Airton Michels, que é não é particularmente uma pessoa atlética, balançou uma marreta como se fosse um pêndulo com a sua mão direita até bater na parede de tijolos e fazer um estrago considerável. A plateia aplaudiu a cena. “Não é mais possível conviver com uma casa assim”, anunciou, naquela terça-feira, 14 de outubro de 2014. Michels, então secretário Estadual de Segurança, tinha reunido a imprensa no Presídio Central para começar, finalmente, a demolição do velho Casarão. O governador gaúcho de então, Tarso Genro, estava no final do mandato e integrava a linhagem de líderes que haviam prometido destruir o presídio. O objetivo era destruir o pavilhão C (que estava em pior estado) em apenas 30 dias. Logo depois, o pavilhão D seria demolido. O custo estimado para a operação era de R$ 1,1 milhão. Apenas ficariam de pé pavilhões mais novos.
Tendo cumprido a sua missão oficial, Michels entregou a marreta para a equipe de demolição e se aproximou dos repórteres para dar entrevistas. Ele explicou que, em até três meses, restariam apenas 500 detentos no local. “Vamos esvaziar o Presídio Central, mandando presos para outras prisões que estão sendo construídas nesse momento em outras cidades. Tanto que já retiramos 900 presos para começar”, anunciou.
O plano era que a maior parte dos presidiários fossem transferidos para um complexo prisional moderno que seria construído em Canoas com lugar para 2.415 condenados. A construção da instituição, no entanto, encontrou uma série de problemas: o processo de licitação foi lento e conturbado, a rede elétrica da estrutura nunca funcionou e faltou dinheiro para construir a estrada de acesso para o complexo. Outras três prisões que também serviriam para desafogar o Central tiveram problemas semelhantes envolvendo burocracia, falta de recursos e incompetência administrativa. Até hoje, nenhuma das prisões foi inaugurada. Como resultado, os presidiários que haviam sido transferidos do Presídio Central até a marretada de Michels tiveram que voltar para o presídio meses depois. O problema é que, agora, o Casarão tinha um pavilhão a menos, e a cadeia chegou a um recorde de superlotação.
Diante do cenário caótico, a administração do Central e os governos estadual e federal passaram a jogar a culpa um no outro. O juiz Brzuska culpou o governo estadual por precipitar a demolição do pavilhão C. “Foi uma jogada política. Estava terminando o mandato do governador Tarso Genro, e ele queria mostrar que ia cumprir com essa promessa de governo”, ele me disse dentro do seu escritorio. O governo federal também culpou o Estado, dizendo que a instância falhou ao não conseguir construir presídios já aprovados e financiados. “Em 2012, nós fomos forçados a cancelar o financiamento para novos presídios porque o governo estadual não mostrou qualquer iniciativa para construí-los”, afirmou Renato Campos de Vitto, diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em uma reunião que ocorreu no dia 13 de maio de 2015, em Porto Alegre. Enquanto isso, o governo estadual se defendeu na imprensa, dizendo que não teve culpa dos imprevistos. Para Eugênio Couto Terra, presidente da Ajuris-RS, tanto o governo federal quanto o estadual têm culpa nessa história. “O governo federal nem sempre tem o dinheiro que diz ter. Ao mesmo tempo, o Estado é muito lento para encaminhar os recursos que vêm do governo federal, principalmente porque a cada quatro anos muda o governador, e portanto também mudam as prioridades.”
Escola do crime
Aos poucos, Roberto Silva, o homem que foi preso carregando sete trouxinhas de maconha, foi se adaptando ao sistema do Presídio Central e se tornou bem visto entre os presos da sua galeria. No início, Silva foi elogiado porque sabia cozinhar arroz, feijão e frango, habilidades importantes dentro de uma instituição onde a comida fornecida pelo Estado tem um gosto horroroso. Em seguida, foi apontado como um dos secretários do plantão, com a responsabilidade de coordenar a sua cela e os 20 poucos presos que moravam no cubículo. Após alguns meses, Silva passou a usar um facão na cintura e dar as boas-vindas para novos presos, explicando como as coisas funcionavam dentro do xadrez. Como parte desta promoção, ganhou alguns benefícios: podia dormir sozinho em uma cama e conseguiu comprar um telefone celular que usava para ligar para a mãe e a esposa várias vezes ao dia.
Enquanto isso, a esposa de Silva, uma professora de escola pública, ficou cada vez mais preocupada com o marido. “Eu não queria mais pisar naquele lugar. Eu não queria mais olhar para a cara das pessoas que estavam lá. Não queria mais passar pelo que a gente estava passando. Eu não queria mais estar tão sem dinheiro — por causa do custo de vida dentro do presídio. Eu nunca chorei tanto na minha vida”, ela me disse. A sua única esperança era contratar Vladimir Amorim, um advogado que, de acordo com os boatos que corriam nos corredores do Casarão, fazia milagres ao conseguir a liberdade para condenados na mesma situação que Silva. E, melhor ainda, deixava os clientes pagarem pelo seu serviço em prestações.
Amorim era benquisto pelos presos porque ele havia sido um deles. O advogado veio de uma família de classe média baixa e, aos 25 anos, acabou no Presídio Central após atirar em um conhecido. “Todo mundo andava armado naquela época e, no meio de uma discussão, eu acabei atirando no cara. Mas ele sobreviveu, graças a Deus”, ele me disse quando nos encontramos em uma cafeteria. Enquanto estava preso, dividindo o chão da galeria com outros presos para dormir, ele teve uma revelação. “Os presidiários são seres humanos, muitos querem ter uma vida melhor mas não tiveram oportunidade. E porque são tão pobres não conseguem ter acesso a advogados que realmente os ajudam.” Quando foi solto em liberdade condicional, ele fez uma promessa para si mesmo: iria voltar um dia para o Presídio Central como advogado, para ajudar aqueles homens. Aos 28 anos, completou um supletivo de Ensino Médio e passou no vestibular de direito da Ulbra, uma faculdade privada situada em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Demorou oito anos para conseguir pagar todas as cadeiras da faculdade e finalmente se formar.
Desde que começou a trabalhar como advogado, seu foco tem sido ajudar presos como Roberto Silva, pessoas simples que estão no Presídio Central cumprindo pena por tráfico, ou seja, 76% da população da instituição. “Em geral, estavam carregando uma quantidade pequena de drogas para uso pessoal e ainda assim foram considerados traficantes”, afirma. De acordo com Amorim, os juízes estão acostumados a tomar essas decisões com base na cor e classe social dos acusados. “Tu pode carregar uma certa quantidade de maconha se for rico e tiver estudado. Eles vão te considerar consumidor, e a pena é mínima. Mas se tu tiver a mesma quantidade de maconha e for pobre, preto e morar na favela, eles vão te enquadrar como traficante. E tu vai preso.” Essa tendência ficou pior com a nova legislação de drogas do Brasil, que deixou menos clara as definições para consumidor e traficante, dando aos juízes mais poder de decisão com relação às sentenças. Os números são impressionantes: desde 2005, quando a nova legislação entrou em vigor, a população carcerária do Brasil aumentou 66%, de acordo com números divulgados pelo governo federal.
Quando Amorim assumiu o caso de Silva, outros advogados já tinham tentado pedir a sua liberdade condicional, sem sucesso. Amorim resolveu levar o caso até a máxima instancia possível, o Supremo Tribunal Federal (STF). E, para a surpresa de todos, o juiz Luis Roberto Barroso não apenas decidiu a favor da sua liberdade, como usou o seu caso para exemplificar um problema ainda maior do sistema carcerário brasileiro. Ele escreveu cinco páginas justificando porque que alguém como Silva não deveria estar vivendo no Central. Em um dos parágrafos, relata:
No atual sistema prisional brasileiro, enviar jovens, geralmente primários, para o cárcere, em razão do tráfico de quantidades não significativas de maconha, não traz benefícios à ordem pública. Pelo contrário, a degradação a que os detentos são submetidos na grande maioria dos estabelecimentos e a ausência de separação dos internos entre primários e reincidentes e entre provisórios e condenados, transformam os presídios em verdadeiras “escolas do crime”. Presos que cometeram ou são acusados de ter cometido crimes de menor potencial lesivo passam a ter conexões com outros criminosos mais perigosos, são arregimentados por facções e frequentemente voltam a delinquir após saírem das prisões.
No dia 8 de maio de 2015, o STF ordenou que Silva fosse solto imediatamente. A decisão foi um prelúdio do que viria a seguir. Vendo casos como o de Roberto Silva com frequência, em agosto de 2015 os juízes do STF começaram uma votação sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Até agora, três ministros já defenderam que o consumo próprio de maconha não deveria ser crime. Mas a votação foi interrompida quando o ministro Teori Zavascki pediu vista ao processo.
Dentro do Presídio Central, Silva foi surpreendido pela boa notícia. “Eu fiquei tão feliz que comecei a gritar dentro da galeria que eu estava indo embora e que nunca mais iria voltar”, lembra. Silva saiu pela porta da frente e abraçou a mulher. Agora, relendo a decisão do STF na minha frente, ele se emociona. “O juiz estava certo. Se eu tivesse ficado no presídio um pouco mais, eu não sei no que teria me tornado. Provavelmente eu sairia um dia com sede de vingança e iria atrás do cara que pediu para eu comprar drogas para ele naquele dia. E daí, não teria mais volta”, disse. Silva agora aguarda o seu julgamento em liberdade. Desde que saiu, conseguiu um emprego em uma lanchonete com um amigo, e depois de alguns meses voltou a trabalhar como operador de empilhadeira para uma grande empresa. Mas ele vive com o peso de saber que talvez ainda tenha de voltar para a prisão. E o Presídio Central talvez ainda esteja de pé, pronto para recebê-lo de braços abertos.
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Esta reportagem foi produzida originalmente pelo Bang e editada pela Agência Fronteira em parceria com o Risca Faca.