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Comportamento

A confraria do pinball

A primeira coisa que Iure Gomes fez ao abrir as portas do Pinball Clube de São Paulo, no bairro do Cambuci, foi dar as boas-vindas e, antes que eu formulasse qualquer pergunta, disparou escada acima. Fazendo um gesto de “vem comigo”, bradou: “É aqui que acontece a mágica”, e novamente desembestou a andar entre as fileiras de máquinas de pinball alinhadas pelo espaço. A cada dois ou três metros, sempre falante, ele parava, ligava uma ou outra máquina, fazia demonstrações e até removia o tampão de vidro para revelar detalhes de cada peça. Em poucos minutos percorremos todo o imóvel enquanto Gomes se empenhava na meta de transmitir o máximo de informações possível a respeito daquela cultura. Aos 44 anos, o diretor comercial de uma empresa de TI é um dos sócios fundadores do clube, inaugurado em 2003. Atualmente, a agremiação conta com 25 sócios e 120 máquinas.

“O clube é fechado para os sócios”, explica. “Nós nos encontramos todas as terças, quintas e sábados, e isso aqui é como se fosse a nossa confraria. O nosso refúgio.” O acesso restrito ilustra o fato de que a prática do pinball, no passado hábito corriqueiro dos bairros populares, com seus fliperamas disputados por office boys e estudantes a matarem aula, nos últimos anos virou uma espécie de hobby de luxo. A maioria dos sócios do Pinball Clube de São Paulo, na faixa dos 40 anos, é um pessoal tão empolgado quanto Iure. Colecionadores de notável poder aquisitivo, já que essas máquinas, bem como sua manutenção, demandam um belo investimento. Para se ter ideia, uma máquina nova custa em torno de R$ 35 mil, e pode chegar até mais de R$ 50 mil, dependendo do modelo. Já uma máquina restaurada, antiga, custa em torno de R$ 22 mil. Cada integrante do clube tem, no mínimo, uma dezena delas.

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Iure Gomes entre duas de suas máquinas. Crédito: Guilherme Santana
Iure Gomes entre duas de suas máquinas. Crédito: Guilherme Santana

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Quando chega alguém novo querendo ser sócio, espera-se que o aspirante coloque pelo menos duas máquinas lá dentro. Fora isso, todos devem colaborar com os gastos de manutenção do lugar, do aluguel ao IPTU. O uso dos equipamentos é compartilhado livremente entre eles. Gomes, por exemplo, disponibiliza nove máquinas no clube. Segundo ele, a obrigação de cada membro é manter as suas funcionando e em bom estado, “para não virar depósito”. “Não existe intenção de ganhar dinheiro com o clube. Não queremos que o lugar fique lotado, e sim reunir um grupo de pessoas com um interesse em comum para bater papo. No final das contas, vira uma família”, observa o nosso cicerone. E complementa: “O perfil do pessoal é bem heterogêneo. Aqui você vai encontrar piloto de avião, assessor de imprensa, advogado, executivo, empreendedor, engenheiro. Todos unidos por essa paixão em comum que é o pinball.”

O modelo do Pinball Clube de São Paulo é replicado em outras cidades. Atualmente, funcionam outras duas células no estado do Rio de Janeiro – uma na capital e outra em Petrópolis – e mais duas no estado de São Paulo, em Boituva e no ABC paulista. Gomes revela que há iniciativas de expandir para Belo Horizonte, Porto Alegre e Caruaru, e explica: “Quando falamos em filial, não significa que o sócio tem a chave de acesso aos outros clubes, mas existe uma política muito legal de boa vizinhança. Só se paga para entrar quando temos as etapas do Campeonato Brasileiro, que passa por Petrópolis, ABC e São Paulo, onde rola a final. Ou, duas vezes por ano, sem data certa, quando abrimos para o público”. Os eventos open house aos quais ele se refere são anunciados nas redes sociais.

São recorrentes entre os membros do clube as declarações de que a nostalgia funciona como o maior atrativo da retomada do pinball. O próprio Iure Gomes teve contato com o pinball aos quatro anos de idade e nunca mais parou. “Meus pais me colocavam numa cadeirinha, eu botava o queixo naquela barra de metal do vidro da máquina, estendia os braços, e jogava completamente esticado. Eu também pirava naqueles pequenos arcades: Space Invaders, Asteróide, Bazuca, e por aí afora. Tem foto minha, bem pequeno, jogando”, relembra. O advogado Cid Rudis, de 41 anos, foi tragado por este universo aos sete anos. “Eu sou carioca. Morava em Copacabana e lá tinha um fliperama. Eu me lembro até hoje da primeira máquina que chegou com voz. Quando eles tiraram da caixa e ela emitiu o som de fala, foi um negócio inacreditável”, conta. Isso foi em 1981.

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Crédito: Guilherme Santana
Uma das máquinas de ‘Star Wars’. Crédito: Guilherme Santana

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Rudis é da geração das máquinas Taito, que dominaram o mercado nacional entre 1972-85 com franquias como Cavaleiro Negro, Fire Action e Oba Oba. “A Oba Oba eu jogava com meu pai, ele era amigo do [Osvaldo] Sargentelli, dono da casa de shows Oba Oba, no Rio. Meu pai já morreu. Me lembro até hoje do dia que reencontrei uma Oba Oba depois de 30 anos. Chorei. Veio aquele mar de recordações”, comenta sem conseguir esconder a emoção. “Foi quando senti que precisava trazer o pinball de volta para a minha vida.” Treze das máquinas mantidas no clube paulistano são dele. Fora isso, Rudis é dono de mais cinco arcades (máquinas multijogos) e outras duas máquinas de pinball, que estão em sua casa.

Das 220 máquinas que ocupam os dois andares do clube carioca, 70 pertencem ao seu fundador, o gerente de TI Mário Sérgio da Rocha, 40 anos. “Tudo no pinball me fascina”, discorre ele sobre os maiores atrativos da prática. “Mas a nostalgia tem um peso maior. Faz eu me recordar da época de infância e adolescência, quando as preocupações da minha vida eram ganhar uma bola extra ou um novo crédito com aquela fichinha comprada com o dinheiro suado. As economias do lanche da escola ou do ônibus.” Ele também chama a atenção para a jogabilidade física das máquinas. “A bola nunca traça o mesmo caminho. Por isso, cada partida é uma partida. Duas máquinas iguais, lado a lado, vão te oferecer um jogo totalmente diferente. Isso tem a ver com a elevação do playfield, o estado das borrachas, entre outros fatores.” Na ativa desde 2003, o clube do Rio hoje conta com 20 sócios.

A história de Ricardo Kobe é menos emoção e mais fissura. Aos 52 anos, ele é dono de uma loja voltada ao público geek. Como todo nerd, Kobe curte colecionar uma variedade de artigos que remetem à cultura pop. E o pinball, para ele, é parte desse barato. Hoje, ele é dono de onze máquinas, mas conta que já chegou a ter 56 – vendeu para investir na abertura da loja. A primeira aquisição foi em 1989, uma Fire Action da Taito. “O que eu mais gosto no pinball são os temas das máquinas. Tipo a Tommy, do The Who. Essa máquina é fantástica”, comenta. “Às vezes você acha algo muito raro e sabe que, se não fizer a doideira de comprar, vai perder a oportunidade.” Uma dessas “doideiras” ele cometeu na feirinha da 13 de maio. “A certo ponto da caminhada olhei para o lado e vi uma máquina de 1957. Sem minha mulher perceber, dei meu cartão para o cara e falei: ‘Amigo, essa máquina é minha. Cubra ela e me ligue amanhã. Só não levo para casa agora porque minha mulher não pode saber’.” Por muitos anos, a mulher de Kobe achou que ele possuía apenas três máquinas, enquanto ele já tinha investido em mais de trinta.

O analista de sistemas Marcelo Pereira Batista, 48 anos, é o fundador do clube de Petrópolis (Imperial Pinball Clube) e acaba de faturar o título de Campeão Brasileiro de Pinball. Em abril, ele vai para os Estados Unidos disputar o mundial. Segundo MPBola, como é chamado no âmbito do pinball competitivo, “existe uma cena mundial forte no mundo atualmente, porém restrita a colecionadores, já que não temos mais fliperamas por aí como nos anos 80”. Inaugurado em 2013, o clube de Petrópolis já conta com 40 máquinas, em sua maioria adquiridas em sites de compra na internet. “Algumas nós tivemos que mandar restaurar. Outras, ainda estão em seu estado original, mas em perfeitas condições de uso”, informa. Diferente do clube de Petrópolis, a coleção de máquinas que deu vida às unidades do Rio e de São Paulo guarda um aventureiro histórico de caça ao tesouro.

Muitos exemplares raros funcionando em perfeito estado, como a Ace High, criação da Gottlieb de 1957, as eletromecânicas Drakor, lançadas pela Taito em 79, a clássica máquina Tommy, inspirada na ópera rock do The Who, lançada pela Data East em 90, correram o risco de virar entulho. “Na hora de se desfazer delas, a única opção que o cara tinha era desmontar ou destruir. Então a gente começou a fazer um resgate”, explica MPBola. Nesse sentido, o conceito que deu vida aos clubes pode ser entendido como o de um museu, mesmo não se tratando de uma organização formal. “É a gente que salva as máquinas”, frisa Iure Gomes. “Pegamos aquelas que estão para ser destruídas e conseguimos recuperá-las. Tem muita história de resgate de máquina que estava para ser queimada. Em alguns casos, vimos lugares onde as máquinas já estavam queimadas, restando apenas os metais”, lamenta.

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Nikolaos Mbakirtzis fuçando as entranhas de uma das máquinas. Crédito: Guilherme Santana
Nikolaos Mbakirtzis fuçando as entranhas de uma das máquinas. Crédito: Guilherme Santana

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O Brasil já teve diversos fabricantes de pinball. Um dos últimos fabricantes foi a Taito, a marca mais bem-sucedida e dona de uma produção gigantesca no período de atuação. As atividades da empresa se encerraram no azul, sem dívidas. Ela simplesmente saiu do país e não recolheu o ativo. Então, quem tinha um fliperama com máquinas da Taito, passou a ser dono. E foi isso que tornou as coisas interessantes para os colecionadores. As máquinas permaneciam nesses lugares, mas os técnicos que geralmente faziam as visitas de manutenção, deixaram de ir. “Os caras começaram a dar um jeito de consertá-las diretamente com os técnicos que foram dispensados. Mas depois de um tempo, pararam também, porque deixou de ser interessante”, detalha Gomes. “Sumiram as peças de reposição, coisas do tipo. O interessante disso tudo é exatamente a possibilidade que foi aberta no mercado de uma hora para a outra. Alguns profissionais que existem hoje são oriundos justamente desse buraco que se abriu no mercado. Há casos antigos de máquinas que nos foram doadas. O cara falava: ‘Tira esse negócio daqui, porque isso é um trambolho que está tomando meu espaço’. Era pura verdade. No fim das contas, aquilo num bar ocupa o espaço de duas mesas”, reflete.

Na missão de resgatar máquinas antigas da destruição ou do ostracismo, os integrantes do clube do Rio conseguiram recuperar todas as máquinas um dia pertencentes a um antigo e gigantesco fliperama em Nova Friburgo. Mário Sérgio não mede esforços. Ele teve a ousadia de alugar um caminhão e passar em todos os depósitos recolhendo máquinas. Dessa vez, retornou com cerca de 20 exemplares e isso virou história na cidade. Mas ele tem uma extensa lista de outras histórias para contar: “Já desci máquina usando cordas, roldadas e a força de um caminhão, do segundo andar de um depósito que não tinha escadas. Já passei um carnaval em Búzios acompanhando o leilão de um exemplar raro pela internet, sem ir à praia. Quando ainda era solteiro e morava com minha mãe e avó, povoei a sala de estar com cinco máquinas. E já fiquei um dia inteiro sem comer para poder receber um lote de raridades”.

Em outra ocasião, eles subiram os morros das favelas correndo atrás de máquinas. Assim, conseguiram salvar duas e toparam com os destroços de mais três ou quatro. “O sujeito disse que ateou fogo porque não aguentava mais. Vimos somente os metais retorcidos e alguns vidros. O caixote de madeira e o playfield tinham virado estatística”, conta Gomes. “Uma das máquinas foi encontrada pelo pessoal do Rio num sítio do interior, no meio de um galinheiro, sendo usada como poleiro. Uma Shock, que hoje é raríssima”, comenta Cid Rudis. E prossegue: “Aqui, em São Paulo, já rolou de fazer comboio pelo interior, correndo atrás dos sítios e chácaras. E aí você encontrava máquina até na chuva. Infelizmente a maioria dos exemplares dos anos 80 veio nesse estado”.

A mania do pinball no mundo teve duas fases de ouro. A primeira foi no final da Segunda Guerra, entre 1945-55, quando dispararam as vendas e o número de fabricantes. A segunda, foi entre os anos 1980-90. Atualmente, até encontra-se gente que atua na restauração de equipamentos de ambos os períodos no Brasil, como a JSW, mas fabricante mesmo, não. Nessa nova fase em que o pinball virou culto, a fabricante norte-americana Stern dominou o mercado. Apostando na temática classic rock, a marca tem investido em máquinas licenciadas por bandas como AC/DC, Kiss, Rolling Stones e Metallica, além de séries, como The Walking Dead, Game of Thrones, Star Trek, e filmes, tipo Indiana Jones e Thron. Recentemente, eles fizeram uma edição comemorativa aos 50 anos do carro Mustang.

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Um típico encontro da confraria. Crédito: Guilherme Santana
Um típico encontro da confraria em São Paulo. Crédito: Guilherme Santana

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A concorrente direta da Stern é a Jersey Jack Pinball, que lançou as máquinas do Mágico de Oz e de O Hobbit. “Eles deram uma sacudida no mercado”, comemora Iure Gomes. “A Stern estava com uma qualidade muito baixa nos produtos, e isso fez com que ela arrumasse mais investidores para melhorar as máquinas. Aumentou muito a qualidade, para bater de frente com a Jack Jersey. E isso foi, sinceramente, maravilhoso para o pinball no mundo. Abriu portas para outros fabricantes, muito pequenos, que estão buscando investimento para tentar entrar no mercado”, avalia.

O fetiche dos sócios do clube, no entanto, continua sendo pelas máquinas vintage. Por isso, vários colecionadores acabam aprendendo os macetes de manutenção e restauração. “Basicamente a manutenção das máquinas é simples”, explica o engenheiro eletrônico e sócio do clube de São Paulo, Nikolaos Mbakirtzis, 50 anos. Durante todo o tempo em que a reportagem esteve no local, ele não jogou nem ficou de bobeira papeando, bebendo ou comendo churrasco, como os seus colegas da “confraria”. Naquela noite, zanzava de um ambiente anexo à garagem até o piso superior, onde ficam as máquinas. Ia e voltava repetindo o trajeto com ferramentas e peças na mão. Fez isso diversas vezes.

De perto, foi possível notar que, naquele ambiente, o clube acolhe uma impressionante oficina de restauração improvisada. “Em vários momentos você tem que trocar peças. Todas as máquinas têm conserto”, diz Nikolaos, empenhado em fazer funcionar uma delas. “Você tem que botar peças novas. É como se fosse um carro: quebrou uma peça, tem que trocar. Não adianta você tentar ficar só consertando.” Observando de esguelha, Gomes continua animado. Conversa com todos ao mesmo tempo e ainda joga. Ele não se contém. Interrompe a fala do colega e crava, no bom humor: “Tirando os exageros é tudo verdade! Temos aqui pessoas que pegam uma máquina caindo aos pedaços e a deixam zero bala. Tipo os Mestres da Restauração”. Já é tarde da noite, a maioria dos presentes começa a se despedir. Semana que vem tem mais.

 

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Cinema Crítica

Em ‘Creed’, Rocky ainda é o cara

De cara, “Rocky” e “Star Wars” não têm muito em comum. Talvez dê pra achar uma semelhança forçando a barra, mas são filme bastante diferentes. Isso deixa ainda mais curioso o fato de que, quase 40 anos depois do lançamento das franquias, após filmes que não emplacaram muito, novos longas das séries sejam lançados com tanto sucesso usando mais ou menos a mesma receita. Diante da tarefa de ter que agradar uma multidão de fãs ansiosos e frustrados com a trilogia iniciada nos anos 90, J.J. Abrams fez praticamente um reboot da história original de George Lucas. “O Despertar da Força” tem muito de “Uma Nova Esperança”. Deu certo: o público recebeu o que queria e todos saíram contentes. O mesmo acontece com “Creed”: você viu algo muito parecido em “Rocky”. E é incrível.

No filme, Michael B. Jordan é Adonis, filho que Apollo Creed — o boxeador rival de Rocky no primeiro filme, que depois vira seu amigo — teve fora do casamento. Depois de uma temporada em orfanatos e reformatórios, Adonis vai morar com a viúva do pai, que quer para ele uma vida diferente do pai. A princípio tudo vai bem: Adonis vive numa casona, tem um carrão e acaba de ganhar uma grande promoção em seu trabalho num escritório. Mas a sombra de Apollo ainda paira ao seu redor e o que ele quer mesmo é lutar.

Para realizar o sonho, Adonis deixa Los Angeles rumo à Filadélfia para pedir a Rocky que seja seu treinador. No começo ele recusa, mas não é surpresa pra ninguém quando ele volta atrás. E, é claro, antes do fim do filme o sobrenome de Adonis terá chamado a atenção de um campeão de boxe, que o desafia. Como Rocky, Adonis é um azarão. Como Rocky, ele é muito melhor do que todos pensam. E dá-lhe cenas de treino: Adonis corre pelas ruas, pega galinhas para ganhar velocidade, treina onde dá. Tudo saído do início da série, em referências que o próprio filme escancara (“as galinhas estão ficando mais lentas”, reclama Rocky ante o desempenho do pupilo).

São poucas as surpresas — principalmente para quem assistiu ao trailer –, mas não importa. “Creed” é o tipo de filme que faz rir, chorar (sim, quem for do tipo que chora no cinema faz bem em levar uns lenços) e torcer por Adonis como se você o conhecesse há anos e ele estivesse disputando uma luta real. Michael B. Jordan é muito bom, mas o filme tem dois grandes trunfos: Sylvester Stallone, que foi aplaudido de pé ao ganhar o Globo de Ouro de ator coadjuvante, e Ryan Coogler, diretor de 29 anos em seu segundo longa — e que foi contratado nesta semana pela Marvel para dirigir “Pantera Negra”.

Ao receber o prêmio, Stallone disse que Rocky Balboa é seu melhor amigo. Parece verdade. Talvez o ator nunca faça outro papel tão bem, mas Rocky parece uma extensão dele. Quando criou Rocky, numa história já famosa, lhe ofereceram centenas de milhares de dólares pelo roteiro, desde que ele desse o papel do protagonista para outro ator. Stallone, tão azarão quanto seu personagem, não tinha cara de ator de Hollywood. Mas bateu o pé e ficou com o papel, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar em 1977. Essa conexão com Rocky é visível. Stallone está super engraçado, comovente quando precisa, sem medo de rir de si mesmo e muito fofo — adjetivo talvez inusitado para Stallone, mas fazer o quê, é verdade. Os prêmios são merecidos. Rocky ainda é o cara.

Michael B. Jordan e Sylvester Stallone
Michael B. Jordan e Sylvester Stallone

Mas a principal arma do filme é Coogler, que também assina o roteiro. De vez em quando “Creed” coloca um pé no piegas, mas o diretor nunca o deixa ficar cafona. É um filme sobre um boxeador azarão, é um filme de amor, é um filme sobre pai e filho — tudo isso foi feito muitas e muitas vezes. Mas o diretor dá a sua cara ao negócio e deixa “Creed” um pouco diferente daquilo que já vimos. Adonis treina correndo na rua e batendo em sacos de pancada, mas também se coloca em frente à imagem de seu pai lutando com Rocky num telão, imitando seus movimentos, e trava lutas contra sua própria imagem num espelho. São cenas simples, mas esteticamente bonitas. A luta final, então, é demais. Dá pra se sentir dentro do ringue. É difícil explicar por que, mas “Creed” dá a impressão de que estamos vendo algo novo, apesar da história pouco original.

Ava DuVernay, de “Selma”, recusou a direção de “Pantera Negra” dizendo sentir que não conseguiria fazer dele um filme seu. Talvez ela esteja certa e seja mais difícil fazer algo diferente e colocar sua marca em franquias, em histórias que todo o mundo conhece. Mas Ryan Coogler mostra que pode dar certo. Pode dar muito certo.

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Música

As faces de David Bowie

David Bowie se foi. Aos 69 anos, o Starman decidiu partir para novas explorações espaciais e nos deixou aqui, tristes, desconsolados, mas felizes ao revisitarmos toda a sua obra, todas as suas fases, todos os seus discos, todos os seus rostos. E por causa das diversas facetas de Bowie, que lembraremos com emoção em todos os anos que virão pela frente, convidamos o desenhista Odyr Bernardi para retratar alguns dos semblantes mais marcantes do camaleão. Cinco momentos, cinco histórias, cinco faces de alguém que não será esquecido.

Além das belas ilustrações, fiquem também com o lindo relato de Brian Eno sobre o amigo que se foi:

“A morte de David veio como uma completa surpresa, como praticamente tudo sobre ele. Agora, eu sinto um enorme vazio.

Nós nos conhecemos por mais de 40 anos, em uma amizade que sempre foi marcada por ecos de Pete and Dud. Nos últimos poucos anos – com ele morando em Nova York e eu em Londres – nossa conexão foi feita por email. Nós nos despedíamos com nomes inventados: alguns deles eram ‘mr showbiz’, ‘milton keynes’, ‘rhoda borrocks’ e ‘the duke of ear’.

Cerca de um ano atrás nós começamos a conversar sobre o Outside – o último álbum que trabalhamos juntos. Nós dois gostávamos bastante do disco e sentíamos que ele não teve a devida atenção. Nós falamos sobre revisitá-lo, levando-o para um lugar novo. Eu esperava por esse momento.

Eu recebi um email dele sete dias atrás. Como sempre, era algo divertido e surreal, indo e vindo em um jogo de palavras e alusões e outras coisas típicas que fazíamos. E terminava com esta sentença: ‘Obrigado por nossos bons tempos, brian. eles nunca irão apodrecer’. E estava assinado como ‘Dawn’.

Agora percebo que ele estava dizendo adeus.”

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Descanse em paz, Bowie.

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Crítica

O Frankenstein de Tarantino

Quentin Tarantino tem uma autoestima invejável. Em entrevista à revista “GQ” em dezembro, disse que queria ter mais Oscars de roteiro original que “qualquer um que já tenha vivido”. Quatro prêmios — um a mais que Woody Allen e dois a mais do que já tem — já seria o bastante. “E isso em dez filmes, para quando eu morrer eles nomearem o Oscar de roteiro original de ‘o Quentin’”, afirmou. Bem, se houver justiça no mundo, seu terceiro Oscar não virá de “Os Oito Odiados”. Seu principal problema, talvez, seja justamente o excesso de autoestima de Tarantino. Primeiro, faltam cortes ao filme — são três horas, o que por si só não é um problema, mas são três horas desnecessárias. Nem toda ideia do diretor merece estar na tela. E, mais importante, termina-se o longa com a sensação de já ter visto algo assim antes, na obra do próprio Tarantino. É uma grande reciclagem de ideias.

“Os Oito Odiados”, que estreia hoje (7), carrega um pouco de cada projeto de Tarantino. No filme, Kurt Russell é John Ruth, um caçador de recompensas que quer levar a prisioneira Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) para ser executada e embolsar uma bela quantia. Uma nevasca, no entanto, faz com que ele tenha que interromper sua jornada e procurar abrigo numa hospedaria com outros sete homens, todos igualmente misteriosos e “odiosos” (melhor tradução para o título original, “The Hateful Eight” do que “odiados”).

Samuel L. Jackson é Marquis Warren, também caçador de recompensas; Walton Goggins é Chris Mannix, o novo xerife local; Tim Roth é o carrasco Oswaldo Mobray; Brude Dern é Sandy Smithers, general que lutou na Guerra Civil americana do lado dos Estados Confederados; Demián Bichir é o mexicano Bob, que cuida da hospedaria na ausência da dona; Michael Madsen é o caubói Joe Gage e James Parks é o cocheiro O.B, o único ali que parece não ter interesses escusos. Pelo menos é isso o que cada um diz ser, de cara dá para ver que não se deve colocar a mão no fogo por nenhum deles.

Como em “Cães de Aluguel”, todos ficam confinados no mesmo espaço, ninguém (nem o espectador) sabe quem é confiável ou não e, como é de praxe com Tarantino, muito sangue é derramado até o fim do filme. Nem as reviravoltas chegam a ser muito surpreendentes se você viu o primeiro trabalho do diretor. De “Django Livre”, o filme tem um pé no faroeste, boa dose de sadismo e os impropérios racistas. De “Pulp Fiction”, tem a estrutura, com uma divisão de capítulos que não respeita a ordem cronológica e histórias que se amarram no fim. Como “Bastardos Inglórios”, tem a vingança como um dos temas principais.

Samuel L. Jackson em "Os Oito Odiados". Crédito: Divulgação
Samuel L. Jackson em “Os Oito Odiados”. Crédito: Divulgação

Basicamente, “Os Oito Odiados” é um Frankenstein de outros longas de Tarantino. Isso não torna o filme ruim ou chato (é bom deixar claro: ele não é). Seu maior problema talvez tenha sido o excesso de cenas cortáveis, que não são nem essenciais nem particularmente boas. Edição é importante e saber cortar é quase tão essencial quanto saber fazer. O ponto alto: o filme é lindo (lindo mesmo, é uma pena que tenha “O Regresso” como forte concorrente ao Oscar de fotografia). Há imagens muito bonitas na neve, cada cor no figurino dos personagens tem razão de ser e as cenas são muito amplas, o que dá uma sensação bem teatral de estar vendo um palco inteiro, em que todos atuam o tempo todo. As performances, aliás, também são ótimas e ajudam a segurar até os momentos meio modorrentos. Jennifer Jason Leigh, a única mulher do filme (parece regra nessa safra de potenciais indicados ao Oscar), é maravilhosa — ameaçadora, mordaz e poderosa, apesar de passar o tempo todo presa –, Bruce Dern é demais mesmo falando pouco e Samuel L. Jackson é Samuel L. Jackson, ame ou odeie.

Mas nos filmes do cineasta a surpresa é importante e os finais tendem a ser impactantes. “Os Oito Odiados” é construído para ter o mesmo impacto, espera-se que você saia com aquela sensação de “uau” e, caso você já tenha visto um Tarantino na vida, dificilmente será um caso. Se você tiver que levar um só filme do diretor para uma ilha deserta ou colocar numa caixa para gerações futuras acharem, não é a melhor escolha. Todos os originais são melhores que a cópia.

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Televisão

A obsessão de ‘Making a Murderer’

Não dá pra gostar de “Making a Murderer”. A série documental do Netflix é viciante, do tipo que te faz ler comentários em sites, frequentar fóruns atrás de mais informações, elaborar teorias da conspiração e comentar com qualquer um que passe ao seu lado sobre a história de Steven Avery, inocentado após 18 anos na cadeia e preso dois anos depois, acusado de assassinato. Mas não dá pra gostar de “Making a Murderer”. A cada um de seus dez episódios o programa deixa o espectador mais perturbado. Como aquilo pode estar acontecendo? De vez em quando você se esquece de que aquilo é real e toda vez que você se lembra é uma paulada na cabeça.

Como de praxe quando se trata do Netflix, não há informações sobre audiência, o que torna impossível saber quantas pessoas viram a série (o primeiro episódio, postado pelo serviço no YouTube, tem quase 500 mil visualizações). Em repercussão, porém, o programa é um fenômeno. Desde que estreou, perto do Natal (melhor época para se ver televisão, aliás, quando as pessoas estão cheias de tempo livre e estufadas de comida), o nome Steven Avery não para de pipocar em sites noticiosos, fóruns, redes sociais. Para um programa pouco anunciado pelo Netflix, sem grandes estrelas, foi surpreendente. Mas vendo “Making a Murderer” é fácil de entender por que as pessoas se envolveram tanto.

A história de Steven Avery parece saída da cabeça de Agatha Christie. Se estivesse em uma série de tribunal, como “The Good Wife”, já seria maluca e o fato de ser real torna tudo mais doido ainda. Steven Avery tinha acabado de ser pai quando foi acusado de ter tentado estuprar uma mulher no interior do Estado de Wisconsin, onde vivia. Steven tinha álibi — mais de um, inclusive. Com passagens anteriores pela polícia (por causas variadas, como ter queimado um gato), não havia nada que o ligasse àquele crime. Mas com base no retrato falado feito pela vítima, a polícia o prendeu. Um detalhe importante (todo detalhe é importante nesse caso): Steven havia jogado, pouco tempo antes, o carro para cima de uma prima, casada com um policial do condado. Ele não era exatamente querido.

Dezoito anos depois, um teste de DNA provou que ele era inocente e que o verdadeiro culpado estava preso havia alguns anos e, inclusive, já tinha confessado o crime à polícia, que mesmo assim não liberou Steven. Já solto, ele pediu uma indenização de US$ 36 milhões pelo tempo que passou injustamente na cadeia. Poucas semanas depois que os principais policiais envolvidos no caso deram seus depoimentos, uma fotógrafa, Teresa Halbach, desapareceu após tirar algumas fotos na propriedade de Steven. Mais tarde, seus ossos foram encontrados queimados em seu terreno. Acusado de novo e sem dinheiro no bolso, Steven aceitou um acordo em seu processo e ganhou uma indenização de apenas US$ 400 mil, longe do que havia pedido.

Inocentado após passar 18 anos na cadeia, homem mata mulher e vai preso de novo. Já seria uma história e tanto, digna de filme, e foi isso que levou as diretoras Laura Ricciardi e Moira Demos a fazer as malas para Wisconsin. Durante dez anos elas trabalharam na história de Steven, conversando com ele e sua família, acompanhando o julgamento, coletando documentos e gravações. Nesse tempo, o projeto ganhou outra dimensão. Já não era só uma história curiosa, e sim um retrato chocante do funcionamento do sistema penal. Por isso, não dá pra parar de assistir. Como diz um dos advogados de Steven, você pode ter certeza de que nunca vai cometer um crime, mas não pode ter certeza de que nunca vai ser acusado de um crime. Caso você seja, é isso que pode te acontecer. E é aterrorizante. (Pare aqui caso você não queira saber os detalhes da história.)

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Steven Avery, preso pela primeira vez. Crédito: Divulgação
Steven Avery, preso pela primeira vez. Crédito: Divulgação

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No fim de “Making a Murderer” não se sabe o que realmente aconteceu com Teresa Halbach. Não é esse o objetivo. O foco é menos o assassinato em si e mais o funcionamento da justiça e o drama humano que vivem o acusado e sua família, o que tem apelo para todo o mundo. Sabe-se que Steven Avery e seu sobrinho adolescente, Brendan Dassey, foram condenados à prisão perpétua pelo crime sem que a promotoria conseguisse montar um caso consistente. Talvez Steven seja mesmo o assassino, mas o fato é que não dá para ter certeza. E como todos são inocentes até que se prove o contrário, a conclusão inevitável é que eles não deveriam estar presos. É por isso que já existem duas petições, que somam mais de 300 mil assinaturas, para que Barack Obama solte os dois.

Primeiro ponto estranho: os mesmos policiais envolvidos no processo milionário movido por Steven Avery estiveram em sua propriedade após a morte de Teresa procurando por evidências, apesar de não haver motivo para eles estarem ali (a polícia de outro condado investigava o caso). Pra dizer o mínimo, havia um conflito de interesses. Segundo ponto estranho: algumas das evidências contra Steven, como a chave do carro de Teresa, foram encontradas depois de dias de busca, em lugares óbvios. Durante dias ninguém tinha visto a chave do lado do criado-mudo. Certo. A mesma chave não tinha o DNA de Teresa, sua dona, mas tinha o DNA de Steven. Ok.

Terceiro ponto: segundo a acusação, Steven estuprou Teresa no quarto e cortou sua garganta, mas não havia vestígios de sangue ou de seu DNA por lá. Quarto ponto: no carro de Teresa, encontrado do lado da casa de Steven (que tinha um compactador de veículos e por algum motivo não o usou para destruir a evidência), havia sangue de Steven. Mas uma amostra de seu sangue que fazia parte de sua primeira prisão havia sido violada. E por que Steven teria matado Teresa na casa, colocado seu corpo no carro, mantido o carro do lado da casa, tirado o corpo do carro e o queimado no próprio terreno? Nada faz sentido. O estranhamento só cresce.

Segundo a tese de seus advogados, a polícia plantou as evidências para incriminá-lo. Isso não é comprovado, mas há margem para dúvida e, se essa margem existe, Steven não deveria ter sido condenado. Por isso “Making a Murderer” é tão perturbador. Se o espectador consegue ver a injustiça cometida, como o júri e o juiz não conseguem? É a vida de alguém que está em jogo e não conseguimos fazer nada a não ser assistir de mãos atadas. Ninguém é punido por ter deixado Steven 18 anos preso injustamente. Ninguém questiona as lacunas na tese da acusação. “A presunção de inocência só vale pra quem é inocente”, diz o promotor. A sentença de Steven tinha sido dada antes do julgamento começar. Como ele poderia lutar contra polícia e o sistema?

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Steven Avery, preso anos depois. Crédito: Divulgação
Steven Avery, preso anos depois. Crédito: Divulgação

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Histórias de crime exercem um fascínio especial sobre as pessoas. Há criminosos famosos, cujos julgamentos são acompanhados como novela, em diversos capítulos nos jornais e televisão. Novas séries ambientadas em tribunais ou delegacias estreiam a cada temporada, várias com sucesso. Sherlock Holmes teve mil encarnações até chegar a Benedict Cumberbatch. Acompanhar essas tramas atiça a curiosidade das pessoas em vários níveis: como alguém pode fazer algo assim? Como foi que isso aconteceu de verdade? Por isso, essa onda de séries documentais sobre crimes reais, como “The Jinx”, exibida no ano passado pela HBO, ou o podcast “Serial”, também de 2015, não espanta. Crimes geram interesse. Mas “Making a Murderer” é diferente de “The Jinx” em algo: não tem fim.

Só dá para especular, mas provavelmente a série teria causado um impacto menor caso houvesse um final feliz. Em “The Jinx”, o protagonista Robert Durst confessa sua culpa e será julgado neste ano. Quando o crime é desvendado, você pode respirar aliviado e deixar a história pra lá porque a justiça foi feita. Não dá pra esquecer “Making a Murderer”. É um soco no estômago ver como o sistema funciona contra Steven Avery, que nasceu com cartas ruins na mão, uma vez e depois outra.

Você termina a série e quer compartilhar sua indignação com o mundo. Por isso as pessoas vão à internet: para discutir teorias, conversar sobre fatos não mencionados pelo programa, para detonar o promotor nas redes sociais, para pedir que Steven seja libertado ou julgado novamente. É como um dos advogados de Steven diz no fim: você quase torce pra que ele seja mesmo culpado. A ideia de ele estar preso de novo por um crime que ele não cometeu é insuportável.

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Cinema Crítica

‘Spotlight’ é o novo ‘Argo’

Quase seis meses antes do Oscar deste ano, ainda em setembro, um crítico da revista New York afirmou: “Spotlight” era o favorito a levar o prêmio de melhor filme. O tempo passou e o panorama continua parecido. Não dá pra dizer que o filme de Tom McCarthy esteja com a estatueta no bolso, mas se você quiser fazer uma aposta pouco arriscada, “Spotlight” é uma ótima opção. É, realmente, o típico filme pra Oscar: história real, elenco famoso (Michael Keaton, Rachel McAdams, Mark Ruffalo e por aí vai), personagens inspiradores. Não muito diferente de, digamos, “Argo” ou “O Discurso do Rei”, que carregam uma bênção e uma maldição: ok, levaram o Oscar, mas ninguém mais se lembra muito deles hoje. “Spotlight” tem cara de quem vai seguir o mesmo caminho.

Isso não quer dizer que o filme, que estreia na próxima quinta, não seja bom. Ele é. É pouco provavél que alguém saia arrependido por ter gastado duas horas do seu dia no cinema vendo “Spotlight”, o que é sempre uma vitória. Mas o filme não é essa coca-cola toda, apesar de ter uma nota de 97% no Rotten Tomatoes. Uma tese para explicar tanto confete: “Spotlight” foi feito sob medida para jornalistas. É aquele filme capaz de fazer um adolescente pensar “hum, talvez eu queira ser repórter”, que dá ao recém-formado a esperança de mudar o mundo com um texto e que faz repórteres e editores pensarem que, bem, talvez tenham escolhido a profissão certa. “Spotlight” é o sonho de quem trabalha em uma Redação.

 

Spotlight é o nome de uma equipe do jornal americano Boston Globe que existe desde a década de 1970 com liberdade para passar meses ou até anos investigando uma história, a fundo, sem ter que se preocupar com as notícias do dia em circunstâncias normais. Em 2001, em sua primeira reunião de pauta com os editores do jornal, o recém-chegado editor-executivo Marty Baron (Liev Schreiber) pede para que os jornalistas do Spotlight engavetem tudo o que estavam fazendo para se dedicarem a uma reportagem sobre um caso de pedofilia envolvendo um padre da cidade. Segundo uma colunista do jornal, um advogado local teria provas sigilosas de que o alto clero da Igreja Católica sabia e havia acobertado o escândalo. Baron quer essas provas para abalar o sistema.

Essa era só a ponta de um novelo desenrolado ao longo de meses pelos jornalistas Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams), Michael Rezendes (Mark Ruffalo), Walter Robinson (Michael Keaton) e Matt Carroll (Brian d’Arcy James). A apuração começa com um padre e vai crescendo, crescendo, até que eles chegam a uma lista de quase 90 padres molestadores de crianças. Durante meses os repórteres conversam com vítimas, com advogados que tinham a dimensão do problema e ajudaram a empurrá-lo pra debaixo do tapete, procuram padres, esmiúçam documentos, vão a bibliotecas, fóruns, gastam a sola do sapato na rua e vão ao jornal nos fins de semana para continuar trabalhando, num esforço que rendeu mais de 600 histórias.

É o jornalismo dos sonhos: contar histórias relevantes, que façam diferença na vida das pessoas, com tempo para investigar de verdade. Em suas pesquisas, a equipe percebe que boa parte das pistas estavam disponíveis para todos, ali mesmo no jornal, em pequenas matérias picotadas escondidas nas páginas internas dos cadernos, pras quais ninguém deu muita atenção. As mesmas evidências que eles encontravam tinham sido enviadas anos antes para outros jornalistas do Boston Globe e ignoradas. Só que ninguém havia juntado as peças para formar o quebra-cabeças. Não foi um furo de reportagem que caiu no colo de alguém: foi fruto de muito trabalho, árduo e pouco glamouroso. Não à toa, os repórteres do Spotlight ganharam o Pulitzer. Suas reportagens mostram, basicamente, como o jornalismo é importante. É um filme que deve agradar todos os públicos, mas, nesse sentido, é especialmente irresistível para a crítica.

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Michael Keaton e Mark Ruffalo. Crédito: Divulgação
Michael Keaton e Mark Ruffalo. Crédito: Divulgação

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De certa forma, “Spotlight” lembra “A Grande Aposta”, outro filme que provavelmente disputará o Oscar. São duas boas histórias reais, com elencos enormes cheios de coadjuvantes e nenhum protagonista (e, ressalte-se, quase nenhuma mulher), sobre pessoas que olharam ao redor e entenderam a dimensão verdadeira de algo importante.

Mas “A Grande Aposta”, que conta a história de um grupo de pessoas que previu antes do mundo a crise econômica de 2008 e enriqueceu com isso, é mais original. Adam McKay, que foi roteirista do “Saturday Night Live” e diretor de “O Âncora”, consegue transformar uma crise difícil de entender em algo compreensível e engraçado. O diretor tenta fazer algo diferente, como colocar famosos em situações esdrúxulas para explicar termos econômicos (Margot Robbie numa banheira tomando champanhe, Selena Gomez num cassino…), personagens quebram a quarta parede e o filme todo é salpicado de cultura pop.

“Spotlight” é legal? Sim. É bem feito? Sem dúvidas. Conta uma história relevante? Definitivamente. O elenco é bom? Muito. Vale o ingresso? Com certeza. Mas é quadradinho. Pode até ganhar o Oscar, mas não é lá muito marcante.

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Cultura

Os melhores livros e HQs de 2015

Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu.

Já falamos das séries, músicas, discos, atuações e filmes de que mais gostamos no ano. Aqui listamos os livros e HQs de 2015 que nos marcaram, fora de ordem mesmo. Segura:

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“Zero” (Ales Kot)
Eu queria dar um abraço no Ales Kot. O roteirista de “Zero” sabe como poucos transformar uma história batida – um espião de uma agência secreta que começa a desconfiar das missões e objetivos de seus patrões – em uma obra-prima sobre a desgraça humana, pessoas deploráveis, morais nebulosas. Tudo feito com uma inteligência fora do normal para histórias do tipo. A escolha dos artistas, que muda a cada edição, também é digna de nota: cada um deles conseguiu absorver o tipo de sofrimento da história. Para ler e reler e reler. [Leo Martins]

saga

“Saga” (Brian K. Vaughan e Fiona Staples)
“Saga”, publicado pela Image Comics e traduzido no Brasil pela Devir, é provavelmente o quadrinho mais interessante dos últimos tempos. O roteiro de Brian K. Vaughan conta a história de um casal estilo Romeu e Julieta em um universo distópico que parece uma mistura de “Star Wars” e “Game of Thrones”. Tudo isso casa perfeitamente com os desenhos de Fiona Staples, com criaturas incríveis que parecem saídas de um sonho que, lá pro fim do dia, você percebe que foi um pesadelo. A facilidade de adicionar pequenas tramas, personagens fugazes e conversas brutalmente sinceras fazem com que seja impossível ler só um pouquinho. [LM]

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“The Wicked + The Divine” (Kieron Gillen e Jamie McKelvie)
Já deu pra sacar que o ano foi bom demais pra Image Comics, né? E foi mesmo. “The Wicked + The Divine”, com roteiro de Kieron Gillen e arte de Jamie McKelvie, conta a história de divindades que a cada 90 anos voltam para a Terra e são tratados como popstars. O roteiro é impressionante, os traços são incríveis e a vontade é de viver um pouco, mas só um pouquinho, nesse mundo maluco. [LM]

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“Entre o Mundo e Eu” (Ta-Nehisi Coates)
O jornalista Ta-Nehisi Coates é, faz alguns bons anos, uma das vozes negras mais importantes dos EUA. Ultimamente, por causa dos abusos policiais contra adolescentes negros no país, sua coesão de discurso e bom senso aumentaram ainda mais a potência dessa voz. Em “Entre o Mundo e Eu”, Coates mistura histórias de sua difícil infância em Baltimore com reflexões sobre o estado atual da sociedade americana, do racismo e do futuro do país. Muito bem escrito, o livro é uma rápida aula de 150 páginas para qualquer um que queira entender mais sobre alguns dos maiores problemas do nosso mundo. [LM]

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“Dois Irmãos” (Fábio Moon e Gabriel Bá)
Transformar obras de literaturas em HQs é uma certa moda recente. Desde os clássicos até livros atuais, tudo ganha versão em quadrinho. Isso nem sempre é bom, mas no caso de “Dois Irmãos”, dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, deu certo. Ficou mais fácil para os irmãos porque o livro de Milton Hatoum, lançado em 2000, é realmente muito bom. Coube a eles transformar a narrativa, e o resultado é digno de nota: os traços preto e branco, o jogo de sombra, o cenário de Manaus durante décadas de mudança, tudo isso conversou muito bem com a história de dois irmãos separados pela guerra, pela família e pelo amor. [LM]

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“São Paulo, a Capital da Vertigem” (Roberto Pompeu de Toledo)
“São Paulo, a Capital da Vertigem”, de Roberto Pompeu de Toledo, narra a história paulistana de 1900 a 1954 e mostra por que a cidade é a mais brasileira das nossas capitais – inclusive quando nega a sua brasilidade (o Brasil consegue ser uma coisa e seu oposto ao mesmo tempo). Continuação do grande “São Paulo, a Capital da Solidão”, que vai de 1554 até o fim do século 19, “A capital da Vertigem” mostra como transformarmos um vilarejo marrento em uma metrópole fulgurante. Também relembra o bombardeio aéreo de 1924 e explica, até, por que o metrô demorou tanto tempo para sair do papel nessa cidade de vales sufocados e rios aterrados, de gente local e gente de tudo quanto é lugar do mundo – e que se sente local. É um clássico para amar e odiar São Paulo – ao mesmo tempo!” [Leandro Beguoci]

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“Humilhado” (Jon Ronson)
O livro de Jon Ronson é daqueles que se lê numa sentada. A leitura é bem fácil, mas nada leve. Centrado em alguns personagens que, por motivos diversos, foram humilhados publicamente pelas redes sociais, faz refletir sobre o poder que posts aparentemente inofensivos no Facebook ou no Twitter têm na vida das pessoas. As histórias são boas: Jonah Lehrer, jornalista da New Yorker que caiu em desgraça quando descobriram que ele havia inventado aspas de Bob Dylan em um best-seller, Justine Sacco, demitida depois de fazer um tweet racista, Lindsey Stone, que ficou deprimida com as consequências de uma foto desrespeitosa num cemitério de militares, entre outros. Quando alguém faz ou fala algo considerado absurdo, muita gente não hesita em apontar o dedo na internet sem pensar nas consequências. Mas, Ronson questiona, será que a pena corresponde ao crime? [Fernanda Reis]

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“Ilha da Infância” (Karl Ove Knausgaard)
Colocar Karl Ove Knausgaard na lista de melhores do ano já é clichê, mas fazer o que se ele manteve a regularidade no terceiro livro de sua série autobiográfica “Minha Luta”? O tema é tão banal que é difícil fazer uma sinopse: no volume, ele discorre em detalhes sobre sua infância em uma ilha na Noruega. Mas ele escreve tão bem que até um passeio dele com um amigo ou seu prazer por adiar o máximo que podia as idas ao banheiro ficam interessantes. É o mais fraco entre os três volumes publicados no Brasil, sim, mas mesmo o pior Karl Ove é melhor do que boa parte dos lançamentos por aí. [FR]

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“Toda Luz que Não Podemos Ver” (Anthony Doerr)
Vencedor do prêmio Pulitzer de ficção, Anthony Doerr realiza uma façanha: escrever um livro original sobre a Segunda Guerra. Doerr não fala de Hitler, Churchill ou Roosevelt, deixa de lado as grandes batalhas e foca em duas histórias, a de uma menina cega francesa e de um menino alemão que sabe tudo sobre rádios. É uma história sem maniqueísmo, que não retrata todos os alemães como vilões nem todos americanos e franceses como heróis. “Toda Luz que Não Podemos Ver” é uma história sobre pessoas. Às vezes triste, mas sempre bonita. [FR]

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Cultura

As melhores atuações de 2015

Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.

Já falamos das séries, músicas, discos e filmes de que mais gostamos no ano. Aqui listamos dez atuações de 2015 que nos marcaram, divididas em duas partes: cinco no cinema, cinco na televisão. Fora de ordem mesmo, já que não deu pra ver tudo e seria injusto fazer algum tipo de ranking (só de televisão foram mais de 400 séries em 2015, né). Olha lá:

CINEMA

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Julianne Moore – “Para Sempre Alice”
O filme, em si, não é nada de mais. Ok, é bonzinho, mas daqui um ano ninguém vai se lembrar muito dele. Mas Julianne Moore faz valer a pena. Sua Alice, uma professora de linguística que descobre ter Alzheimer aos 50 anos, é cheia de nuances. Forte e cheia de vida em alguns momentos, desolada com a consciência da doença em outros, às vezes totalmente perdida. Nomeie alguma emoção qualquer: está lá na performance dela.

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Matt Damon – “Perdido em Marte”
Matt Damon atua sozinho durante quase todo o filme e consegue fazer dele uma das experiências mais divertidas do ano. Ponto pra ele. Não é um papel feito sob medida pra prêmios — ele não é um psicopata, não usou uma prótese no rosto e não comeu fígado cru de bisão — e mesmo assim será uma injustiça se ele não estiver no Oscar. Matt Damon é bem engraçado, quem diria.

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Johnny Depp – “Aliança do Crime”
Johnny Depp é o anti-Matt Damon. Enquanto Damon é um cara comum, o garoto da casa ao lado, Depp se dá melhor fazendo tipos bizarros. Como o criminoso Whitey Bulger, Johnny Depp é a isca perfeita para prêmios. Transformação física? Ok. (Ele aparece quase careca, com lentes de contato e magérrimo.) Papel de louco? Ok. (No caso, é um assassino frio.) Só não comeu fígado cru de bisão — difícil superar Leonardo DiCaprio em “O Regresso”, que estreia em janeiro, nesse sentido. O filme é bem meia-boca, mas a atuação de Johnny Depp é marcante. Ele está esquisito e assustador na medida certa.

regina

Regina Casé – “Que Horas Ela Volta?”
Pelo menos uns 50% do sucesso de “Que Horas Ela Volta?” são responsabilidade de Regina Casé, que está puro carisma. Ela nos relembra de que é uma ótima atriz, que faz rir e emociona, e não só a estridente apresentadora do “Esquenta”.

idris

Idris Elba – “Beasts of No Nation”
Idris Elba tem sim charme e carisma para ser o próximo James Bond, ao contrário do que disse o autor Anthony Horowitz neste ano. A prova disso é que ele consegue colocar as duas características num personagem horrível, que recruta crianças africanas para lutar. Elba é ao mesmo tempo perigoso e sedutor e é o destaque de um filme que prometia mais do que cumpriu.

TELEVISÃO

Chapter Twenty-Two

Gina Rodriguez – “Jane the Virgin”
“Jane the Virgin” poderia ter dado muito errado caso as atuações não fossem tão boas. O tempo todo a série circula sobre a tênue linha entre o curiosamente divertido e o cafona, às vezes com um pé lá e o outro cá. Mas a performance de Gina Rodriguez é o tempo todo luminosa — vai, tudo bem usar um adjetivo cafona aqui, estamos falando de “Jane the Virgin”. Ela rivaliza com Claire Danes na categoria “melhor choro televisivo” (um elogio e tanto), é bem engraçada e faz com que Jane seja uma pessoa 100% boa sem ser chata ou sem graça. É o tipo de personagem de quem você gostaria de ser amigo e eleva a série de uma novelona engraçadinha para uma das melhores estreias do ano.

rami

Rami Malek – “Mr. Robot”
“Mr. Robot” apareceu em dez entre dez listas de melhores do ano. E “Mr. Robot” é Rami Malek. Com seus olhos esbugalhados e sua fala arrastada, Malek é protagonista e narrador da trama, e vai enredando o espectador numa trama muito doida e irresistível. Seu personagem, Elliot, é mais um hacker esquisito com pouco traquejo social, mas ele foge do clichê e é cheio de complexidade. Sua performance é tão impactante que é difícil imaginá-lo em outro papel.

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Aya Cash – “You’re the Worst”
Em seu segundo ano, a série fez uma aposta arriscada: falar a fundo sobre depressão sem deixar de ser uma comédia. Deu tudo certo por causa de Aya Cash, que escapou da caricatura e fez um dos melhores retratos televisivos de uma pessoa deprimida, em todas suas dimensões, alternando momentos de tristeza, raiva, apatia e alguns picos de alegria. Tudo isso sem perder o humor e a essência de sua personagem. Merecia uma indicação ao Globo de Ouro, mas… Quem sabe no Emmy ela não seja lembrada.

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Matthew Rhys – “The Americans”
“The Americans” é uma das raras séries que só melhora (pelo menos por enquanto, não vamos zicá-la). E seus protagonistas, Matthew Rhys e Keri Russell (que faz esquecer que um dia já foi Felicity), têm melhorado com ela. A dupla é muito boa, mas o destaque da temporada é Rhys, cujo personagem, o espião soviético Philip, se viu mais dividido e torturado do que nunca. Vale a pena seduzir uma adolescente para conseguir informações de seu pai? Como lidar com o fato de que seu país quer arrastar sua filha para a perigosa vida que ele leva? Ele deve ser leal à família ou à União Soviética? Rhys faz com que você sinta sua dor. “The Americans” já nasceu como uma boa série de ação, mas os atores a transformaram num dos melhores dramas da atuais.

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Shiri Appleby – “UnREAL”
Rachel, a personagem de Shiri Appleby em “UnREAL”, é, para dizer o mínimo, uma pessoa difícil. Sumiu da vida do namorado sem dar notícias, é brigada com os pais, bebe demais, mora numa van e pirou frente às câmeras do reality show estilo “The Bachelor” no qual trabalhava. E é uma mestre na manipulação (sério, campeã em manipular os outros). Você sabe que ela vai destruir a vida alheia e a própria, e que não deveria torcer por ela, mas quando vê está esperando seu final feliz. É cedo pra dizer, mas Rachel pode ser o Don Draper ou Walter White (aqueles anti-heróis carismáticos) feminino que estava faltando na televisão.

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Cultura

Os melhores discos de 2015

Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.

Já falamos das séries, músicas e filmes que mais gostamos no ano. Aqui listamos os dez melhores discos do ano em nossa modesta opinião, divididos em duas partes: cinco nacionais, cinco internacionais. Segura:

NACIONAIS

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Rodrigo Ogi – “RÁ!”
Quando Rodrigo Ogi lançou o disco “Crônicas da Cidade Cinza”, em 2011, era fácil de sacar que ali havia um artista com um potencial monstruoso. “Crônicas” foi um disco que demorou pra bater na molecada e hoje é considerado um clássico tardio. “RÁ!”, o novo disco do rapper paulistano, começa diferente por já nascer como um clássico. Isso permitirá que daqui uns, sei lá, dez anos, ele seja visto como um momento chave no rap nacional, uma cena tão complexa e trincada, cheia de picuinhas e tretas. “RÁ!” é um cardápio de todos os poderes de um MC, com incontáveis histórias incríveis, bem articuladas, cheias de becos, vielas, tudo isso com Ogi despejando habilidades vocais, com mudanças de voz e personagens que nenhum outro rapper está fazendo por aqui. A preocupação com métricas, com caneta, com tudo, algo tão comum lá fora e meio secundário por aqui, é acompanhada por uma execução primorosa do beatmaker curitibano Nave, que criou o ambiente perfeito para Ogi se transformar naquilo que ele deve ser: um marco.

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Aláfia – “Corpura”
“Corpura” é o segundo disco da superbanda Aláfia, e a sensação maior é que, após uma grande viagem introspectiva e extrospectiva, eles conseguiram chegar onde queriam: o disco é mais do que um manifesto em prol da negritude e da cultura negra. Ele é uma aula, tanto de percussão quanto de letras, sobre o estado do Brasil em vários aspectos. É aquilo que diversas bandas tentaram, bebendo ali na fonte do afrobeat, mas a impressão é que para chegar lá o Aláfia teve que se doar até a última gota de sangue, com uma crença muito poderosa sobre o que estava sendo produzido. A força de “Corpura” está por todos os lados: na voz de Xênia França, nas composições de Lucas Cirillo, na percussão de Alysson Bruno. Tudo o que aconteceu e surgiu recentemente na cena afrobeat e black brasileira estava pavimentando o caminho para esse momento, para essa corpura.

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Leo Justi – “Vira a Cara”
Justi é como uma ponte entre os bailes de favela, o novo funk cada vez maior no Rio de Janeiro, e o mundo dos produtores e selos descolados de todo o globo que avistam com olhares maravilhados o que acontece pelo Brasil. O EP “Vira a Cara” é essa amalgama: é um aperitivo do que há de melhor rolando no funk envelopado em uma produção digna de nota e ideal pra bater a bunda no chão e suar até dizer chega.

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Diogo Strausz –  “Spectrum Vol. 1”
Ouvir o primeiro disco do Diogo Strausz assim que ele foi lançado foi como receber uma voadora de esperança: há muita técnica, há muito groove, tem AOR, tem muita referência boa, participações ótimas e uma habilidade fora do comum para alguém tão jovem. É aquele disco para ouvir a qualquer momento, curtir cada nota e já criar expectativas para mais e mais produções desse jovem carioca.

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Elza Soares –  “A Mulher do Fim do Mundo”
É impressionante receber em 2015 um disco tão podereoso de uma figura tão marcante da música brasileira. Em “A Mulher do Fim do Mundo”, Elza Soares fala de sofrimento, de amor, de putaria, de sexo, da força da mulher negra. As letras arrepiam, mas o maior acerto de Elza foi se abeirar do que há de melhor na nova safra da (podemos chamar assim?) nova MPB: Romulo Fróes e Celso Sim assinam a composição das músicas (ao lado de José Miguel Wisnik) e a banda que acompanha Elzinha tem por ali Fróes, Kiko Dinucci, Felipe Roseno e outros grandes nomes. Essa mistura funciona demais e as lamúrias se transformam em força, em poder, em uma violência musical merecidíssima para esses tempos.

INTERNACIONAIS

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Kendrick Lamar –To Pimp a Butterfly”
Desde o dia 16 de março deste ano a gente já sabia qual era o melhor disco do ano. Muita coisa boa surgiu no meio do caminho, mas o que Kendrick Lamar fez em “To Pimp a Butterfly” é algo raríssimo na música atual: ele conseguiu demonstrar todas as suas habilidades como um dos melhores rappers vivos, conseguiu fazer isso fazendo crítica social de altíssimo nível, conseguiu discutir religião, conseguiu não perder o humor e o desespero perante tudo isso e, assim, criou uma obra-prima, um disco que será lembrado por décadas e décadas, com louros para as letras, como em “Alright”, pelas participações, como a de George Clinton na abertura do disco, e pela capacidade de mais um rapper de Compton mudar o jogo.

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Kamasi Washington – The Epic
É fácil sacar que os principais nomes do selo Brainfeeder piram muito em jazz: tanto o Flying Lotus quanto o Thundercat destilam várias referências em seus discos. Mas ser um monstro do jazz é mais complicado do que isso. Por sorte, eles encontraram alguém mais do que capaz: Kamasi Washington. E daí surgiu “The Epic”. É curioso pensar que um disco de jazz de quase três horas, com influência absurda dos imortais da Strata East, foi lançado por um selo de música eletrônica e que, surpresa!, ele foi um sucesso. Mas “The Epic” faz jus: são horas e horas de muito jazz bom, de altíssimo nível, de um reencontro com o passado com aquela pitada necessária e sem exageros dos tempos atuais. É também um convite para uma geração que parece não ter mais tempo para jazz, para contemplação, para paz de espírito. Ouvir “The Epic” em uma tacada só é um evento raro, mas vale cada segundo.

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Arca –  Mutant
Um produtor venezuelano nascido em 1990 fazendo música para Bjork, Kanye West e Kelela? Foi assim que o Arca fez seu primeiro barulho. Depois veio “Xen”, no ano passado, um ótimo disco de estreia. E, pouquíssimo tempo depois, Alejandro Ghersi surge com “Mutant”, uma viagem menos mecânica, mais fluída, mais atraente, do tipo que machuca seu cérebro em alguns momentos mas ainda assim libera doses de endorfina. É quase como transar com robô? Talvez, um dia a gente descobre se é tipo isso mesmo.

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Sufjan Stevens – Carrie & Lowell
Não é de hoje que Sufjan Stevens gosta de falar sobre a morte em suas músicas. Mas “Carrie & Lowell” é o maior estudo que ele já fez sobre o assunto. Esqueça as brincadeiras e fanfarras que davam uma quebra nos discos anteriores dele. Aqui não há espaço para respirar, apenas absorver todas as dores, questionamentos e sofreguidões de um homem tentando entender o que é, o que foi e o que será a morte – o disco é uma ode a Carrie, a mãe que Stevens mal conheceu e que recentemente morreu, e Lowell, seu padrasto, ainda vivo, e extremamente próximo. Esqueça de respirar e sinta apenas o aperto no coração.

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Grimes – Art Angels
Olha, é preciso respeitar muito a Claire Boucher. Depois do sucesso de “Visions”, em 2012, a cantora se trancou para produzir mais um disco e, em dado momento, jogou tudo fora. Os fãs piraram, e é preciso dizer aqui que há algo de diferente nessa pressão: a Grimes é um fruto do Tumblr, uma filha da internet, e ela já se meteu em muitas discussões por causa dessa verve conectada, de comunidade, de reblogs e coisas do tipo. Agora já podemos dizer que jogar tudo fora e criar “Art Angels” foi a escolha certa: o disco é um pop extremamente torto – e isso é um elogio. É um pop que, de repente, quando você imagina o caminho mais óbvio, te surpreende com uma letra ou um refrão fora da medida, como um tapa, mas um tapa sutil, sem maldade, quase infantil, querendo chamar sua atenção. E durante todo o disco esses tapas conseguem atingir seu objetivo.

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Cultura

Os melhores filmes de 2015

Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.

Já falamos das séries e músicas que mais gostamos no ano, e agora vamos pra telona. 2015 não foi um dos anos mais incríveis do cinema e até tivemos uma certa dificuldade para fechar essa lista, mas eis os títulos que mais nos marcaram no ano:

Force Majeure

Se você for pego só pela sinopse, pode achar que é um filme de ação desses envolvendo desastres naturais. Não é nada disso, mas não deixa de ser impactante: “Force Majeure” é a história de um princípio de avalanche que abala as estruturas de uma família que esquiava nos Alpes. O filme intercala incríveis cenas apáticas do cenário nevado com situações cotidianas de uma família ruindo. A história e as atuações são um símbolo da derrocada de Tomas, o pai, e a crescente indignação de Ebba, a mãe. Uma história sobre moral, realidade, verdade e o homem e a mulher em tempos modernos. [Leo Martins]

Straight Outta Compton: A História do N.W.A.

É um pouco assustador pensar que demoraram tanto tempo para contar em filme uma das histórias mais incríveis da música americana. A criação do N.W.A., um dos grupos mais importantes da história do rap, envolve muita treta, tiro, vadiagem, afirmação racial, polícia nervosa e a explosão de Compton, na Califórnia, como um dos berços do hip hop. A escolha dos atores foi acertada demais – O’Shea Jackson Jr, que interpreta o Ice Cube, é filho do próprio – e o filme não esconde os demônios que cercaram e cercam até hoje Dre, Eazy E e todos os outros filhos de Compton que revolucionaram a música e a relação das tensões sociais que uma só música (“Fuck the Police”, no caso) pode causar. [LM]

Leviatã

Mesmo antes de entrar em cartaz nos cinemas russos, Leviatã causou. Sofreu duras críticas e fortes ataques do governo e da igreja ortodoxa, que acusaram o diretor Andrey Zvyagintsey de difamar o país comandado por Vladimir Putin. Já seria um bom motivo para assistir ao filme. Mas Leviatã é muito maior que isso. Fala de abuso de poder, injustiça, corrupção e impotência por meio da dramática história de Kolya. Morador de uma península no extremo norte do país, tem a propriedade herdada da família tomada pelo prefeito da cidade, que quer construir no terreno um empreendimento lucrativo. Vencedor dos prêmios de melhor roteiro em Cannes e melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro, Leviatã é pesado demais. Triste demais. E ainda, assim, bom demais. [Mariana Castro]

Ex-Machina: Instinto Artificial

Uma pena que não tenha entrado no circuito do cinema nacional – chegou aqui direto nas locadoras e serviços de aluguel por streaming. O primeiro filme de Alex Garland conta a história de Caleb, funcionário de uma empresa descolada (provavelmente do Vale do Silício, claro) que ganha o direito de passar uma temporada com o chefão da empresa, Nathan, em um local isolado para ajudá-lo a testar uma nova tecnologia revolucionária. A tecnologia em questão é um robô, Ava, que é tão real em seus sentimentos e expressões que assusta. A relação criada pelos três nessa esquisita casa é o suficiente para criar um ótimo filme. Para completar, Nathan é vivido por Oscar Isaac em mais uma atuação espetacular, uma espécie de Mark Zuckerberg mesclado com Steve Jobs. [LM]

Perdido em Marte

Ficção científica não é um gênero pra todo o mundo. Quando minha mãe acha que um filme de ficção é um dos melhores do ano, é porque algo deu certo. “Perdido em Marte” é um filme engraçado, muito mais que várias comédias tradicionais por aí. É uma história sem vilão, em que você sabe qual vai ser o final, e mesmo assim não deixa a peteca cair. O que interessa não é tanto o que vai acontecer e nem que dificuldades aparecem, mas como um astronauta sozinho em Marte dribla essas dificuldades para sobreviver. Ridley Scott consegue fazer a ciência divertida até para quem só gosta de humanas. É bem divertido, e às vezes é isso que basta. [Fernanda Reis]

Mad Max: Estrada da Fúria

Continuar uma série querida por muitos e que já ganhou ares nostálgicos é sempre complicado. Por isso a escolha de George Miller para dirigir novamente um filme da série “Mad Max” foi acertadíssima. Contando uma história simples e sem muita complexidade, Miller conseguiu causar um enorme impacto visual (o guitarrista-lança-chamas é um marco do ano) e também explicitou as diferenças entre os anos 80 e o agora (Max, vivido por Tom Hardy, é apenas um coadjuvante perto de Furiosa, interpretada por Charlize Theron). É daqueles filmes para ver no Imax, sair embasbacado e depois chegar em casa e pensar em todos os pequenos detalhes e nuances que couberam no meio daquela loucura toda. [LM]

Olmo e a Gaivota

Abordar o tema da gravidez de um jeito poético, contemporâneo e ao mesmo tempo livre de clichês não é pouca coisa. É o que fazem as diretoras Petra Costa (de Elena) e a dinamarquesa Lea Glob em Olmo e a Gaivota. Mas ao acompanhar os atores do Theatre du Soleil, Olivia e Serge, enquanto aguardam a chegada de seu primeiro filho, o documentário também acerta na linguagem. Há discretas, mas relevantes, interferências das diretoras nas cenas entre os protagonistas. Depois de um sangramento, Olivia passa os meses de gestação dentro de casa, em repouso. É nesse período que as filmagens acontecem. Quando a atriz, às vésperas de viver um grande momento na carreira com a peça Gaivota, de Tchekov, abre mão dela e da liberdade, à espera de Olmo (nome do bebê). As imagens do corpo, da barriga, da transformação de Olivia são de uma beleza delicada. Mas não por isso, menos poderosa. [MC]

A Corrente do Mal

É claro que não é fácil traduzir o título original “It Follows” para português, mas a escolha de “A Corrente do Mal” passou a impressão de que o filme de estreia de David Robert Mitchell era só mais um filme de terror pastiche e cheio de clichês. Nada disso. “A Corrente do Mal” é um dos melhores filmes de terror dos últimos tempos exatamente por não seguir nenhuma dessas fórmulas e utilizar a câmera e o espaço de forma completamente diferente do convencional. A história de uma adolescente perseguida por algo que a persegue de forma implacável (daí o título original) é contada com maestria e ótimo gosto. Não é a salvação do universo do terror, mas assim como “The Babadook” foi no ano passado, “A Corrente do Mal” é um suspiro de novidade em um mercado saturado de repetições. [LM]

Phoenix

“Phoenix” é zero divertido. Longe disso: é uma história triste, sobre os traumas da guerra, identidade e culpa, que se passa logo depois da Segunda Guerra. É um período menos explorado no cinema e “Phoenix” parece mesmo algo completamente novo, sem clichês. Com o rosto desfigurado num campo de concentração, uma cantora judia ganha uma cara nova numa cirurgia e a chance de recomeçar a vida. Ela decide, porém, ir atrás do marido que a tinha traído e a entregado aos nazistas, escondendo dele a verdadeira identidade. A história é tensa, com uma bela cena final. [FR]

Que Horas Ela Volta?

Depois do sotaque de Wagner Moura em “Narcos”, foi uma das produções que mais rendeu discussões no ano. Falta um pouco de sutileza ao filme: a trama toda com o patrão que dá em cima da filha da empregada é constrangedora e desnecessária e a patroa vira uma caricatura, praticamente uma vilã de novela. Mas Regina Casé está maravilhosa (e lembra que é mais do que a apresentadora do “Esquenta”) e é um filme que toca de alguma forma todo o mundo sem ser panfletário e sem deixar de lado o humor. [FR]

Star Wars: O Despertar da Força

J.J. Abrams deve ter comemorado horrores a estreia do seu “Star Wars”. O filme voltou às origens e fez jus às (altíssimas) expectativas do público e da crítica (mesmo com algumas questões). O sétimo episódio da série aplaca a nostalgia das pessoas com o retorno dos personagens principais da trilogia original e com um enredo que lembra bastante “Uma Nova Esperança”. Mas as novidades que traz são legais: tem boas cenas de batalhas, personagens novos interessantes e boas atuações. É um filme bem divertido. [FR]

Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo

“Foxcatcher” é um filme perturbador. Em vários aspectos. A história chocante e real na qual é baseado, embora envolva um milionário de uma tradicional família americana e dois irmãos lutadores de luta livre, ambos medalhistas de ouro na Olimpíada de 84, é pouco conhecida. Por isso, apesar dos fatos, o final trágico surpreende. A atuação dos atores é de tirar o chapéu. Steve Carell está brilhante e irreconhecível no papel do ricaço excêntrico Jonh Du Pont – que lhe rendeu a primeira indicação ao Oscar. Pelo olhar do diretor Bennett Miller, vencedor do prêmio de melhor direção em Cannes em 2014, “Foxcatcher” trata de homossexualidade velada, da relação mal resolvida entre uma mãe controladora que blinda o filho mimado e protegido, de carência, poder e obsessão. Sem que nada disso dê conta de explicar o que leva alguém a uma atitude extrema. Perturbador. [MC]

 

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Cultura Música

As melhores músicas de 2015

Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.

Ontem já contamos quais foram nossas séries favoritas do ano. Hoje, falaremos das melhores músicas de 2015. Novamente, não é um ranking, apenas as que mais nos agradaram. A diferença aqui é que há duas listas na lista: primeiro, as melhores nacionais do ano, depois as melhores internacionais. Vai vendo:

NACIONAIS

Rodrigo Ogi – “Virou Canção”

O disco do Ogi é um dos melhores do ano e conseguiu a façanha de agradar desde a rapa do rap nacional até a galera que por muito tempo ignorou o rap e agora percebeu que tem muita coisa boa (demorou, mas aconteceu). “Virou Canção” é o símbolo disso: um assunto comum ao rap nacional (a perda dos parceiros durante a vida) contada em uma letra fenomenal, interpretada de forma emocionada por Ogi (“parte de mim falece / e esse dia na deprê eu não fui na quermesse / mas recebi uma proposta que a cobiça cresce / peraí, tava ali, um jeito de impressionar Magali”) e que, de quebra, ainda conta com a participação de Thiago França no sax quebrando tudo e fazendo muitos olhos encherem com a nostalgia daqueles que se foram. [Leo Martins]

Aláfia – “Salve Geral”

“Com a nossa rapa você não é capaz”. “Corpura”, novo disco da super-banda Aláfia, é um manifesto, uma causa, um evento. A música de abertura “Salve Geral” é uma paulada logo de cara para você arregalar os olhos e prestar atenção em cada palavra, cada acorde, cada momento do que vem na sequência. [LM]

Naldo & Mano Brown – “Benny e Brown”

https://www.youtube.com/watch?v=7Sd7o7YxRNQ&feature=youtu.be

“Quando o funk chegou a São Paulo, falei para os rappers: ‘Vocês vão ficar para trás, estão escrevendo música para a minha avó ouvir’.” Que falou isso para O Globo foi Mano Brown que, mesmo tendo lançado um disco novo do Racionais no ano passado, parece não estar mais tão em paz com o rap. Por isso foi até o Rio de Janeiro e fez uma parceria improvável com o Naldo Benny, que faz parte de seu disco “Sarniô”. A letra é cheia de momentos e homenagens curiosas – de Emerson Sheik até Romero Britto –, mas esse funk meio trap segura bem no refrão e a parte do Brown é, como de costume, uma aula de métrica e flow. Como ele mesmo disse na mesma entrevista ao Globo, “o funk é revolucionário, doa a quem doer”. [LM]

Jads & Jadson – “Toca um João Mineiro e Marciano”

Artistas como Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran e Maysa já expressavam em suas canções o sentimento chamado de “fossa”. “Toca um João Mineiro & Marciano” aborda intensamente esse desespero da desilusão no relacionamento, “afogado” na mesa do bar. Não há enredo, personagens, mas apenas a ambientação do porre, do barman desconfiado com uma suposta inadimplência, da jukebox com o hit antigo, dos primórdios do sertanejo romântico. Ele a traiu? O pai dela é coronel? Ele foi pego perambulando pelo Tinder? Nunca saberemos. A música traz uma experiência bastante inovadora, Jads & Jadson são um upgrade às duplas caipiras das décadas de 60 e 70. Há um distanciamento do frescor pop dos demais nomes do sertanejo dito universitário. O clipe da canção é magnífico e, além da homenagem na letra, traz o próprio Marciano em sua exótica indumentária, que remete à figura do Dr. Fu Manchu. [Marcelo Daniel]

INTERNACIONAIS

Drake – “Hotline Bling”

Se não é a música do ano, tá ali nas primeiras posições. É aquele hip hop pop que todo mundo acaba consumindo, com uma letra fácil de grudar, um refrão, um papo de “ei, mina, que isso” típico de quem tomou um pé na bunda e acha que pode ficar palpitando na vida dos outros, e um clipe que instantaneamente virou máquina de piadas por causa das dancinhas do Drake. É o tipo de música que você ouve desde o carro rebaixado na quebrada até a festa descolada lotada de gente branca. Ou seja, tem tudo que um hit precisa. [LM]

Kendrick Lamar – “Alright”

Kendrick não fez só o melhor disco do ano. Ele criou hinos. “Alright” é uma delas, uma música sobre ser negro na América, sobre ser cristão na América, sobre pecar na América, sobre o demônio na América. “All my life I has to fight, nigga”. Além do peso que a canção teve nos EUA em um ano de tantos protestos contra a violência policial contra os negros no país, Kendrick ecoa todas as suas habilidades como rimador, escritor e poeta. Para completar, a música recebeu um dos melhores clipes do ano, com peso, humor e força merecidos. [LM]

Jamie XX – “I Know There’s Gonna Be (Good Times)”

A música mais VIBES de 2015 é de alguém que costumava tocar músicas meio tristes no The xx. O disco do Jamie XX não é uma obra-prima, mas “I Know There’s Gonna Be (Good Times)” é das melhores coisas que aconteceram em 2005, com dois dos rappers de inglês mais difícil de entender (Young Thug, com seu flow solto, e Popcaan) e um refrão que, espero, seja o mote de 2016. [LM]

Justin Bieber – “Sorry”

2015 foi o ano em que boa parte das pessoas tentou se justificar perante algumas músicas do disco novo do Justin Bieber. Não precisa se justificar não, galera. O disco tem boas músicas mesmo. “Sorry” é a melhor delas, com uma produção impecável, uma letra bestinha mas grudenta, e um refrão ótimo. O menino cresceu, aceitem. [LM]

The Internet – “Girl”

Syd the Kid, a mina de 20 e poucos anos que dominou o disco “Ego Death”, do The Internet, é foda. Ela espalha sua habilidade durante o disco todo e se sobressai de seus parceiros. Mas é “Girl”, que ela criou junto com outro jovem prodígio, o produtor KAYTRANADA, uma das melhores músicas-xaveco de 2015, que Syd exibe sua voz, seu flow suave, e dá a letra na garota dos seus sonhos, que ela quer que seja sua namorada, e quer muito. [LM]

Sufjan Stevens – “No Shade in the Shadow of the Cross”

Toda vez que você duvidar que o Sufjan Stevens vai dar uma nova facada no seu coração, ele chega lá e PLEI. Aconteceu de novo com “Carrie & Lowell”, o disco-homenagem para sua falecida mãe. O fenômeno ocorre por diversas faixas, mas “No Shade in the Shadow of the Cross” é uma música tão simples e poderosa, dessas que faz você ficar em silêncio, repensando diversos momentos, acontecimentos, histórias. E lá pros últimos versos ele ainda canta os versos “There’s blood on that blade / fuck me, I’m falling apart” e, putz, dói. [LM]

Beach House – “Space Song”

Dream pop é um nome esquisito para estilo musical, né? A única banda que consegue fazer realmente jus ao termo é o Beach House. A banda lançou dois discos esse ano, os dois com a mesma pegada de fim de tarde na praia, aquela moleza depois do Sol e de algumas latinhas de danone. “Space Song”, do álbum “Depression Cherry”, mantém a história do Beach House em seus primeiros discos, com aquela dose de melancolia misturada com uma certa felicidade, aquela sensação de que, bem, uma hora as coisas vão dar certo, né? [LM]

Joanna Newsom – “Leaving the City”

“Leaving the City” é a música mais completa, complexa e surpreendente do novo disco da Joanna Newsom, “Divers”. A elfa toca a harpa, mostra todos os traços de sua voz e, de repente, quando você acha que a toada será a mesma, entra uma bateria marcada, uma guitarra nervosa, como é bom uma guitarrinha nervosa assim, diz aí. [LM]

Sángo – “Não Falo” (Feat. MC Nem)

O Sángo já lançou três beat tapes em homenagem à favela mais conhecida do Rio de Janeiro. O cara realmente pirou no funk carioca e curtiu fazer várias misturas com elementos de trap. “Não Falo” é uma mistura desses dois mundos: o beat do funk, o vocal acelerado, e os recortes precisos do produtor. É pura curtição. [LM]

The Weeknd – “Can’t Feel My Face”

Lembra Michael Jackson, não lembra? Com um cabelinho doido, mas lembra. A música que uniu todas as tribos em 2015. [LM]

Kanye West – “All Day”

O disco ainda não veio, mas o ano não passou batido para o Kanye West. E “All Day”, a primeira parceria com Paul McCartney, é uma paulada. É forte, tem letra, o refrão curto e rápido do Allan Kingdom tem impacto, o Beatle no final é incrível e, para completar, essa apresentação no Brit Awards foi com vantagem a melhor do ano. [LM]

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Televisão

As melhores séries de 2015

Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.

Como é uma lista, claro que há polêmicas. E há questões mais práticas também, como por exemplo, séries que não conseguimos ou não terminamos de ver a temporada desse ano. É o caso de Fargo e Leftovers, duas séries que eu vi alguns capítulos de suas novas temporadas e tô bem empolgado, mas como não terminei, é injusto colocar aqui, certo? Por essas e outras, não há um ranking enumerado – há apenas um monte de séries que gostamos muito neste ano que teima em não acabar. Chega mais:

Jessica Jones

https://www.youtube.com/watch?v=w9ATGrij5qI

Séries de super-heróis há várias: “The Flash”, “Arrow”, “Supergirl”, “Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D.” e por aí vai. Mas “Jessica Jones” é diferente de todas elas. Com uma heroína sem codinome, uniforme, vontade de salvar o mundo ou mesmo poderes tão incríveis, “Jessica Jones” é mais um thriller psicológico. Jessica é uma personagem mais interessante que o Super-Homem, justamente porque é humana. Seu arqui-inimigo é um homem que controlou seus pensamentos e a estuprou e seu maior poder é justamente ter sobrevivido a isso e encarar seus traumas de frente. Tensa, é uma série perfeita para o modelo Netflix: é quase impossível sentar na frente da televisão e assistir a um episódio só. [Fernanda Reis]

UnREAL

Com tantos reality shows por aí, é surpreendente que só agora tenham feito uma série sobre seus bastidores. “UnREAL” fez valer a espera. Ambientada num reality estilo “The Bachelor”, com um grupo de mulheres disputando um solteiro rico, a série mostra como esses programas têm bem pouco de real — colocando uma lente de aumento neles, nem todo reality tem crimes no meio. A protagonista, Rachel, é uma produtora com poucos escrúpulos e uma enorme capacidade de manipular os outros. É um drama super pop, com um pouco de novela e um tanto de suspense. Uma das séries mais originais do ano, com personagens femininas tão ou mais complexas que Don Draper ou Walter White. [FR]

The Jinx: The Life and Deaths of Robert Durst

O retorno do entretenimento true crime aconteceu em grande parte por causa do sucesso estrondoso do podcast “Serial”, mas o seriado “The Jinx”, da HBO, ajudou a catapultar de vez o movimento. A premissa já é incrível: o diretor Andrew Jarecki fez um filme de ficção sobre os mistérios de Robert Durst, um excêntrico milionário de Nova York acusado de matar a esposa. Certo dia, o próprio Durst liga para ele dizendo “ei, legal o filme, mas a história é muito mais complexa que isso”. E é mesmo. Sentados frente a frente em seis episódios, Jarecki confronta Durst e recria toda a narrativa de uma das histórias mais malucas possíveis. Tudo feito de uma forma primorosa e extremamente cativante. [Leo Martins]

You’re the Worst

Desde o começo, no ano passado, “You’re the Worst” era uma comédia romântica esquisita. Não houve enrolação para saber se os protagonistas Gretchen e Jimmy iriam ou não ficar juntos: nos primeiros dez minutos eles já estão na cama. O legal é ver como essas duas pessoas tão egocêntricas e avessas a relacionamentos conseguiriam ficar juntas. A primeira temporada já tinha um humor meio negro, mas a segunda foi além e conseguiu fazer graça mesmo tendo como trama central a depressão de Gretchen. A doença não foi apresentada em um episódio e deixada de lado nem foi tratada levianamente. Foi uma decisão arriscada falar sobre depressão numa comédia e logo na segunda temporada, mas valeu a pena. Neste ano “You’re the Worst” não só continuou fazendo rir como também emocionou. [FR]

Mad Men

https://www.youtube.com/watch?v=3JUqwwjgLAY

Começar uma série bem é fácil, difícil é saber quando e como parar. “Mad Men” conseguiu. A parte final de sua última temporada não teve grandes acontecimentos (pra falar a verdade, a série toda é assim), mas dedicou um tempo para dar um final decente a cada personagem e amarrar todas as pontas soltas. O último capítulo foi especialmente bom, concluindo de um jeito simples e bonito o arco de Don Draper e as três mulheres de sua vida: Peggy, Betty e Sally. Não à toa Jon Hamm finalmente quebrou a maldição Leonardo DiCaprio e ganhou o Emmy que tinha perdido seis vezes antes. [FR]

The Americans

“The Americans” sempre foi uma série boa sem o devido reconhecimento que merece pelas principais premiações de televisão. Mas essa temporada foi particularmente boa, colocando mais drama familiar na trama de suspense político. A filha do casal principal, Paige, começa a se incomodar com a vida misteriosa que os pais levam e pela primeira vez eles se perguntam: será que eles devem contar aos filhos nascidos e criados nos Estados Unidos que são da KGB? Keri Russell consegue deixar a imagem de Felicity para trás, a trilha sonora é maravilhosa e a trama toda foi eletrizante. O último episódio da temporada terminou de um jeito tão inesperado que a espera para o quarto ano não está sendo fácil. [FR]

Master of None

https://www.youtube.com/watch?v=ROATnkhOPfk

Uma boa surpresa que estreou sem muito alarde no Netflix já perto do fim do ano. Quase como uma antologia, com episódios desconectados uns dos outros, a série tem a mesma pegada “retrato da vida das pessoas de 20 e tantos/30 e poucos anos hoje” que “Girls”, por exemplo, mas é mais original nos seus temas. Fala do racismo na televisão e no cinema, de feminismo, de diferenças geracionais, de imigração, tudo com humor e delicadeza. [FR]

Demolidor

A essa altura da lista já dá para dizer que foi um bom ano para o Netflix. Mas, além disso, foi um bom ano para a Marvel na televisão: se o segundo filmes dos Vingadores não foi tão impactante, o núcleo dos quadrinhos de Nova York teve vida boa nas séries. Além de “Jessica Jones”, a ambientação de “Demolidor” em Hell’s Kitchen foi ótima: em uma temporada, foi possível mostrar a história de Matt Murdock, sua relação complicada com seu bairro e a ideia de combater o crime, sua proximidade com a religião e seus amigos, e um Rei do Crime de respeito como vilão. [LM]

Mr. Robot

Sam Esmail, criador da série, buscou inspiração no noticiário para a primeira temporada de “Mr. Robot”. Deu certo. Apesar de ter alguns pontos baixos lá pelo meio, a série é bastante atual e crítica ao capitalismo, mostrando como a tecnologia pode ser usada para lutar contra a desigualdade social. Rami Malek, o protagonista Elliot, é especialmente bom no retrato de um hacker fora do clichê do gênio de óculos que digita números freneticamente em uma tela enquanto fala coisas que ninguém entende. É também uma série linda de ver, com seus enquadramentos inusitados e um retrato de uma Nova York longe do glamour. [FR]

Wet Hot American Summer

https://www.youtube.com/watch?v=j2Z4ew6x99w

Com um humor hiper nonsense, “Wet Hot American Summer” não é pra todo o mundo. O filme que deu origem à série, com atores perto dos 30 anos interpretando adolescentes num acampamento, já é assim: latas de vegetais conversam, cozinheiros têm taras por objetos, e nenhum (nem um!) ator se leva a sério. A série leva tudo isso ao extremo: agora na faixa dos 40 anos, os atores (como Bradley Cooper, Paul Rudd, Amy Poehler e Elizabeth Banks, consideravelmente mais famosos) interpretam os mesmos personagens ainda mais novos, no primeiro dia do acampamento. Nada faz sentido, mas é tudo incrivelmente engraçado. Mais engraçado até que o filme, que inaugurou todo um tipo de humor. Will Ferrell deve muito a “Wet Hot American Summer”. [FR]