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A ficção científica de “Perdido em Marte”

Fazendo jus à palavra “científica” do gênero.

Falando sobre o novo longa de Ridley Scott, o apresentador americano Jimmy Kimmel brincou: “Esse é o segundo filme em que Matt Damon é um cara que fica preso no espaço. Quando o Ben Affleck vai para o espaço, ele explode um meteoro pra preservar a humanidade. Quando Matt Damon vai pra lá, ele se perde e tem que ser salvo”. Um ano depois de ficar ilhado em outro planeta em “Interestelar”, Damon se perde em Marte em… “Perdido em Marte”. Falando assim parece que são dois filmes parecidos. Não são. Ao descrever o filme de Scott, que estreia hoje (1º), o que vem à mente, surpreendentemente, é “engraçado”.

Talvez quem tenha lido o livro de mesmo nome, publicado por Andy Weir em 2011, já espere por algo assim. Sabendo sobre a história apenas que Matt Damon fica preso em Marte, é natural pensar que vem pela frente algo como o périplo de Sandra Bullock em “Gravidade”: um filme cheio de efeitos especiais, cenas tensas de ação e uma trilha sonora meio épica, meio dramática.

Mas não é bem assim. Matt Damon é Mark Watney, astronauta em viagem a Marte, dado como morto pelos companheiros nos primeiros minutos do filme ao ser atingido por uma antena em uma tempestade que os obriga a abortar a missão antes da hora. Quando a poeira abaixa, Watney se encontra sozinho, ferido, e num abrigo feito para durar apenas 31 dias. A próxima missão a Marte, ele sabe, só chega em quatro anos (e, ainda por cima, bem longe de onde ele está). Sua conclusão é simples e uma síntese do filme: para sobreviver todo esse tempo, melhor do que dar uma de herói de ação é “science the shit out of this” (numa tradução livre, a frase vira algo como “usar a ciência ao máximo”).

Watney é bem-humorado, surpreendentemente inabalável e consegue transformar uma situação desesperadora em algo leve. Como Tom Hanks em “Náufrago”, dá um jeito de manter a sanidade mental conversando com alguém. No caso, sua bola de vôlei Wilson é um vlog, que usa para documentar seu progresso. Com pouca infraestrutura para sobreviver por tanto tempo, o primeiro desafio é produzir comida para quatro anos, em um planeta em que nada cresce (se ele encontrasse a água anunciada nesta semana, teria sido bem mais fácil). Por sorte, ele é um botânico — o melhor do planeta, em suas palavras.

É aí que o filme fica interessante. Nada contra a luta desesperada de Sandra Bullock para voltar à Terra em “Gravidade”, mas Watney é mais envolvente. Sua fórmula, como ele mesmo explica, é pegar um problema de cada vez e resolvê-lo racionalmente, mostrando ao público a ciência por trás daquilo. Como plantar batatas naquele solo? Como irrigar sua plantação? Como se manter aquecido? Como atravessar milhares de quilômetros para chegar onde a próxima nave irá pousar? Como se comunicar com a NASA para avisar que está vivo? Todas essas questões são enfrentadas por Watney e descobrir os meios encontrados para solucioná-las é mais legal que saber o fim — principalmente se você tiver visto o trailer, que revela boa parte da trama.

“Perdido em Marte” é exemplar como filme de ficção científica. É ficção, já que não temos ainda missões tripuladas a Marte (no filme, eles estão na terceira). E é pura ciência. Tudo bem, talvez a ciência ali não seja totalmente compatível com a realidade. Um astronauta em Marte, por exemplo, não andaria como na Terra, e sim se locomoveria por saltos, como na Lua. Com uma atmosfera tão pouco densa, uma tempestade jamais seria violenta a ponto de fazer com que a missão fosse abortada. A radiação no planeta também seria tão forte que Watney ficaria muito doente e não sobreviveria muito tempo mesmo que voltasse logo à Terra.

E tem a questão da água, que deixou o filme levemente defasado. Em “Perdido em Marte”, Watney tem que dar um jeito de produzir o líquido para conseguir regar sua plantação de batatas e se manter vivo. Na semana do lançamento, porém, a NASA anunciou a descoberta de correntes de água salgada no planeta. Tudo bem, não resolveria totalmente o problema do astronauta, mas o enredo poderia ser um pouco diferente, o diretor reconheceu. Scott inclusive soube da descoberta dois meses antes do resto do mundo, segundo contou ao New York Times, mas não dava mais tempo de mudar a trama. “E teria perdido uma grande cena”, disse. O entretenimento vem em primeiro lugar.

De qualquer forma, a ciência por trás do filme é, de maneira geral, bastante crível. A NASA, aliás, deu uma consultoria à equipe de Scott para que os fatos do filme fossem o mais próximo possível da vida real. Para quem nunca mais teve contato com ciências depois da escola, “Perdido em Marte” é bem didático — “explique isso em inglês”, pede um personagem a outro depois de umas raras frases complexas para os leigos — e nada disso importa. Dá até vontade de aprender mais (a primeira coisa que perguntei a um amigo mais entendido, saindo da sala de cinema, foi: “Batatas não apodrecem em Marte?”).

Matt Damon, que passa boa parte do filme falando sozinho, segura as pontas. Não dá para dizer que ele dê um show de atuação, mas consegue se sustentar na base do carisma. O fato de Damon não ser o típico astro de cinema e parecer um pouco gente como a gente, nesse caso, ajuda.

Watney fala bastante palavrão, zoa o gosto musical dos amigos — apesar de algumas escolhas óbvias, como “Starman”, de David Bowie, a trilha sonora tem ótimos momentos — e mantém o otimismo o tempo todo. É um forte candidato a melhor personagem do cinema para ter como companhia numa ilha deserta, pela engenhosidade e pelo humor, e o mérito é tanto do roteiro quanto do ator.

“Perdido em Marte” vai virar um clássico como “Blade Runner” e “Alien”, de Ridley Scott? Num chute sem nenhum critério a não ser instinto: não. Mas é um bom divertimento. E, numa semana em que descobriram correntes de água salgada em Marte, faz com que mais pessoas se interessem pelas viagens espaciais ao colocar graça na ciência. Já é bastante.

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