Leonardo DiCaprio ainda não era o rei do mundo quando interpretou um jovem misógino, agressivo e bocudo que se reunia com um grupo de amigos num bar para discutir de tudo. Era antes de “Titanic”, antes de suas parcerias com Martin Scorsese, antes da comoção na internet para que ele ganhasse o Oscar. Mas é normal não conhecer esse papel. Vinte anos depois, o filme, chamado “Don’s Plum” e gravado totalmente no improviso com um grupo de amigos, não viu a luz do dia na América do Norte. Antes que o filme fosse lançado, DiCaprio e Tobey Maguire — seu amigo de infância, que também está no filme — conseguiram barrar na Justiça sua exibição nos Estados Unidos e no Canadá.
Há muito mistério sobre o que aconteceu de fato, já que o acordo jurídico impede os envolvidos de falarem a respeito. Pouca coisa foi publicada, pouquíssimas vezes o filme foi mencionado em entrevistas. O que já se sabia há algum tempo é o seguinte: o filme foi dirigido por R.D. Robb, que na época fazia parte do grupo apelidado pela revista New York de “pussy posse” — que vivia intensamente a noite dos Estados Unidos –, e tinha no elenco boa parte de seus outros integrantes: DiCaprio, Maguire e Kevin Connolly (de “Entourage”).
Mas depois da gravação, algo aconteceu. Um dos produtores, David Stutman, entrou com uma ação contra DiCaprio e Maguire dizendo que foi convencido pelos dois a financiar o filme e a contratar R.D. como diretor, que DiCaprio tinha ficado muito satisfeito com o resultado, e que depois tinha se voltado contra ele por um motivo “egomaníaco”. Ainda segundo Stutman, Maguire não gostou de como foi retratado no filme e se incomodou por ter revelado tendências pessoais nas suas falas improvisadas. DiCaprio teria, então, apoiado o amigo e se aproveitado do poder conquistado pelo sucesso de “Titanic” para censurar o filme.
Em uma entrevista à revista Detour, DiCaprio mencionou o filme, dizendo que tinha feito um favor a R.D. topando participar de um curta-metragem seu, que o diretor quis transformar o projeto num longa e ameaçou jogar a mídia contra ele caso ele não aceitasse lançar “Don’s Plum” como um longa-metragem. Depois disso houve um acordo entre os envolvidos, que determinou que o filme não seria lançado nos Estados Unidos e no Canadá. Em outros países, foi liberado, e o filme chegou a ser exibido no Festival de Berlim e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2001.
O assunto esfriou depois disso. Mas em 2014, um dos produtores de “Don’s Plum”, Dale Wheatley, cansou de ficar quieto. Criou o site Free Don’s Plum, escreveu uma carta pública a DiCaprio e publicou o vídeo, hospedado no Vimeo, para quem quisesse ver. Quando uma conversa sobre o site foi parar no Reddit, já em 2016, as matérias avisando que quem quisesse ver o filme perdido de Leonardo DiCaprio poderia finalmente fazê-lo começaram a sair. E o vídeo foi tirado do ar.
Agora, Dale envia os links por e-mail para quem quiser assistir ao filme e está fazendo um documentário sobre o caso com a brasileira Angela Carvalho. O filme deve incluir vídeos de depoimentos de Tobey Maguire e Leonardo DiCaprio, que Dale tem desde a época do processo e hoje estão com a cineasta, que mostram o lado deles do embate. Sua versão da história ele conta agora. O depoimento abaixo é resultado de entrevistas do Risca Faca com Dale por telefone e e-mail.
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Em 1995, eu, R.D. Robb, Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire, Kevin Connolly e Scott Bloom éramos amigos muito próximos e resolvemos fazer um filme juntos. Na época ele era chamado “Saturday Night Club”, e hoje é conhecido como “Don’s Plum”. O projeto partiu de David Stutman, que nos vendeu a ideia uma noite na casa do Leo. Todos concordamos que era um projeto ótimo. Naquela época, Leo já tinha sido indicado ao Oscar [em 1994, por “Gilbert Grape: Aprendiz de Sonhador”] e certamente não precisava ter feito o filme. Talvez ele tenha visto como um favor pra gente, como disse numa entrevista, mas acho que, na verdade, ele estava tão animado quanto o resto de nós por trabalhar com seus amigos e estava envolvido desde o começo.
Nos reunimos para fazer um filme experimental e decidimos fazê-lo totalmente por improviso. Fizemos cartões para cada personagem, delineando seus arcos e histórias. Depois de uma série de ensaios os personagens ficaram prontos e no ponto para serem filmados. Filmamos por três dias em 1995 — Leonardo DiCaprio participou de dois desses dias. Mais ou menos oito meses depois gravamos algumas cenas a mais pra terminar o filme, durante mais três dias. Leonardo não gravou dessa vez, mas Tobey Maguire, Kevin Connolly e Scott Bloom voltaram. Todos assinaram contratos concordando em aparecer no filme, sem restrição geográfica para a exibição. Verbalmente, eles também concordaram em receber o valor do sindicato pelo seu trabalho mais 1% dos lucros.
Gravamos as cenas novas em março de 1996 e achamos que dava pra ter uma versão pronta uns meses depois disso. Então planejamos para o verão de 1996 uma exibição para Leonardo DiCaprio e os outros caras — todos os nossos amigos e potenciais distribuidores –, pra ver se alguém estaria interessado em comprar o filme. Naquela data Tobey Maguire não ia estar na cidade para ir à exibição, porque ia gravar outro filme. Então R.D. e eu decidimos fazer uma versão de 72 minutos, sem nenhuma das imagens da segunda gravação, pra ele assistir.
Soube recentemente que o Tobey achou, depois de ver aquela versão, que o filme era um pouco “real” demais. Quero deixar claro: todos aqueles caras interpretaram personagens. Ian [personagem de Maguire] e Tobey são pessoas completamente diferentes. Mas acredite: Tobey é muito pior que Ian. Muito. Aparentemente, depois de ver o filme Tobey começou a falar mal dele pra todos os nossos amigos. Enquanto isso eu e R.D. estávamos trabalhando, não sabíamos o que estava acontecendo. Ele não disse pra gente que não tinha gostado.
[olho]”Quero deixar claro: todos aqueles caras interpretaram personagens. Ian e Tobey são pessoas completamente diferentes. Mas acredite: Tobey é muito pior que Ian” [/olho]
Havia uma tensão naquela época porque Leonardo DiCaprio já era um ator indicado ao Oscar, e a última coisa que ele queria era fazer um filme que o envergonhasse ou tirasse seu crédito como ator. Mas R.D. e eu nunca, nunca, lançaríamos um filme que prejudicasse sua reputação. R.D., que foi meu parceiro em toda essa história épica de “Don’s Plum”, começou sua carreira como ator fazendo propaganda de fralda. Ele fez peças na Broadway, em Nova York, aos 13 anos, fez o filme “Uma História de Natal”, um clássico americano, na adolescência. Ele estava na indústria desde sempre, é um artista extraordinário.
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Alguns meses depois disso fizemos uma exibição nos estúdios da MGM em Hollywood. Nesse dia estávamos eu, Leonardo DiCaprio, R.D. Robb, Kevin Connolly, a maioria do elenco, com exceção do Tobey Maguire. Também estavam alguns distribuidores para nos dar uma opinião e dizer se aquilo que era algo que eles comprariam. Leonardo DiCaprio estava muito animado durante a exibição: levantava da cadeira, batia o pé no chão, dava risada. Foi uma noite muito boa. Depois saímos para a boate HMS Bounty, na avenida Wilshire, em Hollywood. Kevin Connolly deu a R.D. um cartão lindo, dizendo “parabéns, você conseguiu!”, com flores dele e da namorada, Nikki Cox, que contracenava com ele na série “Unhappily Ever After”. Foi maravilhoso, todo o mundo estava animado, as preocupações do Leo tinham desaparecido. Kevin Connolly me disse que o Leo tinha dado um giro de 180º em relação aos seus medos sobre “Don’s Plum”. Tanto que o Leo disse pra mim e pro R.D. que queria que seus agentes vissem o filme.
Uma semana depois, mais ou menos, fomos à Creative Arts Agency e exibimos o filme para o agente do Leo, Adam Venit, seu empresário, Rich Yorn, seu advogado, Steve Warren, para a agente Beth Swafford e outras pessoas da CAA. Foi um sucesso. Tanto que o pessoal da CAA — os agentes do Leo — assinou um contrato para representar não só o filme como o R.D. Robb como um de seus talentos. Foi uma época muito excitante e depois disso Leo nos deu seu consentimento para seguirmos em frente com a distribuição.
Logo estávamos negociando com Harvey Weinstein e a Miramax, e tínhamos outros compradores interessados. Esse processo de venda do filme estava acontecendo quando Tobey Maguire apareceu na nossa casa — eu e R.D. morávamos juntos naquela época — com uma caixa de macarrão e salsichas de tofu, dizendo que queria conversar sobre “Don’s Plum”. Acho que ele nem tinha assistido ao filme todo, só àquela versão de 72 minutos. De qualquer forma, ele pirou. Começou a gritar, dizendo que queria destruir o filme, e a fazer acusações contra a gente, falando que tínhamos sido anti-éticos. Nenhuma das acusações fazia sentido. Ele dizia que queríamos alcançar as estrelas, que estávamos usando o Leonardo DiCaprio pra ganhar fama e dinheiro. Tinha muita paixão e nonsense por trás do discurso dele. Uma hora ele começou a gritar histericamente centímetros da minha cara dizendo que queria acabar com “Don’s Plum”. Foi muito perturbador e até hoje não sei explicar o porquê. Tentei acalmá-lo, ficamos até de manhã tentando acabar com as preocupações dele, que até hoje não compreendo de verdade.
Em um momento, do nada, ele disse: “O que aconteceria se Leonardo DiCaprio dissesse que queria acabar com o filme?”. Naquela hora a gente já tinha passado o filme pros agentes e pro empresário do Leo, estava tudo certo. Mas Tobey pirou. Eu disse pra ele que pegaria muito mal pro Leo tentar parar um filme independente. Ainda acho isso. E ele usou essa frase pra pilhar o Leo. Fomos chamados pra uma reunião na casa do Kevin Connolly, com Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire, Scott Bloom. Eu e R.D. sentamos e ouvimos abusos verbais por horas de cada um deles.
[olho]”Eu disse pro Tobey que pegaria muito mal pro Leo tentar parar um filme independente. Ainda acho isso. E ele usou essa frase pra pilhar o Leo”[/olho]
Antes da reunião o Tobey disse pra todo mundo que eu tinha confessado que ia colocar a mídia contra o Leonardo DiCaprio se ele não concordasse em lançar Don’s Plum como um longa. E ele já tinha concordado em lançar como um longa. Tenho um vídeo do Tobey falando, sob juramento, que voltou pra gravar mais cenas sabendo que “Don’s Plum” seria um longa. E tenho o vídeo do Leo falando, também sob juramento, que não sabia que tínhamos gravado aquelas cenas a mais. Um deles está mentindo, porque se você acreditar no Leo e no Tobey significa que o Tobey também estava enganando o Leo fazendo um longa pelas costas dele. Tobey estava falando a verdade nesse depoimento. Leo e todo o mundo envolvido com o filme sabiam o que estávamos fazendo desde o começo. Fomos transparentes.
Mas tudo estava correndo bem, por que eu teria dito aquilo pro Tobey? Eu tinha 26 anos, nem sabia como fazer para colocar a imprensa contra alguém. E isso não é algo que esteja de acordo com a minha bússola moral, sabe. Mas Tobey fez todo o mundo acreditar que eu, R.D. e outro dos nossos produtores iríamos difamar o Leonardo DiCaprio se ele não quisesse lançar o filme como um longa. Pelo que eu sei, o Kevin Connolly filmou essa reunião, ele gravava um monte de coisas na época e nem sei por que ele fez isso. Mas quando pedimos uma cópia da fita ele disse que ela tinha sido roubada.
Aquilo enfureceu o Leonardo DiCaprio. Ele ficou completamente maluco. Era uma época sensível pra ele, nos Estados Unidos o Leo estava começando a virar uma estrela e a imprensa pegava no pé dele. Havia muitas questões sobre sua sexualidade. Então quando Tobey fez essa acusação contra a gente, encheu Leo com uma fúria incontrolável. Chegou a um ponto em que ele gritou: “Você vai colocar a mídia contra mim? Eu sou o Coração Valente, seu filho da puta!”. Ele disse: “Minha equipe falou que estava tudo bem, que esse filme não ia ser um problema”. E uma das últimas coisas que ele disse me deu alguma esperança: “Se eu seguir em frente com o filme, vai ser por causa deles”. E apontou pro Kevin e pro Scott. Disse: “Estou pouco me fodendo pra vocês. Nem aguento olhar pra cara de vocês. Deem o fora daqui”.
[olho]”Chegou a um ponto em que o Leo gritou: ‘Você vai colocar a mídia contra mim? Eu sou o Coração Valente, seu filho da puta!’”[/olho]
Quando R.D. e eu fomos embora, lembro de ter dito que o Leo reconhecia que o filme precisava sair pra que as pessoas vissem as performances dos amigos dele. Apesar dos problemas, achei que daria certo, que o Leo faria a coisa certa e deixaria o mundo ver a atuação dos seus amigos. Como sabemos agora, não foi o caso. A partir dali nunca mais conversamos como amigos.
Era 1996 e estávamos com uma estrela em ascensão falando mal publicamente do nosso filme e do nosso trabalho. Ele dizia coisas horríveis sobre a gente pela cidade toda. A CAA abandonou nosso filme, cancelou o acordo com R.D. Robb. Tínhamos um acordo verbal para produzir três filmes com a produtora do Danny DeVito, a Jersey Films. Também abandonaram. Entramos numa lista negra depois daquela noite. E não tínhamos o dinheiro do Leonardo DiCaprio. Tentamos contratar um advogado, mas ninguém aceitava o caso. Naquela época o Leo não era um astro. Já era rico, mas ainda fazia comerciais para empresas de carro. Ganhava bem, mas ainda não renderia tanto dinheiro pra um advogado que o processasse.
Aí veio “Titanic” e contratamos um dos maiores advogados de Hollywood, Bert Fields. Ele seria pago com uma porcentagem do lucro do processo, não de cara. Em 1999 David Stutman entrou com um processo contra Leonardo DiCaprio e Tobey Maguire por calúnia, difamação e impedimento de um lucro futuro — algo assim. Bert Fields achava que eles fariam um acordo com a gente, que seguir em frente não traria nada de bom pra eles. Ele achava que ganharia um bom dinheiro. Naquela época, por causa de “Titanic”, tínhamos uma proposta de US$ 20 milhões pelos direitos do filme. Estávamos tentando vender o filme desde 1996, ninguém sabia que “Titanic” seria aquele sucesso. Mas o Leonardo DiCaprio não quis acordo, Bert Fields largou o caso e ficamos sem advogado.
Conseguimos outro advogado, que também só receberia uma porcentagem dos lucros. Durante meses ele ficou com nosso caso, gastando milhares de dólares. Então finalmente marcamos uma reunião para um acordo. Mas o advogado disse que se não assinássemos um acordo naquele dia ele largaria o caso. A gente não queria que o filme fosse proibido de passar nos Estados Unidos e no Canadá, mas se perdêssemos o segundo advogado havia um risco grande de o filme não passar em nenhum lugar do mundo. Seria difícil encontrar outro advogado disposto a enfrentar o time jurídico de Leonardo DiCaprio e Tobey Maguire, que era bem financiado.
[olho]”A gente não queria que o filme fosse proibido nos Estados Unidos e no Canadá, mas se perdêssemos o segundo advogado havia um risco grande de o filme não passar em nenhum lugar do mundo”[/olho]
Nos contratos que eles assinaram não dizia se o filme seria um curta ou um longa. Foi isso que eles argumentaram, mas a ideia de que eles não sabiam que seria um longa é ridícula, o Tobey Maguire admitiu que sabia. É uma mentira. Seria muito difícil transformar um curta em longa. E mesmo que você acredite nisso, o Leonardo DiCaprio viu o filme como longa numa sessão com seus agentes e eles contrataram o diretor e iam representar o filme. Então você tem que acreditar que o Leonardo DiCaprio estava OK com o fato de que “Don’s Plum” tinha virado um longa.
Os dois não queriam de jeito nenhum que o filme fosse lançado no Canadá ou nos Estados Unidos. Então as atenções se voltaram para o Japão. Leo também não queria que o filme fosse lançado lá, mas não íamos fazer um acordo a não ser que ganhássemos um país grande. Sem isso não receberíamos dinheiro suficiente pra poder fazer outro filme. Ninguém queria trabalhar com a gente, então o único jeito de trabalharmos de novo seria financiando nosso próprio filme. Por isso brigamos pelo Japão. Eles consentiram e ficou acordado que os dois não iriam interferir no lançamento de “Don’s Plum” em outros países nem difamar o filme ou seus produtores, e nós concordamos em não lançar o filme nos Estados Unidos e no Canadá.
Brigamos pelo Japão porque tínhamos uma oferta de uma distribuidora local de US$ 1,2 milhão. Nas nossas projeções, conseguíriamos ganhar US$ 9 milhões no mundo. Pagaríamos US$ 3 milhões pros advogados, pagaríamos o elenco e a equipe de filmagem — que não tinham recebido nada até então — e ainda sobraria uns US$ 2 milhões pra gente, o suficiente para continuarmos fazendo filmes. Mas não sabíamos que o David Stutman, que tinha a maior parte dos direitos do filme, tinha assinado um contrato de US$ 170 mil com outra distribuidora japonesa. Só soubemos disso depois, quando estávamos na Dinamarca terminando o filme nos estúdios Zentropa, do Lars von Trier.
Aí teve uma briga na justiça, porque essa distribuidora dizia que era dona do filme no Japão, apesar de o contrato só ter assinado pelo David Stutman. E ele prometia, no contrato, entregar o filme para a distribuidora em 1997. Mas ele não conseguiu cumprir o prazo porque o Leonardo DiCaprio tinha bloqueado a produção. Por causa disso tivemos de pagar US$ 1 milhão para a distribuidora japonesa. Em vez dos US$ 9 milhões, o filme acabou rendendo US$ 3 milhões. Pagamos os advogados e a equipe e não ficamos com nada. Não processamos o David Stutman porque não tínhamos dinheiro.
Se o filme fosse liberado hoje a carreira dos dois não sofreria nada. Acho que eles só o impedem de ser lançado hoje porque têm uma questão pessoal com a gente. Você pode ir no YouTube agora e achar o filme dublado em russo. O único motivo pelo qual eles proíbem o filme de passar nos Estados Unidos e no Canadá é para punir o diretor e o produtor. Eles deveriam ter vergonha disso. Leonardo DiCaprio proíbe um filme nos Estados Unidos. O diretor com quem ele mais trabalhou é o Martin Scorsese, que dedicou boa parte de sua vida à preservação de filmes americanos. Pense nisso.
Acredito que um dia o Leonardo DiCaprio, mais maduro, vai perceber que impediu o trabalho de muita gente de ver a luz e vai consertar as coisas. Mas o prazo já se esgotou e por isso fiz o site Free Don’s Plum, que vou manter no ar. Os advogados do Leo falaram com o Vimeo, que tirou o vídeo do ar, mas vou colocá-lo de novo, só preciso descobrir como e quando. Passo várias horas por dia mandando o link pra pessoas que me escrevem dizendo que querem assistir ao filme. Vou continuar lutando. Antes da minha carta, publicada em 2014, estourar no Reddit, 16 pessoas tinham visto o filme. Só 24 horas depois do Reddit o número de visualizações chegou a 35 mil. Depois mais 15 mil pessoas viram, até o vídeo sair do ar. Estou fazendo um documentário agora sobre essa história e acho que é um passo importante. A diretora do documentário, Angela Carvalho, está agora com as minhas fitas dos depoimentos do Leo e do Tobey.
Falo com R.D. Robb bastante [fica com a voz embargada]. Fico muito triste falando dele, porque ele continua respeitando o acordo judicial e não fala sobre o filme. É um homem melhor que eu. Fico emotivo porque sei que foi muito difícil pra ele, ele ama “Don’s Plum” e isso acabou com ele. É um diretor que tem o filme censurado. R.D. Robb fica muito triste com o que aconteceu. Mas agora o filme está sendo visto, comentado, e acho que as tentativas de censura estão começando a falhar.
Logo de cara, na abertura, “Deadpool” mostra que, sim, você vai ver um filme de super-herói — apesar da insistência do protagonista em dizer que não é herói coisa nenhuma –, mas um filme que não se leva a sério e está ciente de todos os clichês por trás do gênero. “Deadpool” não tem músicas épicas, olhares dramáticos para o vazio, lágrimas ou a mensagem de que com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Nos créditos iniciais, o filme anuncia “uma garota gostosa”, “uma adolescente geniosa”, “um personagem feito digitalmente”, “um vilão britânico”, “uma participação especial gratuita”. Sim, está tudo lá, mas pelo menos o filme tira um sarro.
Do ponto de vista de alguém que nunca tinha ouvido falar em Deadpool até ver o trailer, é refrescante poder ver um filme da Marvel sem precisar estar em dia com uma penca de outros longas (é bom ver o primeiro “Capitão América” antes do primeiro “Vingadores” e ver o segundo “Vingadores” antes do terceiro “Capitão América” e por aí vai num grande loop). Os X-Men aparecem de leve, mas dá para entender a história toda sem saber quem é Mística ou Ciclope — apesar de que uma boa piada com as diferentes versões do Professor Xavier se perde se você não souber absolutamente nada sobre os mutantes no cinema.
Em tempos em que o Homem-Aranha ganha uma terceira cara em menos de 15 anos, qualquer novidade é bem-vinda. E “Deadpool” é cheio de pequenas novidades. Para começar, como em todo filme que apresenta um herói, há uma história de origem (a aranha radioativa, a chegada de Clark Kent à Terra… Wolverine ganhou um filme inteiro sobre seu passado), mas que só vem depois de já termos conhecido Deadpool e ligarmos minimamente para ele. Já sabemos que Deadpool, interpretado por Ryan Reynolds, é bocudo, convencido e vingativo quando conhecemos Wade Wilson, um mercernário que passa por um tratamento experimental para curar um câncer e ganha uma habilidade de cura rápida e uma aparência pouco atraente.
Wilson não tem intenções honradas nem a menor vontade de se juntar aos X-Men para combater o mal e salvar o mundo. Sua motivação é encontrar o homem que o deixou assim (o tal vilão britânico, papel meio canastrão de Ed Skrein) para que ele recupere sua cara normal e possa voltar para a namorada, a prostituta Vanessa (Morena Baccarin, que nos faz esquecer de que um dia já foi a chatíssima Jessica Brody de “Homeland”).
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Vanessa, aliás, é um capítulo à parte. Deadpool, que também narra o filme e conversa o tempo todo com o espectador, diz em certo ponto algo como “os homens no cinema devem ter convencido as namoradas a ver o filme falando que era uma história de amor”. Uma história de amor é completamente desnecessária para levar uma mulher ao cinema. Mulheres também gostam de quadrinhos, filmes de ação e super-heróis. O problema é a ausência de boas personagens femininas nos filmes do gênero (cadê o filme da Viúva Negra? É capaz de o Gavião Arqueiro ter um longa solo antes dela).
Ao lado de outras personagens femininas menores Vanessa cumpre esse papel em “Deadpool”. Mesmo quando é colocada na posição de vítima ela parte para a ação e não deixa Deadpool resgatá-la sozinha. Ela não é a mocinha perfeita e inatingível, não é a Mary Jane do “Homem Aranha”, nem a Rachel de “Batman Begins” (um Google foi necessário para lembrar o nome da personagem de Katie Holmes no filme, de tão pouco memorável), e sim alguém que poderia perfeitamente existir no mundo real, com seus defeitos e qualidades.
“Deadpool” não é perfeito porque é tão piadista que às vezes exagera na dose. Ryan Reynolds já tinha feito uma piada consigo mesmo, citando seu fracasso em “Lanterna Verde”, quando faz um comentário sobre o fato de que o ator é mais conhecido pelo rostinho bonito do que pela atuação. Ok, já entendemos que vocé capaz de rir da própria cara. Mas às vezes o filme parece querer ser engraçado demais, fazendo uma piada atrás da outra só para mostrar que consegue. “Deadpool” é tão pop e tão frenético que parece saído de um fórum na internet.
É uma referência atrás da outra, do começo ao fim — na última cena, depois dos créditos, “Deadpool” remete a “Curtindo a Vida Adoidado”, de 1986, um filme “muito, muito velho”, segundo um adolescente que saía da sala de cinema impressionando o amigo por ter captado uma referência tão cult (já eu, por outro lado, não reconheci Stan Lee — a participação especial gratuita anunciada no início. Tem citações para todos os gostos).
O filme era um projeto caro a Ryan Reynolds, que batalhou por anos para conseguir fazê-lo. Foi só quando uma cena teste vazou na internet e empolgou os fãs que o estúdio resolveu de fato fazer o filme, com um orçamento menor do que produções como “Os Vingadores”. E a aposta deu tão certo que o filme bateu o recorde de bilheteria nos Estados Unidos para a estreia de um filme em que menores de 17 anos devem entrar acompanhados, arrecadando 132,7 milhões de dólares de sexta a domingo. É uma prova de que dá para fazer filmes de heróis diferentes do molde tradicional. Dá para fazer humor, dá para inovar na trilha sonora (que tem de George Michael a Salt-N-Pepa), dá para ter bons personagens femininos, dá para ter um herói que não seja um machão, dá para fazer com menos dinheiro e mesmo assim ser um sucesso.
Transformar o livro “Quarto” em filme não era uma tarefa simples. Publicada em 2010, a obra da irlandesa Emma Donoghue, 46, é narrada por um menino de cinco anos, preso num pequeno quarto com sua mãe desde o nascimento. Conduzido por Jack, o leitor desvenda aos poucos a situação em que os dois se encontram, colecionando os pedaços de informação que a criança dá e que ela própria não sabe interpretar. O quebra-cabeças formado não é bonito: a mãe de Jack foi raptada quando adolescente por um estranho que a prendeu naquele quarto à prova de som e hermeticamente fechado. Estuprada ao longo de anos, ela engravidou, e a chegada de Jack a manteve sã. Para proteger o filho, disse a ele que aquele quarto era o mundo todo e que tudo o que ele via na televisão não era real.
A história fica menos sombria contada por Jack, com sua inocência, sua visão peculiar de mundo (o sol, que via pela claraboia, era chamado por ele de Deus) e seus erros de inglês, e foi justamente esse olhar que serviu de ponto de partida para o livro. “Minha ideia, na verdade, era ter o ponto de vista da criança nesse cenário particular, como ele poderia oferecer uma visão fresca desse horror todo e essa mistura comovente entre alegria e dor que uma infância dessas pode envolver”, conta Emma por e-mail. Mas encontrar luz nesse horror em um filme — que em português ganhou o nome “O Quarto de Jack” e estreia no dia 18 — tinha duas grandes dificuldades: como levar para a tela esse ponto de vista infantil e como encontrar um ator dessa idade capaz de sustentar o drama.
A tarefa de resolver a primeira questão ficou nas mãos da própria Emma, que foi responsável pela adaptação — foi seu primeiro longa, que já lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Ela já havia recebido vários pedidos para transformar “Quarto” em filme, mas sentiu algo de diferente na oferta do diretor Lenny Abrahamson, que até então tinha um currículo pequeno, que inclui “Frank”, com Michael Fassbender. “A maioria das pessoas faz propostas vagas, focando nos nomes de grandes atores que podem escalar. Lenny escreveu uma descrição de dez páginas sobre sua compreensão do livro e sua visão detalhada de como recontar essa história na tela”, lembra Emma. “Tão inteligente, tão sensível, tão amável.”
Passar a adaptação para outra pessoa foi uma hipótese que nem cruzou sua cabeça. “Acho que foi mais difícil que escrever o livro, porque envolveu aprender novas habilidades (não só de fazer um roteiro, mas o processo de colaboração. Na verdade, de subordinação, porque você sempre tem de se lembrar que o filme pertence ao diretor!). Mas foi um desafio agradável, não sofrido”, diz. “Não considerei deixar outra pessoa adaptar o livro não porque eu fosse a única pessoa que pudesse conseguir, mas porque eu realmente queria o trabalho. Não diria que fui calma e objetiva, mas acho que isso seria verdade caso fosse um roteiro original, já que eu ficaria apegada a ele também. Os cortes são sempre doloridos!”
Vez ou outra, Emma usou o recurso da narração, na voz de Jacob Tremblay, 9, escolhido para o papel de Jack. São poucos trechos, que remetem ao livro e ajudam a entrar na mente do menino e nunca servem de muleta narrativa — sem as narrações do menino, o filme ainda se sustentaria. Como no livro, o espectador não sabe mais do que Jack. Na verdade, talvez saiba um pouco mais se tiver visto o trailer, que revela boa parte da trama (no caso, é mais importante ver como acontece do que o que acontece). Quando o sequestrador aparece para ver sua mãe, papel de Brie Larson, Jack se esconde no armário. Vemos a interação dos dois pelas frestas e ouvimos o que acontece enquanto a câmera fica no rosto do menino. O espírito do livro se mantém, embora alguns detalhes mudem: no filme, por exemplo, descobrimos que a mãe se chama Joy (nome não revelado no livro), que amamenta o filho bem menos em cena do que na versão por escrito.
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Jacob Tremblay merece um parágrafo à parte: sem ele, o filme perderia muito do impacto. Indicado como ator coadjuvante ao prêmio do sindicato dos atores, que perdeu para Idris Elba, Jacob carrega pelo menos metade do filme nas costas. Brie Larson é a favorita ao Oscar de melhor atriz e é merecido, mas num mundo ideal os dois seriam indicados juntos, num combo — a química ali é impressionante e num filme em que personagens importam mais que enredo a performance é ainda mais essencial.
O diretor afirmou num evento em outubro que “suava à noite” aterrorizado com a perspectiva de achar uma criança que desse conta do recado. “Vimos centenas de crianças. Muitas extraordinárias, que você podia ver pra sempre, mas dava pra saber que com certeza elas não conseguiriam lidar com o drama desse filme”, disse o cineasta. E então Jacob Tremblay apareceu. “Foi o maior desafio e a maior recompensa que tive como cineasta. Encontrá-lo foi a maior sorte.”
Apesar de ter sido inspirado no caso real de Elizabeth Fritzl, mantida em cativeiro durante anos na Áustria, período no qual teve vários filhos do captor, “Quarto” não gira em torno do crime. Não é uma trama policial (embora tenha polícia), não é uma história particularmente triste (embora tenha vários momentos assim). Tem um quê do mito da caverna de Platão, com Jack no papel dos presos que só conheciam o mundo pelas suas sombras na parede. Mas é principalmente uma história sobre a relação de mãe e filho. Uma história bem pessoal, que carrega muito da autora. Nas palavras de Emma: “Gosto de contar histórias esquisitas — ou, na verdade, histórias únicas que iluminem nossa condição universal e cotidiana. Então, por exemplo, nunca vivi num quarto fechado, mas fui mãe de crianças pequenas e coloquei tudo o que conhecia em ‘Quarto’”.
Eddie Redmayne tem uma capacidade incrível de imitar pessoas em seus mínimos trejeitos, e isso ficou claro em “A Teoria de Tudo”, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator no ano passado por sua interpretação de Stephen Hawking. Seu rosto também se transforma com facilidade — a cada filme ele parece uma pessoa diferente. E em “A Garota Dinamarquesa”, que estreia hoje (11), não é diferente. Redmayne mostra de novo que, fisicamente, é um camaleão. Pelo papel de Lili Elbe, pintora dinamarquesa que fez uma das primeiras cirurgias de mudança de sexo de que se tem notícia, Redmayne concorre pela segunda vez seguida ao Oscar.
Seus dois filmes, aliás, têm bastante em comum. Como em “A Teoria de Tudo”, Redmayne interpreta uma personagem num casamento feliz, que vai se deteriorando à medida em que o marido passa por uma grande transformação. Nos dois filmes, seu personagem tem uma mulher que dá apoio o tempo inteiro mesmo às custas de um sofrimento pessoal (um papel clássico de mulheres no cinema, aliás). A diferença é que, enquanto em “A Teoria de Tudo” Felicity Jones era bem coadjuvante, em “A Garota Dinamarquesa” a mulher rouba a cena de Redmayne.
Alicia Vikander disputa o Oscar de melhor atriz coadjuvante neste ano pelo papel de Gerda Wegener, o que faz pouco sentido. Está certo que se ela concorresse ao prêmio de atriz a briga seria mais acirrada — Brie Larson é a favorita, mas Saiorse Ronan e Cate Blanchett também estão no páreo –, mas é ela quem carrega o filme. Não que Redmayne esteja mal. Mas sua atuação é muito mais física que emocional. Lili estuda os gestos de mulheres na rua, paga uma prostituta para poder observá-la, estuda o próprio corpo no espelho e faz dieta para ficar magérrima. Redmayne, que imita como poucos, capta bem a parte corporal da transformação, mas é Vikander quem faz chorar.
Quando o filme começa, Gerda e o marido, Einar, têm um casamento de causar inveja. Eles não se desgrudam, passam os fins de semana na cama, conseguem se comunicar com um olhar numa multidão, têm uma bela vida social e tentam ter um filho. Um dia, a modelo que Gerda estava pintando se atrasa para uma sessão e ela pede para o marido vestir meias e sapatos femininos para que ela possa adiantar o trabalho. Ali, algo muda em Einar. Nos dias seguintes ele pede primeiro para que a mulher não tire a camisola nova na cama e, logo depois, veste a mesma camisola por baixo das roupas.
Gerda não faz muitas perguntas e inclusive sugere que ele vá vestido de mulher a uma festa e se apresente a todos como Lili, uma prima de Einar do interior. Ela o ensina a se maquiar, a andar de salto, a escolher as roupas. Para Gerda, aquilo não passa de uma brincadeira, até que ela vê Lili beijar um homem na festa. Mas a essa altura seu casamento nunca mais seria o mesmo. Einar começa a se portar como Lili com mais e mais frequência, até que ele começa a sonhar os sonhos de Lili e Einar desaparece completamente.
A trajetória de Lili não é nada fácil. Quase ninguém, ali no começo do século 20, entendia o que ela estava passando. Foi vítima de transfobia, médicos tentaram interná-la e a fizeram passar por sessões de radiação, dizendo que ela era esquizofrênica entre vários outros diagnósticos terríveis. Mas, por causa da performance de Vikander, é o sofrimento de Gerda que se sente mais na pele. Em certo momento, quando sua carreira começa a deslanchar e ela vai sozinha a uma festa de abertura de sua exposição em Paris, ela volta para casa aos prantos, diz que o marido deveria ter ido com ela e pede para que Einar apareça só um pouco, ao que Lili responde que isso não é mais possível.
Einar já não existe mais. Lili e Einar são pessoas completamente diferentes, que não têm nem paixões em comum. Quando Gerda sugere que Lili pinte, ela responde: “Eu quero ser uma mulher, não uma pintora”, ao que ela responde: “Existem pessoas que são as duas coisas”. A transformação física de Redmayne é impressionante, mas o filme se preocupa mais com a parte estética do que com o que se passa na cabeça de Lili.
Enquanto isso, embora Gerda continue ao lado de Lili até o fim, ajudando-a se recuperar das cirurgias para a mudança de sexo — mesmo achando que elas eram perigosas –, ela é bem mais que “a mulher sofredora que dá apoio”. Sua jornada como personagem é tão ou mais importante quanto a de Lili: vemos claramente seu conflito interno, seu amargor, suas decepções, seus momentos de fraqueza. Em um momento, inclusive, Gerda é chamada por alguém de “a garota dinamarquesa” do título. Faz sentido. O filme é 100% de Vikander.
Quando “O Filho de Saul” começa, as imagens que se vê são bem desfocadas. O espectador desavisado logo percebe que não é um problema do projetor, e sim uma escolha do diretor estreante László Nemes. Só vemos com clareza o rosto do protagonista, Saul (Géza Röhrig), e aquilo que ele enxerga próximo a ele. Os horrores do campo de concentração em que ele vive ficam nublados, não vemos rostos dos mortos, só um grande borrão de corpos misturados. Houve quem dissesse que, assim, só a dor do protagonista importasse. Houve quem achasse a falta de identidade dos mortos ainda mais incômoda do que conhecê-los. Mas mesmo que não se veja muito, dá para ouvir tudo que se passa, sentir o desespero de Saul e o horror da situação.
No filme que estreia hoje (4), Saul faz parte de um grupo de judeus que ganha alguns meses de vida a mais ao trabalhar para os nazistas nos campos de concentração. Em Auschwitz ele é responsável por tarefas como limpar câmaras de gás, recolher os pertences das roupas dos mortos, cremá-los e jogar suas cinzas no rio. Ver os corpos como uma massa anônima e borrar o cenário que o rodeia parecem ser formas que Saul encontra para desempenhar seu trabalho.
Sua rotina muda, porém, quando um menino sobrevive ao gás e, asfixiado por um médico, é encaminhado para uma autópsia para que se descubra como ele não morreu na câmara. Saul reconhece naquele menino seu filho e ele resolve roubar o corpo para enterrá-lo de acordo com os preceitos da religião. Pegar o corpo não é fácil, achar um rabino é menos ainda e encontrar um rabino disposto a ajudá-lo é quase impossível. Mas Saul não desiste da missão e no curto período de tempo em que o filme se passa ele atravessa o campo inteiro — mostrando seu funcionamento como uma fábrica, pouco visto em outros filmes — em busca de uma saída.
Enquanto Saul procura um rabino, seus colegas preparam uma fuga, com a ajuda de um grupo de mulheres que trabalham nos campos e lhes fornecem pólvora — evento que aconteceu na vida real em 1944. O problema é que Saul está mais preocupado com o corpo do filho, já morto, do que com a possibilidade de um grande grupo de homens escapar com vida dali. Nenhum deles é tratado como herói, nenhuma missão é apresentada como superior.
Favorito ao Oscar de filme estrangeiro, “O Filho de Saul” pode se juntar a tantos outros vencedores de prêmios da Academia que falam sobre a Segunda Guerra (“O Pianista”, “O Leitor”, etc. etc.). Porém, como “Phoenix”, um dos melhores filmes do ano passado, seu olhar sobre a época é mais original do que se espera de um filme sobre o Holocausto. Não só a câmera fica próxima do protagonista o tempo todo como a proporção da imagem é pouco usual, praticamente quadrada, o que deixa tudo mais claustrofóbico e incômodo de ver. O filme se concentra no drama de uma pessoa só, mas ganha força em vez de perder. O espectador se sente na pele de Saul e, apesar de o horror ser menos gráfico que em outros filmes, poucas vezes ele foi tão palpável.
Leonardo DiCaprio sofre menos em “Titanic”, em que morre de frio num mar gelado após um naufrágio, que em “O Regresso”. Sofre menos em “O Homem da Máscara de Ferro”, em que passa anos preso com uma máscara na cara a mando de seu próprio irmão, que em “O Regresso”. Sofre menos em “Romeu + Julieta”, em que se mata ao achar que sua mulher morreu, que em “O Regresso”. DiCaprio quase sempre sofre nos filmes, mas nada se compara a “O Regresso”, que estreia nesta quinta (4). Em mais de duas horas e meia, seu personagem, Hugh Glass é atacado por um urso, abandonado pelos companheiros, quase morre sufocado, afogado, esfaqueado, alvejado por flechas e a lista só cresce.
Fica difícil saber o quanto do que se vê é atuação e o quanto é sofrimento real — o ator disse em entrevistas que realmente comeu fígado cru de bisão, dormiu em carcaças de animal, entrou em rios congelados e quase teve hipotermia mais de uma vez. Com meia dúzia de falas no filme todo, DiCaprio não demonstra tantas nuances quanto em outros trabalhos. Hugh Glass não tem o charme de Jack, de “Titanic”, ou o humor de Jordan Belfort, de “O Lobo de Wall Street”. É só dor e sofrimento, dor e sofrimento. Como o Oscar tende a recompensar os atores por esforço e comprometimento, DiCaprio finalmente deve levar o prêmio e acabar com as piadas, apesar de ter tido outras performances mais, digamos, interessantes no passado.
Mas, como história, “O Regresso” não é nada demais. Tanto que tem o maior número de indicações ao Oscar, disputando 12 categorias, mas roteiro não é uma delas. Hugh Glass faz parte de um grupo de americanos caçadores e vendedores de peles, até ser atacado por um urso que o vê como ameaça a seus filhotes. Todo machucado e sem poder falar, Glass é abandonado pelos companheiros, que deixam um pequeno grupo encabeçado por Fitzgerald (Tom Hardy) com ele para que seja enterrado quando finalmente morrer. Só que Fitzgerald não está a fim de esperar: ele enterra o companheiro vivo e parte sem olhar para trás.
Durante o resto do filme, Leonardo DiCaprio grunhe, cambaleia e se arrasta pela neve para se vingar de Fitzgerald. No caminho, enfrenta tempestades, pesca com as próprias mãos e come o peixe cru (parece até bom comparado ao fígado que vem depois), cauteriza as próprias feridas e foge de diferentes inimigos — de índios a outros grupos de caçadores. Sozinho em outro planeta, Matt Damon tem a vida mais fácil que DiCaprio em seu “Perdido em Marte”, também uma história de sobrevivência, mas bem mais otimista.
“O Regresso” é bruto: em um momento, a lente da câmera fica manchada de sangue. Hugh Glass não chega a ser estuprado por um urso, como dizia um boato bizarro que circulou meses atrás, mas o ataque é violentíssimo. Quando você acha que acabou e respira aliviado, o urso volta para um repeteco e joga DiCaprio pra lá e pra cá.
O filme impressiona pelo aspecto técnico. Foi feito para ser visto no cinema, como “Gravidade”, que tem o mesmo diretor de fotografia, atual bicampeão do Oscar, Emmanuel Lubezki. As imagens são maravilhosas e foi tudo filmado com luz natural, em condições climáticas bem difíceis. Valeu a pena, dá vontade de viver num mundo em que ele seja diretor de fotografia. Em alguns momentos, o filme lembra “A Árvore da Vida”, de Terrence Malik, e não é gratuito: Lubezki também foi responsável pela fotografia. É um filme lindíssimo, mas como história bate numa tecla só e são horas de pura tortura. Quem diria que algum personagem de DiCaprio conseguiria ter uma experiência mais infeliz com gelo que o Jack, de “Titanic”.
No filme “Tangerine”, Sin-Dee acabou de sair de uma curta temporada na prisão quando a amiga Alexandra conta, no banco da loja de donuts que frequentam, que seu namorado a traiu. Ao longo de um dia, as duas percorrem Los Angeles em busca de retaliação contra o namorado e a tal mulher, sobre quem a única coisa que elas sabem é que o nome começa com D. É uma história clássica de vingança e amizade. O fato de Sin-Dee e Alexandra serem mulheres trans é mais uma de suas características, não aquilo que as define. Diferente de outras produções com personagens trans, como “A Garota Dinamarquesa”, “Transparent” ou “Meu Nome É Ray”, não vemos a transição e sim um dia na vida que elas levam depois disso, com vários problemas, mas também muito humor, a pedido das próprias atrizes, que participaram do projeto desde o início.
Sean Baker, diretor do filme que estreou no Festival Sundance no ano passado e que tem estreia prevista para dia 4 de fevereiro no Brasil, não tinha roteiro ou ideia definida até conhecer Mya Taylor, que interpreta Alexandra, perto de sua casa. Seu último filme, “Starlet”, lançado em 2012, também era sobre uma amizade entre duas mulheres: a idosa Sadie e a jovem atriz pornô Jane, e foi a primeira inspiração para “Tangerine”. “Talvez o interesse pelo trabalho sexual não tenha deixado meu organismo, porque me senti atraído por um cruzamento famoso perto de minha casa em Los Angeles, na esquina de Santa Monica e Highland, conhecida por ser um distrito da luz vermelha para trans que trabalham com sexo”, me contou Baker.
Ali no cruzamento ele e seu corroteirista, Chris Bergoch, viram Mya pela primeira vez. “Ela nos impressionou de cara. Eu a vi do outro lado da rua e sabia que tínhamos que falar com ela”, lembra. Baker disse a Mya que pretendia fazer um filme e ela o ajudou apresentando várias de suas amigas, que foram entrevistadas pelo cineasta para ajudar a construir o projeto. Mas o filme só ganhou forma mesmo quando Kitana Kiki Rodriguez, a Sin-Dee, apareceu por lá. “No momento em que vi Mya e Kiki juntas sabia que tínhamos uma dupla dinâmica nas nossas mãos. Elas se complementavam, mas tinham um contraste. Chris e eu sabíamos que devíamos construir uma história com duas protagonistas para Mya e Kiki.”
Em cena, a Sin-Dee de Kiki é a mais exuberante. Com cabelo loiro tipo Beyoncé e uma roupa curta, desfila com confiança pela cidade em busca da tal garota — que não é trans, ainda por cima — que estava com seu namorado (e cafetão), chamando a atenção por onde passa. Alexandra é a voz da razão, que tenta conter a amiga enquanto se prepara para cantar num bar à noite, uma grande oportunidade. As diferenças de personalidade entre as duas são tão grandes quanto sua amizade. O tempo todo uma apoia a outra: Sin-Dee interrompe seu plano de vingança para ver o show de Alexandra, que retribui ao lhe oferecer a própria peruca quando a amiga é atingida por um copo de urina na rua.
O caso da urina, como outros eventos do filme, é inspirado numa história real. “Mya contou que isso aconteceu com algumas de suas amigas ou conhecidas”, diz Baker. A traição do namorado também tem um pé na realidade e veio de uma suspeita real de Kiki sobre seu relacionamento. “Pegamos isso e ficcionalizamos, vimos o que aconteceria se ela fosse atrás da mulher cisgênero envolvida no caso”, diz o diretor. “O processo de pesquisa nos ajudou a chegar num ponto em que nos sentíamos confiantes com o fato de que a ficção seria verdadeira e honesta.”
[olho]”Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades”[/olho]
Mas mesmo com o roteiro pronto, Mya e Kiki, ambas estreando no cinema, ficaram à vontade para improvisar, incentivadas pelo diretor. “Muitas vezes acho que o frescor de uma fala improvisada tem uma autenticidade que nenhuma palavra escrita pode ter. E em casos como ‘Tangerine’ existem gírias das ruas pras quais eu e Chris precisávamos de consultoria. Mya e Kiki nos falavam se o que tínhamos escrito era preciso ou não.”
Baker não considerou contratar atores que não fossem trans, ainda que fossem mais conhecidos, para participar do filme — caso de produções como “A Garota Dinamarquesa”. Num mundo ideal, um bom ator, diz, deveria ter a oportunidade de fazer qualquer tipo de papel. Um ator cisgênero poderia viver um papel trans e vice-versa. Mas o momento não é esse. “A situação triste é que pessoas trans têm uma taxa de desemprego que é o dobro da população em geral, e para pessoas de cor o desemprego chega a ser quatro vezes maior que a média nacional [dos EUA]”, diz. “Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades. Espero que no futuro, quando a igualdade for alcançada (pensamento positivo), cisgêneros e transgêneros poderão competir por esses papéis. Mas em 2016 acho que temos de fazer o que podemos para ajudar aqueles que a sociedade ignorou por tanto tempo.”
COM HUMOR
Além de emprestar suas histórias e suas palavras para Baker, Mya fez logo de cara dois pedidos importantes, que deram um norte para o filme. Primeiro, queria que a história fosse realista. “Ela disse que faria o filme se eu não segurasse a mão no realismo. Queria que eu capturasse a realidade brutal que as trabalhadoras do sexo trans enfrentam. Mesmo que fosse difícil de ver ou que não fosse politicamente correto”, conta.
A segunda demanda foi que o filme fosse engraçado. “Ela queria que ele apreendesse o humor que as garotas usam para lidar com as coisas. Fiquei abalado, porque ela me pediu para tentar um equilíbrio muito difícil, que podia dar muito errado. Mas quando avançamos percebi que fazer um filme abertamente político que só tratasse nossos personagens como vítimas seria condescendente”, diz. “Foi um momento importante na construção do filme e devo muito a Mya por me colocar na direção certa.”
“Tangerine” não esconde as dificuldades nas vidas de suas personagens. Alexandra leva um calote de um cliente e é chamada pelo nome masculino pela polícia, que se recusa a tratá-la como mulher, enquanto Sin-Dee é agredida na rua e começa a história saindo da prisão. Mas não é um filme triste. A fotografia, bem solar, com cores quentes e saturadas, ajuda a dar esse clima. No início, Baker tinha optado pelo contrário: tirou a saturação de todas as cores para deixar o filme com uma cara mais realista. “Mas assim que vi as imagens senti que algo estava errado. O estilo contrastava com as personalidades coloridas delas. Então fui pro outro lado e joguei as cores lá em cima. De repente pareceu certo.”
Vendo o filme não se percebe, mas “Tangerine” é uma produção que começou tão modestamente que teve de ser filmada inteiramente num iPhone. Baker não tenta disfarçar dizendo que foi uma escolha puramente estética, e sim orçamentária, pelo menos no início. “Mas tinha um instinto de que seria o jeito perfeito de fazer o tipo de filme de que eu gosto — gravado clandestinamente, socialmente realista, que mistura atores não profissionais, gente atuando pela primeira vez e gente experiente”, afirma. “O iPhone diminuiu as inibições e aumentou a confiança de quem normalmente ficaria intimidado com uma câmera tradicional. Acho que isso afetou tudo de uma maneira muito boa. Captei alguns momentos espontâneos que não teria conseguido com nenhuma outra câmera.”
A cara de filme profissional, e não amador, ficou por conta de uma lente que ainda estava em fase de protótipo de um grupo que arrecadava dinheiro em campanha de financiamento coletivo, acoplada ao telefone. Com essa lente, Baker conseguiu fazer com que a proporção entre altura e largura do vídeo fosse aquela que desejava para o filme.
O filme que começou pequeno, logo ficou grande. Foi um hit em Sundance no ano passado e as críticas foram bem positivas (o filme tem nota 96% no Rotten Tomatoes) e concorre agora a um dos principais prêmios da organização GLAAD (aliança de gays e lésbicas contra a difamação, na sigla em inglês). O desempenho de “Tangerine” deixou Baker contente. Agora, para seu próximo projeto — uma história para crianças ambientada na Flórida — diz que vai manter a mesma equipe, mas espera ter uma verba “bem maior”.
Joshua Oppenheimer era um jovem cineasta formado em Harvard quando foi à Indonésia ensinar um grupo de trabalhadores de plantação a fazer seu próprio documentário. Descobriu por lá uma história pouco conhecida, sobre um massacre de pelo menos 500 mil pessoas (o número pode chegar a 1 milhão) acusadas de serem comunistas em 1965 – quando começou no país uma ditadura militar.
O cineasta, hoje com 41 anos, voltou ao país em 2003 e dedicou-se desde então à produção de dois documentários, ambos indicados ao Oscar, que se complementam. “The Act of Killing” joga luz sobre os assassinos, que em vez de esconder aquilo que haviam feito, vangloriavam-se do passado. É um filme pouco convencional, pois Joshua dá aos autointitulados gângsteres a oportunidade de dramatizar os assassinatos da forma que quisessem, resultando em cenas tão bizarras quanto assustadoras.
“The Look of Silence”, que disputa o Oscar deste ano, gira em torno de Adi Rukun, que resolve confrontar os responsáveis pela morte do irmão, Ramli. Sob o pretexto de fazer um exame de vista nos assassinos, hoje idosos, Adi entra em suas casas e, com uma calma impressionante, vai atrás de um pedido de desculpas. Se você ficou curioso, além dos filmes, leia nossa matéria sobre o assunto.
Pelo Skype, conversei por quase uma hora com Joshua. A conversa flui fácil com ele, visivelmente apaixonado pelos temas de seus projetos. Do papel dos Estados Unidos no massacre aos detalhes mais dolorosos das conversas de Adi com os assassinos, Joshua não deixou de falar de nada – pena que teve de interromper a conversa por questões de tempo. A entrevista foi levemente editada para dar mais clareza.
Risca Faca: Estava comentando ontem sobre os assassinatos com meu irmão, que não conhecia essa história. Eu também não a conhecia antes de ver o filme. Gostaria que você começasse me contando como você descobriu a história do massacre e quando decidiu contá-la nesses filmes. Joshua Oppenheimer: Eu também não tinha ouvido falar dos assassinatos antes de começar a fazer esses filmes. Em 2001 fui chamado para ir à Indonésia ensinar um grupo de trabalhadores de uma plantação de palma para fazer óleo a fazer seu próprio filme, no qual eles documentariam sua luta para organizar um sindicato após uma ditadura da qual a Indonésia acabara de sair. Na verdade, descobri depois, era a ditadura de Suharto, que tinha chegado ao poder por meio dos assassinatos. Mas não sabia disso na época.
Era um projeto curto. Cheguei nessa plantação, propriedade de uma companhia belga, em que as mulheres tinham o trabalho supostamente fácil de espirrar pesticida e herbicida, mas não recebiam roupas de proteção. As mulheres estavam ficando doentes e morrendo de falência no fígado na casa dos 40 anos. Percebemos, quando chegamos, que isso era causado por um dos herbicidas. Eles falaram com a empresa e pediram roupas de produção, e a empresa respondeu contratando um grupo paramilitar chamado Pancasila Youth para ameaçá-los e atacá-los. Eles desistiram das demandas imediatamente. Eles disseram: “Embora seja uma questão de vida ou morte pra gente, nossos pais e avós morreram em um assassinato em massa no país em 1965 só por serem membros do sindicato nacional de plantações”.
Todos os trabalhadores de plantações eram membros do sindicato e não sei se isso era o suficiente para eles serem considerados oposição ao novo regime militar, que estava chegando ao poder. Eles foram colocados em campos de concentração ou mortos – ou às vezes os dois. Os trabalhadores tinham medo de que isso pudesse acontecer de novo, porque a organização paramilitar Pancasila Youth estava mais poderosa do que nunca e foi o principal grupo a cometer os assassinatos em 1965, com o exército.
Então essa foi a primeira vez que ouvi falar nos assassinatos e percebi naquela hora que o que estava matando aquelas mulheres não era só veneno, não era só o herbicida, era o medo. Foi ali que encontrei o tema dos filmes, que não é o que aconteceu em 1965. Nenhum dos meus filmes é sobre o passado em si, nenhum é um documentário histórico. São filmes sobre um regime de medo, silêncio e impunidade que continua hoje. São sobre um estado presente de medo e silêncio.
Desde esse momento a ideia era fazer dois documentários separados? Eles foram filmados ao mesmo tempo?
Planejei rapidamente fazer dois filmes, mas não os filmei ao mesmo tempo. “The Look of Silence” é o filme que planejei fazer inicialmente, ainda em 2003. Depois que os trabalhadores da plantação me contaram das mortes, fizeram o próprio filme sobre a organização do sindicato e me disseram: “Agora queremos que você volte e faça um filme sobre por que temos medo tantos anos depois”.
Voltei na hora e logo fui apresentado à família de Ramli – Adi, sua mãe e seu pai, a família no centro de “The Look of Silence”. Eles imediatamente começaram a me contar as histórias de 1965 e juntar outros sobreviventes para me contar suas histórias. Mas em três semanas o exército chegou e ameaçou todos que participavam do filme. Eles me chamaram para uma reunião secreta à meia-noite na casa dos pais de Adi e me disseram: “Por favor, não desista. Tente filmar os assassinos. Veja se eles te contam o que aconteceu”. No começo fiquei com medo de me aproximar deles, mas os sobreviventes me encorajaram a tentar.
[olho]Nenhum dos meus filmes é sobre o passado em si, nenhum é um documentário histórico. São filmes sobre um regime de medo[/olho]
O que descobri foi que todos eles se gabavam abertamente e não só estavam ansiosos para me contar o que fizeram como queriam me levar para os lugares onde mataram e demonstram como tinham feito. Claro que os sobreviventes quiseram ver as gravações que me pediram para fazer. Mostrei pra eles e todos disseram: “Você deve continuar a filmar os assassinos. Você está chegando a algo terrivelmente importante, porque qualquer um que veja como eles estão falando será forçado a reconhecer que, de uma forma terrível, o genocídio não terminou. Mesmo que as mortes tenham parado, os assassinos ainda estão no poder e o público vai sentir instantaneamente que milhões de sobreviventes vivem com medo, porque estão rodeados por assassinos que se vangloriam”.
Senti que confiavam em mim para fazer um trabalho que eles claramente não podiam fazer. Seria muito perigoso filmar os assassinos. De 2003 a 2005 filmei todos os assassinos que achei, todos se gabavam, todas estava abertos, todos queriam me mostrar como tinham matado. Em poucas semanas percebi que deveria fazer dois filmes. Um sobre as mentiras, as fantasias por trás da ostentação dos assassinos e sobre como isso manteve uma sociedade inteira nas rédeas do medo, e permitiu que os assassinos se safassem com uma corrupção incrível. Isso, claro, é meu primeiro filme, “The Act of Killing”.
Sabia que teria que fazer um segundo filme sobre o que isso faz com seres humanos normais, ter que viver num regime construído pelos assassinos. Como é viver rodeado por homens poderosos que mataram quem você amava. Isso virou “The Look of Silence”. O 41º assassino que filmei foi Anwar Congo. Eu o conheci depois de dois anos. Fiquei com ele porque senti que sua dor estava perto da superfície. Ele não conseguia esconder totalmente a dor das suas memórias — o medo, a culpa, o trauma. A ostentação não era suficiente para escondê-la.
Comecei a perceber, por meio de Anwar, que talvez a ostentação não fosse verdadeiramente orgulho, mas o contrário: uma tentativa desesperada dos assassinos de se convencer de que o que fizeram foi certo. Porque em seus corações eles sabem que foi errado. Passei os cinco anos seguintes trabalhando com os assassinos para explorar isso: a relação entre escapismo e fantasia, de um lado, e a culpa, de outro. Depois de editar “The Act of Killing”, em 2012 — por cinco anos filmamos e editamos por dois –, voltei para gravar “The Look of Silence” com Adi. Foi antes de “The Act of Killing” ser exibido, quando sabia que nunca poderia voltar com segurança à Indonésia.
Nos seus filmes boa parte da equipe aparece nos créditos como “anônimo”, sem o nome. Presumo que seja por uma questão de segurança.
Correto.
Mas Adi não estava se arriscando ao expor sua cara e seu nome assim? Tiveram que tomar medidas de segurança para protegê-lo?
Quando voltei à Indonésia em 2012, Adi me disse: “Joshua, passei anos vendo suas gravações dos assassinos e isso me mudou. Preciso saber quem são os homens que mataram meu irmão, preciso que eles assumam a responsabilidade pelo que fizeram. Preciso confrontá-los.”. Eu disse na hora: “De jeito nenhum, é muito perigoso”. Ninguém tinha feito um filme em que sobreviventes confrontassem assassinos que ainda estão no poder.
Ele pegou uma câmera que eu tinha dado para ele usar como um caderno de imagens, para inspirar o segundo filme, enquanto eu editava “The Act of Killing” em casa. Adi estava filmando e me mandando gravações. Ele pegou a câmera e me mostrou algo que não tinha me mandado. Ele disse: “Desculpa por não ter te mandado, é algo muito pessoal pra mim”. Ele deu play e me mostrou a única cena em “The Look of Silence” que ele filmou. Está perto do fim, quando seu pai se arrasta pela casa, pedindo ajuda, achando que está na casa de um estranho. Adi começou a chorar na hora que viu a cena.
[olho]Ninguém tinha feito um filme em que sobreviventes confrontassem assassinos que ainda estão no poder[/olho]
Ele disse: “Esse foi o primeiro dia que meu pai não conseguia se lembrar de ninguém da família. Estávamos todos juntos para uma reunião familiar e ele estava confuso, perdido, pedindo ajuda o dia todo e não conseguíamos confortá-lo, porque éramos estranhos pra ele. Toda vez que tentávamos ele ficava com mais medo. Fiquei responsável por cuidar dele e garantir que ele não se machucasse. Estava com a câmera porque planejava filmar a reunião”.
Em um momento foi insuportável não conseguir ajudar e confortar seu pai. Então ele começou a filmar, usando a câmera como escudo para se proteger emocionalmente de ter que ver o pai se arrastar pela casa, com medo. Ele me disse que no momento que começou a filmar percebeu que estava documentando o dia em que ficou tarde demais para seu pai se curar. “Agora que ele não se lembra de ninguém na família, é tarde para ele se curar. Ele se esqueceu do que aconteceu, mas não do medo. Ele não poderá se livrar do medo, não vai poder cicatrizar, porque não se lembra do que aconteceu. Vai morrer numa prisão de medo, como um homem trancado num quarto e que não acha a porta, quem dirá a chave.”
Depois de ver a cena, ele me disse: “Joshua, não quero que meus filhos herdem essa prisão de medo de mim e dos meus pais. Acho que se chegar nos assassinos gentilmente, mostrando que os vejo como humanos, que estou disposto a perdoar se eles reconhecerem que o que fizeram foi errado, eles podem ver isso como uma oportunidade para parar de se vangloriar maniacamente. Aceitar o que fizeram e ser perdoados pela família de uma vítima. Assim minha família vai poder se reconciliar com os vizinhos que mataram meu irmão e nos aterrorizam por tantas décadas. Devo aos meus filhos tentar viver em paz com meus vizinhos, para que eles não cresçam com medo”. Fiquei muito tocado com isso.
Falei com minha equipe e eles disseram que a produção de “The Act of Killing” era amplamente conhecida no país. Como ninguém tinha visto o filme ainda, os homens que Adi queria confrontar – poderosos regionalmente, não nacionalmente – achariam que eu era próximo de seus chefes. Então eles não iriam tentar nos deter ou nos atacar fisicamente. Percebemos que podíamos confrontá-los por causa de uma estranha capa de segurança que tínhamos por ter filmado, mas não lançado, “The Act of Killing”.
Disse a Adi que tínhamos que filmar um confronto teste, sem riscos, em que ele não dissesse quem era. É o primeiro do filme. A primeira cena é de lá, com o homem usando os óculos vermelhos. Ele fica muito bravo. Adi não fala quem é. Disse pra ele: “Temos que filmar um teste, explicar o que estamos fazendo pra sua família e ver se eles estão confortáveis para procurar uma forma de fazer isso em segurança”. No fim, foi o que fizemos.
Tínhamos a família no aeroporto preparada para evacuar em cada uma das conversas. Tínhamos um carro para que Adi pudesse escapar assim que terminássemos de filmar, enquanto estivéssemos desmontando o equipamento. Com sorte, o assassino nem veria que ele tinha saído. Tomamos todas essas precauções. Também disse a Adi que só lançaríamos o filme se fosse em segurança. Tinha uma equipe de cinco pessoas que trabalhava o tempo todo monitorando a segurança da família, que os ajudou a mudar para outra região do país, a transferir as crianças pra uma escola melhor. Tentamos tornar a dor de cabeça da mudança em oportunidades pra família. As crianças foram para uma escola melhor, fizemos um fundo para eles irem a qualquer universidade. Abrimos um consultório para que Adi não precise ir de porta em porta.
E tínhamos um plano B. Todos eles conseguiram vistos para a Dinamarca, para onde iriam se houvesse perigo. Mas o filme foi lançado na Indonésia no ano passado, passou mais 5 mil vezes pelo país, está online agora e temos certeza de que vai ser assistido. Adi tem sido visto como um herói nacional na Indonésia pelo público e pela mídia. E é uma figura central no movimento para verdade, justiça e reconciliação. Até agora não só ele não foi ameaçado e a família está segura como todos estão muito, muito bem.
As conversas com os assassinos têm resultados bastante diferentes. Alguma correu como você imaginava? Os desfechos te surpreenderam?
Cada confronto foi uma surpresa completa. Especialmente as últimas três, acho. A com o tio de Adi foi uma das coisas mais dolorosas que já vi, não sabíamos que ele estava envolvido com as mortes. Adi tinha ido lá pra testar os olhos dele, tinha prometido fazer uma visita da próxima vez que estivesse no vilarejo e eu fui junto pra gente ver se descobria algo sobre a relação dele com Ramli, ver se ele lembrava de Ramli.
Ele contou como foi guarda de Ramli antes de ele ser assassinado. Foi terrível porque quando Adi começa a questioná-lo, perguntar se ele podia ter feito algo para salvar Ramli, o tio fica bravo, defensivo, e começa a usar a propaganda anticomunista para justificar o genocídio. Meio dizendo que Ramli merecia ter morrido e que se Adi continuasse pressionando, também mereceria. Foi um momento horrível, em que um relacionamento que começa amoroso se despedaça em meia hora. Foi uma cena que revelou como essa ferida aberta corta a família. Foi muito doloroso e inesperado.
A cena seguinte, com o pai e a filha, também foi. Fomos encontrar o pai, mas desde que eu o tinha filmado, em 2005, ele tinha perdido a audição. A filha tinha se mudado para a casa para cuidar dele e queria ajudá-lo a entender as perguntas. Isso se transformou numa cena entre Adi e a filha, em que ela percebe de uma forma terrível, pela história que o pai conta, que ele não é quem ela pensava. Ela percebe que ele é um estranho pra ela porque fez coisas terríveis. Vemos a cara dela entrar em colapso com a percepção de que vai ter que passar a vida dele toda cuidando dele, sabendo das coisas terríveis que ele fez.
[olho]Cada confronto foi uma surpresa completa[/olho]
Em vez de fazer aquilo que eu teria feito, que é entrar em pânico e colocar a equipe pra fora pra poder pensar, ela fica muito quieta, escuta sua consciência e pede desculpas a Adi. Ela o força a assumir a responsabilidade de perdoar, algo que ele disse que faria se alguém reconhecesse o erro. Ele não tinha perdoado até então porque ninguém tinha reconhecido. Foi uma das coisas mais delicadas e bonitas que já vi, a reação da filha.
E o confronto final foi igualmente chocante. Com todos os assassinos de “The Look of Silence” eu tinha passado um, dois, três dias, sete anos antes. Mas no caso do confronto final eu tinha passado três meses com aquela família, quando Amir Hassan ainda era vivo, em 2004, para dramatizar sua biografia. O objetivo daquela cena era Adi poder dizer: “Olha, eu sei quem vocês são, vocês sabem quem eu sou, não é culpa de vocês o que seu pai fez, o que seu marido fez, e temos de viver juntos como seres humanos. Não seria terrível se minha filha quisesse se casar com seu filho e não pudéssemos nos unir como família para eles?”.
Achei que essa seria a cena em que ele teria o perdão que buscava, porque ele não estava acusando ninguém de nada. Não tinha me passado pela cabeça que eles fossem mentir e dizer que não sabiam o que o pai tinha feito, porque eu saberia que eles estavam mentindo. E mesmo assim eles mentiram. Eu os pressionei naquela cena a ver mais imagens não porque queria humilhá-los, puni-los ou pegá-los numa mentira. Só queria ultrapassar a negação desesperadamente para termos a conversa para qual tínhamos ido até lá. Nunca chegamos a esse ponto.
Saí da gravação achando que não tinha nada, que tinha sido um fracasso total. Mas na edição olhei o material e percebi que aquela cena torna visível para o espectador, mais fisicamente do que qualquer outra cena, o abismo de medo e culpa que divide todos da Indonésia uns dos outros. Faz você sentir como o tecido da sociedade indonésia está rasgado e quão urgente é a verdade e a reconciliação. Como esse abismo é transmitido de geração a geração. Não haverá democracia genuína enquanto não lidarem com isso, porque não há democracia sem comunidade e não há comunidade quando todos têm medo uns dos outros.
No confronto final a família diz que não gosta mais de você e que quer que você vá embora. Em outros momentos, os assassinos pedem para que você pare de filmar. Teve alguma conversa em que a tensão tenha ficado tão grande que você tenha tido que parar de filmar por questões de segurança?
Os assassinos mais poderosos tinham grupos de gângsteres fora das casas, prontos pra atacar ou expulsar qualquer um de quem os chefes não gostassem. Então estava sempre com medo de que fôssemos fisicamente agredidos. Com eles, quando a conversa ficava muito tensa, eu cortava a cena e tentava acalmar a situação. Dizia: “Olha, estou aqui para filmar uma discussão entre duas pessoas com perspectivas diferentes. Entendo que você esteja bravo, isso é muito pessoal pros dois, mas tentem escutar um ao outro”. Eu moderava a situação não porque me sentia neutro em relação ao que estava acontecendo, mas tinha que acalmar pra que ninguém, principalmente Adi, saísse machucado.
Não tive que parar de filmar nenhuma conversa. Dito isso, todas as cenas, com exceção da filha, terminaram com um impasse terrível. Chegávamos numa espécie de muro que não dava pra ultrapassar. De muitas formas, o título “The Look of Silence” se refere a esse muro. Como ele é? Como é viver com ele?
No dia da morte de Ramli, o filho mais novo da família, que tinha oito anos, ouviu na escola, durante o recreio, o professor dizer: “Essa noite a gente mata o Ramli”. Os professores estavam no esquadrão da morte. Ele foi pra casa naquele dia e disse pros pais que eles iriam matar o Ramli. Dá pra imaginar o que é ter que fazer isso aos oito anos? Naquela noite eles realmente mataram Ramli. No dia seguinte a família estava devastada. Dois dias depois, mandaram as crianças pra escola para serem ensinadas pelo homem que matou o filho dias antes. Dá pra imaginar a tensão insuportável em que essa família vivia? O que isso faz com uma família?
[olho]Chegávamos numa espécie de muro que não dava pra ultrapassar[/olho]
A coisa peculiar, que percebi quando comecei a jornada com os trabalhadores da plantação, foi que o medo e a tensão são invisíveis. Você não pode ver quando vai num vilarejo. Pode parecer bucólico e amável. Como você torna isso visível? Você pode fazer as pessoas contarem suas histórias. Mas quando elas começaram, foram ameaçadas pelo exército. Como você torna isso visível? Não só a dor das histórias do passado, mas a tensão do presente. Está muito no presente. Por meio desses confrontos podíamos fazer isso.
Eu disse a Adi: “Não acho que quando você chegar aos assassinos vá conseguir o pedido de desculpas que espera. Acho o contrário. Você vai chegar neles disposto a vê-los como seres humanos, o teste de vista é parte disso, constrói uma intimidade. Vendo esses homens como seres humanos, eles vão devolver seu olhar gentil e te ver como ser humano. E vão ver Ramli como um ser humano e, por extensão, vão ver suas vítimas como seres humanos. Nessa hora, todas as mentiras que eles se contaram para justificar o que fizeram vão inevitavelmente cair. Todas as mentiras nas quais eles se agarraram são baseadas na desumanização das vítimas. Você as humaniza pela sua presença. Eles vão entrar em pânico, vão ficar defensivos, vão ficar bravos e acho que vamos falhar. Mas se eu puder mostrar por que falhamos, posso mostrar esse impasse, esse muro e vou fazer quem assistir ao filme sentir a pressão incrível sob a qual as vítimas vivem. Através da raiva, das ameaças. Vamos fazer com que vejam que precisamos urgentemente de verdade, justiça e reconciliação para que haja cura e paz permanentes. Assim, podemos ser bem-sucedidos de uma forma mais ampla ainda que falhemos em cada confronto individual”.
Como foi a repercussão dos filmes na Indonésia? O governo chegou a dar alguma declaração oficial?
“The Act of Killing” ajudou a catalisar uma transformação fundamental em como o país fala sobre o passado. Antes ativistas de direitos humanos talvez falassem sobre os assassinatos de 1965, alguns escritores tentaram escrever sobre isso, geralmente com um tom de desculpa, não muito direto. “The Act of Killing” tornou essa conversa nacional. Pessoas conversavam em escolas, instituições religiosas, comunidades, locais de trabalho e certamente na mídia. A mídia costumava ser silenciosa e agora fala disso como um genocídio, como um crime contra a humanidade. Mais importante: eles falam do regime criminoso que está no poder desde o genocídio.
“The Act of Killing” foi indicado a um Oscar, pressionando o presidente a dar uma declaração. Ele disse: “Sabemos que o que aconteceu em 1965 foi um crime contra a humanidade e que em algum ponto do futuro vamos precisar de reconciliação. Mas não precisamos que um filme nos pressione a fazer isso”. Eles meio que menosprezaram o filme, mas foi maravilhoso, porque foi a primeira vez que o governo reconheceu que aquilo foi errado.
[olho]“The Act of Killing” ajudou a catalisar uma transformação fundamental em como o país fala sobre o passado[/olho]
No espaço aberto por “The Act of Killing” veio “The Look of Silence”. Dois órgãos do governo se voluntariaram para serem os distribuidores oficiais do filme: a Comissão Nacional de Direitos Humanos e o Conselho de Artes de Jacarta, o que tinha sido impossível com “The Act of Killing”, que começou como um segredo. Esses dois órgãos ajudaram a passar o filme no maior cinema da Indonésia, onde cabem mil pessoas. Colocaram outdoors em Jacarta anunciando o filme e 2 mil pessoas apareceram, então foram feitas duas sessões. Um mês depois foram feitas 500 exibições públicas pelo país. Agora colocamos online. Foi chamado de o filme do ano por vários veículos do país.
Isso gerou uma reação do exército, que ainda está formalmente acima da lei na Indonésia. Consequentemente, é o centro de um estado de sombra que intimida e amedronta as pessoas. O exército contratou gângsteres para atacar exibições e 30 foram canceladas por causa disso. O exército pressionou o comitê censor da Indonésia a banir o filme do circuito comercial. Então temos uma situação peculiar: “The Look of Silence” é o primeiro filme da Indonésia a ser indicado ao Oscar – “The Act of Killing” não era uma produção formalmente indonésia – e está banido dos cinemas do país. O órgão censor faz parte do comitê de defesa no parlamento, o que parece loucura, mas é só autoritário.
Há uma batalha sobre o passado e acho que podemos esperar uma longa luta antes que o governo reconheça formalmente que o que aconteceu foi um crime contra a humanidade e mude o currículo escolar. A Associação Nacional de Professores de História criou um currículo alternativo para que professores do país possam dizer “isso é o que deveríamos ensinar, essa é a verdade”. Isso envolve mostrar meus dois filmes a alunos de ensino médio.
Mas acho que será uma batalha para ter reconhecimento do governo, porque quando ele reconhecer isso, reconhecerá que a riqueza e o poder dos assassinos e de seus protegidos é espólio de um massacre e de tortura. Ninguém quer sua riqueza e seu poder deslegitimado assim. Então acho que vai ser uma luta mudar a história oficial, mas ninguém no país acredita mais nela. Acho que tenho tempo para mais uma pergunta!
Em “The Look of Silence” vemos brevemente que os Estados Unidos tiveram uma influência no que aconteceu na Indonésia. Você poderia falar um pouco qual foi esse papel? E houve alguma resposta americana ao que aconteceu após o lançamento de seus filmes?
Aprendemos algo devastador sobre o papel dos Estados Unidos quando um assassino olha diretamente para a câmera e diz: “Eu deveria ganhar um prêmio, um cruzeiro para os Estados Unidos, porque foram eles que nos ensinaram a odiar e matar comunistas”. Para americanos, é um momento muito doloroso, porque ele olha direto para a câmera, para o público. Ele está nos implicando, dizendo que não é só história da Indonésia, é nossa. E nós sabemos que não é a única vez que intervimos, mas talvez mais gente tenha morrido na Indonésia que em outras intervenções no exterior. Essa é uma das muitas, muitas vezes que os Estados Unidos apoiaram atrocidades em outros países. Fizeram isso na ditadura brasileira.
Uma coisa importante é que a Goodyear, uma grande corporação, usava escravos de campos de concentração para extrair o látex que vai em seus pneus. Foi exatamente o que as empresas alemãs fizeram perto de Auschwitz só 20 anos antes. É uma crise de consciência para americanos que veem esse filme, nos faz pensar que o anticomunismo ideológico da Guerra Fria não fosse a razão real para as intervenções. Talvez fosse uma desculpa oficial para cometer atos de pilhagem assassina pelo mundo. Esse reconhecimento dói e levou americanos a fazer perguntas duras sobre a política externa e a violência interna. Não só sobre o complexo militar industrial, responsável pela violência fora, mas o complexo prisional industrial, responsável pela violência em nossas cidades.
O senador Tom Udall, de New Mexico, viu meus dois filmes e introduziu uma resolução no Senado dizendo: “Essa é a história americana e precisamos tirar o selo de sigiloso de documentos sobre nosso papel nesses crimes”. Sabemos de ouvir por aí, de pessoas que falaram, que os Estados Unidos deram dinheiro, armas e treinamento. Também sabemos que eles deram uma lista de 5 mil nomes de figuras públicas da Indonésia – jornalistas, ativistas, artistas, intelectuais – e disseram: “Risquem cada nome dessa lista e nos devolvam quando tiverem terminado”. Listas de morte.
É uma mancha profunda, com o uso de trabalho escravo pela Goodyear e possivelmente outras empresas americanas, sobre a presunção americana de ser uma força pela liberdade e democracia no mundo pós-guerra. Depois de ver o filme, o senador Tom Udall disse que precisamos saber exatamente o que os Estados Unidos fizeram e esses documentos que falem do nosso papel precisam deixar de ser sigilosos. Precisamos assumir a responsabilidade pelo papel que tivemos nesses crimes, porque se não toda nossa retórica sobre direitos humanos será percebida, corretamente, pelo mundo todo como um disfarce hipócrita para o avanço de interesses estratégicos e corporativos americanos.
Então dezenas de milhares de americanos assinaram petições pedindo a seus próprios senadores que apoiem o projeto de Tom Udall. Estamos tentando fazer com que ele chegue a votação no Senado e vire lei.
Joshua Oppenheimer foi à Indonésia em 2001 para ajudar a contar uma história difícil. Numa plantação de palma para produção de óleo, propriedade de uma empresa belga, trabalhadoras espirravam pesticidas e herbicidas sem ganharem roupas de proteção. Muitas ficaram doentes e morreram por problemas no fígado perto dos 40 anos de idade. Joshua foi ali ensinar o grupo de trabalhadores a fazer seu próprio documentário sobre as tentativas de formar um sindicato para lutar por melhores condições. O que descobriu por lá foi uma história ainda pior, sobre um massacre que desconhecia.
A empresa respondeu às demandas de seus empregados contratando o grupo paramilitar Pancasila Youth para ameaçá-los. As demandas foram retiradas imediatamente. “Eles me disseram: ‘Apesar de ser uma questão de vida e morte para a gente, nossos pais e avós morreram em um assassinato em massa em 1965 simplesmente por serem membros do sindicato nacional de trabalhadores de plantações’”, conta Joshua.
Naquele ano, pelo menos 500 mil pessoas (o número pode chegar a um milhão) foram assassinadas por supostamente serem comunistas. Artistas, ativistas, intelectuais e jornalistas foram mortos em um ataque coordenado pelo exército — que derrubou o presidente Sukarno — e realizado por grupos como o Pancasila Youth. A desculpa foi o assassinato de seis generais, atribuído na época aos comunistas, que cresceram durante o governo Sukarno. Hoje acredita-se que os militares usaram isso como desculpa para dar um golpe no presidente.
Na época, os trabalhadores sindicalizados, considerados ameaça ao regime, foram colocados em campos de concentração ou mortos. “Eles estavam com medo de que isso pudesse acontecer de novo, já que o Pancasila Youth estava mais poderoso que nunca.” Joshua viu ali uma oportunidade de falar sobre o massacre em um filme seu. A história acabou rendendo dois documentários: “The Act of Killing”, indicado ao Oscar em 2014, e “The Look of Silence”, que disputa o prêmio neste ano.
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“Percebi naquele momento que o que estava matando aquelas mulheres não era só veneno, mas também o medo. Encontrei lá o tema dos meus filmes: não o que aconteceu em 1965. Eles não são sobre o passado, nenhum dos dois é um documentário histórico. São filmes sobre um regime de medo, silêncio e impunidade que permanece até hoje. É sobre um estado presente”, afirma.
“The Act of Killing” é o menos convencional da dupla — um documentário não é continuação do outro, são duas metades de um todo. Para o filme, Joshua conversou com todos os assassinos que conseguiu encontrar durante anos, tentando entender o que havia acontecido. Surpreendentemente, seus entrevistados estavam abertos falar. E mais: eles pareciam se gabar do que tinha acontecido. Não só contavam a história como se ofereciam para levar Joshua até os locais onde tinham matado e até encenar os assassinatos.
Assim nasceu “The Act of Killing”. Em vez de mostrar as vítimas, o cineasta joga luz sobre os assassinos e dá a eles meios para fazer seu próprio filme sobre o massacre. Inspirados por Hollywood, os autointitulados gângsteres transformam a história real numa trama surrealista: meio musical, meio western, inteiramente bizarro. A morte vira um espetáculo e o resultado é aterrorizante — ver o filme uma vez é necessário, ver duas é tortura. “É um filme sobre as mentiras, as fantasias por trás da ostentação dos assassinos, e sobre como isso manteve uma sociedade inteira nas rédeas do medo e possibilitou que eles se safassem com uma corrupção imensa”, diz Joshua.
As primeiras imagens do estranho experimento foram responsáveis por trazer Werner Herzog (“Encontros no Fim do Mundo”) ao projeto, como produtor-executivo. Herzog estava no aeroporto, tomando um café antes de embarcar em seu voo, quando um colega disse que um rapaz queria desesperadamente falar com ele sobre um trabalho. Joshua tinha dez minutos para atrair o cineasta e utilizou-os para mostrar imagens aleatórias que tinha captado. A apresentação foi convincente. Naquela época, Joshua, hoje com 41 anos, tinha um currículo curto: formado em Harvard, tinha só dois documentários no portfólio, um de 1997 e outro de 2003. Foi com “The Act of Killing” que fez seu nome, e em 2014 ganhou uma “bolsa para gênios” da Fundação MacArthur, para qual as pessoas não se candidatam — são escolhidas.
Mas estamos nos adiantando na história, porque embora “The Look of Silence” tenha sido lançado depois, sua origem antecede “The Act of Killing”. Voltemos a 2003, quando Joshua, ainda um documentarista iniciante, viajou novamente à Indonésia após o trabalho inicial. Assim que chegou ao país, o cineasta foi apresentado à família de Ramli Rukun, cuja história era conhecida no país. Capturado e esfaqueado, Ramli havia conseguido voltar para sua casa, até que dois homens bateram à porta e disseram a sua mãe que o levariam ao hospital. Ramli foi amarrado nu, forçado a andar enquanto pedia por piedade e chorava, até ser castrado e jogado num rio.
Um dos irmãos de Ramli, na época com oito anos de idade, ouviu na escola o professor comentando que naquela noite eles matariam o irmão. Quando chegou em casa, contou o que tinha ouvido, mas não houve nada que a família pudesse fazer. Ramli de fato morreu naquele dia e o menino voltou à escola, onde tinha como mestre um dos membros do esquadrão da morte que havia matado o irmão mais velho.
ESCAPISMO E CULPA
Adi Rukun não era vivo quando Ramli, seu irmão, morreu, mas é ele a figura central de “The Look of Silence”. Foi ele quem convocou um grupo de sobreviventes do massacre e seus familiares para ajudar Joshua com o documentário, antes mesmo de “The Act of Killing” ser um projeto. Três semanas depois, militares ameaçaram todos que participassem do filme. Eles desistiram, mas pediram para que Joshua não engavetasse o projeto e que fosse atrás dos assassinos. Foi o que ele fez. Quando terminou as primeiras filmagens, mostrou as imagens ao grupo. “E eles me disseram: ‘Você deve continuar filmando os assassinos. Isso está levando a algo terrivelmente importante, porque qualquer um que veja como eles estão falando vai ser forçado a entender que o genocídio não terminou. Apesar de as mortes terem parado, os assassinos ainda estão no poder. O público vai entender que milhões de sobreviventes vivem com medo, porque estão rodeados por assassinos’”, relembra o cineasta.
Depois de dois anos de pesquisa, Joshua encontrou Anwar Congo, seu 41º entrevistado e personagem principal de “The Act of Killing”. Congo é uma figura curiosa: embora se vanglorie de ter matado comunistas, confessa que tem pesadelos à noite e parece ter alguma crise de consciência. “Fiquei com ele porque conseguia ver que sua dor estava perto da superfície. Ele não conseguia esconder completamente a dor de suas memórias. Comecei a entender, por meio de Anwar, que talvez a ostentação não fosse realmente orgulho, e sim o oposto: uma tentativa desesperada dos assassinos de se convencer de que fizeram a coisa certa. Porque eles sabem que foi errado. Passei os cinco anos seguintes explorando essa relação entre escapismo e fantasia, de um lado, e a culpa, de outro.”
Em 2012, após dois anos de edição, Joshua voltou a Adi, que havia acompanhado o processo durante todo aquele tempo e ouviu um pedido. “Ele disse para mim: ‘Passei anos vendo suas imagens dos assassinos e algo mudou em mim. Preciso conhecer os homens que mataram meu irmão. Preciso ver se eles assumem a responsabilidade pelo que fizeram. Preciso confrontá-los’.” Joshua negou. Era perigoso demais que Adi se expusesse daquela forma, ele dizia. “Ninguém tinha feito um filme em que sobreviventes confrontam assassinos que ainda estão no poder”, afirma. Mas Adi o convenceu, mostrando uma imagem que tinha filmado naquele período. Na cena, que faz parte do filme, o pai de Adi, já com mais de cem anos e cego, se arrasta pelo chão, achando que está na casa de um estranho e pedindo ajuda sem que ninguém o acuda. É uma imagem pesada, que parece desconectada do filme.
Aquele foi o primeiro dia, contou Adi, em que o pai não havia reconhecido ninguém da família. Sempre que alguém tentava ajudá-lo o pai se desesperava ainda mais. “Foi insuportável para Adi não poder confortar seu pai. Então ele pegou a câmera e começou a filmar, usando-a como um escudo para se proteger emocionalmente ao ver o pai se arrastando, com medo”, diz Joshua. Naquele momento, Adi viu que era tarde demais para as feridas do pai cicatrizarem. Ele tinha se esquecido da morte de Ramli, mas não do medo. “Depois de me mostrar a cena, Adi me disse: ‘Não quero que meus filhos herdem essa prisão de medo. Acho que se eu chegar gentilmente nos assassinos, mostrando que os vejo como seres humanos e que estou disposto a perdoá-los caso eles admitam que aquilo foi errado, talvez eles parem de se gabar. Eu devo aos meus filhos essa tentativa de estabelecer a paz com meus vizinhos para que eles não cresçam com medo’. Fiquei muito tocado com isso.”
O OLHAR DO SILÊNCIO
“The Look of Silence” é um retrato desses confrontos, cada um com resultados diferentes. Como oculista, Adi chegava à casa dos assassinos sem revelar sua verdadeira identidade e o que estava fazendo ali. Começava uma conversa fazendo um exame de vista, enquanto a câmera de Joshua registrava tudo. Não era uma tarefa simples, mas Joshua se aproveitou do fato de que “The Act of Killing” não tinha sido lançado ainda. A comunidade sabia que ele estava filmando líderes paramilitares nacionais. Como Adi só queria falar com gente da região, acharam que esses peixes menores tivessem medo de agredi-los, pensando que a equipe de Joshua era amiga de seus chefes.
Mesmo assim, tomaram medidas de segurança. Durante cada conversa, a família de Adi o esperava no aeroporto, pronta para fugir. Um carro também estava sempre a postos para levá-lo — todos tinham vistos para a Dinamarca, caso precisassem sair do país. Uma equipe de cinco pessoas acompanhava a família o tempo todo e todos eles se mudaram para uma outra região do país. As crianças foram transferidas para uma escola melhor, Adi ganhou um consultório próprio para não ter que bater de porta em porta vendendo óculos. “Mas desde o lançamento Adi tem sido visto como um herói nacional na Indonésia. Ele tem um papel central no movimento por verdade, justiça e reconciliação. Não só ele não foi ameaçado como parece que sua família está segura e muito, muito bem.”
Como pode-se esperar a partir dessa premissa, as conversas de Adi com os responsáveis pela morte de seu irmão não são de fácil digestão. O primeiro entrevistado conta como bebia o sangue das vítimas para “não enlouquecer” após os assassinatos. Ele não reage bem aos questionamentos e acusa Adi de politizar a conversa — que não poderia ser mais política. Adi é estoico e aguenta todos os confrontos com uma calma impressionante mesmo quando é pego de surpresa. Ao aparecer na casa do tio para uma consulta, começa a falar sobre o irmão e descobre que o tio havia sido guarda na prisão de Ramli e que não fez nada para impedir sua morte. “Ele fica bravo, defensivo, e usa a propaganda anticomunista para justificar o genocídio. Meio que diz que Ramli mereceu a morte e que se Adi continuasse a investigar também mereceria. É um momento horrível em que um relacionamento amoroso se despedaça. A cena revela como essa ferida aberta corta a família toda”, lembra Joshua.
Em outra cena, Adi visita um assassino que está surdo e cuja filha, que cuidava dele, descobre pela primeira vez o que o pai fez. “Ela percebe, de uma forma horrível, que o pai é um estranho para ela e que fez coisas terríveis. Vemos a cara dela entrar em colapso”, diz o cineasta. “Mas em vez de fazer o que eu teria feito, que é entrar em pânico e botar a equipe para fora para poder pensar, ela fica muito quieta, escuta sua consciência e pede perdão. Ela força Adi a perdoar, algo que ele disse no início que faria e que nunca tinha feito, já que até ali ninguém havia reconhecido o que fez de errado. Foi uma das coisas mais delicadas e bonitas que já vi.”
MURO INVISÍVEL
Essa foi a única conversa que não terminou num impasse. Quando a discussão ficava tensa demais, Joshua agia como um mediador. “Eu acalmava a situação dizendo que estava ali para filmar uma discussão entre duas pessoas com perspectivas diferentes. Entendia a irritação, era uma história pessoal para os dois, mas eles deviam tentar se escutar. Não fiz isso porque me sentia neutro em relação à situação, mas porque não queria que saíssemos feridos”, afirma. Do lado de fora, muitos dos assassinos tinha capangas prontos para colocar pra fora quem incomodasse seus patrões.
“Em todas as cenas chegávamos a um muro que não conseguíamos ultrapassar. O título ‘The Look of Silence’ [em português, ‘O Peso do Silêncio’] se refere a essa parede. O que ela é? Como é viver com ela?” Os vilarejos da Indonésia, diz o cineasta, podem parecer bucólicos e adoráveis porque a tensão não se vê. Como torná-la visível?
“Percebi que isso podia ser feito pelos confrontos. Disse a Adi que não acreditava que ele teria o pedido de desculpas que queria. Falei: ‘Acho o contrário. Você os vê como seres humanos e eles vão reciprocar seu olhar gentil e te ver como um ser humano também. Eles vão ver Ramli como um ser humano e todas as vítimas como humanas, e nesse momento as mentiras que eles se contaram vão entrar em colapso. Tudo aquilo a que eles se ativeram se baseia em tirar a humanidade das vítimas. Você as está humanizando só pela sua presença. Eles vão entrar em pânico, vão ficar defensivos, bravos, e vamos falhar. Mas acho que se conseguirmos mostrar esse impasse, esse muro, quem assistir ao filme vai sentir a pressão incrível que os sobreviventes sentem’”, lembra.
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RESPOSTA
Os filmes, diz Joshua, trouxeram a discussão do passado à tona na Indonésia. “A mídia era silenciosa a respeito e agora fala do que aconteceu como um genocídio, como um crime contra a humanidade. Mais importante: fala do regime criminoso que está no poder desde o genocídio”, diz. Quando “The Act of Killing” foi indicado ao Oscar, o presidente também se manifestou e disse que sabia que o que aconteceu em 1965 foi um crime e que em algum momento uma reconciliação seria necessária, mas que eles não precisavam de um filme para forçá-los a isso. “Eles meio que menosprezaram o filme, mas foi maravilhoso porque foi a primeira vez que o governo reconheceu que aquilo era errado”, diz Joshua.
Dois órgãos governamentais, inclusive, se ofereceram para distribuir o filme. Com a ajuda da Comissão Nacional de Direitos Humanos e do Conselho de Arte de Jacarta, “The Look of Silence” foi exibido no maior cinema do país, com capacidade para mil pessoas. Dois mil espectadores foram à abertura e o cinema teve de fazer duas sessões — depois das quais Adi foi aplaudido de pé. Depois disso, foram feitas mais de 500 exibições públicas e agora o filme está disponível na internet no país.
Mas nem tudo são flores. Gângsteres foram contratados para atacar exibições e 30 sessões tiveram de ser canceladas por questões de segurança. Como o órgão censor de filmes está no guarda-chuva do comitê de defesa do parlamento e é dominado pelo exército (“Parece louco, mas é só autoritário”), o documentário foi proibido de passar nos cinemas. “É uma situação peculiar. ‘The Look of Silence’ é o primeiro filme da Indonésia a ser indicado ao Oscar — ‘The Act of Killing’ não era uma produção formalmente indonésia — e está banido dos cinemas”, diz.
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DEDO AMERICANO
O filme de Joshua não aponta só o dedo para o governo indonésio, mas também para os Estados Unidos. O diretor inclui um trecho de uma reportagem na TV americana exaltando o ocorrido como a maior batalha vencida contra o comunismo. Tem também imagens de um grupo de trabalhadores num campo de concentração para extrair látex para a empresa americana de pneus Goodyear. A crítica é ainda mais clara: em um momento, um dos assassinos olha para a câmera e diz que merecia um prêmio dos americanos, porque foram eles que os ensinaram a odiar e a matar os comunistas.
“Para os americanos é um momento muito doloroso, porque ele olha direto para o público. Ele está implicando a gente, dizendo que não é só a história da Indonésia, mas também a nossa. Essa é uma das muitas vezes em que os Estados Unidos apoiaram atrocidades em outros lugares”, critica.
“E a Goodyear usava escravos de campos de concentração, a mesma coisa que as empresas alemãs faziam perto de Auschwitz 20 anos antes. É uma crise de consciência para os americanos, nos faz pensar que talvez a ideologia anticomunista da Guerra Fria não seja a razão real para nossas intervenções. Talvez fosse uma desculpa, como a que os assassinos que vemos nos meus filmes usam. Talvez seja uma desculpa oficial para fazer aquilo que as corporações queriam”, continua. “Isso faz com que façamos perguntas difíceis sobre nossa política externa.”
O senador americano Tom Udall levou no ano passado, aos 50 anos do massacre, um projeto ao Senado para que o selo de sigiloso seja tirado de documentos que falam do papel dos Estados Unidos no que aconteceu na Indonésia. “Nosso governo continuou o apoio militar e financeiro à Indonésia naquela época. Ao chegarmos ao aniversário desse período horrível, há apenas 50 anos, os Estados Unidos e a Indonésia devem trabalhar para fechar esse capítulo horrível liberando informações e reconhecendo oficialmente as atrocidades que aconteceram. Muitos dos assassinos ainda estão vivos e soltos, e sua impunidade impede a Indonésia de verdadeiramente realizar seu potencial democrático”, diz o texto de Udall.
Joshua apoia a iniciativa. “Sabemos de ouvir por aí que os Estados Unidos deram dinheiro, armas e treinamento a eles. Também sabemos que eles fizeram uma lista com 5 mil nomes de figuras públicas da Indonésia — jornalistas, ativistas, artistas, intelectuais — e a entregaram ao Exército pedindo para devolverem os nomes quando tivessem se livrado de todos. Uma lista de morte. Essa é uma mancha grande na afirmação americana de que é uma força para a liberdade e a democracia no mundo pós-guerra”, diz.
Para o documentarista, enquanto esses documentos não forem públicos e os Estados Unidos não reconhecerem sua responsabilidade, tudo o que o país diz sobre direitos humanos é retórica e “será visto, corretamente, pelas pessoas do mundo como um disfarce hipócrita para avançar os interesses estratégicos e corporativos do país”. Circulam agora petições de americanos para que senadores de seus Estados apoiem a proposta de Udall. “Estamos tentando fazer agora com que isso passe pelo Senado e vire lei.” A discussão da história, diz ele, é fundamental. “Não haverá democracia genuína até que se lide com essa questão. Não há democracia sem comunidade e não há comunidade quando uns têm medo dos outros.”
O relógio na parede do luxuoso hotel Plaza São Rafael tinha acabado de marcar 21h30 naquela sexta-feira de julho, quando um estrondo surpreendeu hóspedes e funcionários. Um táxi vermelho havia colidido com a porta da frente do estabelecimento, cobrindo o tapete xadrez com cacos de vidro. O veículo avançou lobby a dentro e só parou quando alcançou o balcão do hall de entrada. Após alguns segundos, um homem quebrou uma janela lateral do táxi e começou a atirar com uma arma de fogo em direção à entrada do hotel. Policiais que seguiam o carro de perto atiraram de volta. No meio do fogo cruzado, pessoas que estavam no lobby entraram em pânico. Os seus gritos abafaram o jazz suave que saía dos alto-falantes.
Para entender como um hotel luxuoso virou alvo de bandidos, voltemos ao dia anterior, 7 de julho de 1994. Por volta das 15h30, o presidiário Vladimir Santana da Silva, de 28 anos, caminhava por um dos corredores úmidos do Presídio Central, ou “Casarão”, como os presos chamam o complexo prisional localizado em Porto Alegre, um dos maiores do Brasil. Sarará da Vó, como era conhecido, havia se submetido a uma sessão de fisioterapia para o seu cotovelo, na ala do Hospital Penitenciário. No caminho de volta para a sua cela, cruzou com uma freira amiga dos presos e implorou para que ela marcasse uma reunião entre ele e o diretor do hospital, Claudinei dos Santos. “Tenho um assunto urgente para tratar com ele”, disse. A religiosa acatou o pedido. E assim que Sarará da Vó entrou no escritório do diretor, sacou uma arma de fabricação artesanal de dentro da tipoia que cobria o seu braço e pressionou-a contra o peito de Santos.
“O padrinho tá rendido! Ta rendido!”, disse.
Em seguida, outro preso adentrou o escritório, arrastando um guarda penitenciário sob a mira de uma arma. Era Fernando Rodolfo Dias, o Fernandinho, que com apenas 22 anos cumpria pena por roubo, tráfico de drogas e estelionato. Portador de HIV, Fernandinho já era conhecido dos médicos e enfermeiros do Hospital Penitenciário. Mas, naquele dia, surpreendeu a todos ao roubar a arma de um guarda distraído e fazê-lo de refém. A dupla não tinha tempo a perder. Deixaram o diretor e o guarda penitenciário de lado e começaram a retirar as almofadas do sofá do escritório, até encontrarem duas armas de fogo e várias munições socadas na lateral do móvel. O diretor não conseguia acreditar na cena que se desenrolava na frente dos seus olhos. Como que os presos sabiam sobre o seu esconderijo?
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Ao mesmo tempo, na sala de triagem do Hospital Penitenciário, Pedro Ronaldo Inácio, o Bugigão, recebia atendimento médico por ter vomitado sangue dentro de sua cela. Aos 33 anos, o detento estava preso por lesão corporal, estupro e assalto a banco. Mostrando uma vitalidade repentina, o doente levantou e sacou um trabuco da roupa, ameaçando os profissionais de saúde e assumindo o controle da sala. Outros presos aproveitaram a confusão para roubar as pistolas dos agentes penitenciários que guardavam o local. E, sob o comando do Bugigão, forçaram os mesmos guardas a abrirem os seus armários pessoais, de onde tiraram ainda mais armas e munições. (Mais tarde, Bugigão confessou ter fingido o mal-estar ao encher as bochechas com sangue extraído dos próprios braços.)
Ao todo, Sarará da Vó, Fernandinho, Bugigão e outros presos fizeram 27 funcionários reféns naquele dia. As vítimas foram levadas para o segundo andar do Hospital Penitenciário. O local não foi escolhido à toa. Naquele pavimento, um longo corredor ligava o Hospital Penitenciário à saída do complexo prisional. Não demorou muito para que a notícia sobre o motim se espalhasse. O promotor André Luiz Villarinho, diretor do Departamento de Estabelecimentos Penais do Rio Grande do Sul, foi o primeiro a chegar no local para avaliar a situação. Ao abordar os amotinados, ouviu deles a sua primeira exigência: queriam que dois presos de outra ala do complexo prisional fossem trazidos para o bando de amotinados. Um deles era o assaltante Carlos Jefferson Souza Santos, o Bicudo, de 23 anos. Ele havia sido escolhido porque sabia lidar com reféns. Certa vez foi surpreendido por policiais enquanto roubava uma videolocadora e ficou várias horas negociando a liberação de vítimas com policiais.
Villarinho, que sem querer se viu na posição de negociador, aceitou o pedido dos amotinados. Em troca, os bandidos libertaram o primeiro refém – uma secretária do Hospital Penitenciário, que tinha passado mal devido ao nervosismo. Entre os rebelados, Bicudo logo assumiu o comando das negociações e fez uma segunda exigência, desta vez mais audaciosa. Os criminosos queriam que dois detentos de outra cadeia fossem transferidos para o Casarão. Os escolhidos estavam cumprindo pena na PASC, uma prisão de segurança máxima localizada em Charqueadas, município a 58 km de Porto Alegre. Um deles era Dilonei Melara, um dos criminosos mais perigosos da região. Alto, magro e com cabelo grisalho, aos 36 anos era considerado um grande líder pelos criminosos do Rio Grande do Sul, por ter fundado a primeira facção criminosa gaúcha, a Falange. Melara estava cumprindo 65 anos de prisão por assaltos a bancos e havia tentado escapar de presídios em diversas ocasiões. O outro presidiário era Celestino Linn, 37 anos, amigo e parceiro de crime do Melara que cumpria uma pena de 30 anos por assalto à mão armada e lesões corporais. Juntos, os dois já tinham aprontado bastante. Em 1983, libertaram um condenado enquanto ele estava sendo transferido entre prisões dentro de um ônibus. Durante a operação cinematográfica, mataram dois policiais.
Villarinho se deu conta que a negociação estava ficando complicada e resolveu consultar a cúpula do governo estadual. O governador da época, Alceu Collares, retornou às pressas de uma reunião em Brasília e criou uma força-tarefa para administrar o motim. À noite, o grupo se reuniu no Presídio Central com autoridade para tomar decisões. Marcos Rolim, deputado estadual na época e um dos membros da força-tarefa, ofereceu-se para intermediar o diálogo com os presidiários. Aos 34 anos, ele já tinha uma trajetória como militante dos direitos humanos e estava acostumado a conversar com encarcerados. Mas, por volta das 2h da manhã, até mesmo Rolim se surpreendeu quando os amotinados articularam a sua terceira e última exigência: queriam que três carros fossem disponibilizados em frente ao presídio para que pudessem fugir assim que os colegas chegassem da PASC.
A força tarefa passou o dia seguinte considerando as opções. Eles podiam ordenar que policiais de elite invadissem o local e dominassem os insurgentes à força. “Mas nós descartamos essa alternativa”, Rolim me disse recentemente. Hoje o ex-deputado é doutor em Sociologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e especialista em jovens violentos. A ação teria causado dezenas de mortes, acredita. Não apenas dos amotinados, mas também dos reféns e dos presos que estavam lá apenas recebendo tratamento médico. “A nossa única opção era aceitar as condições da negociação.”
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No fim da tarde, Rolim se deslocou para Charqueadas com a missão de buscar Melara e Linn. Melara estava animado. Ele tinha passado dois meses orquestrando o motim no Presídio Central e agora tudo corria de acordo com o planejado. Finalmente ele realizava um sonho antigo: sair da prisão de segurança máxima sem algemas e pela porta da frente. Com a chegada da noite, o então deputado escoltou a dupla de criminosos para dentro do Casarão, e por ter cumprido com a segunda exigência dos detentos, conseguiu negociar a liberdade de sete mulheres reféns. Mais tarde, confessou que estava com medo de que os presos as estuprassem como forma de pressionar as autoridades – ou até mesmo por tédio. Afinal, eles estavam amotinados há mais de 24 horas.
A libertação das reféns deu ânimo para a força-tarefa, mas ainda havia a terceira e última exigência: será que deveriam providenciar carros de fuga para os criminosos? Impacientes, os presidiários pressionaram colocando álcool em colchões e ameaçando atear fogo nos reféns. Após muitas horas de intensa discussão, a comissão decidiu que sim, iriam ajudá-los a sair do Presídio Central, mas com um porém: secretamente iriam sabotar os automóveis. O plano era mexer com a mecânica dos carros para que os fugitivos não conseguissem chegar muito longe. A polícia ainda colocaria GPS nos veículos para seguir o grupo de helicóptero. Assim que libertassem os reféns, os policiais iriam se aproximar e prendê-los.
[olho]Melara finalmente realizava um sonho antigo: sair da prisão de segurança máxima sem algemas e pela porta da frente[/olho]
Às 21h05, a preparação para a saída dos amotinados estava completa. Três Gols na cor verde metálico foram estacionados na frente do Casarão. Sem pressa, os fugitivos desceram o longo corredor do Hospital Penitenciário até a saída, levando junto os seus reféns. Repórteres noticiavam cada passo ao vivo no rádio. Os presos forçaram os reféns a segurar cobertores sobre as cabeças de todos, para que atiradores de elite não conseguissem distinguir quem eram os criminosos. Dez reféns entraram nos três Gols sabotados. Os outros formaram um cordão humano em volta dos carros, para que a polícia não conseguisse atirar contra grupo enquanto saíam.
Os carros arrancaram cantando pneu. Mas, em vez de seguir o plano que havia sido elaborado pela força-tarefa, policiais começaram a atirar nos carros e perseguí-los quase imediatamente. “Um delegado com sede de vingança deu uma ordem para que os policiais já saíssem atirando atrás dos veículos”, relembra Rolim. “Mas foi uma péssima ideia. Ele colocou em risco a segurança dos reféns e de todos os cidadãos de Porto Alegre.”
Os fugitivos saíram em direções opostas, com a polícia logo atrás. A fuga em alta velocidade foi relatada em tempo real pelas redes de rádio e televisão. Famílias trancaram as portas, motoristas tiraram os carros das ruas, e comerciantes baixaram as grades. Todos ligados no AM.
Um dos carros foi para a zona leste, mas não chegou muito longe. Com um pneu furado, foi perdendo velocidade até parar no meio de uma rua de chão batido. Ao invés de se entregar, os fugitivos responderam com fogo. A policia revidou. No meio do tiroteio, o refém Edilei Souza dos Santos (filho do diretor Claudinei dos Santos) foi atingido por 11 balas. Ele sobreviveu, embora tenha ficado com graves sequelas. Outros dois reféns conseguiram escapar ilesos, e os três criminosos dentro do veículo foram mortos com um total de 21 tiros.
O segundo carro seguiu para a zona norte. Após alguns quilômetros, o fugitivo que estava no volante, Luiz Paulo Schardozin Pereira, 29 anos, bateu o carro em um poste de luz. Depois do acidente, Chardozinho, como era conhecido, correu na direção do Shopping Iguatemi. Um segurança particular do estabelecimento notou o seu comportamento estranho e ordenou que se deitasse no chão e se entregasse (depois dessa história ele virou um herói no trabalho). Outros dois insurgentes fugiram na direção de um matagal das redondezas e só foram capturados pela polícia semanas depois.
O terceiro e último carro parou de funcionar não muito longe do Presídio Central graças à sabotagem da polícia. O motorista era Bicudo, que entrou em pânico e saiu correndo, conquistando a tão sonhada liberdade. Mas sua felicidade durou pouco tempo. Dez dias depois ele foi baleado e morto pela polícia ao tentar roubar um banco. Os outros três integrantes do carro, Melara, Linn e Fernandinho, ainda resistiram, trocando tiros com a polícia. O diretor do Hospital Penitenciário, Claudinei dos Santos, que estava dentro do Gol, foi atingido com uma bala nas costas e foi empurrado para fora do veículo. O tiro lhe deixou paraplégico. Outra bala atingiu um policial que se aproximava do automóvel, que morreu na hora. Desesperados, os três foragidos pegaram um carro da imprensa, que acompanhava a situação de perto. Eles continuaram a fugir pela cidade com três reféns – duas mulheres e um homem. Mas, devido a problemas mecânicos, ainda trocaram de carro duas vezes até entrar em um táxi vermelho. Sem saber para onde ir, Melara apontou a arma para a cabeça do taxista e mandou ele acelerar até o hotel mais chique da cidade, o Plaza São Rafael. Ao chegar em frente ao estabelecimento disse: “Tu vai te dar mal, cara, se não derrubares essa merda de porta”.
Após a batida, o motorista do táxi abriu a porta do carro e correu em direção a polícia, que vinha logo atrás. Com as mãos no ar, ele implorou aos policiais que não atirassem. A balas zuniam de lado a lado pelo saguão revestido de granito. Os três fugitivos se encaminharam para o fundo do lobby, mantendo seus reféns como escudo. Naquela noite, o Plaza São Rafael sediava uma conferência sobre depressão, com a presença dos psiquiatras mais respeitados do Brasil. Após um dia de palestras, os médicos estavam jantando na sala de conferências quando foram surpreendidos pelo trio que chegava de arma em punho. Eles interromperam as garfadas e se esconderam embaixo das mesas.
Melara e Fernandinho pouco notaram os psiquiatras e subiram as escadas para o bar do mezanino, arrastando com eles duas reféns. Linn se encostou numa das paredes da sala de conferências e improvisou uma barricada com as mesas. Como ele já havia perdido o seu refém, agarrou alguns médicos que estavam ao redor. Os policiais entraram no saguão se arrastando e chegaram bem perto da barricada de Linn. Assim que teve uma oportunidade, um PM atirou no rosto do fugitivo. A bala passou de raspão, mas foi o suficiente para desnorteá-lo. Capturado, Linn foi escoltado para fora do hotel por policiais orgulhosos, como se exibissem uma presa rara. Dois dias depois, ele foi encontrado morto na sua cama de hospital com quatro tiros.
Melara e Fernandinho permaneceram no mezanino por mais 13 horas e fizeram mais uma refém, uma secretária do hotel. Mas, com o passar do tempo, sem água, comida e munição, ficaram exaustos. A dupla de criminosos finalmente se entregou quando o desembargador Décio Antônio Érpen, que estava no comando das negociações, disse que a seleção brasileira estava prestes a entrar em campo contra a Holanda pelas quartas de finais da Copa do Mundo dos Estados Unidos. E ele não queria perder esse jogo. Melara e Linn concordaram em sair do hotel com duas condições: eles queriam sair com coletes à prova de bala e pediram para retornar à PASC – a prisão de segurança máxima, onde achavam que estariam seguros de retaliações. Eles temiam que os agentes penitenciários do Casarão os executassem por terem causado tamanho distúrbio. A precaução deu certo. Melara viveu até 2005, quando foi assassinado, ao que tudo indica, por um criminoso rival. E Fernandinho morreu devido a uma doença desconhecida em 2008.
As 48 horas de caos deixaram um grande trauma em Porto Alegre. Durante várias semanas, o acontecimento estampou as páginas dos jornais e serviu como tema de discussões políticas. Algumas pessoas criticaram os membros da força tarefa por terem concordado com as exigências dos fugitivos. Outros avaliaram que era a melhor opção. “Concordando ou não, a população ficou apavorada com o fato que os criminosos mais perigosos da região conseguiram planejar e executar essa fuga de dentro da prisão”, lembra Rolim. Melara se tornou uma figura pop, citado até em música de bandas de rock.
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Sete meses depois, era carnaval. Mal sabiam os foliões que, enquanto dançavam uma marchinha, um grupo de presidiários do Casarão cavava pacientemente um buraco na parede da terceira galeria do pavilhão D, usando apenas ferramentas artesanais. Assim que o túnel ficou largo o bastante, em 27 de fevereiro de 1995, segunda-feira de Carnaval, 45 presos saíram para o lado de fora do prédio e escalaram até o telhado. O grupo, liderado pelo presidiário de 24 anos Paulo Vicente Lauffer da Silva, o Porquinho, estava preparado para a fuga. Levaram consigo jiboias – cordas trançadas a partir de roupas e lençóis – para descer o muro externo do presídio. “Parecia um monte de homens-aranhas”, disse uma testemunha, na época, ao jornal Zero Hora. Pelo menos um dos fugitivos não conseguiu se segurar da corda e caiu da altura de 8 metros direto na calçada, quebrando as duas pernas. Os outros presos abandonaram o companheiro e fugiram na direção do Morro da Polícia, que fica atrás do presídio.
Duzentos policiais foram deslocados para caçar os foragidos a pé, enquanto um helicóptero e um pequeno avião patrulhavam a área. Era fácil de identificar os presos – as suas roupas estavam sujas e rasgadas. A polícia tinha a ordem de capturá-los a qualquer preço, então já passaram a atirar nas suas pernas para que não conseguissem correr. Alguns dos fugitivos portavam armas e atiraram de volta, mas, no fim do dia, 23 condenados foram trazidos de volta para o presídio, e muitos outros foram capturados nas semanas seguintes.
O Presídio Central nunca havia sido considerado uma instituição de ponta – muito pelo contrário. Desde a sua construção, em 1959, a instituição nunca funcionou de acordo com o plano original. A prisão deveria ter uma infraestrutura sofisticada, mas o governo gaúcho só teve dinheiro para construir metade dos prédios previstos na planta. O presídio foi inaugurado mesmo assim em 1962, com cinco pavilhões de três andares cada, com a capacidade de abrigar 660 presos. Com o passar dos anos, as celas ficaram superlotadas, chegando ao ponto de superar em quatro vezes a sua capacidade. Como consequência, os presidiários foram ficando cada vez mais inquietos. E, a partir dos anos 1980, encontraram um jeito de se organizar para expressar a sua frustração através de uma série de motins e tentativas de fuga. O Presídio Central virou uma panela de pressão. “Quando os presos não aguentavam mais as condições do presídio, eles explodiam. Isso fazia com que o governo tomasse medidas para melhorar a situação, e a pressão baixava. Mas aos poucos ia subindo novamente”, conta Rolim.
[olho]O Presídio Central virou uma panela de pressão[/olho]
Em 1995, depois que presos organizados conseguiram escapar duas vezes do Presídio Central em 7 meses, o sentimento geral era que o Estado tinha perdido o controle sobre o presídio. Em uma carta ao jornal Zero Hora, publicada em março daquele ano, uma leitora chamada Silvana exigiu respostas das autoridades. “É possível que uma prisão com mais de mil presos tenha um só guarda externo? Como os apenados tinham armas? Como conseguiram chegar ao muro sem serem vistos?” escreveu. Para piorar, Porquinho, presidiário que liderou a fuga do Carnaval, deu uma entrevista aos repórteres locais quando foi capturado dizendo que “foi muito fácil escapar do Presídio Central”. A população ficou enfurecida.
Antônio Britto sentiu a pressão. O político filiado ao PMDB havia tomado posse recentemente como governador gaúcho e se sentiu obrigado a lidar com o problema já no segundo mês de trabalho. Britto chamou a imprensa e fez um anúncio: ele iria tomar medidas dramáticas para acabar, de uma vez por todas, com os problemas do presídio de Porto Alegre. O plano era desativar o Casarão. Mas antes, iria construir 10 novas prisões de tamanho médio em cidades próximas, para onde seriam transferidos os condenados. E, enquanto as novas prisões não saíam do papel, ao longo de seis meses, o Presídio Central passaria a ser coordenado pela Brigada Militar (a polícia militar do Rio Grande do Sul). Esses policiais, ou “brigadianos” na linguagem regional, tinham fama de bem treinados, destemidos e de respeitar a hierarquia, o que poderia ajudar a colocar ordem no Casarão até então controlado por agentes penitenciários. Inicialmente, o plano deu certo. Os novos guardas conseguiram controlar os presidiários. A cidade se sentiu mais segura, e as críticas ao governo estadual diminuíram. Mas vários anos se passaram, e as novas prisões nunca saíram do papel. A Polícia Militar continuou no comando do Presídio Central por tempo indeterminado, e outros problemas começavam a aparecer.
O presídio estava completando 30 anos de vida, e os sinais da idade já apareciam nas paredes. Rachaduras, vazamentos e problemas elétricos precisavam de conserto. Mas, como havia a promessa de que a cadeia seria demolida em breve, o governo preferia não fazer os investimentos para recuperar o Central. Enquanto isso, os presidiários passaram a reclamar dos problemas de infraestrutura (como um chuveiro quebrado, por exemplo), batendo nas paredes das celas até os pavilhões tremerem como se um terremoto tivesse atingido Porto Alegre. Durante os protestos, a Brigada Militar temia não apenas que a estrutura desabasse de vez, mas que os presidiários conseguissem forçar as grades e escapassem. Não havia guardas suficientes para conter uma multidão enfurecida. Os policiais militares chegaram à conclusão que o único jeito de manter a ordem no Central (enquanto esperavam pela demolição do presídio) era negociar uma trégua com os presos.
[olho]Para a Brigada Militar, fazer uma parceria com os presidiários era uma jogada arriscada, mas necessária[/olho]
Foi assim que em 1997, Valmir Pires, um preso que sempre foi muito amigável com os policiais, foi chamado para uma reunião com um comandante da Brigada Militar do alto escalão. Ele cumpria pena de 12 anos por roubo de carros e assalto à mão armada. Sem saber do que se tratava, o preso encontrou o comandante em um andar vazio do pavilhão C, onde recebeu uma proposta. Pires poderia se mudar para o pavilhão com um grupo de presos de sua confiança. A polícia não entraria no andar sem a sua permissão e não monitoraria as suas atividades lá dentro. Ele receberia, inclusive, as chaves das celas daquele andar. Em troca, teria de prometer que os presidiários sob o seu comando não tentariam escapar da prisão e nem realizariam motins. Além disso, teriam de manter a área limpa, organizada e realizar consertos. Afinal de contas, se iriam assumir o comando também precisavam assumir algumas responsabilidades.
Para a Brigada Militar, fazer uma parceria com os presidiários era uma jogada arriscada, mas necessária. O acordo poderia ajudar a acalmar os ânimos dentro da instituição, já que criaria uma facção nova, amiga dos policiais. A ideia era diminuir o poder dos Manos, grupo liderado por ninguém menos do que Dilonei Melara, que ganhou ainda mais prestígio entre os criminosos depois da fuga de 1994. O acordo também ajudaria a manter os policiais no comando do Presídio Central. A essa altura, os PMs não queriam abrir mão do poder e dos adicionais de salário que vinham com a atuação dentro do presídio. Pires aceitou os termos da negociação. E resolveu chamar a sua facção de Os Brasas. Logo depois, outra facção nasceu de forma espontânea: os Abertos. Agora havia três grupos criminosos dentro do Presídio Central.
[olho]O Casarão virou um grande QG do crime organizado[/olho]
Como o plano do governador Antônio Britto de demolir o Central nunca avançou, a questão ficou para o seu sucessor, Olívio Dutra, que assumiu o poder em 1999. Dutra escolheu fazer algumas reformas mais do que necessárias na infraestrutura do presídio. Para começar, fechou o Hospital Penitenciário, palco da fuga de 1994. A seção foi transformada em um novo conjunto de pavilhões, o que, por um tempo, resolveu o problema de superlotação da instituição. Mas, como a população carcerária brasileira aumenta em uma velocidade impressionante, o problema voltou.
Em 2003, um novo governador, Germano Rigotto, sentiu que não tinha outra opção a não ser voltar ao plano original, de aumentar o número de vagas em outros presídios e acabar com o Central. “Elaboramos projetos para a criação de 8.914 novas vagas nos presídios estaduais, com investimentos de R$ 170 milhões”, ele disse em entrevista ao jornal Zero Hora em julho de 2006. “A meta inicial é disponibilizar 2,6 mil novas acomodações até o final deste ano”, prometeu. Mas o prazo não foi alcançado, e o problema foi deixado para a próxima governadora, Yeda Crusius. Em 2008 ela foi bem clara sobre as suas intenções: “A decisão de implosão do Presídio Central está tomada”. Mas ela também não cumpriu a promessa e, em vez disso, construiu mais quatro pavilhões na cadeia, aumentando o número de vagas. Era uma solução muito mais barata, mas temporária.
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De certa forma, o acordo com os presidiários deu certo. Desde 1998, nunca mais houve uma tentativa de fuga no Casarão. Mas o surgimento de facções rivais trouxe outro conjunto de problemas para o governo estadual. Na virada do século, aproximadamente 30 presidiários apareciam mortos de forma violenta a cada ano dentro da instituição. Eram assassinados a tiros, com facadas, apedrejados ou de tanto apanhar. “Havia uma guerra entre os grupos rivais”, afirma Renato Dorneles, repórter que cobriu os assassinatos para o jornal Zero Hora. “Eles brigavam pelo poder e pelo domínio das galerias.”
Em 2005, com a morte de Melara, líder dos Manos, o número de assassinatos dentro do Casarão caiu dramaticamente para apenas dois por ano. A paz repentina não foi uma coincidência. Sem o velho líder, uma nova geração de presidiários se deu conta de que era melhor parar com as rixas e focar nas vantagem do poder que a Polícia Militar tinha concedido anos antes. Seguindo o exemplo de facções criminosas que atuavam em presídios do Rio de Janeiro e São Paulo, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), os criminosos resolveram usar a máquina do Presídio Central para manter operações criminosas do lado de fora do xadrez. “Eles se deram conta que permanecer em estado de guerra atrapalhava os negócios. Por isso se tornaram mais organizados e começaram a respeitar o espaço um do outro dentro da prisão”, afirma Dorneles. O Casarão virou um grande QG do crime organizado.
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Roberto Silva, 32 anos, olhou atentamente para o presidiário com cara de mal encarado que lhe dava as boas vindas à cela 39F. Em uma mão, ele carregava um conjunto de chaves. Na cintura, tinha um facão pendurado. O homem explicou como as coisas funcionavam dentro do Presídio Central: a Brigada Militar vigiava os muros do presídio. Mas, do lado de dentro, quem ditava as regras eram os presos. Pela primeira vez, Silva criou coragem e olhou ao seu redor, para a sua nova casa. Era um longo corredor que tinha dezenas de celas, todas abertas. Cerca de 300 presos circulavam livremente dentro e fora delas. O seu cubículo tinha oito camas de cimento para 20 condenados. Muitos tinham que dormir de valete (um para cada lado) ou em colchões no chão. O banheiro era um buraco no chão escondido atrás de duas pequenas divisórias.
“Nada te prepara para o que você vê quando entra naquele lugar”, ele me disse.
Roberto Silva nunca havia sido preso antes de 13 de outubro de 2014. Na verdade, esse não é o seu nome verdadeiro. Quando eu o entrevistei na sua casa na grande Porto Alegre, ele me pediu para usar um nome falso porque ainda espera julgamento e teme que uma entrevista possa prejudicar a sua imagem perante um juiz. “Não era essa a vida que eu queria para mim”, justificou sentado no sofá ao lado da mulher. Silva foi criado pelos avós em uma casa de classe média baixa em Bagé, no extremo sul do Brasil. Ele se formou no ensino médio, fez um curso profissionalizante de informática e serviu ao Exército. Aos 19 anos, mudou-se para Porto Alegre procurando melhores oportunidades de trabalho. Após viver de bicos, foi contratado com carteira assinada como operador de empilhadeira em uma fábrica da General Motors.
O que desviou a sua vida, acredita, foi o azar. Silva fumava até quatro baseados por dia desde que tinha 14 anos de idade. E embora a prática seja ilegal, nunca teve problema de comprar a erva para o uso pessoal. “Até que um dia fui comprar um pouco mais para um amigo e, quando eu fui dar para ele a sua parte, um carro da polícia se aproximou”, conta. Ele foi preso em flagrante, já que carregava consigo sete trouxinhas de maconha, no valor de R$ 300. E quando foi posto em frente a um juiz, foi considerado traficante de drogas. Mesmo sem antecedentes criminais, foi enviado para a prisão preventiva enquanto aguardava pelo julgamento, o que poderia demorar até um ano. “Eu só pensei: acabou a minha vida”, lembra.
Quando chegou ao Casarão, policiais avisaram que ele poderia escolher qual galeria gostaria de morar. Existem 24 galerias no presídio, sendo que cada uma é comandada por um grupo ou facção. Desde os anos 1990, o número de facções aumentou consideravelmente. Os Manos e os Abertos continuam fortes. Os Brasas adotaram um novo nome: Unidos pela Paz. E novas facções foram criadas com base em afiliações por bairros da cidade. As galerias restantes abrigam presidiários que precisam estar separados por questões de segurança: travestis, homossexuais, agressores de mulheres, pedófilos, estupradores, evangélicos, réus primários e aqueles presos que trabalham para os policiais militares. Presos com curso superior completo (apenas 15 homens em 2015) também ocupam uma ala distinta.
[olho]Cada galeria é administrada por uma “prefeitura” composta por um líder, chamado “plantão”, e seus 30 secretários[/olho]
Ao mesmo tempo, a superlotação piorou. Hoje, aproximadamente 4.266 presidiários ocupam um espaço destinado a 2.069 presos. Ou seja, o presídio funciona com mais do que o dobro da sua capacidade. E não existem indícios de que o problema irá diminuir: na média, 59 presos entram o Presídio Central todos os dias, enquanto que apenas 54 deixam o local. De acordo com estatísticas de dezembro de 2015 divulgadas pela Susepe (Superintendência dos Serviços Penitenciários), a maioria dos novos presos tem entre 18 e 24 anos, não completou o ensino fundamental, identifica-se como branco, e, assim como Silva, foi enviada para a prisão como medida preventiva para esperar um julgamento por tráfico de drogas. Para tentar segurar a superpopulação, ao longo de 2015 por diversas vezes a Justiça gaúcha mandou interditar a entrada de novos presos no Central, especificamente aqueles que já cumprem ou cumpriram penas. Mas a medida nunca durou muito tempo por gerar outros problemas, já que os presos acabavam lotando as celas improvisadas das delegacias da capital.
Silva ficou chocado ao observar o poder que os presidiários conquistaram dentro da prisão. Cada galeria é administrada por uma “prefeitura”, de acordo com a linguagem do Central, composta por um líder, chamado “plantão”, e seus 30 secretários. Munidos de facões na cintura, o grupo controla todos os aspectos da vida carcerária. Definem, por exemplo, quando as luzes ficam acesas, se as celas ficam abertas ou fechadas (alguns pavilhões estão caindo aos pedaços e não têm grades nas celas), quem tem direito de dormir nas camas, e até mesmo como resolver conflitos entre os presos. Os plantões também assumiram o papel de porta-voz entre os presidiários e a administração do Casarão: fazem pedidos de transferências, solicitam assistência jurídica e médica e advogam para que certos bens entrem nas galerias – como televisores, fogões a gás e ventiladores. “Eles são extremamente organizados”, afirma.
As prefeituras também mantêm uma ligação estreita com facções criminosas do lado de fora do presídio. “Os dois lados estão em contato constante através de celulares, ou através de visitas e agentes penitenciários que levam e trazem informações e mercadorias”, explica Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e especialista em segurança pública. “Já não há mais uma distinção tão grande entre os membros que estão dentro e fora. Funciona como uma rede”, afirma. Para as facções, manter tentáculos dentro do Presídio Central é extremamente benéfico e serve, inclusive, como forma de angariar novos membros. Uma tática infalível é bancar os gastos dos presos dentro da prisão – desde comida até colchão. A conta pode chegar a R$ 300 por mês, e a maioria dos presidiários não tem dinheiro para pagar. Só que existe uma cláusula contratual importante que vem com esse empréstimo: quando os presos ganham a liberdade, precisam pagar essa dívida, seja em dinheiro ou praticando crimes para a facção. Caso contrário, são mortos.
Fluxo a céu aberto
Enquanto eu esperava para entrevistar Sidinei Brzuska sobre essa liberdade conquistada pelos presos, aproximadamente 10 presidiários líderes de galerias estavam reunidos na sua sala localizada no Presídio Central. Brzuska, juiz da 2ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, admite que faz reuniões frequentes com esses “plantões”, com o objetivo de manter uma relação pacífica entre Polícia Militar e os presidiários. Mas, nesse dia, os criminosos também tinham uma reclamação para fazer: eles não estavam felizes com o tratamento que novos guardas estavam dando para os presos. “Os guardas estavam sendo um tanto truculentos. E isso é inaceitável para eles”, ele me disse quando começamos a entrevista. Em seguida, o juiz confirmou que iria pedir para que os guardas “pegassem mais leve”. O seu trabalho, admitiu, era manter os presos felizes para a panela de pressão não estourar. Ele não gosta de fazer esse papel, mas acredita que é o único jeito de manter a ordem no Casarão. “Existe um equilíbrio frágil aqui dentro, que precisa ser mantido para garantir a segurança de todos”, justifica.
O equilíbrio é uma saia justa para o Estado. Os presos vivem de forma pacífica e não realizam fugas ou rebeliões. Mas, através do poder de ameaça, conseguiram adquirir tanto poder dentro da prisão que chegam a desenvolver as mesmas atividades criminosas que praticavam antes de serem presos. Entre elas, está a venda e o uso de drogas. “Eu costumava comprar maconha toda a hora”, Silva revelou. “Eles vendiam cocaína, maconha e crack de bandeja, inclusive nos dias de visita, e frequentemente os guardas observavam a transação sem interferir.” A atividade se tornou pública com a divulgação de um vídeo em dezembro de 2014 que mostrava dezenas de presos fazendo fila para cheirar cocaína dentro de uma das galerias. O vídeo, que virou notícia nacional, foi enviado por uma fonte de dentro da prisão para o repórter Renato Dorneles, que hoje trabalha para o jornal Diário Gaúcho.
Maconha, crack e cocaína, assim como armas e celulares, são supridas pelos membros das facções que estão do lado de fora do Central. Para eles, o Presídio Central virou um grande mercado a ser abastecido, e os lucros das vendas são divididos entre os membros que estão do lado de dentro e fora do muro. De acordo com Brzuska, os itens entram no Casarão com a ajuda de familiares. Afinal de contas, uma média de 230 mil pessoas visitam os presos a cada ano – na maioria esposas, mães e irmãs. E, apesar de passarem por escâneres de seguranças vestindo apenas a roupa de baixo, mulheres são frequentemente flagradas trazendo pequenos pacotes de drogas ou telefones celulares dentro de pedaços de pão, tênis, ou brinquedos de crianças – para citar alguns dos meios mais comuns.
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“Eu vi mulheres tirarem as calças, se abaixarem e inserirem drogas em suas vaginas enquanto esperavam para passar no escâner”, explica a esposa de Silva, que costumava visitar ele duas vezes por semana. Essa é apenas uma das lembranças amargas que guarda dos dias de visitação. Ela tinha que entrar na fila por volta das 3h da manhã do lado de fora do presídio para garantir que conseguiria entrar na cadeia para ver o marido até o meio da manhã. Lá dentro, passava o dia circulando na galeria onde Silva morava e o pátio adjacente, entre ratos, lixo e esgoto. Para matar a saudade do marido, se submetia a visitas conjugais controladas de perto pelos plantões. Com lençóis pendurados no teto, uma cela era transformada em dois quartos de motel onde os casais tinham 15 minutos para transar – e nem um minuto a mais, a não ser que pagassem por isso.
Em dezembro de 2014, o juiz Brzuska e a Brigada Militar fizeram uma tentativa de reconquistar um pouco de controle sobre o contrabando no presídio, introduzindo um escâner de corpo de alta tecnologia, no qual os visitantes não precisavam nem tirar a roupa. Desde que o sistema foi implantado, uma grande quantidade de drogas foi apreendida na porta de entrada do presídio. Mas os itens ilegais não deixaram de circular entre os presos. “Familiares e membros do crime organizado agora jogam pacotes de drogas por cima dos muros”, explica Brzuska. Além disso, é comum ver ratos correndo pela instituição vestindo colares feitos de pedras de crack, e camundongos com pacotes de cocaína costurados na barriga.
Ao mesmo tempo, suspeita-se que guardas tenham os seus próprios acordos com os presos. Em 2013, um policial militar do Casarão foi preso com vários celulares, meio quilo de maconha e muitas pedras de crack no seu armário. “Os criminosos sempre encontram um jeito, não desistem nunca”, lamenta Brzuska. E, depois que os itens ilegais entram para dentro do presídio, não é fácil detectá-los. A Brigada Militar realiza buscas uma vez por semana nas galerias. Mas os presos têm tantos recursos que chegam a usar cimento para esconder os produtos nas paredes. E como as paredes são sujas e manchadas, é difícil perceber emplastros de cimento fresco. Em algumas galerias, os presos usam outro artifício: penduram lençóis coloridos nas celas, como se fossem papel de parede.
Além do lucro proveniente do mercado negro, as facções criminosas também ganham dinheiro mantendo um mercado legal dentro do Presídio Central. Eles administram cantinas dentro das galerias, onde os presos compram todos os tipos de produtos, desde sabão para roupas até bolachas. Os presos precisam desse serviço, já que o governo não oferece produtos de limpeza ou higiene e apenas o essencial de comida: arroz, feijão, pão e ovo. Comida que, segundo Silva, não é suficiente para todos e “tem um gosto horrível”. Só que os chefes das facções criminosas definiram que só os plantões podem comprar itens para serem revendidos nas cantinas. E eles devem revender os produtos com um acréscimo de 400% no preço. Parte do lucro fica com a cúpula das facções e parte com os plantões, o que faz do cargo uma opção de carreira um tanto invejada lá dentro. “A verdade é que, para os presidiários que coordenam as galerias, é um bom negócio estar preso”, afirma o repórter Dorneles. “Eles ganham mais dinheiro lá dentro do que ganhariam do lado de fora. E ainda tem direito a vários benefícios, como as suas próprias camas, TV de plasma, freezer e drogas à vontade.”
[olho]”Em buracos de 1 metro por 1,5 metro, dormindo em camas de cimento, os presos convivem em sujeira, mofo e mau cheiro insuportável”[/olho]
Outra forma que as organizações lucram com o Presídio Central é incentivando os presos a continuar trabalhando. Os chefões do crime ganham uma porcentagem sobre qualquer atividade econômica desenvolvida nas galerias. Fernando Marques, 36 anos, que estava cumprindo pena de 104 anos por assalto a mão armada, era um desses “trabalhadores”. Sem nunca deixar os corredores do pavilhão D, ganhava pelo menos R$ 5 mil por mês no ano de 2014 aplicando o “golpe do aluguel”. Ele usava um telefone celular para colocar dois anúncios nos jornais locais. Um anunciava uma vaga para uma secretária; o outro, um apartamento para alugar. Pelo telefone, a secretária era contratada e instruída a ir numa imobiliária pegar a chave de um apartamento específico que estava para alugar. A seguir, era orientada a mostrar o imóvel aos interessados.
Assim que alguma vítima decidisse alugar o apartamento, a secretária recolhia um valor equivalente a um mês de aluguel e repassava o dinheiro para uma comparsa do preso que estava em liberdade. Só mais tarde, quando já estava planejamento a mudança, a vítima se dava conta que o apartamento na verdade não pertencia ao homem com quem tinha negociado pelo telefone. “Ele enganou muita gente até ser preso”, afirma a delegada Carmem Regio, de trás da sua mesa de trabalho na 17ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre. “E a gente só descobriu que ele estava dentro do Presídio Central porque realizamos escutas telefônicas, e percebemos que ele estava sempre no mesmo lugar – bem onde fica o presídio”, afirmou. Assim que o crime foi descoberto, um juiz emitiu um mandado de prisão para Marques – um episódio especialmente esquizofrênico do sistema carcerário brasileiro considerando que o suspeito já estava dentro da cadeia. O criminoso acabou sendo transferido para a prisão de segurança máxima de Charqueadas, onde a Justiça tinha a esperança de que ele não teria mais condições de praticar o golpe. Os seus advogados têm tentado, desde então, a sua transferência de volta para o Presídio Central.
Para Renato Dorneles, esse é um exemplo clássico que explica como o Presídio Central virou uma prisão de mentirinha. “Não existe isolamento porque os presos continuam em contato com o mundo exterior através dos celulares. Não existe prevenção do crime porque eles continuam a vender drogas e cometer crimes do lado de dentro. E não existe reabilitação porque na verdade eles saem muito piores do que entraram”, resume. A solução, segundo ele, seria investir mais na instituição, tanto na infraestrutura quanto no número de policiais (hoje são 3 guardas para cada mil presos, sendo que a recomendação do Conselho Penitenciário Estadual é de 1 para cada 5). Mas o jornalista sabe que a proposta esbarra na opinião de muitos brasileiros que acreditam que o governo não deve gastar dinheiro com criminosos. “O que a população não entende”, explica, “é que ao não investir no Presídio Central, o governo está ajudando a incentivar o crime organizado e as atividades criminais”.
Diante da mesma suspeita, em 2009, a Câmara dos Deputados conduziu uma CPI sobre o sistema carcerário. Após oito meses de investigação, quando os deputados visitaram a maioria das prisões no país, a comissão concluiu que o Brasil tinha 422 mil presos, número que excedia a capacidade dos presídios em 34% (hoje excede em 38%). Os parlamentares ainda advertiram que o Presídio Central era a pior cadeia do Brasil, uma verdadeira masmorra do século 21. “Em buracos de 1 metro por 1,5 metro, dormindo em camas de cimento, os presos convivem em sujeira, mofo e mau cheiro insuportável. Paredes quebradas e celas sem portas, privadas imundas (a água só é liberada uma vez por dia), sacos e roupas pendurados por todo lado… uma visão dantesca, grotesca, surreal, absurda e desumana. Um descaso!”, está escrito no relatório final. Os membros recomendaram que sete pessoas ligadas ao Presídio Central fossem responsabilizadas criminalmente, entre eles Éden Moraes, então diretor da instituição. No fim, a recomendação não foi acatada, mas a repercussão na mídia nacional foi grande.
Outra denúncia contra o Presídio Central se tornou pública em 2012, quando uma inspeção realizada dentro da instituição revelou que a infraestrutura estava consideravelmente danificada. A inspeção foi realizada pela Ordem dos Advogados do Brasil do Rio Grande do Sul (OAB-RS) e pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio Grande do Sul (CREA-RS), preocupados com o estado dos prédios do complexo prisional. O relatório final apontou corrosão e rachaduras nas paredes, fiação elétrica exposta, falta de esgoto encanado e a proliferação de diversos insetos e roedores. O presídio estava em estado crítico, concluíram, e não havia manutenção que pudesse salvar as construções.
Em janeiro de 2013, a questão chegou ao conhecimento internacional. A OAB-RS uniu forças com outras entidades locais, como a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris-RS), e fez uma denúncia formal para a comissão de direitos humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O objetivo era que a organização internacional pressionasse o governo brasileiro a tomar alguma atitude com relação ao Central. Em 2014, a OAB-RS fez outra reclamação, desta vez para o conselho de direitos humanos da ONU (incluindo também o presídio Pedrinhas, do Maranhão). “Como pode o Brasil pleitear um posto permanente no Conselho de Segurança da ONU quando não consegue seguir as recomendações de direitos humanos desta mesma entidade?”, questionou o presidente da OAB-RS, Ricardo Breier, durante uma entrevista no prédio da entidade em Porto Alegre. As reclamações tiveram alguma repercussão. Em março de 2013, a OEA enviou uma carta ao governo brasileiro pedindo que medidas urgentes fossem tomadas para resolver a situação. A presidente Dilma Rousseff, por meio da sua equipe, respondeu dizendo que o governo federal estava “realizando melhorias”. Mas pouco mudou até agora.
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Airton Michels, que é não é particularmente uma pessoa atlética, balançou uma marreta como se fosse um pêndulo com a sua mão direita até bater na parede de tijolos e fazer um estrago considerável. A plateia aplaudiu a cena. “Não é mais possível conviver com uma casa assim”, anunciou, naquela terça-feira, 14 de outubro de 2014. Michels, então secretário Estadual de Segurança, tinha reunido a imprensa no Presídio Central para começar, finalmente, a demolição do velho Casarão. O governador gaúcho de então, Tarso Genro, estava no final do mandato e integrava a linhagem de líderes que haviam prometido destruir o presídio. O objetivo era destruir o pavilhão C (que estava em pior estado) em apenas 30 dias. Logo depois, o pavilhão D seria demolido. O custo estimado para a operação era de R$ 1,1 milhão. Apenas ficariam de pé pavilhões mais novos.
Tendo cumprido a sua missão oficial, Michels entregou a marreta para a equipe de demolição e se aproximou dos repórteres para dar entrevistas. Ele explicou que, em até três meses, restariam apenas 500 detentos no local. “Vamos esvaziar o Presídio Central, mandando presos para outras prisões que estão sendo construídas nesse momento em outras cidades. Tanto que já retiramos 900 presos para começar”, anunciou.
O plano era que a maior parte dos presidiários fossem transferidos para um complexo prisional moderno que seria construído em Canoas com lugar para 2.415 condenados. A construção da instituição, no entanto, encontrou uma série de problemas: o processo de licitação foi lento e conturbado, a rede elétrica da estrutura nunca funcionou e faltou dinheiro para construir a estrada de acesso para o complexo. Outras três prisões que também serviriam para desafogar o Central tiveram problemas semelhantes envolvendo burocracia, falta de recursos e incompetência administrativa. Até hoje, nenhuma das prisões foi inaugurada. Como resultado, os presidiários que haviam sido transferidos do Presídio Central até a marretada de Michels tiveram que voltar para o presídio meses depois. O problema é que, agora, o Casarão tinha um pavilhão a menos, e a cadeia chegou a um recorde de superlotação.
Diante do cenário caótico, a administração do Central e os governos estadual e federal passaram a jogar a culpa um no outro. O juiz Brzuska culpou o governo estadual por precipitar a demolição do pavilhão C. “Foi uma jogada política. Estava terminando o mandato do governador Tarso Genro, e ele queria mostrar que ia cumprir com essa promessa de governo”, ele me disse dentro do seu escritorio. O governo federal também culpou o Estado, dizendo que a instância falhou ao não conseguir construir presídios já aprovados e financiados. “Em 2012, nós fomos forçados a cancelar o financiamento para novos presídios porque o governo estadual não mostrou qualquer iniciativa para construí-los”, afirmou Renato Campos de Vitto, diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em uma reunião que ocorreu no dia 13 de maio de 2015, em Porto Alegre. Enquanto isso, o governo estadual se defendeu na imprensa, dizendo que não teve culpa dos imprevistos. Para Eugênio Couto Terra, presidente da Ajuris-RS, tanto o governo federal quanto o estadual têm culpa nessa história. “O governo federal nem sempre tem o dinheiro que diz ter. Ao mesmo tempo, o Estado é muito lento para encaminhar os recursos que vêm do governo federal, principalmente porque a cada quatro anos muda o governador, e portanto também mudam as prioridades.”
Escola do crime
Aos poucos, Roberto Silva, o homem que foi preso carregando sete trouxinhas de maconha, foi se adaptando ao sistema do Presídio Central e se tornou bem visto entre os presos da sua galeria. No início, Silva foi elogiado porque sabia cozinhar arroz, feijão e frango, habilidades importantes dentro de uma instituição onde a comida fornecida pelo Estado tem um gosto horroroso. Em seguida, foi apontado como um dos secretários do plantão, com a responsabilidade de coordenar a sua cela e os 20 poucos presos que moravam no cubículo. Após alguns meses, Silva passou a usar um facão na cintura e dar as boas-vindas para novos presos, explicando como as coisas funcionavam dentro do xadrez. Como parte desta promoção, ganhou alguns benefícios: podia dormir sozinho em uma cama e conseguiu comprar um telefone celular que usava para ligar para a mãe e a esposa várias vezes ao dia.
Enquanto isso, a esposa de Silva, uma professora de escola pública, ficou cada vez mais preocupada com o marido. “Eu não queria mais pisar naquele lugar. Eu não queria mais olhar para a cara das pessoas que estavam lá. Não queria mais passar pelo que a gente estava passando. Eu não queria mais estar tão sem dinheiro — por causa do custo de vida dentro do presídio. Eu nunca chorei tanto na minha vida”, ela me disse. A sua única esperança era contratar Vladimir Amorim, um advogado que, de acordo com os boatos que corriam nos corredores do Casarão, fazia milagres ao conseguir a liberdade para condenados na mesma situação que Silva. E, melhor ainda, deixava os clientes pagarem pelo seu serviço em prestações.
Amorim era benquisto pelos presos porque ele havia sido um deles. O advogado veio de uma família de classe média baixa e, aos 25 anos, acabou no Presídio Central após atirar em um conhecido. “Todo mundo andava armado naquela época e, no meio de uma discussão, eu acabei atirando no cara. Mas ele sobreviveu, graças a Deus”, ele me disse quando nos encontramos em uma cafeteria. Enquanto estava preso, dividindo o chão da galeria com outros presos para dormir, ele teve uma revelação. “Os presidiários são seres humanos, muitos querem ter uma vida melhor mas não tiveram oportunidade. E porque são tão pobres não conseguem ter acesso a advogados que realmente os ajudam.” Quando foi solto em liberdade condicional, ele fez uma promessa para si mesmo: iria voltar um dia para o Presídio Central como advogado, para ajudar aqueles homens. Aos 28 anos, completou um supletivo de Ensino Médio e passou no vestibular de direito da Ulbra, uma faculdade privada situada em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Demorou oito anos para conseguir pagar todas as cadeiras da faculdade e finalmente se formar.
Desde que começou a trabalhar como advogado, seu foco tem sido ajudar presos como Roberto Silva, pessoas simples que estão no Presídio Central cumprindo pena por tráfico, ou seja, 76% da população da instituição. “Em geral, estavam carregando uma quantidade pequena de drogas para uso pessoal e ainda assim foram considerados traficantes”, afirma. De acordo com Amorim, os juízes estão acostumados a tomar essas decisões com base na cor e classe social dos acusados. “Tu pode carregar uma certa quantidade de maconha se for rico e tiver estudado. Eles vão te considerar consumidor, e a pena é mínima. Mas se tu tiver a mesma quantidade de maconha e for pobre, preto e morar na favela, eles vão te enquadrar como traficante. E tu vai preso.” Essa tendência ficou pior com a nova legislação de drogas do Brasil, que deixou menos clara as definições para consumidor e traficante, dando aos juízes mais poder de decisão com relação às sentenças. Os números são impressionantes: desde 2005, quando a nova legislação entrou em vigor, a população carcerária do Brasil aumentou 66%, de acordo com números divulgados pelo governo federal.
Quando Amorim assumiu o caso de Silva, outros advogados já tinham tentado pedir a sua liberdade condicional, sem sucesso. Amorim resolveu levar o caso até a máxima instancia possível, o Supremo Tribunal Federal (STF). E, para a surpresa de todos, o juiz Luis Roberto Barroso não apenas decidiu a favor da sua liberdade, como usou o seu caso para exemplificar um problema ainda maior do sistema carcerário brasileiro. Ele escreveu cinco páginas justificando porque que alguém como Silva não deveria estar vivendo no Central. Em um dos parágrafos, relata:
No atual sistema prisional brasileiro, enviar jovens, geralmente primários, para o cárcere, em razão do tráfico de quantidades não significativas de maconha, não traz benefícios à ordem pública. Pelo contrário, a degradação a que os detentos são submetidos na grande maioria dos estabelecimentos e a ausência de separação dos internos entre primários e reincidentes e entre provisórios e condenados, transformam os presídios em verdadeiras “escolas do crime”. Presos que cometeram ou são acusados de ter cometido crimes de menor potencial lesivo passam a ter conexões com outros criminosos mais perigosos, são arregimentados por facções e frequentemente voltam a delinquir após saírem das prisões.
No dia 8 de maio de 2015, o STF ordenou que Silva fosse solto imediatamente. A decisão foi um prelúdio do que viria a seguir. Vendo casos como o de Roberto Silva com frequência, em agosto de 2015 os juízes do STF começaram uma votação sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Até agora, três ministros já defenderam que o consumo próprio de maconha não deveria ser crime. Mas a votação foi interrompida quando o ministro Teori Zavascki pediu vista ao processo.
Dentro do Presídio Central, Silva foi surpreendido pela boa notícia. “Eu fiquei tão feliz que comecei a gritar dentro da galeria que eu estava indo embora e que nunca mais iria voltar”, lembra. Silva saiu pela porta da frente e abraçou a mulher. Agora, relendo a decisão do STF na minha frente, ele se emociona. “O juiz estava certo. Se eu tivesse ficado no presídio um pouco mais, eu não sei no que teria me tornado. Provavelmente eu sairia um dia com sede de vingança e iria atrás do cara que pediu para eu comprar drogas para ele naquele dia. E daí, não teria mais volta”, disse. Silva agora aguarda o seu julgamento em liberdade. Desde que saiu, conseguiu um emprego em uma lanchonete com um amigo, e depois de alguns meses voltou a trabalhar como operador de empilhadeira para uma grande empresa. Mas ele vive com o peso de saber que talvez ainda tenha de voltar para a prisão. E o Presídio Central talvez ainda esteja de pé, pronto para recebê-lo de braços abertos.
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Esta reportagem foi produzida originalmente pelo Bang e editada pela Agência Fronteira em parceria com o Risca Faca.
O filme “Joy” começa com um aviso que diz algo como: “A todas as mulheres corajosas (talvez o adjetivo não seja esse. Mas insira aqui uma característica positiva que está valendo) do mundo. Essa é a história de uma delas”. Parece um bom prenúncio em uma temporada de filmes predominantemente masculinos — “Spotlight”, “A Grande Aposta”, “Os Oito Odiados”, “O Regresso”, “Creed”. Maravilha, veremos uma história bem contada sobre uma mulher? Não é bem isso que vem pela frente. Mas o filme foi indicado como melhor comédia no Globo de Ouro, então pelo menos dá pra rir, certo? Quem dera. Talvez tenha uma boa história para ser contada sobre Joy Mangano, criadora de um esfregão milagroso, mas certamente não é a que está no filme. “Joy”, que estreia no dia 21, é tão desinteressante que o melhor contexto para assistir a ele é num avião, pra matar o tempo antes de dormir.
Jennifer Lawrence, de novo em parceria com o diretor David O. Russell, estava cotada para o Oscar antes que qualquer um tivesse assistido ao filme — o que é uma maluquice, ainda que a previsão estivesse certa. Mas sua escalação para o papel de Joy, na verdade, é um equívoco. Não que Lawrence não esteja bem. Só que é esquisitíssimo ver alguém dizer para a atriz de 25 anos que ela não tem a vida toda pela frente, “só alguns bons anos”.
Joy é uma mulher divorciada, que não foi à faculdade para ajudar os pais a tocar a vida depois da separação deles, com dois filhos que tem dificuldade para sustentar e que tem pesadelos (literalmente, falta muita sutileza ao filme) sobre como sua vida foi desperdiçada. Difícil de comprar vendo alguém de 25 anos na tela. Difícil de vender também, apesar de Lawrence ganhar pontos (e prêmios, como o Globo de Ouro) pela tentativa.
Mas esse não é o principal problema do filme. Lawrence já viveu mulheres mais velhas nos filmes de O. Russell – “O Lado Bom da Vida” e “Trapaça”, ambos melhores que “Joy”. O problema é o roteiro, com personagens profundos como um pires. A meia-irmã de Joy é uma chata que implica com ela aparentemente sem motivo (se o cinema é cheio de “bromances” e grandes amizades masculinas, o mesmo não se pode dizer de parcerias entre mulheres, quase sempre rivais), a mãe passa o dia no quarto vendo novela sabe-se lá por que, a avó só está no filme para fazer uma narração hiper cafona que serve de muleta para o diretor. Lá pelas tantas aparece Bradley Cooper num papel que não vai a lugar nenhum. Robert De Niro também está lá para fazer um discurso de “não sei por que deixei você acreditar que era mais que uma dona de casa” para a própria filha sem que entendamos o motivo da crueldade.
Joy é uma inventora desde pequena, como o filme não para de jogar na sua cara. A avó, narradora, reforça esse ponto constantemente e mais de uma vez vemos um flashback da pequena Joy construindo uma fazenda de papel e dizendo que não precisa de um príncipe, só de suas invenções, como se não desse pra ter tudo na vida. Quando finalmente ela cria o esfregão, o filme deixa um pouco sua família de lado e se volta para as dificuldades de uma mulher entrar no mundo dos negócios. Parece que vai deslanchar, mas é uma esperança vã. Tudo dá errado, até o momento em que Joy corta os próprios cabelos em frente ao espelho (alerta de clichê) e os problemas se resolvem magicamente. Nada como um bom cabelo curto para conferir força e determinação a alguém.
A mensagem é que se você realmente quiser algo e persistir, vai dar certo. Nem sempre é assim. O filme tem bons momentos aqui e ali, mas não passa muito disso. O esfregão, pelo menos, é bom. “Joy” seria excelente se fosse uma propaganda: se você não tem um desses em casa, ele te convence a comprar.
Em uma longa entrevista dada à revista New York no ano passado, Quentin Tarantino deu uma declaração polêmica sobre os filmes que disputam o Oscar hoje em dia: “Eles são bons, mas não sei se eles têm a permanência que uns filmes dos anos 90 ou 70 tinham (…). Metade desses filmes da Cate Blanchett — são essas coisas ‘de arte’. Não estou dizendo que são ruins, mas não sei se eles são longevos ”. Concorde-se ou não com a afirmação, é essa a impressão que deixa “Carol”, filme de Todd Haynes com Cate Blanchett que estreia nesta quinta (14) nos cinemas.
Baseado em um livro de Patricia Highsmith, “Carol” é lindo. Para usar o termo de Tarantino, é mesmo um filme “de arte”. Tudo em “Carol” é muito bonito: os figurinos do início dos anos 1950, a trilha sonora, os enquadramentos. Cada cena parece uma fotografia. Dá pra dizer o mesmo da história: é bonita. Carol (Cate Blanchett) está se divorciando do marido, Harge (Kyle Chandler), quando seu olhar cruza com o da vendedora Therese (Rooney Mara) numa loja de departamentos, perto do Natal. Naquele primeiro encontro é possível ver o encantamento de uma pela outra, ainda que Therese não saiba direito o que aquilo significa. É um belo começo para uma história de amor.
Apesar de o filme se chamar “Carol”, é bem mais uma história de Therese. Carol é uma mulher segura e já tinha se relacionado com uma amiga de infância, informação que o marido usa ao seu favor no processo de separação para conseguir a guarda da filha. Já Therese é bem mais nova, nunca se apaixonou e não sabe muito bem o que quer. Namora um rapaz apaixonado por ela apesar de não sentir o mesmo, trabalha numa loja sonhando em ser fotógrafa, mas não tem coragem de montar um portfólio com seu trabalho. Therese anda sem rumo, dizendo sim para tudo e sem tomar as rédeas da própria vida, até que Carol aparece.
(Aliás, um pequeno parêntese. Não faz sentido que Rooney Mara esteja na disputa pelo Oscar de atriz coadjuvante, já que ela é no mínimo tão protagonista quanto Cate Blanchett. É até mais, mas vamos dar uma colher de chá para o estúdio, que não quis colocá-la para concorrer diretamente com a colega – sabiamente, o Globo de Ouro não caiu nesse papo e indicou as duas a melhor atriz em filme de drama.)
Como a fotografia, tudo no filme é meticuloso, pensado. A história se desenvolve lentamente (talvez um pouco devagar de mais) e é tudo bastante sutil, quase frio de tão delicado. Depois de conversar brevemente com Therese, Carol deixa um par de luvas sobre o balcão, que a vendedora, com o endereço da cliente em mãos, logo devolve. Carol agradece com um convite para um almoço, que se desdobra em uma visita a sua casa, outra visita e, por fim, uma viagem de carro pelos Estados Unidos.
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Demora para que algo aconteça realmente entre elas e o público acompanha o início do relacionamento quase em tempo real, sentindo a tensão crescente entre as duas. Mesmo quando a tensão se concretiza não tem aquele momento épico de filmes românticos, com a declaração às lágrimas, a corrida para impedir que a pessoa entre no avião ou a perseguição de carro. “Carol” é um filme calmo e a faísca entre Therese e Carol nunca chega a virar fogo.
Essa sutileza toda exige boas atuações para que o filme dê certo. “Carol” seria bem chato se a dupla não fosse boa como é. Mara e Blanchett estão perfeitas e conseguem transmitir muito com poucas palavras e gestos contidos. Rooney Mara é uma figura bem peculiar, de fala baixa, sorrisos tímidos, maquiagem escura e roupas com um quê de fantasmagórico. O papel da contida e ingênua Therese é feito sob medida para ela. E Cate Blanchett nasceu para interpretar mulheres ricas e elegantes — parece saída direto da casa de Carol nos anos 1950.
Aí voltamos para a declaração de Tarantino. “Carol” é sim um filme bonito, “de arte”, e também é um filme bom. Mas lembraremos dele em 20 anos? Talvez seja injusto fazer essa pergunta, porque no fim do ano, quando se faz listas dos melhores filmes dos últimos 12 meses, percebe-se que pouca coisa é realmente memorável — é o caso de outro favorito ao Oscar, “Spotlight”, também legal, porém não incrível. Mas, no fim das contas, “Carol” é meio assim: é bom, é lindo de se ver, mas falta aquela sensação de “uau” saindo do cinema que os filmes longevos costumam deixar.