos fortes de seus antecessores: a ação e a tensão dos jogos vorazes dos primeiros filmes com a trama política do terceiro. Um breve resumo para quem precisa: depois de ser resgatada da arena da 75ª edição dos jogos — em que os participantes devem se matar até que só sobre um vencedor –, Katniss (Jennifer Lawrence) vira um símbolo da rebelião contra a capital de Panem e seu presidente, Snow (Donald Sutherland).
Após passar “A Esperança” escondida, gravando propagandas para estimular a revolução e esperando o resgate de Peeta (Josh Hutcherson), sequestrado pela capital no fim dos jogos, Katniss finalmente parte para a ação. Com outros rebeldes ilustres, como Gale (Liam Hemsworth), Finnick (Sam Claflin) e o próprio Peeta, Katniss parte para a capital com uma equipe de vídeo encarregada de filmá-los em ação a tiracolo. Como sempre, porém, ela desobedece as ordens que tem e resolve ir atrás de Snow para matá-lo por conta própria.
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Nesse trajeto, “Jogos Vorazes” mostra que é um bom filme de ação, capaz de agradar a todos os públicos, inclusive quem torce o nariz para a literatura de “jovens adultos” e suas franquias distópicas. Enquanto tenta chegar até Snow, o grupo se depara com armadilhas dignas das arenas de jogos vorazes: bombas, pisos que desabam com o toque, armas que disparam ao sentir a presença de alguém, avalanches de lama, muros que sobem do nada e fecham passagens, bestantes (animais geneticamente modificados pela capital) furiosos.
O perigo está sempre ali do lado — literalmente, já que Peeta sofreu um tipo de lavagem cerebral durante o sequestro e tenta matar Katniss sempre que pode. Depois de um filme menos movimentado, a ação é bem-vinda. Até porque é bem executada (pense na batalha final de “Harry Potter”. É o oposto).
ZONAS CINZENTAS
Mas “A Esperança” é mais que um filme de ação: é um filme político. “Star Wars” ou “Harry Potter” também falam da luta de rebeldes contra vilões em prol da democracia e da igualdade, por exemplo, mas “Jogos Vorazes” mostra também os efeitos dessa guerra nas pessoas e as zonas cinzentas que há nessa batalha. É uma trama mais próxima da realidade. Katniss não é, como Harry ou Luke Skywalker, “a escolhida” ou predestinada a nada. É uma garota razoavelmente comum, que, por circunstâncias além do seu controle, se torna líder de uma revolução. Como uma pessoa normal numa situação dessas, às vezes ela surta, chora, diz que não consegue ser o modelo que todos esperam, trava.
Não é o ideal de herói, mas é alguém com quem o público consegue se identificar. Katniss tem várias camadas, que Jennifer Lawrence leva bem para a tela — não dá pra dizer o mesmo das outras pontas do triângulo amoroso que ela forma com Peeta e Gale. Justiça seja feita, Hutcherson está bem melhor nesse filme que nos outros, retratando as consequências psicológicas de ter sido torturado pela capital.
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O filme também mostra como até pessoas que lutam do mesmo lado podem ter opiniões diferentes. Para Gale, por exemplo, todos que não se rebelaram estão automaticamente aliados à capital e merecem morrer — e para atingir esse fim todos os meios são válidos. Katniss, por outro lado, não acha que na guerra vale tudo e é contra matar civis. São dois “mocinhos” e duas posições opostas.
Por pensar assim, Katniss quase perde a vida. A cena é interessante: ao destruir o local onde um distrito pró-capital guardava suas armas, ela pede para que uma passagem seja aberta para que quem quiser se render possa sair de lá. Um desses homens, em quem ela não quer atirar, a coloca na mira de sua arma. Por que ele deveria poupar sua vida, ele pergunta. Não foram os rebeldes quem destruíram seu distrito e mataram seus companheiros? Katniss não tem explicação para lhe dar e responde: “Não sei”.
Aos poucos ela descobre também que os objetivos da líder dos rebeldes, Alma Coin (Julianne Moore), não são tão nobres assim. Entre essas sagas para jovens adultos, “Jogos Vorazes” é provavelmente a menos maniqueísta. Katniss e Peeta, por exemplo, matam quando precisam para sobreviver e (mais ela do que ele) não são imunes à vontade de se vingar, da forma que for.
É um filme sombrio, mas o que esperar de uma série que tem como premissa prender 24 crianças numa arena cheia de armas e armadilhas até que só uma delas sobreviva?
Chega mais. Hoje é um dia de festa pra gente, e queremos que seja para vocês também.
O Risca Faca é o novo site de cultura e comportamento da F451. A gente sabe que a internet é grande e já tem muita coisa rolando por aí, mas acreditamos que há espaço para certos conteúdos que sentimos falta em nosso cotidiano: jornalismo aprofundado, grandes histórias, personagens interessantes, análises incomuns. Sim, a internet é enorme, mas sempre há histórias incríveis que ainda não foram contadas.
Queremos fugir da cobertura que somente acompanha o ritmo das redes sociais. E queremos mostrar novas histórias, e novas formas de contá-las – pode ser em áudio, em quadrinhos, em vídeo. E ao mesmo tempo, como o nome sugere, não queremos ser sisudos nem cabeçudos – a gente curte um forró às 6h da manhã no Largo da Batata e isso também é uma forma de explicar o que queremos por aqui.
Para fazer isso, contamos com uma rede de colaboradores de várias partes do Brasil, de todos os tipos e estilos, que estão produzindo matérias e histórias que nos deixaram bastante orgulhosos. Leandro Demori, Peu Araújo, Taís Toti e Bolívar Torres são alguns dos jornalistas que você vai encontrar nos primeiros dias do Risca Faca. Assim como os fotógrafos Felipe Larozza e Lucas Lima, a artista Barbara Scarambone e o ilustrador Issao Nakabachi.
De cara, recomendo a leitura do nosso dossiê sobre a febre dos trenzinhos. O repórter Felipe Maia e o fotógrafo Felipe Larozza viajaram pelo interior de São Paulo para entender, e explicar, esse fenômeno que gera comoção entre as pessoas e, ao mesmo tempo, é pouco conhecido para muita gente. Na entrevista da Fernanda Reis, Lourenço Mutarelli conta como começou a acreditar em sereias. E também temos os conteúdos que já foram publicadas no Gizmodo Brasil, nosso site-irmão-mais-velho – recomendamos esta sobre nudez e o mergulho do repórter Marcelo Daniel pelo mundo de League of Legends.
Ficamos bem felizes também com o visual do site: imagens grandes, fonte boa para leitura e sem muita firula. Nessa seara, agradecemos bastante o trabalho da Datadot e da Haste, e também da Casa Rex, que assina nossa identidade visual – sem esquecer, claro, toda a equipe da F451.
Tem muita coisa boa na manga e esperamos que vocês aproveitem. O site ainda não tem comentários porque não encontramos a ferramenta ideal, e estamos esperando o surgimento de uma, tipo o Civil Comments. Enquanto isso, toda e qualquer sugestão, crítica, elogio, bate-papo, GIF animado, pode ser enviada pra mim: leo@riscafaca.com.br. Isso também se estende a ideias de pauta.
Sem mais blábláblá: seja bem-vindo! E não esqueça da canção popular: “foi no Risca Faca que eu te conheci”.
De bar em bar, De mesa em mesa Bebendo cachaça, Tomando cerveja.
Foi assim, que eu, Te conheci…
Olha que foi no Risca Faca, Que eu te conheci Dançando, enchendo a cara, Fazendo farra, Tô nem aí
Foi no risca faca, Que eu te conheci Dançando, enchendo a cara, Fazendo farra, tô nem aí…
São 15h10 de uma terça-feira e cerca de 200 pessoas estão acomodadas num auditório da Fábrica de Cultura da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, enquanto o rapper Thaíde se apresenta. O show vai bem, o cantor caminha pela plateia, há um clima meio família no ar. Mas a coisa esquenta mesmo quando Thaíde diz, depois de três músicas, que tem uma convidada. “Quem vem aí?”, pergunta ele. E o público urra em coro: “Soffia!”.
Em meio a palmas e gritinhos, Thaíde fala: “É uma honra apresentar… Apresentar não, porque ela já é conhecida. Mas é uma honra ter aqui a MC Soffia!”. Parte do público — maioria de crianças e pré-adolescentes — fica de pé para receber Soffia, menina de 11 anos que entra no palco como se o fizesse há anos. Com um laço azul no cabelo black power, MC Soffia chega comandando a massa: “Todo o mundo de pé, família!”. Seu pedido é prontamente atendido.
MC Soffia é diferente dos também jovens MCs Pedrinho, Brinquedo, Pikachu e Melody, que cantam um funk mais pesadão, com citação a uma penca de drogas e muita putaria. O negócio de Soffia é hip hop, com rimas feministas que exaltam a cultura negra. Antes de chamar Soffia ao palco, Thaíde diz que cantar é divertido, mas que é um trabalho “responsa”. A música tem que ter algo positivo, algo a dizer que as pessoas precisem ouvir. Soffia tem a mesma filosofia.
Seus primeiros versos são “joga a mão pra cima pra entrar no clima” e depois vêm “na escola eu apavoro e só tiro dez”, “represento as crianças e o público feminino”, “África, onde tudo começou, África, onde está meu coração”, “eu sou negra e tenho orgulho da minha cor”. As crianças na plateia respondem dançando, cantando junto e tirando fotos enquanto Thaíde e os MCs que o acompanham ficam ao fundo do palco, fazendo backing vocal, claramente se divertindo enquanto Soffia manda suas rimas. “Eu me encho de alegria ao ver uma menina dessa idade falando da sua negritude”, diz ele.
Aí vem o hit de Soffia, “Menina Pretinha”, cujo refrão resume sua mensagem: “Menina pretinha, você não é bonitinha. Você é uma rainha”. Nessa hora, a cantora chama “quem tiver coragem” para subir no palco e dançar com ela. Entre os voluntários há meninos e meninas, que acompanham a rapper até o fim da canção. Thaíde toma de novo a frente e diz que o que falta no mundo hoje é respeito e o reconhecimento de que todos somos iguais. O show continua, mas Soffia sai do palco e o assédio do público começa.
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No caminho para o camarim, algumas crianças pedem para tirar selfies com ela. Sorridente, atende todos. Chega então uma mulher, que diz que só tirou na vida fotos com dois cantores antes dela: Chico César e Luiz Melodia. Ela fala para Soffia que só quer registro de artistas que admira. Diz ainda que tem um projeto educacional e adoraria que a cantora falasse com seus alunos, já que ela tem tanto a dizer.
Na fila para falar com ela tem também um fotógrafo, que pede para fazer só quatro fotos, prometendo que é rápido. O tempo é curto, ela tem mais gente para atender (entrevistas, fãs, outros fotógrafos), mas ela topa, desde que seja ali mesmo no camarim. Sorri e faz pose de modelo — apoia o pé na parede e coloca as mãos na cintura. “Ergue o queixo”, pede o fotógrafo. Ela ajusta a pose rapidamente e se senta para conversar.
Começa a responder a primeira pergunta quando abrem a porta do camarim: “Soffia, o Thaíde está te chamando pra voltar pro palco. Desce lá um minutinho?”. Ela pede licença e continua a jornada de trabalho. E era só o começo da semana: ela ainda se apresentaria com Thaíde até a outra segunda, com folga apenas no sábado, em outras Fábricas de Cultura — Capão Redondo, Brasilândia, Jardim São Luís e Jaçanã — e em Araras, no interior de São Paulo.
CRIANÇAS DO HIP HOP
De volta ao camarim Soffia conta que sempre gostou de música. “Meu biso tocava vários instrumentos de corda, e eu comecei a cantar quando tinha seis anos”, diz. Como ídolos musicais, cita várias mulheres negras: Beyoncé, Nicki Minaj, Rihanna, Jennifer Lopez, Karol Conká, Flora Matos, Divas do Hip Hop. “Gosto de todas as mulheres que cantam”, resume, depois de pensar um pouco. Entre homens cita Dexter, Racionais, Jay Z.
Sua mãe, Camila Pimentel, foi quem a apresentou ao hip hop. “Eu frequentava os eventos. Trabalhava na Coordenadoria dos Assuntos da População Negra [da Prefeitura de São Paulo] e procurava levar a Soffia. Sempre levei em shows, eventos culturais de hip hop”, conta.
Soffia sempre gostou de cantar. “Mas não assim, em lugares. Cantava em casa.” Foi quando fez uma oficina do projeto Futuro do Hip Hop — que dá aulas de MC, DJ, dança break — que começou a fazer isso em público. Viu seu amigo Tum Tum, outro MC mirim, cantando e quis fazer o mesmo. Aos sete anos, tomou gosto pela coisa.
[citacao credito=”Mc Soffia” ]Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito[/citacao]
Depois, entrou para o coletivo Hip Hop Kidz — formado por sua mãe –, que desenvolve o intercâmbio cultural com crianças e jovens da periferia e que conta com seis rappers mirins. “Nas periferias tem muitas crianças sem perspectiva, que não têm oportunidades, referências ou acesso à cultura”, diz Camila. “Criei esse projeto com algumas crianças que eu já conhecia, trabalhando os quatro elementos do hip hop. Fui contemplada por um edital e fizemos um circuito pelas periferias de São Paulo. Mas não consegui mais incentivo e eu preciso disso pra transporte, alimentação, ajuda de custo.”
Na plateia dos shows, conta Camila, havia uma maioria de crianças, sempre interessadas. “Elas viam uma possibilidade de um futuro diferente, uma outra possibilidade de vida na periferia.” Às vezes o grupo ainda faz shows, mas não com tanta frequência. “Está meio parado, já mandei o projeto pra dois editais. Mas é acertar na loteria, não é garantido.”
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Com o Hip Hop Kidz, Soffia começou a fazer seus primeiros shows. Só recentemente passou a se apresentar sozinha. Foi se apresentando com o grupo, inclusive, que conheceu Thaíde. “Fiz um show na Praça das Artes e encontrei com ele. A gente começou a conversar. A mulher dele ligou depois pra minha mãe pra falar desse show. Vai ter a semana inteira”, diz, animada.
Antes de subir no palco sente “muito, muito medo”. Quando está lá, porém, o nervosismo passa. “No palco é normal”, afirma. Minutos antes havia mostrado que tem mesmo jeito pra coisa: pedia para a galera ficar de pé e bater palmas, apontava o microfone para a plateia na hora de seus refrões e puxava coros.
Está se acostumando à rotina cheia, às sessões de foto e às entrevistas. “Fui na Fátima agora”, conta, referindo-se ao programa “Encontro com Fátima Bernardes”, na Globo, para o qual foi chamada em setembro. Naquele mês, também foi a Brasília ao ser convidada pelo Ministério da Educação para abrir um seminário internacional de direitos humanos e desenvolvimento inclusivo.
DURO É SEU PRECONCEITO
No começo, as letras de Soffia eram escritas nas oficinas. Agora já começa a compor suas próprias rimas sozinha. “Estou fazendo uma que diz que não tem essa de brincadeira de menino e de menina”, conta. As letras exaltam o estudo, falam do empoderamento feminino e da cultura negra. Quando era mais nova, Soffia sofreu racismo na escola e disse para a mãe que queria ser branca. Camila conversou com ela e hoje Soffia exibe orgulhosa o cabelo black power. “Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito” é a resposta da menina para racistas.
O feminismo também tem o dedo da mãe. Elas estavam em Maceió quando se depararam com um livro sobre mulheres que fizeram história no Brasil, do qual ela não se lembra o nome. “Ela leu o livro e eu disse que ela poderia aproveitar e fazer uma pesquisa mais aprofundada sobre alguma dessas mulheres”, diz Camila. “Falei: ‘Você escolhe algumas delas pra citar na sua música’. Ela pesquisou algumas e agora está pesquisando sobre outras.”
Os estudos sempre foram estimulados em casa. “Crianças da periferia não costumam ter esse incentivo. Sempre incentivei ela a ler, a interpretar texto. Fiz isso dentro de casa até perceber que ela tinha criado o gosto. A professora dela diz que ela é uma das poucas alunas que faz as pesquisas e depois dá seu parecer”, conta a mãe. “Ainda hoje eu falo pra ela: vamos pegar um livro aí.”
A matéria favorita de Soffia na escola, não por acaso, é história, diz ela sem titubear. “Estudo bastante, gosto muito de pesquisar.” E só tira dez como diz na música? “Aham”, sorri. Ela confirma o depoimento da mãe e conta que gosta de pesquisar particularmente a história de mulheres negras. “Estudo Anastácia, Clementina de Jesus, Carolina de Jesus, Chica da Silva, Cleópatra. Já pesquisei sobre todas elas” — todas as mulheres são citadas em suas canções. Na escola, diz, é só Soffia e não MC Soffia. Todo o mundo sabe que ela canta e faz shows, mas lá é uma criança como as outras.
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Agora, Soffia faz uma campanha na internet para arrecadar fundos para seu primeiro disco, chamado “Menina Pretinha”. Entre seus planos para o futuro mais distante está continuar a cantar, mas também quer ser médica e trabalhar como modelo e atriz. “Agora eu falo tudo isso, mas vamos ver quando eu crescer”, ri. Por enquanto quer estudar medicina para poder ajudar as pessoas, e quer atender especialmente negros e índios. “Eu quero dar medicamentos, fazer hospitais melhores. Quero ser uma médica negra.”
A essa altura da conversa, Thaíde e o resto dos músicos já estão no camarim e Soffia tem muito o que fazer. Vai posar para fotos com os companheiros de palco e depois atender as crianças que fazem fila para dar um oi para ela. Antes de a porta se fechar, ainda dá tempo de ouvir Thaíde elogiar a garota. “Mandou ver, hein, Soffia!”
Lourenço Mutarelli é um homem de múltiplas identidades. Neste ano, foi homenageado no prêmio HQ Mix por seu trabalho como quadrinista, interpretou um artista plástico no filme “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, e lançou o romance “O Grifo de Abdera” — que gira justamente em torno da multiplicidade de identidades de Lourenço Mutarelli.
No livro, Mutarelli é pseudônimo (e anagrama) de Mauro Tule Cornelli, escritor que contrata Raimundo Maria Silva, presença habitual no boteco que frequenta, para ser o “rosto” de Mutarelli. Mauro escreve, Raimundo aparece em fotografias e dá entrevistas. Depois de ganhar em circunstâncias misteriosas uma moeda antiquíssima — conhecida como o Grifo de Abdera –, Mauro descobre que “é” também o professor e quadrinista Oliver Mulato. Uma conexão entre os dois permite que Mauro entre nos pensamentos de Oliver e observe sua vida à distância. No “Grifo”, o Mutarelli que conhecemos é composto por essas várias facetas. Publicado pela Companhia das Letras, o livro é, aliás, assinado por ele com Mauro, Raimundo e Oliver.
“O Grifo de Abdera” é pura autoficção. Há ali muita coisa que vem realmente da biografia de Mutarelli: os quadrinhos que desenhou, os romances que escreveu, viagens que fez, e até algumas de suas peculiaridades, como um gosto por pornografia dos anos 1970. A moeda grega com um grifo em uma das faces também é real e deu origem à história toda. “Eu a encontrei numa feira de antiguidades, sem saber o que era, pesquisei e achei interessante. Basicamente foi isso”, conta, sobre sua ideia inicial.
Outra grande parte é fantasia. Mutarelli é uma pessoa real, e o escritor não consegue entrar na mente de ninguém — pelo menos até que se prove o contrário. Para quem não o conhece bem, porém, reconhecer o que é o que é um desafio. O próprio Mutarelli confessa, rindo, ter dificuldades em precisar o quanto de si colocou nos personagens — Mauro, o escritor em crise existencial, Oliver, o acomodado numa vida miserável, Raimundo, o bêbado narcisista. “Vou descobrindo conforme escrevo. O Mauro Tule foi ganhando uma dimensão muito grande, muito interessante. Ele é muito diferente de mim em muitos aspectos. Mas a gente está muito misturado, ao mesmo tempo”, reflete. “Tem verdades no meio de tudo isso.”
Dividido em três partes, o livro contempla duas das facetas de Mutarelli: o quadrinista e o escritor. O terço do meio é preenchido por uma história em quadrinhos que, na ficção, é uma obra de Oliver. Personagem e autor compartilham inclusive o método de trabalho. Como Oliver, Mutarelli assistia a um filme, congelava uma cena, a esboçava muito rapidamente, ouvindo música (como faz sempre para desenhar), tentando escrever algo sem pensar muito.
“O quadrinho era uma experimentação que eu queria transformar em texto de alguma forma”, diz. Começou a fazê-lo antes mesmo de saber que escreveria um romance. Acabou gostando do resultado e resolveu publicá-la como quadrinho mesmo, como uma história dentro da história. O resto do volume é escrito como se fosse uma história de Mauro Tule, que desempenha o papel do romancista.
REALIDADE E PRAZER
Na ficção, nem o romancista nem o quadrinista são plenamente realizados. Já para Mutarelli, não há dúvidas: entre as duas atividades, a literatura é que lhe dá mais prazer. “O processo, a pesquisa, o pré-livro. Começar a pensar e esboçar isso. Gosto muito mais. Não tenho mais essa disposição de trabalhar tantas horas pra fazer quadrinhos. Faço alguns, como fiz esse [do livro], mas coisas muito experimentais, pra mim. Nem pretendo publicar a maioria.”
[olho]”Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido”[/olho]
Mutarelli conta que a vontade de escrever romances nasceu depois de ler “Capão Pecado”, de Ferréz. “Ele escrevia de uma maneira simples e tocante. Aquilo que eu estava lendo era o que mais se aproximava da realidade, pra mim. Mais até que o cinema. É a ilusão que a gente busca”, diz. “Me deu muita vontade de tentar evocar imagens através da palavra, construir essa atmosfera. Quando escrevo literatura vou muito mais fundo do que quando trabalho com quadrinhos.”
Em “O Grifo de Abdera”, Mauro impressiona Oliver dizendo ser impossível viver de livros no Brasil, já que escritores levam apenas 10% do preço de capa de cada volume vendido. É uma questão real que Mutarelli, que dá oficinas de quadrinhos, enfrenta. “Tenho vários amigos escritores. Tipo Paulo Lins, Marcelino [Freire], Marçal [Aquino], Ferréz. Nomes importantes. Não conheço nenhum que viva da literatura. Todos vivem de oficina, de escrever pra algum lugar, geralmente na Globo ou em algum canal, produzindo roteiros ou alguma coisa assim”, afirma.
Viver de quadrinhos é ainda mais difícil. “O valor é o mesmo, mas a quantidade de trabalho é absurdamente maior. Quando fiz os álbuns do Diomedes eu trabalhava no mínimo 12 horas por dia de domingo a domingo. Tinha dias em que chegava a trabalhar 18 horas. Não faz sentido.”
Desde que começou a publicar HQs, nos anos 1980, o mercado mudou, avalia, mas de maneira ilusória. “Antigamente tinha muitas revistas, era muito mais fácil começar a publicar. Publicavam histórias curtas de autores novos. Então você ia firmando seu nome, experimentando”, lembra. “Hoje em dia as histórias foram para a livraria. O pessoal acha que é por respeito, mas não é. É que as tiragens são muito menores. Deram uma glamourizada.”
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HIATO
Embora tenha a literatura como atividade favorita, o autor não publicava um romance desde “Nada Me Faltará”, de 2010. O motivo do hiato é curioso. “Uma vez o Luiz Schwarcz [publisher da Companhia das Letras] falou pro meu editor que eu produzia demais e que seria bom eu parar um pouco. Achei muito estranho quando ouvi isso, mas resolvi experimentar”, conta. “Fiquei três anos sem escrever e foi muito bom pra mim. Deu pra dar uma assentada, renovar algumas ideias, ter muita vontade de voltar. Foi muito bom esse silêncio.”
Cada vez que escreve um livro, Mutarelli mergulha profundamente no projeto e deixa todo o resto de lado. “Tenho cadernos que uso como laboratório, onde faço desenhos muito rápidos e escrevo frases sem sentido. Mas quando estou escrevendo um livro paro de desenhar e de usar os cadernos”, afirma. “Não porque eu quero. Interrompo porque é outra frequência pra mim.”
A empreitada da vez é um livro da coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras, que levou 17 escritores a diferentes cidades do mundo para servir de cenário para histórias de amor. Uma primeira versão do livro encomendado foi entregue em 2009, mas a editora não gostou. “Era um livro ruim, como eu mesmo justifico nesse livro [“O Grifo”]. Mas não me importava que fosse um livro ruim. E ficou encostado. Há dois anos eu retomei, partindo de outra ideia, e estou adorando”, conta. Da primeira versão, sobrou só um suicídio na trama. “O resto eu falo que vai ser um livro póstumo, pra quando eu morrer.”
“É um livro muito trabalhoso, uma experimentação muito contrária à minha forma de escrever. É muito difícil, um trabalho muito elaborado, de muita pesquisa”, diz. Seu plano inicial era terminar o romance ainda neste ano. “Mas acho que não vai dar tempo.” Depois, quer começar uma história ambientada em São Paulo. “Tem sido muito importante falar do meu bairro, dos meus percursos, de São Paulo. Nesse [“Amores”], os personagens não podem ser brasileiros, tem que se passar em Nova York. Isso é uma coisa meio frustrante.”
Para ele, escrever é a forma mais profunda de pensar sobre algo. O que o atrai são pequenos desafios e experimentações. “Conforme você vai escrevendo, vai usando um monte de observações que vai colecionando pela vida, pelos últimos tempos, pequenas obsessões. É isso que me leva”, afirma.
No caso do “Grifo”, trouxe de sua vida a moeda. Em “Amores”, foi um documentário sobre sereias que viu no Discovery. “Pensei: ‘Não, sereias não dá’. Mas aí vi o primeiro, depois vi a continuação. Enquanto eu via, acreditei naquilo. É possível. Fiquei muito fascinado. Pensei em escrever um livro sobre algo que eu ache ridículo”, conta. “Estou escrevendo um livro sobre reptilianos, aqueles seres do espaço. Eu não acredito, o narrador não acredita e o protagonista não acredita neles. Minha tentativa é criar uma mínima dúvida.”
NAS TELAS
Dois anos atrás, Mutarelli afirmou em entrevistas que não tinha mais prazer em atuar. O escritor lembra-se da afirmação, mas faz uma ressalva. “Na época eu falava que só ia trabalhar com a Anna Muylaert. Eu sempre trabalho com a Anna. É a exceção porque é maravilhoso trabalhar com ela”, diz. “Ela fala: ‘Não quero ouvir uma palavra do roteiro na sua boca’. Eu já entendi o roteiro e vou interpretar, brincar com isso.”
Ele conta que Anna escreveu o personagem, o dono da casa onde trabalha a empregada Val (Regina Casé), pensando nele e que a experiência foi muito legal. Hoje, ampliou o leque de exceções e tem topado outros convites. “Quando é muito interessante, se tenho agenda, acabo pegando. Fiz ‘O Escaravelho do Diabo’, que deve estrear em dezembro ou janeiro, que foi fantástico de trabalhar. Tenho tido prazer nisso de novo.”
O filme de Muylaert é o indicado pelo Brasil para disputar uma vaga no Oscar de filme estrangeiro no ano que vem, mas, para Mutarelli, prêmios não significam muita coisa. Neste ano, o prêmio HQ Mix homenageou o quadrinista, esculpindo seu personagem Diomedes no troféu. “Não sei se nesse ano ou no ano passado, recebi um prêmio em Minas por uma peça minha que montaram. O menino queria me mandar o troféu. Eu escrevi que poderia parecer muito deselegante, mas não queria”, conta. “Não me toca, não tenho porque pendurar, guardar. Fica tudo socado num armário, só ocupando espaço. Mas aí ele falou que tinha um prêmio em dinheiro. Eu falei que isso eu aceitava. Dinheiro é muito bom.”
E de todas as identidades de Mutarelli, qual é aquela que ele coloca ao preencher o campo profissão num formulário? “Eu botava manicure. Algumas vezes fiz isso. Mas agora ponho escritor. Faço isso já há algum tempo.”
Durante a perseguição a um caminhão colorido, cheio de luzes e personagens, um garoto de bicicleta aborda o fotógrafo Felipe Larozza. Papo vai, papo vem, ele descobre que somos de São Paulo e, com um olhar curioso, indaga: “Como são os trenzinhos de São Paulo?”. Em São Paulo não tem disso, não, mas em Ribeirão Preto, onde vive o pequeno, todo mundo tem uma história com trenzinho. Contarei algumas das que ouvi e todas que vivi ao desbravar o mundo de reluzentes colossos mecatrônicos, seres antropozoomórficos, casamentos entre profano e sagrado e confrontos de todos os tipos em uma cidade rodeada por um denso cinturão de cana de açúcar no interior de São Paulo.
Distantes do centro da cidade, nas quebradas onde as classes se confundem, jovens de máscaras e corpos vestidos com roupas malucas dançam, pulam, correm, brincam. Veículos imensos arrastam pequenas multidões ao som dos últimos lançamentos musicais em meio a uma erupção de cores. O povo admira, interage, para ou vira a esquina. Correm luzes como as das aparelhagens de Belém, gambiarras de baile funk, sistemas de som de trio elétrico, referências carnavalescas, símbolos infantis e delírio adolescente.
A nossa bandeira foi investigativa e nossa entrada, pacífica. A ideia platônica de trenzinho da alegria estava em nossa mente: um veículo mais ou menos comum que reboca vagões coloridos seguido por pessoas fantasiadas formando um pitoresco comboio cuja única função é circular pelos pontos turísticos de cidades pequenas — a orla, o coreto, a igreja, a ponte mais bonita. Sabíamos, contudo, que em Ribeirão Preto havia alguma coisa diferente por causa do trenzinho mais famoso do Brasil, o Trenzinho Carreta Furacão.
Ele foi o primeiro tipo exportação da cidade. No vídeo que correu a internet em 2010, Homem-Aranha, Fofão, Palhaço, Capitão América e Popeye marcam a cultura popular do país ao deturpar nosso imaginário lúdico com molejo, suíngue e mistura que só um Brasil brasileiro é capaz de oferecer. “Samba do Mestiço”, na trilha do vídeo original, canta para seguir em frente e olhar para os lados. E nessa toada o Carreta Furacão chegou aos canais de TV aberta naquele ano.
Os trenzinhos hoje são marco na internet brasileira em novos clássicos como Fofão sobe o muro, mas eles também são parte fundamental de Ribeirão Preto há pelo menos trinta anos. E isso não fica evidente na piada do meme ou do programa de auditório. A cidade tem a única organização exclusiva da classe no país, a Associação de Trenzinhos, com 14 empresas. Esse é apenas mais um detalhe de um fenômeno cultural interessante e de muita festa.
[olho]”Tem que fazer por merecer pra ser o Fofão”[/olho]
Seus protagonistas são garotos como Renan e André Luiz “Sheyck”. Os irmãos de 17 anos, com apenas meses de diferença de idade, vivem na periferia de Ribeirão Preto. Eles estudam e trabalham de dia. À noite, saem de casa com uma fantasia remendada e um capacete de isopor embaixo do braço. De 20h a 23h, são estrelas do Trio Big Folia, trenzinho da empresa Dominium — também proprietária do Carreta Furacão. Um dos maiores da cidade, o mastodôntico duplex ambulante de luminosos e som potentes é palco para Renan, o Palhaço, e André, o Fofão.
“Tem que fazer por merecer pra ser o Fofão”, diz André. O cruzamento de espécies que resultou no personagem original não previa a aparição de uma linhagem hábil nas peripécias que ele faz. O Fofão de André sobe um muro e posa sob a luz em seu topo ao som de MC Sapão, dá um mortal apoiado na parede como Jackie Chan e treme os quadris freneticamente como uma integrante do Bonde das Maravilhas — tudo em cinco minutos. “Tem que ser louco!”, completa Renan. “Tem que passar dos limites!”
Encarnar o Fofão é atingir o mais alto nível no plano de carreira dos trenzinhos. O Palhaço vem a seguir. “É como qualquer empresa: quer subir?”, me perguntou Renan. “Tem que fazer por merecer.” Os personagens com as cabeleiras vastas são os mais cobiçados entre os dançarinos. Com trejeitos femininos, eles jogam as madeixas de lã de um lado para o outro. Nasce um novo gênero com uma dança que mistura passinhos do funk paulista, breakdance e footwork.
A coreografia é liderada pelo dançarino que dispara à frente. “Trenzinho é um pouco de tudo: axé, sertanejo, funk, arrocha, eletrônica”, explica Renan. Tem também parkour aplicado aos obstáculos próprios de uma cidade do interior, destreza de pixadores na escalada de muros e acrobacias circenses e humor pastelão de grupos como Os Trapalhões ou Os Três Patetas — ainda não tenho certeza se um cachorro realmente mordeu a bunda de um dos dançarinos que rebolava junto ao portão de uma casa.
Os garotos pouco ensaiam e de vez em quando vão a um parque para tentar uns passos. Quedas e acidentes são frequentes, mas a máscara dos personagens não cai. Enquanto dão voltas pelas quadras, os trenzinhos disputam espaço com carros e motos acostumados à festa itinerante. Entendi por que o Popeye é atropelado enquanto o Fofão sobe o muro quando eu mesmo corria ao lado dos trenzinhos. “Eu já fui atropelado por bike, moto, carro”, diz Renan. “Teve uma moto que me jogou pro alto, mas nem me machucou.”
Garotos com suas bicicletas também disputam o espaço durante a noite nas ruas de Ribeirão Preto. No decorrer do trajeto do trenzinho, aumenta a quantidade de moleques sobre duas rodas naquela carreata pela cidade. Uma senhora descontente sai de casa. “Eu acho isso horrível. Tem até consumista aí no meio”, diz ela, sobre o uso de drogas. Uns garotos baforam loló, outros fumam cigarro artesanal. A maior parte só passa em alta velocidade ao lado dos dançarinos. “Eles trombam na gente e falam: você está na minha quebrada!”, explica André.
Contei trinta desses garotos em uma das voltas do Trio Big Folia numa noite de sexta no entorno da desleixada praça Rômulo Morandi. Do chão, eles observam o espetáculo com reverência e desprezo por um motivo evidente: garotas, cujos olhares se voltam para os dançarinos. Mais de vinte meninas compõem o público. De roupas de festa e maquiagem pesada, elas gritam, batem palmas e rebolam até o chão. Enquanto mães e filhos pequenos ficam no térreo, as adolescentes desfilam pela cidade no topo do trenzinho.
O andar de cima parece acessível somente a quem está na puberdade. Vitória Teodoro comemora seu aniversário de 15 anos naquela noite. Passa das 22h. Sua irmã pequena, Sofia, acompanha o cortejo bocejando vez ou outra, mas suas amigas aproveitam o passeio como quem vai a uma animada festa de aniversário. Dançando, elas chamam a atenção dos garotos de bicicleta; esgoelando-se, elas chamam a atenção dos dançarinos que correm no chão.
Vitória diz que sempre acompanha o Trio Big Folia. Os grandes trenzinhos da cidade têm seu séquito fiel. No Facebook existem páginas dos fã-clubes formados exclusivamente por garotas, como as Trenzetes. As Dominiunzetes, por exemplo, adoram os trenzinhos da Dominium — Carreta Furacão incluso. Como qualquer grupo do tipo, seu álbum online tem fotos e vídeos dos ídolos, os personagens.
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Fama, mulheres e brigas
Alguns dançarinos me falaram que em Ribeirão Preto existe até o apelido de “Maria Trenzinho”, dado às garotas que têm preferência pelos personagens de trenzinho. “Tem uns caras que zoam a gente, mas a gente pega muita mulher!”, diz João Victor Urbines, dançarino do Trio Trem Balada. Propriedade da Tony Leme Eventos, esse trenzinho de dois andares, som potente e muitos luminosos disputa o título de maior da cidade com o Trio Big Folia da Dominium.
João tem 21 anos, seis deles dedicado a dançar como personagem. Há pouco tempo ele se tornou pai, então arranjou um emprego comum para os dias da semana. Nos fins de tarde de quinta a domingo, contudo, ele vai até o bairro Planalto Verde para encontrar seus amigos de equipe. Muitas vezes ele tem de ajudar na manutenção do trenzinho do qual faz parte, carregando alto-falantes, ou soldando alguma peça com os olhos fechados — não há máscara para protegê-lo das faíscas. Quando a noite chega, é hora de sair.
O Trio Trem Balada tinha uma agenda cheia a cumprir naquele sábado. A bordo, os moleques na faixa dos vinte anos estão mais acostumados ainda. Eles bebem uma mistura alcoólica no andar debaixo. Em cima, seguram uma caixa de som atentos a árvores e fios elétricos que passam rentes à cabeça.
Pouco a pouco eles entram no personagem. Trocam as camisas do Barcelona e bermudas da Hollister por panos puídos sobrepostos em camisetas velhas, meias longas de cores berrantes, calças largas de material leve e tênis baixos de sola aderente. Eles enfiam a cabeça nos elmos depois de vestir as armaduras de tecido. Quando pisam no asfalto, os garotos formam uma gangue de máscaras: Mario, Luigi, Patolino, Patati, Patatá, Mickey, Cebolinha e Fofão — personagem encarnado por João.
O primeiro compromisso é em um buffet a quinze minutos do centro. Francieli Esteves, recepcionista de 33 anos, tinha contratado o Trio Trem Balada para a festa de aniversário do filho, Rafael Lopes, de 2 anos. “A gente é mais chegado nesse trenzinho”, diz ela ao descer do veículo. “Toda quinta-feira a gente vai pra praça ver esses personagens.” Astros da festa, os dançarinos abrem o espetáculo com apresentações individuais. Dali em diante se vê um rebuliço, uma zona, um alvoroço vistos em poucos lugares do mundo.
Um outro trenzinho cruza o caminho logo na primeira esquina. Trata-se do Carreta Tremendão, com cinco dançarinos. Um veículo dá preferência ao outro, mas no chão os garotos disputam o espaço como guerreiros tribais. Cercada por meninos de bicicleta, a aglomeração com mais de dez personagens parece um círculo aberto para bate-cabeça em um show de death metal. Pisando com força no asfalto, ficando cara a cara a poucos centímetros das máscaras e simulando chutes e socos, os dançarinos quase partem pra porrada.
João já tinha me mostrado um vídeo em que está prestes a brigar com outro personagem. Vestido como Fofão, ele toma um soco do Mickey de outra equipe. “A gente sabia que a gente tinha treta, ele acha que é bonzão”, diz. “Eu estava dançando, aí ele veio e eu fiquei bravo”. A confusão foi evitada pelos seus companheiros, mas nem sempre é assim. No YouTube é possível encontrar vídeos de tensos encontros entre trenzinhos — outro sinal da ocorrência dos conflitos.
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“Todo mundo já brigou”, me conta Renan, o Palhaço do Trio Big Folia. “Às vezes alguém briga por sentir inveja de outra pessoa que está com a mesma fantasia de Palhaço ou fantasia de Fofão”. Além do ego, rivalidades entre grupos, desentendimentos por namoradas e provocações simples podem dar em confusões perigosas. “Acho que antes de existir Associação a molecada que trabalha com trenzinho era mais unida que agora”, diz João. “Tinha menos briga, mas tinha umas que dava até morte.”
O clima pesado ficou apenas na ameaça naquela noite. Após o encontro com o outro trenzinho, o Trio Trem Balada segue em um frenesi dantesco. O volume da música é nocivo ao lado dos alto-falantes, as luzes piscantes confundem os olhos. O alarme de um carro dispara. O Patolino acende um rojão que explode a poucos metros do chão. O Patati entra em uma casa, o Patatá toca a campainha de outra. Mario e Luigi sobem rapidamente em um beiral de três metros de altura — atendendo a pedidos do público. Num pedaço de terreno baldio, o grupo se espalha dançando numa coreografia feita para levantar poeira.
[olho]”Às vezes alguém briga por sentir inveja de outra pessoa que está com a mesma fantasia de Palhaço ou fantasia de Fofão”[/olho]
De repente, todos os dançarinos sobem na caçamba de um carro utilitário. A suspensão do veículo sente o peso. O motorista buzina. Ele ri de alegria. Uma pequena que tem a idade do aniversariante da noite está no banco de passageiros com cara de quem adora aquela farra mesmo sem entendê-la. Crianças são prioridade dos personagens. Algumas pessoas saem de suas casas para saudar a bagunça. “A gente gosta, passam vários por dia”, diz uma senhora.
Apenas convidados da festa podem subir no trenzinho — nas praças, basta pagar três ou quatro reais para embarcar. Além da garotada nas bicicletas, do fotógrafo e de mim, outro grupo o acompanha do chão. Como os personagens, eles têm máscaras, roupas coloridas, muito pique e uma destreza com o corpo que lhes permite fazer o quadradinho de oito do funk, o top rocking do breakdance e até o espacáte do balé clássico. No entanto, é tudo mais mambembe, malajambrado. E o grupo tem média de um metro e meio de altura.
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Eles são os seguidores: garotos com menos de 15 anos que se fantasiam, brincam e atuam como os dançarinos oficiais. Eles aguardam os trenzinhos nas noites de quinta a domingo nas imediações de praças e buffets marcando território como a gangue de menores do filme “Cidade de Deus”. A lei natural que passa de boca a boca os autoriza a ficar ao lado do veículo oposto ao lado reservado aos dançarinos oficiais. De vez em quando, todos dançam juntos na frente dos trenzinhos. É um encontro de gerações.
Alguns seguidores dão nomes para seus grupos. A equipe que dança ao lado do Trio Trem Balada naquela noite se autodenomina “Os Tremedeira”. “Isso aqui é uma diversão que você nem imagina”, diz Pedro dos Santos, um dos integrantes do time. Durante o dia, estuda; à noite, fica em busca de trenzinhos no seu bairro. Ele sonha em ser um dançarino oficial das equipes. Por quê? “Estou fazendo uma criança feliz e fazendo algo que eu gosto: dançar no trenzinho.” Pedro usa a máscara do Pica-pau. Ele tem 13 anos.
O garoto reproduz o discurso dos mais velhos que, por sua vez, reproduzem o discurso de ídolos: jogadores de futebol, cantores populares e celebridades unânimes. A grana que os dançarinos de trenzinho ganham, no entanto, está bem aquém da remuneração nessas categorias. Deydison Santos é o Mickey no mesmo grupo do João. Ele diz que ganha sete reais por festa. Isso dá, em média, sessenta reais por fim de semana. Ele trabalha durante o dia e vai ao trenzinho por prazer. “Isso aqui pra mim é um rolê”, diz ele.
Tiquinho, como é apelidado Deydison, tinha desistido da vida de dançarino há alguns meses por causa do trabalho na organização de festas e shows em Ribeirão Preto. Ele fez 20 anos em março de 2015, mas o fim da linha para a maior parte dos personagens de trenzinho costuma chegar mais tarde, aos vinte e poucos. Além da vida adulta, até relacionamentos botam fim à carreira. “Tem namorada que diz ‘ou eu ou o trenzinho!'”, diz André, o Fofão do Trio Big Folia.
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Um de seus amigos, Gabriel Lopes, é outro exemplo de quem faz participações especiais por causa da saudade. Ele tem 17 anos, mas parou com a vida de dançarino logo cedo porque seu joelho esquerdo não suportava mais a frenética rotina de saltos, correria e passos sensuais que dura até cinco horas por noite. Se dá vontade, ele volta à ativa. “Quando eu ponho a fantasia não dá pra ficar parado, aí eu só sinto o joelho depois”, diz ele. “Isso é um vício: se você entrou, nunca mais quer sair.”
Sem fantasia, os garotos passam despercebidos até entre eles mesmos. Eles são apenas jovens com espinhas na cara às portas da vida adulta. O bom-humor e o erre retroflexo típico do interior fazem parte deles tanto quanto as incertezas adequadas à idade. Não fosse por alguma ótima oportunidade, Renan diz que não faria as estrepulias que faz desprovido de seu traje super poderoso. O que você sente quando coloca sua fantasia? “Emoção”, diz ele.
[olho]”Isso é um vício: se você entrou, nunca mais quer sair”[/olho]
O fim do encantamento está marcado para meia-noite. As festas ou as voltas na praça terminam por volta de 23h. Os personagens tiram suas fantasias. Uns vão gastar o curto soldo em outras festas e outros vão descansar para o dia seguinte. Na cidade não há rastro da barulheira dos vários alto-falantes, nem sombra das lâmpadas cintilantes dos trenzinhos. Nas ruas por onde passou uma tempestade de gente fantasiada, o dia vai nascer sob a imperativa calmaria do Brasil profundo.
Trenzinho para tudo
Todo tipo de evento tem um trenzinho em Ribeirão Preto. Festa de aniversário de senhoras centenárias, festa de aniversário de animais de estimação, casamentos, festas de 15 anos, rodeios, inauguração de supermercado, encontro empresarial, balada universitária, dia das crianças. Das mais impensáveis que ouvi, pude viver a pregação de uma igreja evangélica sobre um trenzinho. A louvação em forma de cortejo neon aconteceu no sábado à noite a pedido da Igreja Batista do Simioni, bairro da periferia da cidade.
O Trio Trem Balada fora contratado para o evento. Ao se aproximar da igreja, o som emitido pelo trenzinho muda de “Farra, Pinga e Foguete” para uma canção da cantora gospel Aline Barros. Os dançarinos são dispensados quando o veículo para. Três equipes de fiéis são formadas: enquanto uma embarca, outras duas ficam encarregadas de panfletar com santinhos pelo trajeto. Os times de jovens adultos, homens e mulheres, se revezam a cada 15 minutos entre o chão e o trenzinho.
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“A gente se juntou com outras igrejas para falar de Jesus para outras pessoas”, me explica Nemias Magalhães, 26 anos, organizador do evento. “O trenzinho é só um meio de chamar atenção, a gente quer falar de Jesus Cristo.” É a primeira vez que eles chamam um veículo daquele tipo para pregar os ensinamentos cristãos pelas ruas da cidade. Isso fica flagrante com o andamento do trenzinho. “Grita quem vai pro céu” e “cuidado com o galho!” são duas frases ditas com frequência — ainda assim, duas árvores me acertam.
Nemias volta a falar comigo quando voltamos a ficar de pé, ultrapassados os obstáculos. “A gente está acostumado com o trenzinho aqui e, por onde ele passa, as pessoas param, olham, acham legal”, diz ele. “Agora a gente uniu o útil ao agradável: evangelizar e chamar a atenção das pessoas.” No chão, seus colegas conversam com transeuntes. No trenzinho, os fiéis gritam: “Ah! Eu sou de Cristo!” enquanto balançam seus cartazes de cartolina.
Silmara Gonçalves é uma das passageiras da noite. Ela tem 35 anos e afirma sem pestanejar que tem trenzinho em Ribeirão Preto desde que era criança — uma época em que eles eram menores, seu público era essencialmente infantil e suas canções falavam de temas lúdicos. Silmara também não titubeou ao dizer o que pensa das músicas que geralmente fazem a cabeça da molecada que frequenta o trenzinho: “É algo muito imoral para crianças”.
O mecânico Pélcio Ferreira reforçou o coro: “Hoje em dia tem que tocar esses raio desses funks”. Mineiro de Governador Valadares, ele saiu da cidade a bordo de seu trenzinho em 1983. Foram anos numa vida de circo. “A gente ficava uns seis meses em cada cidade”, diz ele. “A gente alugava uma casa e no fim de semana ficava na pracinha”. A rotina andante chegou ao fim em Ribeirão Preto por caprichos do coração: Pélcio conheceu sua amada, casou-se, fixou pouso e virou o maior mecânico de trenzinhos na cidade.
Ele abriu sua oficina em 1998 e, hoje, boa parte dos trenzinhos da região saem de lá. “O trenzinho começa do zero”, explica ele. “Às vezes é um chassi de caminhão pra fazer e às vezes é ônibus, aí a gente corta e utiliza a estrutura mecânica.” Diferencial de um, motor de outro, câmbio daquele e sistema de freio daquele outro dão forma a um frankenstein metálico sobre rodas. Sem pintura ou acabamento, um trenzinho fica pronto em dois meses por R$ 80 mil. “Você pensa, nós faz”, diz ele.
O mecânico tem seu próprio trenzinho: o carcomido City Bus, construído em 1992. Além de fabricação, ele também faz manutenção dos brilhantes veículos. O trabalho é preventivo, embora às vezes ele tenha de socorrer um ou outro trenzinho que para no meio do trajeto. A demanda de construção e cuidados cresceu desde os anos 90. Hoje, metade do faturamento da sua oficina vem do trabalho com Carretas, Trios, Naves, entre outros, mas os negócios estagnaram. “Com essa crise, está tudo parado.”
Dos pés à cabeça
Alguns motoristas de trenzinho sabem lidar com problemas mecânicos urgentes dado o tempo de dedicação. Fabio Jeferson, 29 anos, dirige trenzinhos há sete anos. Ele trabalhou como personagem dos 14 aos 25 anos. Hoje, fica atrás do volante do Trio Big Folia mantendo o motor entre a primeira e a terceira marcha. “Dou uma volta de 45 minutos e volto pra descarregar o pessoal”, diz ele. “Tem que prestar atenção em velocidade, galhos, fios, altura do som, meninos que ficam tumultuando na lateral.”
Quem ajuda Fabio na labuta é João Quaglio, 17 anos. Ele trabalha ao lado dos passageiros como DJ de trenzinho. Suas funções são selecionar as melhores músicas em um aparelho similar a um rádio de carro, regular o som em uma mesa de som adaptada e abaixar o volume quando passam em frente a igrejas ou hospitais. Seu naipe bonachão, sua voz empostada e o microfone na mão denunciam algo mais. “Sou locutor também e tenho de agitar a galera”, diz ele. “Sempre foi meu sonho trabalhar com trenzinho.”
Apesar da diferença de idade, Fabio e João frequentam trenzinhos desde moleques. Fabio começou a brincar como seguidor aos 10 anos. A vontade de participar daquilo era tamanha que levou o então garoto a fazer suas próprias cabeças de personagem. “Você faz uma máscara com um bloco de isopor, vai fazendo no formato da cabeça”, diz Fabio, esculpindo o ar. “Depois tem a fibra de vidro, o mesmo material usado em capacetes de moto.” Cada máscara leva três dias para ser feita ao preço médio de R$ 250.
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A identidade dos personagens está quase somente no rosto que carregam. Como poucas fantasias são fiéis aos modelos originais, não é raro encontrar um Patolino com regata vermelha da Quiksilver ou um Ben 10 com colete de brechó — uma colcha de retalhos. Ainda assim, existe um mercado de roupas específicas para os dançarinos. “Se eu vejo na rua, eu sei exatamente qual fantasia eu fiz”, diz Tania Cardoso, 52 anos, costureira que confecciona roupas para trenzinhos há dez anos.
Seu primeiro molde foi feito em 2005. Ele foi destinado a seu próprio filho que era personagem de trenzinho. Hoje em dia, ela costura camiseta e macacão em apenas um dia cobrando R$ 50 pela mão de obra. O trabalho é constante: como a correria é grande, as fantasias rasgam com frequência. Cabe ao dançarino cuidar do seu uniforme de trabalho, às vezes até facilitando o reconhecimento do público com um detalhe ou uma estampa. “São eles que colocam os nomes dos personagens na fantasia”, diz Tania.
Além do isopor, os materiais mais usados na confecção do conjunto são cetim e lã para o cabelo e acabamento das mãos e pés. A Palhaçaria, única loja especializada da cidade, vende seus melhores trajes por cerca de R$ 420 — um baita presente para crianças que se divertem nos trenzinhos. “Os pais que podem dão a festa de aniversário e compram a roupa do Fofão, mas alguns trocam a festa pela roupa”, diz Sandra Cruz, 42 anos, gerente e coproprietária da loja. “Tem crianças que dizem: ‘eu só quero ganhar a roupa!'”
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Segundo Sandra, 60% do rendimento da empresa vem de fantasias. Cerca de 60 conjuntos de vários tamanhos e modelos são vendidos mensalmente. “Temos fantasias para outros estilos também, mas as fantasias do trenzinho são carro-chefe”, diz ela. Os personagens são vários: Mario, Luigi, Cebolinha, Cascão, Mônica, Magali, Ben 10, Máscara, e por aí vai. Adivinhe quais os mais procurados? “Fofão e Palhaço são os personagens que mais vendem.”
[olho]Não é raro encontrar um Patolino com regata vermelha da Quiksilver ou um Ben 10 com colete de brechó[/olho]
Sandra e sua irmã fundaram a loja há quatro anos. A mãe delas faz fantasias desde 2008 e a demanda aumentou com o sucesso da confecção. Sandra lembra que sua casa vivia cheia de garotos e donos de trenzinho em busca de fantasias. O bico virou emprego em tempo integral quando os rendimentos aumentaram. “Eu e minha irmã deixamos nossos trabalhos para investir nisso”, me conta ela. “Hoje nós vivemos da loja, praticamente três famílias vivem da loja.”
Que trem é esse?
Como não há literatura a respeito, existem poucas informações confirmadas sobre a cultura dos trenzinhos no Brasil. Em arquivos da década de 50 é possível encontrar as primeiras menções ao termo. Em 1956, um trenzinho dava voltas pelos gramados ainda pelados do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Em 1958, uma loja da falida rede Mappin contratou um trenzinho para comemorar o Natal. Segundo uma carta enviada por um leitor ao Estadão, coube a um funcionário empurrar o trambolho pelas ruas no centro de São Paulo.
A Trenzinho Star Tolomelli, de Governador Valadares, é uma das empresas mais antigas do ramo ainda em atividade. Criada em 1979, ela hoje tem um dos mais famosos trenzinhos da cidade mineira. Seu fundador não revela o nome por receio de se tornar muito conhecido. Ele tampouco confirma a lenda de que construiu seu primeiro trenzinho inspirado após uma visita à Disney nos anos 70 — os recorrentes casos de valadarenses que migram para os Estados Unidos dão um toque de realidade ao mito fundador.
Em uma conversa por telefone, contudo, o senhor responsável pela Star Tolomelli conta vantagens de alcance nacional. Apoiando-se em conversas de colegas de trabalho, ele afirma ter sido o primeiro a construir um veículo de dois andares no Brasil, há 30 anos, e ter estreado os tipos de caminhões usados hoje em trios elétricos baianos, também há três décadas. Ele arrisca uma cifra. “Os trenzinhos empregam mais de cinco mil pessoas, direta e indiretamente, em todo o Brasil.”
Hoje, o plantel de trenzinhos da Star Tolomelli diminuiu de cinco veículos espalhados em São Paulo, Minas Gerais e Bahia para um único representante em Governador Valadares. O modelo é sofisticado: tem Wi-Fi, banheiro, DJ profissional, palco e, claro, personagens. “O pessoal universitário aderiu ao trenzinho, tem gente que me fala que vinha no trenzinho quando era filho e agora traz o neto e o sonho das crianças aqui é trabalhar no trenzinho Star Tolomelli”, afirma o anônimo empresário. “Passou a ser uma cultura.”
À exceção da alta velocidade dos seus trenzinhos, a cidade mineira repete o esquema de Ribeirão Preto: exímios dançarinos fantasiados, público adolescente, músicas de sucesso, veículos gigantes e ostensivas turnês locais e regionais. A cultura dos trenzinhos ribeirão-pretana, no entanto, se apoia na fraqueza do equipamento e do sistema públicos de lazer, esporte e cultura; no elevado índice populacional frente a outras cidades do interior; e na relevância regional da cidade.
Para 2015, por exemplo, a despesa da prefeitura de Ribeirão Preto com as pastas de cultura, lazer e esporte foi orçada em cerca de R$ 24 milhões. Isso corresponde a 1,2% do R$ 1,8 bilhão investido ou R$ 36 por ano para cada um dos 666 mil habitantes estimados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Segundo a mais recente classificação do órgão, a cidade apresenta o 28º maior PIB do país, uma pirâmide etária larga nas faixas de 15 a 34 anos e IDH 0,800 — índice muito alto.
A pujança interiorana se deve parcialmente a séculos passados. O campus da Universidade de São Paulo que alimenta a cidade com novos profissionais ocupa o que fora uma fazenda cafeeira até meados de 1950. As lavouras da região agora são lembranças em ruas asfaltadas como a principal via de acesso a USP, a Avenida do Café. Segundo um recente levantamento, a cada quatro habitantes de Ribeirão Preto, três estão empregados no setor de comércio e serviços. E eventos como o último Agrishow mostram que o agronegócio diminuiu.
Esse misto de importância socio-econômica, desenvolvimento relativo, políticas públicas lenientes, população jovem e clima de interior criou um cenário favorável ao agigantamento metamórfico dos trenzinhos na cidade. “O pessoal de Ribeirão Preto é festeiro pra caramba também”, me explica Wellington Cardoni, 37 anos. Ele e sua esposa, Fabiana Cardoni, 34 anos, são proprietários da Dominium, maior empresa de trenzinhos da região. Com cinco veículos e quarenta funcionários, eles chegam a fazer cento e sessenta festas por mês.
“Quando era criança, eu andei muito no trenzinho Pancadão porque tinha um supermercado que chamava ele toda semana das crianças”, me conta Wellington. “Tinha gente virando a esquina na fila, tinha a Cuca, o Fofão… Eu não imaginava que esse trenzinho ia ser meu.” Esse foi o terceiro trenzinho comprado pela sua empresa. O primeiro foi o singelo Encantado. O segundo foi o clássico Carreta Furacão. Até hoje, ele é a maior locomotiva do sucesso da Dominium.
Quem vê o sorridente rosto estampado na frente desse trenzinho mal sabe que ele não passava de tristes ferragens largadas em uma garagem em Franca, cidade do interior de São Paulo, em 2010. O antigo proprietário tinha começado a montar o veículo havia alguns meses, mas ele não pôde finalizar obra. Ao saber disso, Wellington e Fabiana arremataram o potencial trenzinho por R$ 50 mil. Ele só foi à rua após ganhar reforma e nome. Naquele mesmo ano, o Carreta Furacão foi ao mundo na filmagem de um segurança da equipe.
“Quando o cara que vendeu descobriu o sucesso, ele ligou pedindo pra gente vender de volta”, diz Fabiana. No meio da conversa, ela atende à chamada de algum cliente da capital. O marido lembra de algumas histórias do trenzinho: a ligação feita pelo cantor Leandro Lehart agradecendo a divulgação involuntária da sua música ou os jovens dançarinos do Guarujá que cogitaram pedir emprego na Dominium. “Não tem como vender o Carreta Furacão”, sentencia Wellington. “Muitos já ligaram pedindo, mas não tem como.”
Ainda assim, a menina dos olhos é estimada pelo empresário em R$ 200 mil. O valor aumentou com a reforma concluída em outubro. A reestreia do Carreta Furacão será no Dia dos Trenzinhos, evento organizado pelo casal junto de outras empresas da cidade. Como todo dono de trenzinhos, Wellington puxa sardinha para seu lado — com um fundo de razão. “O Carreta Furacão levou o nome dos trenzinhos pro mundo”, diz ele. “Você veio de São Paulo por causa da Carreta Furacão.”
Tamanha fama não viria sem efeitos indesejados. Segundo o casal, há trenzinhos que aproveitam a relevância conquistada pelo seu trabalho. Eles relatam dois casos em que empresas fecharam contratos em nome do Carreta Furacão, mas, na verdade, outros trenzinhos foram usados nas festas. A concorrência, que chegava a seis ou oito representantes nos anos 90, hoje chega a 40 veículos em uma única cidade.”É um mercado desleal”, afirma Fabiana.
A competição fica mais acirrada com a presença de trenzinhos de outros lugares. O contrato para uma festa com trenzinho de Ribeirão Preto varia entre R$ 200 e R$ 350, mas trenzinhos forasteiros cobram até 100 reais a menos que isso. Embora Wellington tenha excursionado com sua equipe em outras cidades, ele se opõe a essa prática em sua própria terra. “Eles não pagaram o que a gente pagou pra manter advogado, assessoria, os laudos dos veículos da Associação”, diz ele.
A Associação de Trenzinhos de Ribeirão Preto foi formada em 2011 para impedir a presença de trenzinhos de outras cidades. Desde as primeiras reuniões ela é presidida por Tony Leme. Ele construiu seu primeiro trenzinho há quarenta anos — uma Variant adaptada. Hoje, seu filho comanda o trenzinho Trio Big Folia. Presidente da Associação, o patricarca também cuida da empresa com seu nome. “Minha preocupação como presidente é ajudar os donos de trenzinho que querem ser ajudados”, diz ele.
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Nem mesmo o neto pequeno balbuciando a palavra trenzinho consegue derrubar o semblante turrão do empresário. Para ele, outro problema no mercado é a crise econômica. Na sua análise, ela reduziu até mesmo a procura por atividades de lazer baratas. “A crise cai sobre a população”, diz ele. “O único divertimento que uma pessoa pobre tinha até então era o trenzinho: se for ao shopping, ela gasta R$ 150; se for ao parque, ela gasta R$ 20; se for à praça, não tem nada porque está tudo destruído.”
Os proprietários da Dominium também pensam dessa maneira. Fabiana reconhece que a maior parte de seu público é formado pela camada de menor poder aquisitivo da população. O trenzinho é o único divertimento acessível a crianças e adolescentes dessa parcela. “Ribeirão Preto não tem o que fazer, é uma cidade muito grande e não tem nada”, diz ela. “Se uma pessoa tem quatro, cinco filhos, como ela vai levar todos pra um parque de diversão?”
Seu marido afirma que a Associação surge para proteger os trenzinhos, mas que ela não atua nesse sentido. “Hoje, a Associação não exerce o papel dela”, afirma Wellington. Ele também diz que há queixas de vários associados a gestão da entidade, da qual ele mesmo faz parte. Segundo o proprietário da Dominium, chegou ao fim o mandato da chapa atual da Associação, mas não houve novo pleito. “O presidente tem vantagens com trenzinhos, pra ele não é interessante essa votação”, diz ele.
Segundo o presidente da organização, nem todos associados pagam a taxa de manutenção exigida em estatuto. Tony também alega que poucos filiados ajudam nos trâmites burocráticos. Para ele, vale aquela máxima: a união faz a força. “Nós, da Associação, somos desunidos. Se alguém vier aqui, eu passo o cargo porque isso é só bucha, dor de cabeça”, afirma ele. “Mas eu não vi ninguém que vista a camisa como eu visto.”
Cultura pra quem?
A Associação de Trenzinhos de Ribeirão Preto também nasceu para defender os interesses da classe ante as regulações do governo. Em 2011 a câmara legislativa da cidade deu início às primeiras discussões sobre a atividade dos trenzinhos. “A gente percebeu que, de fato, era uma atividade cultural irregular da cidade que estava trazendo uma série de situações de risco para os trabalhadores e para seus próprios usuários”, afirma Gláucia Berenice, vereadora do PSDB, em seu gabinete no prédio de inspiração brutalista que abriga a Câmara Municipal da cidade.
Segundo ela, há vários relatos de cidadãos incomodados com trenzinhos. As reclamações em geral recaem sobre o comportamento do público ou sobre as músicas dos veículos — não só o volume. “Tem letras de conotação sexual e muita apologia a criminalidade”, diz ela. A vereadora conta a história de uma mãe que acenava com o filho de colo para o personagem Homem-Aranha em um trenzinho. “Quando levantou a máscara, ele tinha um cigarro de maconha enorme na boca!” Acidentes também estão na lista de problemas.
O aumento da quantidade de trenzinhos acentuou o número de denúncias. Segundo Glaucia, o Ministério Público da cidade era favorável à proibição da atividade, mas o legislativo buscou uma alternativa. Em julho de 2013 foi aprovada a lei nº 13.030, a “lei dos trenzinhos”, após debates entre bombeiros, policiais, engenheiros, fiscais, legisladores e representantes do trenzinhos — em um dia de protesto, eles levaram os poderosos veículos para a frente da Câmara.
A lei, no entanto, criou um limbo jurídico por dois motivos. Ela prevê que todos os trenzinhos da cidade recebam um alvará da prefeitura para circular e cria um departamento de fiscalização para atender denúncias dos cidadãos, mas não determinava qual representante da prefeitura desempenharia essas funções. Sem documentos, empresários como Tony Leme e o casal Wellington e Fabiana eram clandestinos na própria cidade. Sem fiscalização, qualquer trenzinho agia como bem queria.
No papel, esses problemas foram solucionados com um novo decreto de lei publicado em diário oficial no fim de agosto. O dispositivo legal coloca o Departamento de Fiscalização Geral da Prefeitura de Ribeirão Preto para atuar junto aos trenzinhos. Segundo Osvaldo Braga, diretor do setor, uma questão simples, mas de grande importância seria resolvida até o fim de outubro. “Nós teremos a realidade de quantos trenzinhos existem na cidade porque todos terão de apresentar documentação”, diz ele.
Segundo Osvaldo, houve um grande período de debates e revisões até que a lei fosse sancionada pela prefeita. “Coube a nós estudar mais a lei e foram feitas várias reuniões no Departamento junto aos profissionais dos trenzinhos”, diz ele. Embora o alto volume do som dos veículos entre 22h30 e meia-noite seja a causa de maior parte das reclamações, os empresários do setor estavam mais preocupados com o estilo das músicas: eles queriam funk. “Era uma briga grande dos profissionais, mas prevaleceu que esse tipo de música não será executado.”
A atuação das empresas de outras cidades em Ribeirão Preto também será verificada pela fiscalização. Para Osvaldo, é preciso que todos os trenzinhos tenham CNPJ e firma aberta no município. “Temos uns três ou quatro trenzinhos de outras cidades que vêm atuar aqui e agora vamos agir no rigor da lei”, diz ele. “Será uma fiscalização árdua, principalmente nesse início, e daremos prioridade para os casos do pessoal de fora que vem trabalhar aqui.”
A punição para empresas que cometerem infrações varia de multas entre R$ 501 e R$ 11 mil a cassação do alvará. O departamento recebe denúncias no 156. Dois funcionários verificam as denúncias feitas à noite, mas eles também estão encarregados pelos casos de perturbação do sossego em toda a cidade. Por isso, Osvaldo pede que as reclamações sejam realizadas com imagens dos veículos infratores. “Se eu recebo uma denúncia, na hora que o fiscal chega o trenzinho já passou e foi embora”, diz ele.
Perto do fim da conversa, Osvaldo me conta de uma recente visita que tinha feito a Caldas Novas, no interior de Goiás: “Lá os trenzinhos não têm música alta, eles ficam andando pela cidade com um sininho.” Estranho. Caldas Novas é conhecida por dionisíacos festivais sertanejos, beberranças homéricas, canhões de luz tão potentes quanto o sinal do Batman, paredões de alto-falantes que fazem o som da percussão de qualquer arrocha estalar pelos ossos. Seriam os trenzinhos de lá meros bibelôs?
Este vídeo me mostra que sim. Depois da descoberta no interior de São Paulo, contudo, não deixo de pensar que há um potencial, um devir maior em qualquer carroça férrea que circule pelo interior do Brasil. Na saída de Ribeirão Preto, em uma calorenta tarde de domingo, vi uma dessas correndo pela estrada. A pintura opaca do dia, as lâmpadas ofuscadas pelo sol, as cadeiras vazias, o motorista oculto, os personagens ausentes. Tudo isso, mas um nome estampado. Trenzinho da Alegria.
É difícil fazer um retrato do cineasta francês Vincent Moon. Em mais de cinco horas distribuídas em dois encontros com o público em São Paulo, ele solta fragmentos de informação fora de ordem, sem planejamento, sem ensaios, num grande fluxo de consciência. De certa forma, Vincent se parece com seus filmes. Feitos em um take só, sem pesquisa prévia, com uma única câmera, eles privilegiam a imaginação à informação. O espectador não sabe exatamente a que está assistindo, mas fica imerso na experiência. Seu trabalho, sintetiza, junta os meios do cinema e da música para formar algo “acima disso”. Totalmente experimental.
As duas conversas seguiram o mesmo padrão. Vincent atrasa um pouco – “vamos começar em uns 15, 20 minutos, ok? Vocês têm tempo, não?” – e deixa o público ouvindo músicas de gravações suas pelo mundo. Depois, diz querer uma conversa solta, sem roteiro. Vai passar um de seus filmes, escolhidos um pouco ao acaso, falar um pouco sobre ele e abrir para perguntas. Depois outro filme e mais perguntas. E por aí vai.
Vincent ficou conhecido pelos vídeos musicais. No site La Blogothèque, criado dez anos atrás, postava pequenos filmes de bandas de rock tocando em lugares inusitados, com a câmera bem perto, sem ensaio prévio, em uma tomada só. Seus vídeos não lembram em nada videoclipes, feitos para vender a música. Um dos filmes que mostrou ao público em um dos encontros é um exemplo claro de sua obra: dá a sensação ao espectador de estar dentro de um show. A câmera treme, vê-se apenas pedaços de cada músico e às vezes você não sabe para o que exatamente está olhando. “Quando você vai para um show, você não vai ver tudo. Você não vai ver nada. Você vai estar no meio de uma coisa que é muito mais que só música. Essa sensação de estar no meio das pessoas, fazendo parte de uma comunidade, tem muito a ver com um ritual”, ele explica.
“Minha ideia era ir pra rua. Iniciei esse projeto muito mais com intuição do que pensamento. O desejo foi de quebrar hierarquias e colocar anarquia. Nunca tive o desejo de filmar algo em seu lugar oficial. Ir num show e fazer um filme… É chato. Não quero dar muitas informações para o espectador, quero ir para o lado experimental”, diz. Vincent nunca gostou de ouvir discos em casa. Teve a sorte de nascer em Paris, ele conta, onde podia ir a um show por noite e “participar” da música. A câmera é uma extensão de seu corpo. Quando caminha, quer que o espectador caminhe junto e sinta que faz parte daquela experiência.
Hoje, ainda trabalha com a união de cinema e música, mas mudou seu foco. Em vez de documentar o rock, Vincent investiga o papel da música em rituais pelo mundo todo. O sucesso da Blogothèque, curiosamente, foi o que o levou a largar o projeto. “Dez anos atrás não tinha nada na internet. O sucesso foi rápido, a gente mostrava música de um jeito diferente. Mas você entra numa relação muito estranha com a quantidade. ‘Opa, tive 50 mil visualizações na semana passada, agora preciso de mais.’ É muito ruim. Uma relação muito perigosa. Depois de quatro, cinco anos, entrei nessa e ai ai ai. Precisei sair.”
RODANDO O MUNDO
Decidiu então rodar o mundo buscando trabalhos de qualidade, independente de quantas pessoas fosse atingir. “Não vou tocar 50 mil pessoas, mas vou tocar de um jeito diferente. Isso é muito mais legal”, diz. “Tinha um desejo de encontrar outras pessoas e outras músicas. De fazer uma grande pesquisa sobre a origem da música.” Nessa busca, encontrou uma ligação entre a arte e o sagrado e resolveu ir atrás de cerimônias e rituais.
Os filmes que mostra passam por Peru, Geórgia, Rússia, Ucrânia, Etiópia, Egito e Brasil. Viaja sem planos, sem saber quanto tempo vai ficar em cada lugar, para onde vai depois ou o que vai filmar ali. Nem pensa em fazer a conta de quantos países já visitou. “Vivemos numa sociedade da quantificação e isso atrapalha”, diz, voltando à questão que o motivou a deixar a França. “Nunca tenho o desejo de saber o que vai acontecer. Filmei muitos grupos sem saber o que eles iam tocar. Rapidamente você pode sentir pra onde vai a música. Você entra num momento de conexão tão lindo”, diz, servindo-se de vinho. “Não sou profissional e nem quero ser. Sou amador.”
Uma vez que chega ao lugar, vai conhecendo pessoas. Dividindo uma garrafa de vinho ou um baseado com um desconhecido, recebe dicas de onde ir. Foi assim, por exemplo, que chegou a uma casinha no centro do Cairo onde encontrou duas mulheres tocando tambor enquanto outra entrava em transe. Outro homem com quem cruzou deu a dica de um grupo tradicional da Ucrânia e salvou sua viagem: ele ia embora no dia seguinte e não tinha filmado nada.
Assim como não gosta de pesquisa diz não gostar de dar muitas informações ao público. “Na internet há informações extra embaixo do vídeo. É fantástico trabalhar um cinema em que você pode ir pra poesia total. Se você tem curiosidade, vai procurar. O desejo inicial é deixar vocês trabalharem.” Também só atrapalha, em sua opinião, a ideia de que um filme precisa de um começo e um fim ou recursos como narração para facilitar a vida do espectador. Vincent é categórico ao afirmar que não tem relações com escolas de cinema. “Fui para a universidade e me falaram de John Ford. Pfffff. Não me encontrei lá”, fala. E vai além: “Não sou diretor, sou só o rapaz com a câmera”.
SEM PROJETOS, SEM DINHEIRO
Alguém pergunta como ele faz para se sustentar na estrada e Vincent desconversa. “Não preciso de muitas coisas pra viver. Viajei por cinco anos e não aluguei nada, não paguei por uma casa. Não tenho nada. Só uma mochila”, diz. “Quando você entra nessa maneira de existência é fácil. É uma coisa estranha, entender como é possível viver com muito pouco. Mas fazer esse tipo de conversa me dá um pouco de dinheiro.” Tampouco conta com patrocínio ou editais para financiar seus filmes. Como não faz planos, não faz projetos. E, sem projetos, resta pagar tudo do seu bolso.
Com esse estilo, é difícil as coisas darem errado. “Gosto muito de trabalhar com qualquer coisa. Pode virar muito experimental.” Uma vez, conta, foi ao Peru acompanhar um ritual inca. Depois de caminhar duas horas no frio, achou que as condições estavam muito ruins para filmar. Mas registrou o som. Na volta, encontrou um vendedor de DVDs que tinha imagens da cerimônia do ano anterior. “Eu tinha o som, filmei o ritual do ano passado. Inventei um pouco uma história e juntei os dois. É!”, lembra, animado. “Deu um filme legal, experimental. É interessante trabalhar com qualquer material, sem ter o desejo de chegar num lugar seguro.”
Nas duas noites, o público faz a mesma pergunta: como filmar um ritual, uma cerimônia religiosa, sem interferir no que está acontecendo? Vincent responde: “Qualquer coisa que você faça vai interferir. Mesmo sem a câmera. Objetividade não existe. Tudo é um intercâmbio de energias. O movimento de ir até lá já muda o lugar”. O que é necessário, continua, é estabelecer uma relação com as pessoas que não atrapalhe a energia do local. “Muito rapidamente você se conecta. Meu trabalho não é o de um antropológo acadêmico, que passa muito tempo no lugar. Gosto da aproximação rápida, sem saber muito antes.”
Paris, diz Vincent, é o lugar menos espiritual do mundo (“muito racional, muito”), mas viajar o fez abrir seu entendimento de mundo. Ao tentar definir sua fé, faz uma pausa longa. “Eu acredito. Em tudo. Gosto muito de ser um camaleão”, afirma. “Esse desejo de encontrar o invisível vem de filmes que fiz anteriormente. Esse é o desejo original da Blogothèque. Busco a interconexão em tudo, sem gênero, sem fechamento.”
Seu projeto mais recente, intitulado “Híbridos”, nasceu dessa descoberta espiritual. Na sua volta ao mundo, passou pelo Brasil e foi tocado pelo candomblé. “Tem uma coisa bem especial nele, que é a ligação com a realidade. Vai além do livro. Voltei pra cá no ano passado pra fazer um grande projeto da espiritualidade. O Brasil é um grande país pra falar disso.”
Ao longo de um ano, Vincent e sua mulher, Priscilla Telmon, viajaram pelo país registrando rituais. Como resultado, lançarão na internet mais de 60 curtas — um para cada cerimônia — e um longa que costure tudo, com estreia prevista para o ano que vem. “O que estamos fazendo no Brasil tem a ver com celebração, com mostrar a beleza. Desmistificar, de uma maneira, sem desmistificar. Sem dar informações demais, mas mostrar que precisamos de tudo isso.”
O pai do artista Oscar Raby tinha 22 anos quando a Caravana da Morte passou por seu regimento, no norte do Chile. Pouco tempo havia passado desde o golpe liderado pelo general Augusto Pinochet, e a Caravana rodava o país executando presos pelo regime. Raby era tenente e presenciou, sem poder fazer nada, uma dessas execuções.
Anos depois, quando era adolescente, Oscar Raby ouviu essa história pela primeira vez. O pai lhe chamou, pediu para que se sentasse e narrou os acontecimentos daquele dia — como havia feito em depoimentos à polícia– para explicar ao filho porque seu nome iria aparecer em livros de história e notícias no jornal. Por mais de 20 anos Oscar carregou consigo essa lembrança sem saber exatamente o que fazer com ela. Até deparar-se com a realidade virtual.
“Percebi que esse meio era ideal para te colocar numa situação em que você tem controle, mas esse mesmo controle te arrasta. Foi por isso que meu pai passou”, diz o artista, que esteve em São Paulo para o evento Mediamorfosis Brasil, que discute o impacto de novas tecnologias na produção de conteúdo.
“Assent”, trabalho que resultou da descoberta dessa tecnologia, utiliza a realidade virtual para colocar o espectador no lugar do pai de Raby, observando de mãos atadas a morte de um grupo de pessoas. Exibido neste ano na mostra New Frontier, voltada para artistas independentes no festival de cinema Sundance, o trabalho borra os limites entre documentário e videogame.
Em “Assent”, Raby não utiliza, por exemplo, fotografias ou imagens realistas para compor o ambiente no qual, usando óculos de realidade virtual, o espectador fica imerso. O cenário lembra um jogo, com imagens estilizadas e atmosfera que lembra a de um sonho ou de uma lembrança já meio apagada. “O processo envolveu muita tinta jogada sobre uma tela. Há um monte de coisa escondida debaixo de camadas de pintura seca”, conta o artista.
Os personagens tampouco são reais: foi o próprio Raby quem serviu de modelo para todo o mundo que aparece em cena. “A questão mais crucial para mim era: com o que se pareceriam as vítimas? E os assassinos? Quem sou eu para contar a história deles?”, diz. “Não senti que seria justo eu tentar representar a vida deles. A única coisa honesta que eu poderia fazer seria mostrar como essa história afetou a vida do meu pai e a minha. Acabei usando a mim mesmo, minha cara e meu corpo, para representar todos. O usuário se torna meu pai, uma testemunha silenciosa da execução.”
É, portanto, uma interpretação dos fatos. “Não sou jornalista, sou artista. Tudo o que faço é uma interpretação”, afirma. “As memórias do meu pai são parte das minhas próprias lembranças, da mesma forma inescapável em que às vezes você se vê agindo ou falando como seus pais. Às vezes é reconfortante, mas na maior parte das vezes isso te lembra do quanto você tem medo de repetir seus defeitos.”
Depois do primeiro lampejo, Raby levou dois anos refletindo sobre como contar a história (colocar o espectador no lugar das vítimas? Dos assassinos, talvez?) e quatro meses tocando o projeto durante a noite, após trabalhar durante o dia na Galeria Nacional da Austrália. Foi uma jornada completamente solitária. “Duas pessoas estiveram no projeto: o Oscar do dia e o Oscar da noite”, brinca.
Ele nunca tinha trabalhado com realidade virtual antes disso. “Sou um artista visual, mas também um designer multimídia. A maior parte do meu trabalho foi criada com ferramentas digitais. Até pinturas, colagens e performances”, diz. “Por causa desse passado eu penso na realidade virtual não como algo que necessariamente siga a escola do cinema, mas como uma mistura de teatro, arquitetura, fotografia, pintura e, claro, videogames.”
A REALIDADE VIRTUAL PUNK
As experiências com a tecnologia e cinema tradicional são bastante diferentes tanto para espectador quanto para realizadores, segundo Raby. Se ao fazer um filme o diretor determina aquilo que as pessoas vão ver numa cena, na realidade virtual o olhar pode ser direcionado a qualquer lugar, a critério do público. “Agora aprendemos a sugerir, a convidar e montar a mesa para uma festa, para que os convidados à nossa experiência escolham aquilo que os estimula.”
Trata-se, para ele, de uma arte totalmente nova, que assimila elementos de mídias anteriores, as mastiga e as transforma numa linguagem única. “Um trabalho de realidade virtual pode não ser um filme, mas uma performance ou uma peça escrita para o usuário, que coloca os óculos e vira um ator nela. Pode ser um um dançarino seguindo um roteiro visual ditado pelos óculos de realidade de virtual”, diz Raby, listando outras formas de incorporar a tecnologia à arte.
Para ele, a tecnologia ainda engatinha e dá margem para muita experimentação. “Já alcançamos o potencial da pintura?”, compara. “Estou esperando a aparição do jazz da realidade virtual, o punk. Espero por todos os gêneros de realidade virtual, que representem todas as vozes.”
Por ora, o acesso a projetos do gênero não é tão disseminado, já que não é fácil colocar as mãos nos óculos de realidade virtual. O ambiente também pode influenciar na experiência de imersão, diz Raby. “O entorno, o espaço físico, pode fazer tanto para colocar o público no universo minúsculo que você preparou. Pode dar aquela sensação de ritual que reconhecemos quando as luzes do cinema se apagam ou quando o maestro levanta a batuta.”
FICÇÃO E DOCUMENTÁRIO
Depois de “Assent”, Raby criou um estúdio de realidade virtual em Melbourne, Austrália, chamado VRTOV, com vários projetos em desenvolvimento. Em “Travelling While Black”, o objetivo é mostrar a dificuldade que negros tinham em circular pelos Estados Unidos na década de 1950. “Alguém publicou um guia de viagem para eles, uma espécie de [guia] Lonely Planet mostrando as melhores rotas para se divertir e evitar problemas”, conta. “Vamos criar uma experiência que coloque o espectador na pele de um desses viajantes.”
Ainda no gênero documentário, uma série procurará mostrar como se vivencia a solidão, colocando o público em situações de isolamento, em locais como uma prisão ou Antártida.
Há também um projeto de ficção, baseado no romance publicado na internet “Queerskins”. O personagem principal é uma das primeiras vítimas da Aids nos Estados Unidos, nos anos 1980. “Conhecemos seus pais e vemos como eles lidam com a perda do filho. Você é convidado à cena como o fantasma desse filho morto.”
Na realidade virtual, a poesia importa tanto quanto a tecnologia. A dica de Raby para quem quer começar a trabalhar com realidade virtual é singela: aprender a focar em si e experimentar aqueles momentos que só se tem sozinho. “Para deixar a realidade virtual acontecer graciosamente você precisa praticar ficar consigo. É como nadar. Você deve encontrar um desses momentos e tentar replicá-lo.”
“Deve-se achar aquele gesto que faça sentido para você, que te faça sentir algo. As chances de que pelo menos uma pessoa no mundo também sinta isso são muito grandes. Recrie e mostre isso ao mundo. Você provavelmente vai ver, assim, que a realidade virtual não é um lugar tão solitário.”
Falando sobre o novo longa de Ridley Scott, o apresentador americano Jimmy Kimmel brincou: “Esse é o segundo filme em que Matt Damon é um cara que fica preso no espaço. Quando o Ben Affleck vai para o espaço, ele explode um meteoro pra preservar a humanidade. Quando Matt Damon vai pra lá, ele se perde e tem que ser salvo”. Um ano depois de ficar ilhado em outro planeta em “Interestelar”, Damon se perde em Marte em… “Perdido em Marte”. Falando assim parece que são dois filmes parecidos. Não são. Ao descrever o filme de Scott, que estreia hoje (1º), o que vem à mente, surpreendentemente, é “engraçado”.
Talvez quem tenha lido o livro de mesmo nome, publicado por Andy Weir em 2011, já espere por algo assim. Sabendo sobre a história apenas que Matt Damon fica preso em Marte, é natural pensar que vem pela frente algo como o périplo de Sandra Bullock em “Gravidade”: um filme cheio de efeitos especiais, cenas tensas de ação e uma trilha sonora meio épica, meio dramática.
Mas não é bem assim. Matt Damon é Mark Watney, astronauta em viagem a Marte, dado como morto pelos companheiros nos primeiros minutos do filme ao ser atingido por uma antena em uma tempestade que os obriga a abortar a missão antes da hora. Quando a poeira abaixa, Watney se encontra sozinho, ferido, e num abrigo feito para durar apenas 31 dias. A próxima missão a Marte, ele sabe, só chega em quatro anos (e, ainda por cima, bem longe de onde ele está). Sua conclusão é simples e uma síntese do filme: para sobreviver todo esse tempo, melhor do que dar uma de herói de ação é “science the shit out of this” (numa tradução livre, a frase vira algo como “usar a ciência ao máximo”).
Watney é bem-humorado, surpreendentemente inabalável e consegue transformar uma situação desesperadora em algo leve. Como Tom Hanks em “Náufrago”, dá um jeito de manter a sanidade mental conversando com alguém. No caso, sua bola de vôlei Wilson é um vlog, que usa para documentar seu progresso. Com pouca infraestrutura para sobreviver por tanto tempo, o primeiro desafio é produzir comida para quatro anos, em um planeta em que nada cresce (se ele encontrasse a água anunciada nesta semana, teria sido bem mais fácil). Por sorte, ele é um botânico — o melhor do planeta, em suas palavras.
É aí que o filme fica interessante. Nada contra a luta desesperada de Sandra Bullock para voltar à Terra em “Gravidade”, mas Watney é mais envolvente. Sua fórmula, como ele mesmo explica, é pegar um problema de cada vez e resolvê-lo racionalmente, mostrando ao público a ciência por trás daquilo. Como plantar batatas naquele solo? Como irrigar sua plantação? Como se manter aquecido? Como atravessar milhares de quilômetros para chegar onde a próxima nave irá pousar? Como se comunicar com a NASA para avisar que está vivo? Todas essas questões são enfrentadas por Watney e descobrir os meios encontrados para solucioná-las é mais legal que saber o fim — principalmente se você tiver visto o trailer, que revela boa parte da trama.
“Perdido em Marte” é exemplar como filme de ficção científica. É ficção, já que não temos ainda missões tripuladas a Marte (no filme, eles estão na terceira). E é pura ciência. Tudo bem, talvez a ciência ali não seja totalmente compatível com a realidade. Um astronauta em Marte, por exemplo, não andaria como na Terra, e sim se locomoveria por saltos, como na Lua. Com uma atmosfera tão pouco densa, uma tempestade jamais seria violenta a ponto de fazer com que a missão fosse abortada. A radiação no planeta também seria tão forte que Watney ficaria muito doente e não sobreviveria muito tempo mesmo que voltasse logo à Terra.
E tem a questão da água, que deixou o filme levemente defasado. Em “Perdido em Marte”, Watney tem que dar um jeito de produzir o líquido para conseguir regar sua plantação de batatas e se manter vivo. Na semana do lançamento, porém, a NASA anunciou a descoberta de correntes de água salgada no planeta. Tudo bem, não resolveria totalmente o problema do astronauta, mas o enredo poderia ser um pouco diferente, o diretor reconheceu. Scott inclusive soube da descoberta dois meses antes do resto do mundo, segundo contou ao New York Times, mas não dava mais tempo de mudar a trama. “E teria perdido uma grande cena”, disse. O entretenimento vem em primeiro lugar.
De qualquer forma, a ciência por trás do filme é, de maneira geral, bastante crível. A NASA, aliás, deu uma consultoria à equipe de Scott para que os fatos do filme fossem o mais próximo possível da vida real. Para quem nunca mais teve contato com ciências depois da escola, “Perdido em Marte” é bem didático — “explique isso em inglês”, pede um personagem a outro depois de umas raras frases complexas para os leigos — e nada disso importa. Dá até vontade de aprender mais (a primeira coisa que perguntei a um amigo mais entendido, saindo da sala de cinema, foi: “Batatas não apodrecem em Marte?”).
Matt Damon, que passa boa parte do filme falando sozinho, segura as pontas. Não dá para dizer que ele dê um show de atuação, mas consegue se sustentar na base do carisma. O fato de Damon não ser o típico astro de cinema e parecer um pouco gente como a gente, nesse caso, ajuda.
Watney fala bastante palavrão, zoa o gosto musical dos amigos — apesar de algumas escolhas óbvias, como “Starman”, de David Bowie, a trilha sonora tem ótimos momentos — e mantém o otimismo o tempo todo. É um forte candidato a melhor personagem do cinema para ter como companhia numa ilha deserta, pela engenhosidade e pelo humor, e o mérito é tanto do roteiro quanto do ator.
“Perdido em Marte” vai virar um clássico como “Blade Runner” e “Alien”, de Ridley Scott? Num chute sem nenhum critério a não ser instinto: não. Mas é um bom divertimento. E, numa semana em que descobriram correntes de água salgada em Marte, faz com que mais pessoas se interessem pelas viagens espaciais ao colocar graça na ciência. Já é bastante.
Bob comemora seu aniversário de dois anos numa tarde de domingo nos Jardins, em São Paulo. Para driblar o calor de mais de 30 graus, serve aos convidados — emperiquitados com lacinhos, lenços coloridos e vestidos de bailarina — picolés de cenoura ou maçã com banana. A festa está cheia, mas Bob brinca sozinho desde que um amigo grandão e levemente invocado rosnou e lhe mostrou os dentes. Um detalhe importante: Bob é um cachorro, assim como a maioria de seus convidados.
É uma festa inusitada e, em alguns momentos, surreal. “Esse brigadeiro é pra gente, não pra cachorro, tá?”, esclarece uma vendedora de doces. A explicação é necessária, já que a maior parte das barraquinhas da festa tem animais como público-alvo. Shampoo, condicionador, roupinhas, biscoitos, cerveja (sem álcool e sem gás) e uma mesa de quitutes formam do cardápio de produtos para cachorros.
“Esse é o Bob?”, pergunta uma mulher ao chegar, com seu cachorro na coleira, para o dono de um dos vários golden retrievers — raça do aniversariante — por ali. “Não, esse é o Bowie”, responde ele, chamando o cachorro que brinca com Lennon e Elvis (“Só cantores aqui!”, comenta uma moça, empolgada) e, minutos depois, devora um picolé canino com palito e tudo. Quase ninguém ali conhece o dono da festa pessoalmente, mas mesmo assim dezenas de pessoas pagaram R$ 22 por cabeça (com direito a dois cachorros por convite), para lhe dar parabéns e entregar presentes.
Bob, é bom explicar, não é só um cachorro. É um cachorro celebridade no Instagram, com mais de 210 mil seguidores. Boa parte dos outros cães na festa, aliás, tem seus próprios perfis nas redes sociais. Para facilitar a vida dos convidados, quase todos os goldens usavam bandanas com seu nome. Uma busca pelo nome do animal com a palavra golden no Google revela todos os perfis: Chandon (6.155 seguidores), Mell e Reiki (21,7 mil), Hanna (5.035), Google (15,8 mil), Marley (15,3 mil) e por aí vai. Todos admiradores de Bob, o mais bem-sucedido da turma.
O cachorro ganhou fama posando com um hamster e passarinhos que vivem em sua casa. Suas fotos fofas chamaram a atenção de sites como Buzzfeed, Daily Mail, USA Today e Huffington Post em países como Itália, Estados Unidos, e Inglaterra. As matérias lá fora ajudaram a catapultar o número de fãs. Em junho, Bob tinha perto de 50 mil seguidores. No mês seguinte, passou a barreira dos 100 mil. Pouco tempo depois, passou dos 200 mil.
Em julho, fez sua primeira festa. Por R$ 50 (R$ 20 consumíveis) era possível levar um cão para brincar, participar de um concurso de fantasia, “degustar comidinhas pets”, concorrer a prêmios e conhecer Bob pessoalmente. Segundo seu dono, Luiz Higa Júnior, havia mais gente na festa julina do que no aniversário. E mesmo na comemoração dos dois anos de Bob o espaço estava bem cheio. Todas as tentativas de contar o número de cachorros presentes, porém, falharam (experimente contar uma matilha de golden retrievers correndo um atrás do outro).
Bob tem também um lado empresário: é parceiro de algumas lojas de produtos para cachorro, que anuncia em seu perfil. Entrando no site das lojas e usando um cupom Bob (só escrever o nome do cão no campo de promoções) há um desconto em produtos. Em contrapartida, as lojas às vezes aparecem no perfil do cachorro e expunham no seu aniversário. A tal cerveja canina é um exemplo. “O esquenta aqui em casa foi dos bons!!!! E… Estamos bêbassos”, diz o post em que o cão aparece ao lado da garrafa. O perfil ainda dá dicas de hotéis para cachorro, marcas de ração e restaurantes e padarias que recebem animais.
A figura “Bob Golden Retriever” nasceu meio por acaso. O Luiz participava de um grupo de fãs de golden no Facebook, em que todos postavam fotos de seus cachorros, e começou a fazer o mesmo. “Já tinha os passarinhos, comecei a soltar e colocar para tirar fotos juntos. Todo o mundo gostava. Pra não ficar muito maçante, todo o dia postando foto dele lá, resolvi criar um perfil no Instagram”, conta. “Estou numa época agora meio sem tempo, por causa do trabalho. Não estou conseguindo fazer tantas fotos. Mas tento atualizar todo dia, com pelo menos uma.”
CICLO SEM FIM
O aniversário de Bob é um reflexo de como funciona o mundo dos perfis de animais no Instagram. Escolha um ao acaso. Leia os comentários. Clique em algum deles. A probabilidade de ser outro perfil de animal é alta, já que muitos se conhecem e interagem com os outros. Repita o procedimento. É um ciclo sem fim.
No meio dessa multidão, alguns se destacam e chegam ao status de super celebridade. É o caso da cadelinha americana Marnie, que tem a cabeça virada para o lado, a língua de fora, 1,7 milhão de fãs no Instagram e mais fotos com famosos do que a Kim Kardashian (Lena Dunham, Tina Fey, James Franco e Miley Cyrus já posaram com ela). Um de seus “amigos” é o Tuna, cão retrognata — que tem a mandíbula retraída — seguido por 1,5 milhão de perfis. É uma versão em escala maior do que acontece no Brasil, com animais posando no perfil um do outro e “conversando” pelas redes sociais como se fossem gente.
O próprio Instagram fez, no ano passado, um calendário de 2015 só com imagens de seus perfis de animais. E, para os donos, os bichos podem ser uma mina de ouro. Neste mês, a designer gráfica Leslie Mosier publicou um texto no Huffington Post dizendo que tinha largado o emprego para ser empresária de seu pug, Doug, que tem 716 mil seguidores no Instagram.
Leslie comprou Doug em 2012 e começou a publicar fotos dele em seu próprio perfil. Logo percebeu que as imagens do cachorro eram mais curtidas que as outras e passou a investir nele: fez montagens, deu várias fantasias, caprichou nas legendas. As fotos de Doug passaram a ser compartilhadas por outros perfis de cachorro e ela aproveitou o embalo para criar uma conta própria para o cão.
Em pouco tempo Doug ganhou a mídia. Primeiro apareceu no site Mashable, depois em uma série de outros, até chegar à televisão americana. Um vídeo que fez numa festa para comemorar a marca de 100 mil seguidores estourou e teve mais de 20 milhões de visualizações. Foi aí que Leslie decidiu fazer do cachorro seu ganha-pão. “Por mais que tenha sido uma decisão dura, não foi difícil perceber que construir a marca Doug the Pug era uma oportunidade única na vida”, escreveu Leslie. “Com o apoio dos meus pais e amigos, tomei uma das decisões mais difíceis e mais gratificantes da vida, abrindo mão da segurança de um salário mensal.”
As publicitárias Amanda Nori e Stéfany Guimarães seguiram o mesmo caminho, segundo contaram à Folha — tentamos falar com elas mais de uma vez para fazer uma entrevista, sem retorno. Donas do gato Chico, montaram a página Cansei de Ser Gato (342 mil fãs no Facebook e 115 mil no Instagram), com imagens de um felino blasé encarnando vários personagens.
Devido ao sucesso do gato, pediram demissão de seus empregos. Desde então, Chico já protagonizou mais de 70 campanhas publicitárias. Fora isso, as duas abriram uma loja virtual com fantasias para gatos, roupas para seus donos e objetos como almofadas e canecas. Fizeram também um livro com fotos do animal e planejam outro: uma biografia. “Chico é um influenciador da internet”, disse Stéfany ao jornal.
OS VÁRIOS PORQUINHOS
Nem só de “dog people” e “cat people” vive o Instagram. Outro animal tão popular quanto cães e gatos é o porco (confissão: eu mesma sigo quatro perfis). No Brasil, o mais célebre é Jamon (361 mil curtidas no Facebook e 58,8 mil no Instagram), da publicitária Dea Mendes. O porquinho foi seu presente de Dia dos Namorados em 2013. Ela queria um animal que vivesse mais que um cachorro, mas que agisse mais ou menos como um deles e pudesse ser criado em casa.
Segundo a Dea, o porco — que mais tarde ganhou um companheiro, Nero — é pacato, esperto e carinhoso. “Os dois até adotaram dois gatos da rua, que dormem na casa com eles. Meu marido tem certeza que eu adotei, mãs não foi!”, ela conta. Tamanha simpatia fez com que Dea postasse sem parar fotos de seu porco em seus próprios perfis. “Parecia mãe de primeira viagem. Vi o quanto às vezes aquilo me irritava nos outros, então poderia (e devia) estar irritando meus amigos.” Fez, então, um perfil para Jamon, entre junho e julho de 2013.
Poucos meses depois, em setembro, o perfil oficial do Instagram recomendou Jamon como um animal a ser curtido e lhe deu a hashtag #weeklyfluff (algo como o fofinho da semana). “Era a primeira vez que um ‘pig’ figurava na sugestão semanal deles”, conta Dea. “Chegamos a sair na [revista] ‘Wired’ para contar quem estava por trás do Jamon. Foi uma conquista incrível.” A partir da recomendação do Instagram o número de seguidores cresceu, assim como o espaço na mídia, que gerou mais seguidores, que gerou mais espaço na mídia… E por aí foi.
As fotos de Jamon são, basicamente, fofas. O porco veste chapéu de pirata, sai do banho enrolado numa toalha, tem roupinhas personalizadas e fica uma graça de peruca. Antecipando a popularidade suína em 2010, o personagem da série “How I Met Your Mother” Barney Stinson (também nome de um cachorro no Instagram, vale ressaltar) cravou: é impossível não se derreter por um miniporco.
UM CÃO CHAMADO JIMMY
O animal brasileiro mais interessante do Instagram, possivelmente, é o mais diferente do grupo: o bull terrier Jimmy Choo. Suas fotos não estão expostas num perfil próprio, e sim no do seu dono, o artista Rafael Mantesso. Muitas vezes não há legendas, ele não “conversa” com outros cachorros e, embora Jimmy seja bonito, sua fofura no dia a dia não é o principal atrativo das imagens.
Nas fotos tiradas pelo Rafael, o Jimmy aparece sempre num fundo branco, quase sempre interagindo com desenhos do dono. Tem Jimmy num tapete voador, sendo engolido por um jacaré, mostrando a língua ao lado do Calvin e do Haroldo. De vez em quando há objetos envolvidos, e é surpreendente como o cachorro é tão calmo quanto expressivo. Questionado sobre como fez para tirar uma foto em que Jimmy aparece de toalha enrolada na cabeça e uma rodela de pepino sobre o olho, Rafael responde como se fosse óbvio (quem tem cachorro sabe: não é): “Coloquei a toalha na cabeça dele, um pepino no olho, e cliquei”.
Jimmy foi comprado em 2009, quando o Rafael se casou. Ele queria um bull terrier, ela topou. Foram a um canil e a criadora tentou convencê-los a levar um macho mais forte, maior. Rafael quis Jimmy, o branquinho que foi brincar com ele assim que tinha chegado. Todos os filhotes tinham nome de um X-Men. “Ele ganhou o pior possível, o X-Men mais desconhecido: Fortão”, conta Rafael. “Óbvio que minha ex-mulher não gostou. Ela já tinha na cabeça o nome da marca de sapatos de que ela mais gostava. Ela era estudante de moda e oriental, por isso o apreço pela Jimmy Choo.” O destino cool do cão (chamado, no pedigree, de Jimmy Choo Fortão Di Maredella — o último nome é o do canil) estava mais ou menos traçado.
Rafael começou seu instagram como um canal de um blog de gastronomia que tinha na época. Postava principalmente desenhos e brincadeiras que fazia com comida e brinquedos, mas as pessoas não acreditavam que o conteúdo era dele. “Achavam que era montagem ou coisa que eu pegava da internet. Daí vez ou outra eu postava fotos do meu cachorro pra mostrar que aquele perfil era de um cara de verdade.”
Quando se separou da mulher, ficou com o apartamento, vazio, e o cachorro. “Decidi não morar mais lá, mas até vender o apartamento eu não queria comprar móveis”, diz. “Não teria móveis, mas teria telas e desenhos. Teria vida e teria a minha cara.” Começou fazendo fotos do cachorro em poses mais básicas, entre suas pernas ou vestindo suas botas. “Um dia comprei uma lixeira e desenhei um esqueleto na caixa. Coloquei o Jimmy atrás e fotografei, como se fosse um raio-x dele. A ideia nasceu aí. Ia desenhar nas minhas paredes e no meu chão e fotografar com o Jimmy do lado ou em frente.”
Cada foto tem uma história, diz. Às vezes desenha o cenário antes e coloca o cachorro nele só na hora de tirar a foto, às vezes desenha depois. O cão topa tudo. “O Jimmy é especial. Ele fica exatamente na posição que eu quero, pelo tempo que eu precisar”, afirma. “Ele sabe que eu preciso dele naquela posição e que não vou desrespeitá-lo, não vou constrangê-lo, não vou fazer nada de ruim com ele. Ele sabe que é importante pra mim e simplesmente fica.”
Há um ano Jimmy ficou famoso internacionalmente. “Em uma semana os principais portais e veículos do mundo todo descobriram meu Instagram e postaram a respeito. Passei de 20 mil seguidores para 100 mil em duas semanas. Daí em diante não parou mais. É meio orgânico. Uma pessoa segue, marca um amigo, que segue e marca outro amigo…” Hoje são mais de 387 mil.
As fotos do cachorro já viraram até livro, chamado “A Dog Named Jimmy” e vendido na Amazon por US$ 11,73. Os convites para publicação começaram já no ano passado. Rafael contratou um agente literário, que fez uma oferta de livro para dez editoras. Todas quiseram e ele fechou com a Penguin. “Lancei o livro lá fora primeiro porque, como tudo no Brasil, as coisas só têm valor aqui quando vêm lá de fora”, diz. Na Amazon, o livro está no topo na lista de mais vendidos com o tema cachorros. A versão brasileira será lançada pela editora Intrínseca.
Jimmy foi convidado para ir a Londres, para fotografar para um editorial de moda. Rafael não quis, mas a marca fez outra oferta: de estampar uma linha de produtos. “Fiquei muito honrado e caí em cima. O resultado ficou incrível e a coleção esgotou antes do que eles previam.” Jimmy talvez seja menos pop star que o aniversariante Bob, mas é modelo de alta costura. Tem celebridades animais para todos os gostos.
Logo no primeiro episódio de “Mr. Robot”, a serie deu uma mostra de que estaria um passo à frente da realidade: o hacker Elliot, interpretado por Rami Malek, força o namorado de sua psicóloga, que é casado, a terminar com ela. A ameaça: mostrar para a mulher seu perfil no site de traição Ashley Madison. Meses depois a chantagem não valeria nada, já que um grupo real de hackers liberou os dados de milhões de usuários do serviço.
Em tempos em que fotos de celebridades nuas são roubadas de seus celulares e computadores e da divulgação de dados do Ashley Madison, faltava uma série sobre a fragilidade da privacidade na internet. Como a criação de Sam Esmail, outras séries recentes têm colocado em primeiro plano algo importante na vida, mas secundário até então na televisão: a tecnologia. E não de um jeito completamente fora da realidade, como total ficção científica, e sim trazendo o tema para a atualidade. Falam de como a tecnologia influi no dia a dia, de seus prós e riscos.
O tema central é o mesmo, mas são séries bem diferentes. Tem uma sobre o desenvolvimento dos computadores nos anos 1980 (“Halt & Catch Fire”); outra mais futurista, sobre o que aconteceria se máquinas super modernas substituíssem humanos em quase tudo (“Humans”); uma comédia sobre uma start-up no Vale do Silício (“Silicon Valley”); tem até o “Além da Imaginação” da era das redes sociais, que mostra o lado assustador da internet (“Black Mirror”). E “Mr. Robot”, a mais atual de todas, sobre um grupo de hackers idealistas.
Pergunte a alguém a razão do sucesso de seu livro/filme/programa de TV e a resposta, via de regra, vai seguir o mesmo roteiro. O primeiro instinto é dizer algo como “não sei” ou “se soubesse a fórmula, estaria rico”. Depois vêm alguns chutes. Teve química no elenco, o roteiro era in-crí-vel, o público se identificou e por aí vai. Não tem diagnóstico certeiro. Mas a conclusão quase sempre gira em torno de uma observação singela: produzimos a coisa certa na hora certa. Lançada no momento errado, uma série maravilhosa pode se perder no meio da massa — só em 2014 foram exibidas mais de 370 séries nos Estados Unidos (constatação óbvia de hoje: é mais de uma por dia no ano).
O que o sucesso dessas séries tem em comum é justamente o timing. A britânica “Black Mirror”, de 2011, é um bom exemplo. Um pouco mais antiga que as outras, era elogiada pela crítica, mas pouco conhecida pelo público. No Brasil, era exibida pelo pequeno canal I-Sat, fora dos principais pacotes da televisão a cabo. Na TV americana, idem. Quando o Netflix começou a exibir os episódios iniciais da série, virou um sucesso (ainda que meio cult) nos Estados Unidos. Os resultados foram tão bons que o próprio Netflix vai produzir novos capítulos da série.
A cada episódio — todos são independentes uns dos outros — a série mostra o lado negro de uma tecnologia. No primeiro episódio, por exemplo, uma popular figura da nobreza britânica é sequestrada e, como resgate, os bandidos pedem para que o primeiro-ministro faça sexo com um porco ao vivo na TV. Com a pressão das redes sociais o político se vê numa encruzilhada: ou não obedece, ela morre e a reputação dele acaba ou… é melhor ver para crer.
Charlie Brooker, criador da série, diz ter tirado inspiração da “loucura” da vida real. Hoje, pensou, fazemos coisas que há poucos anos seriam consideradas malucas, como conversar com o seu celular e ter seu desempenho como dançarino avaliado por um videogame. “Se a tecnologia é uma droga, quais são os efeitos colaterais?”, disse ao jornal inglês “The Guardian”. Sua série fala tanto do conforto quanto do desconforto que a tecnologia traz. “O ‘black mirror’ [espelho preto] do título é aquele que você acha em toda parede, em toda mesa, na palma de toda mão: a fria e brilhante tela de uma TV, de uma tela, de um telefone.”
Na televisão tradicional, “Black Mirror” não deslanchou. Foram feitos menos de dez episódios, exibidos até 2013. No ano passado, quando a série já estava no Netflix americano, houve um especial de Natal com Jon Hamm, o Don Draper, de “Mad Men”. Agora ela pode voltar, acompanhada por outras séries sobre tecnologia. E num serviço de vídeo sob demanda, conectado à internet, um dos temas da série. O sucesso foi uma questão de timing.
BOOM
No ano passado estreou talvez a mais popular das séries de tecnologia, “Silicon Valley”, indicada a dois Emmy de melhor série de comédia — o prêmio deste ano será entregue no domingo (20) — e a um Globo de Ouro. Nela, Richard é um programador em uma grande empresa da internet e desenvolvedor um aplicativo de música que envolve um super algoritmo, disputado por dois empresários poderosos. Diferente das outras, fala de tecnologia com humor, brincando com os milionários do Vale do Silício.
Também do ano passado é “Halt & Catch Fire”, uma “ode à tecnologia” segundo Melissa Bernstein, coprodutora-executiva da série. Ambientada nos anos 1980, acompanha um ex-executivo da IBM que monta uma equipe para descobrir como foi produzido o principal computador da empresa e disputar uma fatia no mercado. A época foi escolhida, segundo Bernstein, porque é o ponto de partida para tudo aquilo que temos. E embora não se passe nos dias de hoje, fala de questões ainda atuais, como a dificuldade de ser mulher e trabalhar no ramo.
Em abril, a produtora afirmou que como a ciência não é bem representada na televisão, é um bom tema para seriado. Era verdade, mas neste ano vieram mais duas produções sobre tecnologia. Enquanto “Halt & Catch Fire” fala do passado, “Humans” olha para o futuro. Na trama, que estreou no fim de junho na TV americana, robôs super sofisticados de aparência humana passam a substituir as pessoas em todo o tipo de tarefa. A história começa quando Joe compra uma dessas robôs para ajudá-lo a cuidar da casa na ausência da mulher, Laura, que viajava a trabalho.
Quando ela volta, percebe que a máquina é bem mais eficiente que ela para as tarefas domésticas — e que o marido está contente demais com a nova funcionária. Seu medo é que o robô, que dá mostras de ter sentimentos, tome seu lugar na família. Primeiro problema. Uma das filhas de Laura, Mattie, também não é das mais empolgadas com a novidade. Se os robôs fazem tudo melhor do que um humano, por um valor bem menor, como ela vai arrumar um emprego? Seu medo é ser substituída não na família, mas no mercado de trabalho.
Falar de robôs vivendo entre humanos não é novidade, mas “Humans” trata da questão de um jeito com o qual podemos nos identificar mais do que vendo “Os Jetsons”, por exemplo. Não é um futuro em que as pessoas vestem roupas prateadas, carros voam e pílulas substituem comida. É um mundo como o em que vivemos, mas no qual a tecnologia é tão desenvolvida que o homem fica obsoleto. Segundo estudo da Universidade de Oxford do ano passado, 47% dos empregos dos Estados Unidos correm risco de serem automatizados nas próximas duas décadas. “Humans” fala de temores reais.
HACKERS, 20 ANOS DEPOIS
De todas as séries do gênero, a mais impactante é “Mr. Robot”, dona da impressionante nota de 98% no site agregador de críticas Rotten Tomatoes. À tecnologia a série ainda soma questões sociais contemporâneas. O protagonista Elliot não é só um hacker, é um hacker com consciência social, anticapitalista, que quer causar uma reviravolta no sistema financeiro, apagando os registros de dívidas de milhões de pessoas – o que lembra, de certa forma, o clássico filme “Hackers”, que foi lançado há 20 anos.
Ajuda o fato de que a série é, de forma geral, diferente. Não é uma novelona, como “Grey’s Anatomy”. Não tem vampiros, políticos, médicos ou policiais. É uma série inusitada, começando pelos títulos de seus episódios com nomes de arquivos típicos de quem baixa muita coisa por aí, como “eps1.1_ones-and-zer0es.mpeg”. É também bonita de ver. A clássica abertura e a música tema dão lugar a um letreiro retrô com o nome da série. Nem os enquadramentos são padrão: os personagens ficam bastante no canto da tela, às vezes até em segundo plano, enquanto a câmera mostra uma Nova York cinza, bem distante do glamour de “Sex and the City”.
Mas o principal fator do sucesso da série é seu tema. O criador Sam Esmail assumidamente buscou sua trama no noticiário. Para construir seu protagonista, por exemplo, olhou para seu país natal, o Egito, durante a Primavera Árabe. “Fui ao Egito logo depois que tudo aquilo aconteceu e achei muito legal ver todos aqueles jovens bravos com como o país estava, bravos com a sociedade. E a maior arma que eles tinham era o fato de que eram jovens e bravos”, disse à revista “The Hollywood Reporter”. Gostou de ver como eles usavam nessa luta a tecnologia e as redes sociais, mesmos artefatos de “Mr. Robot”.
Para a primeira temporada, deu certo. Sobre a segunda, é muito cedo para dizer. Mas o fato é que Esmail pretende repetir a estratégia e já está conversando com economistas para tentar antecipar o que aconteceria na realidade se os desdobramentos da série fossem verdadeiros. “Espero que deixemos a economia sexy e divertida.”
A televisão é feita de ciclos, alguns mais longos, outros mais curtos. No ano passado, por exemplo, foi declarada a era da comédia romântica — meses depois, quase todas as séries do gênero foram canceladas. Mas, por enquanto, é a hora e a vez das séries de tecnologia. E, dure ou não, é bom reconhecer na televisão um pouco do que se passa do lado de fora.
Dois lutadores, um descamisado com máscara de monstro e outro de fantasia vermelha, se enfrentam numa batalha estilo “Street Fighter” num galpão escuro. Trocam alguns golpes até que um agarra a cabeça do outro e a esmaga com as próprias mãos como se fosse uma fruta molenga, espirrando sangue para todos os lados. Algo como uma das mais famosas mortes do seriado “Game of Thrones”. Igualmente sangrento, mas menos sofisticado.
Produzido a custo zero, só com materiais que a equipe já tinha, o curta que mistura ação com terror é parte do programa “Cinelab”, que chega no dia 16 à segunda temporada (20h, Canal Universal). Cada episódio acompanha a produção de um pequeno filme nessa linha, com poucos diálogos e muitos efeitos especiais. Há cenas em cemitérios, tiroteios, alienígenas, zumbis, assassinos e zumbis assassinos. “O programa dá a oportunidade pra gente de fazer filmes que a Ancine [Agência Nacional do Cinema] não deixaria, por exemplo, se a gente mandasse os roteiros”, resume Kapel Furman, um dos três apresentadores da atração.
De tudo o que Kapel e seus colegas Armando Fonseca e Raphael Borghi – todos especialistas em efeitos especiais – disseram em uma conversa em São Paulo, é essa frase que chama mais a atenção. “Cinelab” não é incrível, é só legal. Mas tem ali algo de diferente. Revirando a biblioteca mental em busca de algo brasileiro parecido com os curtas que o programa apresenta, pouca coisa vem à cabeça.
No ano passado, de 113 longas nacionais lançados em circuito, segundo dados da Ancine, só um era de terror. É “Mar Negro”, aventura zumbi com um pouco de folclore brasileiro (tem um feiticeiro chamado Velho do Saco e seres como Baiacu-Sereia, por exemplo), em que uma vila de pescadores é contaminada misteriosamente e animais marinhos viram criaturas mortíferas. De Rodrigo Aragão, diretor de “Mangue Negro” e “A Noite do Chupacabras”, o filme estreou em janeiro. No resto do ano, alguns suspenses, mas nenhum puramente de horror.
O público para o gênero, porém, existe. Lançado no ano passado, o americano “Annabelle”, por exemplo, foi o filme de terror mais visto do Brasil nos últimos anos, com 3,7 milhões de espectadores, levando as pessoas a buscar a fantasia da boneca-título na rua 25 de março. O “Cinelab” quer levar justamente esse público de terror americano para a TV. E mais: estimular a produção de terror brasileiro no cinema.
A cada episódio o programa apresenta o making of de um curta de terror, ação ou ficção científica bem improvisado. Com poucos recursos (às vezes nenhum) e só uma diária de filmagem, os três apresentadores devem produzir algo do zero à pós-produção, revelando os truques por trás das cenas (a cabeça esmagada, por exemplo, foi feita com uma máscara maleável cheia de sangue cenográfico acoplada ao braço do ator).
Alguns curtas têm um quê de humor — o da luta, por exemplo, em que o personagem de vermelho se chama Capitão Comunista –, mas outros são tensos de verdade, como um em que uma menina morta volta como zumbi para se vingar do homem que a assassinou. “Tem um efeito bizarro pra caramba. Incomoda, tem pressão psicológica. De vez em quando a gente quer fazer um filme sério. É um filme de terror que poderia participar de festival. Ficou redondo e tenso pra caramba”, avalia Kapel.
TIRO, PORRADA E BOMBA
Citando suas referências, o trio menciona filmes de ação chineses, histórias com grandes catástrofes, gore, e “aqueles filmes dos anos 1980 que passaram despercebidos do grande público”. Produções de terror e ação, basicamente, gêneros com os quais trabalham fora do “Cinelab”. Raphael participou do thriller chinês “Plastic City” e do brasileiro “Pólvora Negra”. Com Armando dirigiu o suspense com zumbis “Desalmados”. Já Kapel é especializado em cinema fantástico e cenas de violência. No currículo tem filmes como “O Cheiro do Ralo” e “Encarnação do Demônio”.
“Sem querer falar que filme de drama, que só tem diálogo, é chato, mas o filme que tem ação, explosão e luta é muito mais divertido de filmar do que ficar 12 horas num banheiro com um casal discutindo. Isso é inegável”, opina Armando. Na televisão, tiveram a oportunidade de fazer o que gostam fora do circuito de festivais de nicho — “Desalmados”, por exemplo, esteve no Fantaspoa, Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre, mas não chegou aos cinemas.
“No programa a gente tem a oportunidade de contar histórias bizarras, ou mesmo de experimentar linguagens, experimentar efeitos”, diz Kapel. “Tá bizarro isso? Tá estranho? A gente gosta. É muito legal. A gente acaba se divertindo porque a experiência é um presente.” E usar a televisão como meio tem ajudado a conquistar o público de cinema, aquele que vai ver “Annabelle” e não encontra alternativas nacionais.
“A gente achava que não tinha público nenhum pro nosso trabalho, pra filme de terror, de ação. Com o ‘Cinelab’ passando na TV a gente descobriu que tem pra caralho. Mas nem todo o mundo pode estar aqui [em São Paulo] vendo nosso filme”, diz Raphael. “Descobrir que tem público pra esse nicho de filme é uma coisa muito massa. A gente achava que cinema de terror no Brasil fosse um fracasso, que não tinha público. O ‘Cinelab’ abriu uma porta.”
Segundo ele, há pessoas de todos os cantos do Brasil entrando em contato com o trio para falar de seu trabalho e apresentar suas próprias produções. “Tem mais gente que gosta desse tipo de filme fora de São Paulo do que aqui. Mas nossos filmes não atingiam esse público. Eles passavam em festival e ninguém vai em festival, só realizador. Por conta do ‘Cinelab’ passar na TV, a gente tem acesso a público e divulga nosso trabalho e o de gente que faz filme de terror. A gente é bem ativista nisso.”
MISSÃO QUASE IMPOSSÍVEL
E quais são as dificuldades para se fazer filmes de terror no Brasil? Segundo Rodrigo Aragão, diretor do solitário “Mar Negro”, todas. O cineasta começou como a equipe de “Cinelab”, trabalhando como técnico de efeitos especiais. “Era um profissional muito frustrado por trabalhar em poucos filmes, já que o cinema brasileiro não tem tradição de usar esse tipo de recurso. Aí resolvi fazer meus próprios filmes”, conta.
Os problemas, porém, não terminaram aí. Produzir terror no Brasil é missão “quase impossível”, diz ele. “Infelizmente, pra entrar na máquina e ser aprovado em edital, você tem que disfarçar seu filme de terror de outra coisa. Tem que fazer filme de terror envergonhado, de ‘suspense psicológico’”, afirma. “Qualquer filme de terror brasileiro que teve apoio e patrocinadores teve que cortar o título ‘terror’ do projeto. Isso é lamentável. Uma grande tristeza. Ou você consegue um caminho totalmente alternativo e independente ou tem que se enquadrar e fingir que está fazendo outra coisa, fazer terror sem sangue e sem tesão.” Esses filmes “pau mole” — diz, rindo — não agradam a ninguém: quem não gosta de terror não vai nem ao cinema assistir, e quem gosta sai frustrado.
O preconceito está em todos os setores da produção de cinema, diz. “Você tem comissões julgadoras de editais que consideram que o gênero tem pouco conteúdo cultural — o que é uma besteira –, patrocinadores que não querem colocar o nome da empresa num filme de terror, exibidores que, por não ter tradição do gênero no país, não aceitam distribuir esse tipo de filme, e um público que não está acostumado a ver terror brasileiro”, enumera Aragão.
“Nunca consegui passar nas leis de incentivo, misteriosamente. Mesmo tirando notas máximas em orçamento, capacidade. A gente não consegue passar. Todos os meus filmes foram feitos de maneira independente, com recursos particulares”, diz. Depois de prontos, é mais fácil exibi-los no Japão ou na Europa do que aqui. “Tento fazer terror tropical, com tempero bem brasileiro, figuras típicas, paisagens bonitas e música brasileira. Isso encanta muito o estrangeiro.”
Sem conseguir “romper a barreira do cinema”, Aragão tem buscado outras vias. Seu próximo filme, “Fábulas Negras”, feito com José Mojica Marins, o Zé do Caixão, será lançado direto digitalmente. “A contabilidade mais importante dos meus filmes é justamente nessas distribuições alternativas. Se juntar o que tive de downloads, mesmo ilegais, passa de 1 milhão fácil”, afirma.
“Toda semana recebo roteiros de jovens. O terror tem uma legião de fãs muito fiéis. Isso é comprovado com o sucesso de filmes baratos como [o americano] ‘Annabelle’. Mas ainda são órfãos de filmes brasileiros”, opina. Além da internet, a televisão é outra alternativa possível e, assim, programas como o “Cinelab” podem ajudar a mudar essa situação e alavancar o gênero no cinema, acredita. “Meus filmes estão passando no canal Space e sinto que esse apoio da televisão tem sido muito importante. O brasileiro tem que se acostumar a se ver”, diz.
Nas gravações de “Fábulas Negras”, conta o cineasta, Mojica lhe disse algo marcante. “Ele falou: ‘Rodrigo, quem faz filme de terror é maldito’. Isso é uma coisa muito triste. Esse conceito precisa mudar”, diz. “Fazer cinema de gênero no Brasil tem que ser considerado bendito. Estamos colocando cores brasileiras no nosso cinema, que tem sido pastel, às vezes muito careta e intelectual, sem contato com o povo. A gente precisa mudar o foco do cinema de gênero, não ser ‘under’.”
Apesar dos pesares, Aragão é otimista: “Existe uma nova geração de realizadores que está muito interessada em terror, produzindo cada vez mais filmes, e melhores. Vejo o futuro com bons olhos. Acho que as coisas vão mudar”.
Como um complexo livro escrito nos anos 60 levou dois dos diretores de cinema mais excêntricos a embarcarem em projetos mirabolantes, influenciou uma das maiores sagas cinematográficas já criadas e mesmo assim demorou anos, até décadas, para ser reconhecido como um dos marcos da literatura de ficção científica? Não é uma pergunta fácil de responder, mas tudo começou com uma obsessão por montanhas feitas de areia e vento.
Enquanto estava se preparando para uma reportagem que nunca escreveu, Frank Herbert se viu fascinado por dunas. A paixão tinha um quê de poesia: Herbert gostava do fato de que ninguém percebia que as massas de areia eram primas das ondas do mar, movendo-se da mesma forma, mas num ritmo mais lento. Estudando um monte de arquivos sobre areia, ele acabou pensando: “E se existisse um planeta que fosse todo deserto?”. E foi além: “Nos meus estudos sobre desertos e em estudos anteriores sobre religião, vi que muitas religiões nasceram no deserto. Então resolvi juntar as duas coisas, pois não acho que uma história deva ter uma linha só”.
Foi assim, de uma singela observação sobre a areia, que nasceu o livro “Duna”, publicado 50 anos atrás. Às duas linhas — deserto e religião — somaram-se tantas outras que a história pensada como um conto terminou por se desdobrar em seis volumes escritos por Herbert e mais de dez feitos por seu filho, Brian, em parceria com Kevin J. Anderson, como continuação de seu legado. Sozinho, o primeiro livro tem tantas tramas que fazer uma sinopse, ainda que em alguns parágrafos, é uma tarefa complicada.
Mas aqui vai uma tentativa: num futuro distante vive o garoto Paul, herdeiro da nobre família Atreides, designada para governar o planeta desértico Arrakis. É somente lá que se produz a substância mais valiosa do universo, que dá vitalidade e uma clareza incrível a quem a toma, possibilitando longas viagens entre planetas, essenciais para a manutenção da ordem do universo. Tirar essa substância das dunas, no entanto, é um problema, já que qualquer atividade na areia atrai vermes gigantes devoradores de pessoas.
Por causa da escassez desse recurso natural fundamental, Arrakis é um território cobiçado por outras famílias que querem dominá-lo. Na disputa, Paul acaba por se perder no deserto com a mãe, iniciada em uma ordem político-religiosa de mulheres com poderes como controlar a mente alheia. Ah, e Paul é também uma espécie de messias, aguardado ansiosamente pela ordem há gerações e dotado de poderes incríveis.
Não é fácil de explicar, muito menos de ler. Herbert não introduz seus leitores lentamente a seu universo — que é complicado e detalhado como a Terra Média de J.R.R. Tolkien. Algumas (muitas) consultas na internet ajudam a situar o leitor em meio às tramas e termos como Bene Gesserit e gom jabbar, citados sem cerimônia ou explicações logo nas primeiras páginas.
Essa complexidade não assusta, porém, a legião de fãs de ficção científica. Em 2011, uma enquete da americana NPR (Rádio Pública Nacional) com mais de 60 mil votos elegeu “Duna” como a quarta melhor publicação de ficção científica da história. Mas como acontece com muitas obras do gênero, o livro não foi um sucesso imediato.
Segundo James E. Gunn, autor da antologia em seis volumes “The Road to Science Fiction” e criador do Centro para o Estudo da Ficção Científica da Universidade do Kansas, “Duna” nasceu muito à frente de seu tempo. “‘A Sociedade do Anel’ [de Tolkien] veio em um período em que as pessoas estavam prontas. Independente de seus méritos, é isso que é fundamental para que um trabalho adquira esse nível de popularidade”, diz.
“‘Duna’ era um livro mais complexo e difícil. Foi um sucesso fora do comum como uma história publicada em revistas, mas teve dificuldades em sair como livro porque estava à frente de sua época tanto em relação aos temas quanto à abordagem”, diz. “É um livro significativo por causa desses temas e do tratamento compreensivo dado a eles, por causa dos personagens e pela capacidade de criar um universo futuro crível com uma história que o sustente.”
Rejeitado por dezenas de editoras até conseguir ser publicado, o livro deslanchou, segundo Gunn, surfando na onda do movimento ambientalista fortalecido nos Estados Unidos após a publicação de “Primavera Silenciosa”, de Rachel Carson, sobre os danos causados por pesticidas no ambiente. Foi aí que “Duna” e seu coquetel de assuntos, que falavam de danos à natureza e escassez de recursos naturais valiosos, deu certo. O livro conquistou os prêmios Hugo e Nebula, os mais importantes do gênero, e ultrapassou a marca de 1 milhão de exemplares vendidos.
O MAIOR FILME JAMAIS FEITO
Uma história como “Duna” merecia uma versão cinematográfica digna de sua grandiosidade. E se isso não aconteceu nas telas, acabou rolando nos bastidores. A mais curiosa tentativa de adaptação da história foi do diretor, escritor, poeta e cartomante Alejandro Jodorowsky, em 1975. Com o objetivo de proporcionar ao espectador a sensação de uma viagem de ácido, o diretor escolheu para o elenco nomes tão exóticos como Orson Welles, Mick Jagger e Salvador Dalí. A trilha sonora ficaria a cargo do Pink Floyd. Uma experiência lisérgica completa.
Mas, como na literatura, o filme “Duna” era moderno demais para aquele momento. Se no papel a saga de Herbert deu certo apesar das dificuldades, no cinema o projeto naufragou por causa de sua megalomania, ficando conhecido como um dos melhores filmes que nunca existiram. A história está documentada no filme “Jodorowsky’s Dune”, de Frank Pavich, lançado em 2013.
Jodorowsky nem havia lido a obra quando um produtor perguntou para ele qual seria seu filme dos sonhos. Poderia ter dito “Dom Quixote”, por exemplo, mas disse “Duna”, o livro de ficção científica mais popular daquele momento. Depois de lê-lo, finalmente, o cineasta teve certeza: precisou de cem páginas para entender o que se passava na trama.
Seu projeto era ambicioso. Só o storyboard, desenhado pelo consagrado artista francês Moebius, tinha mais de 3.000 imagens. O elenco estelar foi escolhido a dedo. Para aceitar um pequeno papel, Dalí exigiu ser o ator mais bem pago da história, pedindo de cara US$ 100 mil por hora trabalhada. Inviável. Mas Jodorowsky deu um jeito de driblá-lo. Como ele apareceria em cena por no máximo cinco minutos, ofereceu-lhe US$ 100 mil por minuto na tela.
Convencer um estúdio foi mais difícil. A resposta de todos era a mesma: a história era boa, o custo estimado, de US$ 15 milhões, era aceitável, mas os executivos não confiavam no diretor maluco nem acreditavam que alguém toparia ir ao cinema para assistir aquilo — como numa viagem de LSD, a jornada era longa, e estimada em mais de dez horas. Jodorowsky não cedeu: “Esse é meu sonho, não desistirei dele”. E ficou por isso mesmo.
Mas a história não terminou por aí. Quase dez anos após a tentativa de Jodorowsky, o filme “Duna” tornou-se realidade pelas mãos de ninguém menos que David Lynch, em 1984. Nele, o papel de Paul ficou com Kyle MacLachlan, que, anos mais tarde, reprisaria a parceria com o diretor na série “Twin Peaks”. O elenco tem ainda nomes como Patrick Stewart, Virginia Madsen e Sting — sim, o ex-vocalista da banda The Police.
No fim das contas, o filme não agradou nem mesmo a Lynch, que, sem poder fazer o corte final, não reconheceu aquele trabalho como seu. Anos depois, declarou que não seria justo dizer que a produção foi um pesadelo total. “Mas acho que foi 75% de um pesadelo”, afirmou, sincero. A ausência de controle criativo, disse, é a morte para um cineasta. “E eu morri.”
Sem o respaldo de seu diretor, o filme foi detonado pela crítica. No New York Times, Janet Maslin escreveu: “Muitos personagens de ‘Duna’ têm poderes psíquicos, o que os coloca na posição única de serem capazes de compreender o que está acontecendo no filme”. Richard Corliss, da revista Time, não deixou por menos: “A maioria dos filmes de ficção científica oferece um escape, como uma folga da lição de casa. Mas ‘Duna’ é tão difícil quanto uma prova. Você tem que se esforçar”.
GUERRA NAS DUNAS
Apesar do filme que nunca saiu do papel de Jodorowsky e da decepcionante versão de Lynch que foi às telas, o Guardian afirmou, em julho, que “Duna” tornou-se, sim, um grande filme: “Star Wars”.
“Dos poderes mentais dos jedis similares aos das Bene Gesserit à mineração em Tatooine”, há muito no universo de George Lucas que remete a “Duna”, segundo a publicação. “Herbert sabia que tinha sido copiado”, diz o texto. “Ele e alguns colegas formaram, como piada, uma organização chamada Sociedade Somos Muito Grandes para Processar George Lucas.”
Fãs na internet compartilham o sentimento. “‘Star Wars’ é ‘Duna’”, diz, categórico, um site que compila semelhanças entre a saga de Frank Herbert e a criada por Lucas. Alguns dos pontos que sustentam essa tese são bem simples: Tatooine (“Star Wars”) é um planeta deserto. Arrakis (“Duna”) também. “Star Wars” tem uma princesa Leia, enquanto “Duna” tem uma princesa Alia (se você não se convenceu, diga os nomes em voz alta. A pronúncia é bem parecida, argumentam).
Mas há também teorias mais bem desenvolvidas. Nas duas histórias, por exemplo, há um grupo de rebeldes lutando contra um império. Tanto Luke Skywalker quanto Paul Atreides, protagonistas das duas histórias, são jovens rapazes com destinos ligados a planetas desérticos, com poderes com os quais devem aprender a lidar. E (pequeno spoiler) são descendentes dos vilões da trama.
Cópia ou não, é inegável que há em “Star Wars” uma influência de Herbet, diz James E. Gunn. Segundo ele, “George Lucas foi atrás da literatura de ficção científica para se inspirar e fez homenagem a muita coisa que leu”. Como exemplo, Gunn diz que a forma como os Wookie, espécie do personagem Chewbacca, são retratados é inspirada em um desenho de capa da revista “Analog”, que publicou os primeiros trechos de “Duna”. “E há o esqueleto de um verme de areia [de ‘Duna’] que aparece em um dos filmes [de ‘Star Wars’]”, cita.
VERSÃO BRASILEIRA
No Brasil, a saga ganhou uma nova versão em 2010 motivada pela paixão de um fã. O editor Marcos Fernando trabalhava em uma livraria paulistana quando conheceu Adriano Fromer, publisher da editora Aleph, que tem como foco livros de ficção científica. Conversando sobre o gênero e os pedidos mais frequentes de leitores, Marcos comentou que um dos mais procurados era “Duna”, que estava esgotado.
Havia descoberto o livro tempos antes por indicação de um colega, que sabia de seu gosto pela ficção. “Ele percebeu que eu acabara de ler mais um livro de H. G. Wells, então me indicou ‘Duna’. Acabei devorando o livro, com mais de 500 páginas, em menos de uma semana. De lá para cá, reli esse volume da série pelo menos três vezes”, conta.
Com a indicação em mãos, a Aleph o contratou para fazer a revisão do texto traduzido, cotejando-o com o original do primeiro volume de “Duna” — tarefa que ele repetiu para todos os outros livros da série lançados pela editora até hoje — e para participar de coordenação editorial. Marcos deixou, então, a livraria e mergulhou no universo de Frank Herbert.
“Uma das maiores dificuldades que encontramos de imediato foi realizar uma nova tradução de um livro já consagrado, com seus fãs acostumados com a versão lançada nos anos 1980”, explica ele. “As escolhas da tradução da Aleph sempre se pautaram em um paralelismo com o original, dando espaço para os neologismos e aglutinações, muito empregados por Frank Herbert.”
“Duna” continua rendendo frutos. Da nova edição brasileira a volumes inéditos da saga, passando pelo documentário sobre o filme de Jodorowsky e pelas obras influenciadas pelo livro, há constantemente algo novo com a marca de Herbert circulando. “A prova cabal é a contemporaneidade das questões suscitadas pelo autor: disputas políticas, uso consciente da água, monopólio de combustíveis, a importância social das religiões”, diz Marcos. É sempre complicado explicar os motivos do sucesso de algo, mas, a mesma modernidade que atrapalhou “Duna” no começo está ajudando a trazer novos leitores 50 anos depois.