“Nunca soube o que queria ser quando crescer e, até hoje, não sei”, disse Elke Maravilha aos 70 anos, em 2015, em entrevista ao Extra. Elke, que morreu na madrugada da última terça (16), aos 71 anos, foi um pouco de tudo na vida: tradutora, professora, modelo, atriz e jurada em programas de televisão, como o do Chacrinha. Na vida pessoal tampouco era convencional. Nascida na Rússia com o nome Elke Georgievna Grunnupp (o Maravilha veio de um jornalista), teve a cidadania cassada. Também perdeu a nacionalidade brasileira ao ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional, depois de passar seis dias presa por desacato na época da ditadura. Apátrida, viajava com um passaporte da ONU e morreu alemã, como sua mãe.
Elke não tinha problemas em falar de política, drogas ou sexo. Disse em entrevista que fumou crack, contou ao mundo todo que abortou três gestações, casou-se oito vezes e, quando lhe perguntavam se era travesti, respondia que sim e ainda perguntava se queriam ver seu pau. Entendia porque perguntavam se ela era uma drag queen: dizia que mulheres pedem sempre “menos” nos salões de beleza, e travestis pedem “mais”. Mais maquiagem, mais volume, mais tudo. “Então, eles veem uma pessoa que é mais… Tem que ser homem.”
Mesmo quem não sabe detalhes de sua história sabe que Elke era artista — assim mesmo, de forma ampla — e que tinha um visual único, reconhecível à distância. Sua imagem foi eternizada nos anos 70 pelas lentes de David Drew Zingg, fotógrafo de quem ficou amiga quando trabalhava como modelo. “O David enxergava a alma da gente”, disse Elke. “Ele tinha um humor deslumbrante. Viajávamos para Búzios e ficávamos dias enchendo a cara e rindo juntos.” Zingg fotografou Elke como Marilyn Monroe e também com seu visual característico: cabelos loiros volumosos, esvoaçantes e alegre, como ela sempre será lembrada.
As imagens foram cedidas com autorização pelo IMS.
Na próxima semana Lin-Manuel Miranda e boa parte de seus companheiros de elenco deixam o musical “Hamilton”, em cartaz na Broadway há cerca de um ano. Mesmo que você estivesse em Nova York até lá, as chances de colocar as mãos num ingresso para o espetáculo seriam próximas de zero. Não só os valores são altíssimos (um recorde de US$ 849 pelo ingresso mais caro) como os poucos ingressos são disputados a tapa. Mas de alguma forma, apesar de toda essa exclusividade, o frisson em torno de “Hamilton” saiu da Broadway, de Nova York, dos Estados Unidos, e atingiu até pessoas que nunca viram um musical na vida e nem gostam particularmente do gênero. É um fenômeno — e felizmente pode ser aproveitado mesmo por quem não for ao teatro.
Para entender o sucesso de “Hamilton” é necessário conhecer seu criador. Lin-Manuel Miranda trabalhava como professor de inglês na escola em que estudou quando começou a escrever seu primeiro musical, “In the Heights”, que usava o hip hop para contar a história de uma comunidade latina em Nova York. O espetáculo de 2008, que vai virar filme e teve uma versão no Brasil anos atrás, ganhou quatro prêmios Tony, o mais importante do teatro. Foi o suficiente para colocar Miranda no mapa. No ano seguinte, ele foi chamado à Casa Branca para se apresentar numa noite de poesia e música. “Estou muito feliz por a Casa Branca ter me chamado para hoje. Estou trabalhando num disco de hip hop, conceitual, sobre alguém que acho que encarna o hip hop: o Secretário do Tesouro Alexander Hamilton. Vocês riem, mas é verdade!”, disse ele na ocasião.
Miranda havia comprado uma biografia de Hamilton num aeroporto para levar numa viagem e não conseguiu mais largá-la. A história de Hamilton, um dos pais fundadores dos Estados Unidos e autor de vários artigos de “O Federalista”, era, para ele, puro hip hop. Foi graças à escrita que Hamilton conseguiu sair do Caribe, onde levava uma vida pobre, ir para Nova York e se tornar braço-direito de George Washington. Com isso em mente, Miranda escreveu uma primeira música. Só por ela dá para ter uma ideia do que é o musical “Hamilton”, e como é possível aproveitá-lo sem ir à Broadway. Veja a cara do Obama.
Lin-Manuel Miranda, 36, nasceu em Nova York, filho de porto-riquenhos e, já na faculdade, fez parte de um grupo de hip hop chamado Freestyle Love Supreme. Sua capacidade de improvisação é impressionante e documentada em vários vídeos — de aparições em talk shows até em discursos de agradecimento ao receber prêmios. No programa de Jimmy Fallon, competiu com um dos membros do grupo The Roots numa batalha de freestyle e conseguiu misturar as palavras “dinossauro”, “torta de abóbora” e “Darth Vader” em um rap curto. Dê duas palavras para ele e ganhe uma canção. Miranda tem o pensamento rápido e, como Hamilton, é hábil com as palavras. Não só no rap — recitou um soneto escrito naquele dia ao receber um Tony semanas atrás, falando do atentado em Orlando e de sua família numa tacada só.
Ganhador do Prêmio para Gênios da Fundação MacArthur no valor de US$ 625 mil (para o qual não se candidata, se é escolhido), Miranda escreveu uma canção para o sétimo episódio de “Star Wars”, está fazendo a trilha sonora da animação da Disney “Moana” e fará parte do elenco de uma nova versão de “Mary Poppins”, com Emily Blunt. Do jeito que as coisas andam, é um forte candidato a completar o grand slam das artes, o EGOT — que significa levar prêmios no Emmy, Grammy, Oscar e Tony (ele venceu o Emmy em 2014 por uma música escrita para a cerimônia do Tony). Em breve será muito difícil escapar de Miranda, mesmo para quem não tem o menor interesse em teatro.
Mas voltemos a “Hamilton” e à primeira apresentação para os Obama. Naquela época, o musical não era nem um embrião e o conceito de um espetáculo em hip hop sobre Hamilton era no mínimo esquisito. “Sete anos atrás um jovem rapaz veio a um evento de poesia que Michelle e eu organizamos na Casa Branca”, disse Barack Obama ao apresentar o musical no Tony neste mês. “Ele estava trabalhando num projeto sobre a vida de alguém que representava o hip hop: o primeiro Secretário do Tesouro americano, Alexander Hamilton”, completou Michelle. “Eu confesso que dei risada. Quem está rindo agora? ‘Hamilton’ virou não só um sucesso, mas uma aula de cívica da qual nossas crianças não se cansam”, disse o presidente americano, fã do musical. Anos depois daquela primeira visita, Lin-Manuel Miranda se apresentou de novo para os Obama na Casa Branca, acompanhado por seu elenco, e cantou a mesma música, dessa vez no arranjo que se tornou conhecido.
Nessa segunda visita, “Hamilton” já era uma realidade, um musical que estreou na Broadway em agosto de 2015 e vendeu perto de US$ 30 milhões em ingressos mesmo antes de abrir por lá — tinha tido uma temporada no circuito fora da Broadway antes. Neste ano, recebeu 16 indicações ao Tony, um recorde, e levou 11 troféus para casa, incluindo melhor musical, ator (Leslie Odom Jr.), ator coadjuvante (Daveed Diggs) e atriz coadjuvante (Renée Elise Goldsberry). Também levou um Pulitzer e um Grammy.
“Hamilton” é um sucesso de público, arrasa-quarteirão em premiações e também queridinho da crítica. Um exemplo, do New York Times. O texto, com o título “Hamilton: jovens rebeldes mudando a história e o teatro”, começa com a frase “sim, é tão bom assim”. “Reluto em dizer às pessoas que coloquem suas casas na hipoteca e aluguem suas crianças para conseguir ingressos para um hit da Broadway. Mas ‘Hamilton’, dirigido por Thomas Kail e estrelado pelo Sr. Miranda, talvez valha isso — pelo menos para quem quiser provas de que os musicais americanos não estão só sobrevivendo, mas também evoluindo de formas que devem permitir que eles prosperem e se transformem nos próximos anos”, escreveu o crítico Ben Brantley na estreia.
Com os poucos trechos de apresentações disponíveis na internet, em premiações como o Grammy e o Tony, dá para ter uma ideia de como os figurinos e coreografias impressionam, mas só as músicas de “Hamilton”, disponíveis no Spotify, valem a pena. São canções que poderiam tocar no rádio, misto de rap, balada e músicas pop que estariam no repertório de Beyoncé, executadas por um elenco e tanto (Daveed Diggs canta a música mais rápida da história da Broadway, “Guns and Ships”, com 6,3 palavras ditas por segundo, e Renée Elise Goldsberry não fica atrás em habilidade com a linda “Satisfied”). As canções são tão boas que a Atlanticelegeu o disco como o melhor de 2015. Não o melhor disco de trilha sonora. O melhor disco do ano, em qualquer gênero, de qualquer artista. E como o espetáculo é praticamente todo cantado, com poucos diálogos, ouvir o álbum inteiro é uma experiência próxima de ir ao teatro (quer dizer, falando como alguém que não foi ao teatro, é bom deixar claro. Pode ser ilusão, claro, mas é a sensação que fica).
Miranda chegou a passar um ano compondo uma só música, “My Shot” (“Hamilton é tão mais inteligente que eu. Essa é a música em que ele entra na sala e impressiona todo o mundo com a força da sua oratória. Todo verso tem que ser incrível”, disse ele), e o esmero é perceptível. O Wall Street Journal criou até um algoritmo para analisar os versos, constatando diferentes tipos de rimas e paralelos com músicas de artistas como Kendrick Lamar e Lauryn Hill. Tudo isso enquanto constrói personagens complexos como Aaron Burr, o antagonista, e Angelica Schuyler, que se apaixona por Hamilton e abre mão dele por causa de sua irmã, Eliza — gaste alguns minutos escutando “Helpless” e “Satisfied” na sequência, com as letras em mãos e os comentários de Lin-Manuel Miranda, mostrando as inspirações por trás de cada verso e suas bases em documentos históricos (sim, você ainda sai tendo aprendido alguma coisa. Dois pelo preço de um).
Soma-se à qualidade do trabalho de Lin-Manuel Miranda a modernidade do musical. Alexander Hamilton viveu de 1755 a 1804, mas em tempos de grandes discussões sobre imigração mundo afora — e particularmente nos Estados Unidos de Donald Trump –, “Hamilton” traz algumas lições importantes (“Imigrantes, nós fazemos o trabalho”, diz um verso). “É uma lembrança de que os imigrantes construíram este país, seguidas vezes, repetidamente, ao longo de seus cerca de 200 anos. Alexander Hamilton foi uma das primeiras histórias disso”, disse Miranda à Folha. “Acredito que, dada a retórica anti-imigrante que está meio que dando as cartas nessa temporada eleitoral, é bom ter algo para lembrar que o cara que construiu o nosso sistema financeiro não havia nascido aqui [risos]. É um contrapeso a essa narrativa.” Suas letras falam de feminismo, ativismo, preconceito. Escolha um tema do noticiário e provavelmente encontrará algum paralelo no musical.
Para contar essa história, Lin-Manuel Miranda selecionou um elenco com negros, latinos e descendentes de asiáticos para interpretar personagens brancos. “Nosso elenco tem a cara da América de hoje e é certamente intencional”, disse ele ao New York Times. “É uma forma de te puxar para dentro da história e de permitir que você deixe qualquer bagagem cultural que tenha sobre os pais fundadores na porta. Hollywood tem muito a aprender com “Hamilton.”
Antes de deixar o elenco, Lin-Manuel Miranda filmará duas apresentações de “Hamilton” com o elenco original, inclusive com membros que já deixaram a produção, caso de Jonathan Groff (que também fez “Glee”). Ele ainda não sabe o que fazer com as gravações, nem dá para saber se algum dia as veremos. Pode ser também que um dia “Hamilton” vire filme, como tantos outros musicais da Broadway, mas segundo Miranda isso é coisa para daqui uns 20 anos. Por enquanto, já ajuda o fato de termos as músicas disponíveis. “Hamilton” é um fenômeno (não à toa ajudou a manter o rosto de Alexander Hamilton na nota de dez dólares). Vale cada segundo.
A poucos metros um do outro, dois restaurantes na Faria Lima, em São Paulo, fazem um uso curioso de aspas em seus letreiros. “Por uma alimentação mais saudável”, diz um. “Grande variedade” de lanches, diz o outro. O uso de aspas em contextos esquisitos está em todos os cantos: nas placas nas ruas, em comunicados de condomínio nas paredes de elevadores, em posts nas redes sociais (como aquele do Neymar, desejando “parabéns” para o filho), em textos no jornal (Pergunta Delfim Netto em sua coluna: “Alguém duvida da importância da ‘cultura’ na construção de uma sociedade civilizada?”). Erros de aspas são comuns, mas há mais usos para a pontuação do que mostrar ironia – esse sentido, aliás, é recente se considerarmos a longa vida das aspas.
A história do sinal de pontuação começa antes de Cristo, na Grécia — pelo menos até onde se tem registro e pode-se afirmar com certeza. “Eles usavam aquela marquinha como uma flecha na margem dos manuscritos da Grécia antiga para chamar a atenção para algo (como uma flecha faz), às vezes como um sinal de que algo era corrupto, duvidoso, ou que precisava de algum tipo de atenção”, conta Ruth Finnegan, autora do livro “Why Do We Quote? The Culture and History of Quotation”, em que revê a origem das aspas.
Desde então, as aspas ganharam um monte de usos. Alguns deles, enumerados por Ruth: destacar, dar dignidade, conferir autoridade, ligar quem escreve a algo, afastar o autor do que ele está dizendo (“não sou eu quem estou falando, só estou passando adiante”), marcar diálogos (um uso mais recente, de dois séculos para cá) e citações de outras pessoas (muito utilizado na academia) e mostrar ironia.
Em inglês existe, inclusive, um termo específico para as aspas irônicas: são as scare quotes, definidas pelo dicionário Merriam-Webster como “aspas usadas para expressar ceticismo ou escárnio a respeito do uso da palavra ou frase dentro delas”. Nem todas as aspas seriam do tipo scare. Escreve Merrill Perlman, que trabalhou 25 anos no jornal The New York Times, onde chefiava os redatores: “Nem toda aspa que contém uma ou duas palavras é uma ‘scare quote’, claro. Às vezes essas aspas curtas são utilizadas para destacar um termo em discussão. Às vezes são usadas para apresentar um termo não muito familiar”. Aspas podem, por exemplo, destacar uma palavra usada fora do contexto, um neologismo, um estrangeirismo.
Para entender o significado da aspa, contexto é importante, diz Merill, que hoje trabalha no departamento de jornalismo da Universidade de Columbia, em Nova York. Exemplo: se em uma reportagem um jornalista escreve que Fulano ficou “embasbacado” com algo, há duas interpretações possíveis. O autor pode ter colocado a palavra entre aspas para mostrar que aquele foi exatamente o termo usado pelo entrevistado ou para mostrar um estranhamento com a palavra — como se Fulano não estivesse ou não devesse estar embasbacado. “Se o contexto não é claro, a mensagem não vai ser clara. Uma razão para evitar aspas para uma só palavra é que há uma possível confusão”, diz Merill. “Na maior parte das vezes, na minha visão, autores usam aspas em uma palavra para resolver um problema, quando não conseguem pensar numa forma de usar mais palavras. É resolver um problema às custas do leitor.”
Se um restaurante diz que serve comida “saudável”, então, o contexto diz que é pouco provável que haja alguma ironia aí — o restaurante quer enfatizar que sua comida faz bem à saúde. Não quer dizer que não seja esquisito. “A Sociedade Americana de Redatores mostra um slide no seu treinamento de uma placa que oferece comida ‘fresca’. Não sei se é uma falta de compreensão do que uma aspa de uma palavra só deva ser, ou uma tentativa de destacar algo quando nenhuma outra fonte está disponível, mas é muito irritante pra mim”, afirma Merill.
Segundo Merill, o uso de scare quotes é relativamente recente, rastreado a partir da metade do século 20, “apesar da ideia de mostrar ao leitor que você não quer dizer aquilo que está dizendo seja muito mais velha que isso”. Em suas pesquisas, constatou que a popularidade das aspas irônicas aumentou muito no final do século, em 1995, assim como aquelas aspas feitas com os dedos, no ar, quando alguém está falando (em “Friends”, série clássica dos anos 90/início dos 2000, Joey é zoado por não saber usar as aspas irônicas quando fala).
“Também acho que essas aspas estão sendo usadas mais politicamente hoje também. Por exemplo, quando o Affordable Care Act passou nos Estados Unidos, os republicanos o chamaram de Obamacare para mostrar seu desgosto com ele. Quando os repórteres citavam os republicanos, colocavam Obamacare entre aspas para indicar que o termo era usado como forma de ridicularização, zombaria, como se fosse um nome falso. Depois os democratas começaram a usar Obamacare também, tentando eliminar a conotação negativa. A Associated Press continua usando ‘Obamacare’, entre aspas, como usam para apelidos. O problema, pra mim, é que não fica claro para o leitor se eles usam as aspas ironicamente, ou se é para mostrar que é um apelido, ou outra coisa.”
O uso de aspas em textos noticiosos pode gerar outras situações desconfortáveis. Até 2008, por exemplo, o jornal Washington Times utilizava aspas em casamento gay (“casamento” gay), e neste ano o New York Times se referiu à “ocupação” da faixa de Gaza por Israel. Na dúvida, Merill diz para usar aspas irônicas com moderação. “Escritores devem pensar em como usam as scare quotes e se um bom leitor pode interpretar errado.”
Fernando Cavalcanti era o fotógrafo plantonista da madrugada no jornal Notícias Populares na noite de 2 de março de 1996, um sábado. Parte do trabalho envolvia ouvir a frequência da polícia num rádio e monitorar os crimes que aconteciam no período, para ir atrás daquilo que o jornal queria documentar. Ao ouvir um trecho de uma conversa, Fernando ligou para a delegacia em busca de informações sobre uma ocorrência e ficou sabendo pelo policial de um outro caso que desconhecia: um avião havia caído na serra da Cantareira. As informações eram poucas, mas com um repórter e um motorista, Fernando foi até o local. No caminho, ouviu o primeiro rumor de que os passageiros eram os membros da banda Mamonas Assassinas.
Naquela noite, 20 anos atrás, Fernando foi o primeiro fotógrafo a chegar aos destroços e a fazer imagens dos corpos dos integrantes da banda, que estamparam a capa do NP, que circulou entre 1963 e 2001. Com fama de jornal “espreme que sai sangue” e manchetes surreais, o NP já tinha publicado imagens de mortos, mais sangrentas que a dos Mamonas, em sua capa. Em 1992, por exemplo, colocou na primeira página a primeira foto dos mortos no Carandiru, com uma foto de corpos enfileirados ocupando toda a metade superior da capa. No caso dos Mamonas, porém, o interesse do público foi maior. A tiragem do jornal naquele dia foi recorde, lembra Fernando: 250 mil exemplares foram às bancas com a manchete “queda de avião mata a banda mais famosa do Brasil”.
Com letras bem-humoradas e figurinos variados, cheios de fantasias, a banda tinha estourado no ano anterior e lançado apenas um disco, com o nome da banda e músicas como “Robocop Gay”, “Vira-Vira” e “Pelados em Santos”. À época, o álbum tinha vendido mais de 1,75 milhão de cópias — o recordista do ano — e era sucesso principalmente entre as crianças. No auge, o grupo formado por músicos de 20 e poucos anos começava a ficar conhecido fora do Brasil e tinha viagem marcada para Portugal.
A banda, formada por Dinho, 24, Bento Hinoto, 25, Júlio Rasec, 28, Samuel Reoli, 22, e Sérgio Reoli, 26, voltava para São Paulo de um show no estádio Mané Garrincha, em Brasília. O avião fez o último contato com o aeroporto de Guarulhos às 23h20 e, depois de receber autorização para pousar, arremeteu. Segundo investigação, uma manobra arriscada do piloto e o desrespeito às normas de segurança da aviação causaram o acidente, que matou nove pessoas. O enterro, realizado em Guarulhos no dia 5 de março, reuniu 100 mil pessoas.
[olho]A tiragem do jornal naquele dia foi recorde: 250 mil exemplares foram às bancas[/olho]
Hoje com 43 anos, Fernando relembra em seu apartamento, com quadros de algumas de suas principais fotos e capas de jornal penduradas na parede, a noite do acidente. As imagens dos Mamonas estão numa caixa cheia de negativos, fotos soltas e álbuns com outras imagens impressionantes — mães reconhecendo corpos de filhos, famílias passando ao lado de cadáveres sem olhar para eles, crianças queimadas, cabeças cravejadas de balas. No NP, onde trabalhou por cerca de oito meses, fazia todo o tipo de pauta e já tinha visto muitos cadáveres, de todos os tipos, antes de ver os Mamonas. “Vi mais mortos naqueles oito meses do que as pessoas veem numa vida. Quantos corpos você já viu? Uns dez?”, pergunta.
Chegando ao local do acidente, um grupo de repórteres já estava a postos, sem acesso à área onde seriam feitas as buscas por corpos. Ainda era noite e o avião no qual os Mamonas estavam tinha caído no meio da mata. Todos esperavam até que, já com a luz do dia, chegou um helicóptero da Globo, cuja equipe fez um acordo com a equipe de busca: a emissora emprestaria o helicóptero se pudesse ter acesso às imagens do acidente em primeira mão. Formou-se um grupo para acessar o local e Fernando, que estava escondido no mato, tirou o colete que o identificava como fotógrafo e se infiltrou na equipe de resgate, seguindo atrás deles, com apenas uma lente e — o que descobriu chegando lá — um filme só, com 36 poses.
Depois de um tempo vendo cadáveres, diz ele, o choque com esse tipo de imagem diminui. No início tudo tem mais impacto, mas com o passar do tempo você se habitua a ver o sangue e consegue se desligar. E é diferente ver uma imagem através da câmera, que media a realidade, ressalta. “Se me perguntam qual a cor da camiseta do morto depois eu não me lembro, tenho que ver a foto”, exemplifica. O que dói de verdade é ver o sofrimento dos familiares. O corpo, no fim das contas, é só um corpo, de alguém que já se foi.
[olho]A Globo fez um acordo com a equipe de busca: a emissora emprestaria o helicóptero se pudesse ter acesso às imagens do acidente em primeira mão[/olho]
O que viu ali foram destroços do avião, equipamentos com o logo dos Mamonas e os corpos — encontrados a partir das 5h45 — em diferentes estados. Não dava, por exemplo, para reconhecer o vocalista, Dinho, pelo rosto — só um pedaço do seu maxilar permaneceu ligado ao tronco. Uma das imagens de que Fernando se lembra até hoje é a dos corpos embalados sendo içados por helicópteros da polícia, já que era impossível pousar no local.
Assim que a Globo concluiu sua matéria, todos os jornalistas foram liberados para chegar ao local e então Fernando teve acesso a mais filme — um motoboy do jornal veio pegar as primeiras imagens para levá-las ao jornal, já que na época não era possível mandá-las do local. Na hora, conta ele, você não sente que está fazendo uma cobertura importante, não pensa na importâncias das fotografias ou na relevância do acontecimento. Você simplesmente faz as fotos.
A ficha de que todos os integrantes de um dos grupos mais populares do momento tinham morrido num acidente de avião caiu quando ele chegou em casa para um almoço de domingo com a família, em que seus primos estavam chorando. Chegando lá, também se tocou de algo que tinha passado despercebido. Para o trabalho, os fotógrafos do NP usavam roupas escuras, já que frequentavam favelas e cenas de crimes e era melhor ser o mais discreto possível. Umas duas semanas antes do acidente, Fernando tinha fotografado os Mamonas num show e tinha ganhado uma camiseta dos integrantes, toda preta com um escrito que dizia “Mamonas”. Naquela noite, ele estava vestindo aquela camiseta, com outra blusa por cima, e não tinha notado. A sessão de fotos com a banda foi rápida, diz, mas ele se lembra que os músicos eram bem disponíveis e topavam fazer de tudo — estilo “jogar o Dinho pra cima”.
[olho]Uma vez que você entrega as fotos para os editores do jornal, você não tem noção do que vai acontecer com elas[/olho]
Uma vez que você entrega as fotos para os editores do jornal, você não tem noção do que vai acontecer com elas, diz ele. Não sabia, então, que as fotos dos corpos dos Mamonas iriam parar na capa, nem a dimensão que isso teria. A curiosidade do público foi tão grande que mesmo com a tiragem recorde do NP houve gente que não conseguiu ver as fotos, que mais tarde iriam parar na internet. O jornal organizou em sua redação uma exposição com as imagens, tão popular que os seguranças tiveram de colocar um fim na fila e impedir mais pessoas de entrar. Fernando recebeu propostas para vender as fotos originais para pessoas interessadas em revendê-las, mas negou.
Alguns meses depois de tirar as fotos dos Mamonas, Fernando, jornalista de formação, foi para a Inglaterra, onde passou quase sete anos. Lá conseguiu seu primeiro emprego no jornal semanal Sunday Times também trabalhando numa cobertura de uma morte de uma figura pública. Quando chegou em Londres para fazer um curso, ligou para o jornal atrás de uma oportunidade e, depois de mostrar o portfólio cheio de imagens de impacto, foi chamado para uma equipe de 30 fotógrafos que trabalhariam para o jornal cobrindo o funeral da princesa Diana, morta num acidente de carro. A foto que publicou no dia hoje ocupa uma das caixas em seu apartamento, assim como as fotos dos destroços do acidente dos Mamonas.
Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu.
Já falamos das séries, músicas, discos, atuações e filmes de que mais gostamos no ano. Aqui listamos os livros e HQs de 2015 que nos marcaram, fora de ordem mesmo. Segura:
“Zero” (Ales Kot)
Eu queria dar um abraço no Ales Kot. O roteirista de “Zero” sabe como poucos transformar uma história batida – um espião de uma agência secreta que começa a desconfiar das missões e objetivos de seus patrões – em uma obra-prima sobre a desgraça humana, pessoas deploráveis, morais nebulosas. Tudo feito com uma inteligência fora do normal para histórias do tipo. A escolha dos artistas, que muda a cada edição, também é digna de nota: cada um deles conseguiu absorver o tipo de sofrimento da história. Para ler e reler e reler. [Leo Martins]
“Saga” (Brian K. Vaughan e Fiona Staples)
“Saga”, publicado pela Image Comics e traduzido no Brasil pela Devir, é provavelmente o quadrinho mais interessante dos últimos tempos. O roteiro de Brian K. Vaughan conta a história de um casal estilo Romeu e Julieta em um universo distópico que parece uma mistura de “Star Wars” e “Game of Thrones”. Tudo isso casa perfeitamente com os desenhos de Fiona Staples, com criaturas incríveis que parecem saídas de um sonho que, lá pro fim do dia, você percebe que foi um pesadelo. A facilidade de adicionar pequenas tramas, personagens fugazes e conversas brutalmente sinceras fazem com que seja impossível ler só um pouquinho. [LM]
“The Wicked + The Divine” (Kieron Gillen e Jamie McKelvie)
Já deu pra sacar que o ano foi bom demais pra Image Comics, né? E foi mesmo. “The Wicked + The Divine”, com roteiro de Kieron Gillen e arte de Jamie McKelvie, conta a história de divindades que a cada 90 anos voltam para a Terra e são tratados como popstars. O roteiro é impressionante, os traços são incríveis e a vontade é de viver um pouco, mas só um pouquinho, nesse mundo maluco. [LM]
“Entre o Mundo e Eu” (Ta-Nehisi Coates)
O jornalista Ta-Nehisi Coates é, faz alguns bons anos, uma das vozes negras mais importantes dos EUA. Ultimamente, por causa dos abusos policiais contra adolescentes negros no país, sua coesão de discurso e bom senso aumentaram ainda mais a potência dessa voz. Em “Entre o Mundo e Eu”, Coates mistura histórias de sua difícil infância em Baltimore com reflexões sobre o estado atual da sociedade americana, do racismo e do futuro do país. Muito bem escrito, o livro é uma rápida aula de 150 páginas para qualquer um que queira entender mais sobre alguns dos maiores problemas do nosso mundo. [LM]
“Dois Irmãos” (Fábio Moon e Gabriel Bá)
Transformar obras de literaturas em HQs é uma certa moda recente. Desde os clássicos até livros atuais, tudo ganha versão em quadrinho. Isso nem sempre é bom, mas no caso de “Dois Irmãos”, dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, deu certo. Ficou mais fácil para os irmãos porque o livro de Milton Hatoum, lançado em 2000, é realmente muito bom. Coube a eles transformar a narrativa, e o resultado é digno de nota: os traços preto e branco, o jogo de sombra, o cenário de Manaus durante décadas de mudança, tudo isso conversou muito bem com a história de dois irmãos separados pela guerra, pela família e pelo amor. [LM]
“São Paulo, a Capital da Vertigem” (Roberto Pompeu de Toledo)
“São Paulo, a Capital da Vertigem”, de Roberto Pompeu de Toledo, narra a história paulistana de 1900 a 1954 e mostra por que a cidade é a mais brasileira das nossas capitais – inclusive quando nega a sua brasilidade (o Brasil consegue ser uma coisa e seu oposto ao mesmo tempo). Continuação do grande “São Paulo, a Capital da Solidão”, que vai de 1554 até o fim do século 19, “A capital da Vertigem” mostra como transformarmos um vilarejo marrento em uma metrópole fulgurante. Também relembra o bombardeio aéreo de 1924 e explica, até, por que o metrô demorou tanto tempo para sair do papel nessa cidade de vales sufocados e rios aterrados, de gente local e gente de tudo quanto é lugar do mundo – e que se sente local. É um clássico para amar e odiar São Paulo – ao mesmo tempo!” [Leandro Beguoci]
“Humilhado” (Jon Ronson)
O livro de Jon Ronson é daqueles que se lê numa sentada. A leitura é bem fácil, mas nada leve. Centrado em alguns personagens que, por motivos diversos, foram humilhados publicamente pelas redes sociais, faz refletir sobre o poder que posts aparentemente inofensivos no Facebook ou no Twitter têm na vida das pessoas. As histórias são boas: Jonah Lehrer, jornalista da New Yorker que caiu em desgraça quando descobriram que ele havia inventado aspas de Bob Dylan em um best-seller, Justine Sacco, demitida depois de fazer um tweet racista, Lindsey Stone, que ficou deprimida com as consequências de uma foto desrespeitosa num cemitério de militares, entre outros. Quando alguém faz ou fala algo considerado absurdo, muita gente não hesita em apontar o dedo na internet sem pensar nas consequências. Mas, Ronson questiona, será que a pena corresponde ao crime? [Fernanda Reis]
“Ilha da Infância” (Karl Ove Knausgaard)
Colocar Karl Ove Knausgaard na lista de melhores do ano já é clichê, mas fazer o que se ele manteve a regularidade no terceiro livro de sua série autobiográfica “Minha Luta”? O tema é tão banal que é difícil fazer uma sinopse: no volume, ele discorre em detalhes sobre sua infância em uma ilha na Noruega. Mas ele escreve tão bem que até um passeio dele com um amigo ou seu prazer por adiar o máximo que podia as idas ao banheiro ficam interessantes. É o mais fraco entre os três volumes publicados no Brasil, sim, mas mesmo o pior Karl Ove é melhor do que boa parte dos lançamentos por aí. [FR]
“Toda Luz que Não Podemos Ver” (Anthony Doerr)
Vencedor do prêmio Pulitzer de ficção, Anthony Doerr realiza uma façanha: escrever um livro original sobre a Segunda Guerra. Doerr não fala de Hitler, Churchill ou Roosevelt, deixa de lado as grandes batalhas e foca em duas histórias, a de uma menina cega francesa e de um menino alemão que sabe tudo sobre rádios. É uma história sem maniqueísmo, que não retrata todos os alemães como vilões nem todos americanos e franceses como heróis. “Toda Luz que Não Podemos Ver” é uma história sobre pessoas. Às vezes triste, mas sempre bonita. [FR]
Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.
Já falamos das séries, músicas, discos e filmes de que mais gostamos no ano. Aqui listamos dez atuações de 2015 que nos marcaram, divididas em duas partes: cinco no cinema, cinco na televisão. Fora de ordem mesmo, já que não deu pra ver tudo e seria injusto fazer algum tipo de ranking (só de televisão foram mais de 400 séries em 2015, né). Olha lá:
CINEMA
Julianne Moore – “Para Sempre Alice”
O filme, em si, não é nada de mais. Ok, é bonzinho, mas daqui um ano ninguém vai se lembrar muito dele. Mas Julianne Moore faz valer a pena. Sua Alice, uma professora de linguística que descobre ter Alzheimer aos 50 anos, é cheia de nuances. Forte e cheia de vida em alguns momentos, desolada com a consciência da doença em outros, às vezes totalmente perdida. Nomeie alguma emoção qualquer: está lá na performance dela.
Matt Damon – “Perdido em Marte”
Matt Damon atua sozinho durante quase todo o filme e consegue fazer dele uma das experiências mais divertidas do ano. Ponto pra ele. Não é um papel feito sob medida pra prêmios — ele não é um psicopata, não usou uma prótese no rosto e não comeu fígado cru de bisão — e mesmo assim será uma injustiça se ele não estiver no Oscar. Matt Damon é bem engraçado, quem diria.
Johnny Depp – “Aliança do Crime”
Johnny Depp é o anti-Matt Damon. Enquanto Damon é um cara comum, o garoto da casa ao lado, Depp se dá melhor fazendo tipos bizarros. Como o criminoso Whitey Bulger, Johnny Depp é a isca perfeita para prêmios. Transformação física? Ok. (Ele aparece quase careca, com lentes de contato e magérrimo.) Papel de louco? Ok. (No caso, é um assassino frio.) Só não comeu fígado cru de bisão — difícil superar Leonardo DiCaprio em “O Regresso”, que estreia em janeiro, nesse sentido. O filme é bem meia-boca, mas a atuação de Johnny Depp é marcante. Ele está esquisito e assustador na medida certa.
Regina Casé – “Que Horas Ela Volta?”
Pelo menos uns 50% do sucesso de “Que Horas Ela Volta?” são responsabilidade de Regina Casé, que está puro carisma. Ela nos relembra de que é uma ótima atriz, que faz rir e emociona, e não só a estridente apresentadora do “Esquenta”.
Idris Elba – “Beasts of No Nation”
Idris Elba tem sim charme e carisma para ser o próximo James Bond, ao contrário do que disse o autor Anthony Horowitz neste ano. A prova disso é que ele consegue colocar as duas características num personagem horrível, que recruta crianças africanas para lutar. Elba é ao mesmo tempo perigoso e sedutor e é o destaque de um filme que prometia mais do que cumpriu.
TELEVISÃO
Gina Rodriguez – “Jane the Virgin”
“Jane the Virgin” poderia ter dado muito errado caso as atuações não fossem tão boas. O tempo todo a série circula sobre a tênue linha entre o curiosamente divertido e o cafona, às vezes com um pé lá e o outro cá. Mas a performance de Gina Rodriguez é o tempo todo luminosa — vai, tudo bem usar um adjetivo cafona aqui, estamos falando de “Jane the Virgin”. Ela rivaliza com Claire Danes na categoria “melhor choro televisivo” (um elogio e tanto), é bem engraçada e faz com que Jane seja uma pessoa 100% boa sem ser chata ou sem graça. É o tipo de personagem de quem você gostaria de ser amigo e eleva a série de uma novelona engraçadinha para uma das melhores estreias do ano.
Rami Malek – “Mr. Robot”
“Mr. Robot” apareceu em dez entre dez listas de melhores do ano. E “Mr. Robot” é Rami Malek. Com seus olhos esbugalhados e sua fala arrastada, Malek é protagonista e narrador da trama, e vai enredando o espectador numa trama muito doida e irresistível. Seu personagem, Elliot, é mais um hacker esquisito com pouco traquejo social, mas ele foge do clichê e é cheio de complexidade. Sua performance é tão impactante que é difícil imaginá-lo em outro papel.
Aya Cash – “You’re the Worst”
Em seu segundo ano, a série fez uma aposta arriscada: falar a fundo sobre depressão sem deixar de ser uma comédia. Deu tudo certo por causa de Aya Cash, que escapou da caricatura e fez um dos melhores retratos televisivos de uma pessoa deprimida, em todas suas dimensões, alternando momentos de tristeza, raiva, apatia e alguns picos de alegria. Tudo isso sem perder o humor e a essência de sua personagem. Merecia uma indicação ao Globo de Ouro, mas… Quem sabe no Emmy ela não seja lembrada.
Matthew Rhys – “The Americans”
“The Americans” é uma das raras séries que só melhora (pelo menos por enquanto, não vamos zicá-la). E seus protagonistas, Matthew Rhys e Keri Russell (que faz esquecer que um dia já foi Felicity), têm melhorado com ela. A dupla é muito boa, mas o destaque da temporada é Rhys, cujo personagem, o espião soviético Philip, se viu mais dividido e torturado do que nunca. Vale a pena seduzir uma adolescente para conseguir informações de seu pai? Como lidar com o fato de que seu país quer arrastar sua filha para a perigosa vida que ele leva? Ele deve ser leal à família ou à União Soviética? Rhys faz com que você sinta sua dor. “The Americans” já nasceu como uma boa série de ação, mas os atores a transformaram num dos melhores dramas da atuais.
Shiri Appleby – “UnREAL”
Rachel, a personagem de Shiri Appleby em “UnREAL”, é, para dizer o mínimo, uma pessoa difícil. Sumiu da vida do namorado sem dar notícias, é brigada com os pais, bebe demais, mora numa van e pirou frente às câmeras do reality show estilo “The Bachelor” no qual trabalhava. E é uma mestre na manipulação (sério, campeã em manipular os outros). Você sabe que ela vai destruir a vida alheia e a própria, e que não deveria torcer por ela, mas quando vê está esperando seu final feliz. É cedo pra dizer, mas Rachel pode ser o Don Draper ou Walter White (aqueles anti-heróis carismáticos) feminino que estava faltando na televisão.
Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.
Já falamos das séries, músicas e filmes que mais gostamos no ano. Aqui listamos os dez melhores discos do ano em nossa modesta opinião, divididos em duas partes: cinco nacionais, cinco internacionais. Segura:
NACIONAIS
Rodrigo Ogi – “RÁ!”
Quando Rodrigo Ogi lançou o disco “Crônicas da Cidade Cinza”, em 2011, era fácil de sacar que ali havia um artista com um potencial monstruoso. “Crônicas” foi um disco que demorou pra bater na molecada e hoje é considerado um clássico tardio. “RÁ!”, o novo disco do rapper paulistano, começa diferente por já nascer como um clássico. Isso permitirá que daqui uns, sei lá, dez anos, ele seja visto como um momento chave no rap nacional, uma cena tão complexa e trincada, cheia de picuinhas e tretas. “RÁ!” é um cardápio de todos os poderes de um MC, com incontáveis histórias incríveis, bem articuladas, cheias de becos, vielas, tudo isso com Ogi despejando habilidades vocais, com mudanças de voz e personagens que nenhum outro rapper está fazendo por aqui. A preocupação com métricas, com caneta, com tudo, algo tão comum lá fora e meio secundário por aqui, é acompanhada por uma execução primorosa do beatmaker curitibano Nave, que criou o ambiente perfeito para Ogi se transformar naquilo que ele deve ser: um marco.
Aláfia – “Corpura”
“Corpura” é o segundo disco da superbanda Aláfia, e a sensação maior é que, após uma grande viagem introspectiva e extrospectiva, eles conseguiram chegar onde queriam: o disco é mais do que um manifesto em prol da negritude e da cultura negra. Ele é uma aula, tanto de percussão quanto de letras, sobre o estado do Brasil em vários aspectos. É aquilo que diversas bandas tentaram, bebendo ali na fonte do afrobeat, mas a impressão é que para chegar lá o Aláfia teve que se doar até a última gota de sangue, com uma crença muito poderosa sobre o que estava sendo produzido. A força de “Corpura” está por todos os lados: na voz de Xênia França, nas composições de Lucas Cirillo, na percussão de Alysson Bruno. Tudo o que aconteceu e surgiu recentemente na cena afrobeat e black brasileira estava pavimentando o caminho para esse momento, para essa corpura.
Leo Justi – “Vira a Cara”
Justi é como uma ponte entre os bailes de favela, o novo funk cada vez maior no Rio de Janeiro, e o mundo dos produtores e selos descolados de todo o globo que avistam com olhares maravilhados o que acontece pelo Brasil. O EP “Vira a Cara” é essa amalgama: é um aperitivo do que há de melhor rolando no funk envelopado em uma produção digna de nota e ideal pra bater a bunda no chão e suar até dizer chega.
Diogo Strausz – “Spectrum Vol. 1”
Ouvir o primeiro disco do Diogo Strausz assim que ele foi lançado foi como receber uma voadora de esperança: há muita técnica, há muito groove, tem AOR, tem muita referência boa, participações ótimas e uma habilidade fora do comum para alguém tão jovem. É aquele disco para ouvir a qualquer momento, curtir cada nota e já criar expectativas para mais e mais produções desse jovem carioca.
Elza Soares – “A Mulher do Fim do Mundo”
É impressionante receber em 2015 um disco tão podereoso de uma figura tão marcante da música brasileira. Em “A Mulher do Fim do Mundo”, Elza Soares fala de sofrimento, de amor, de putaria, de sexo, da força da mulher negra. As letras arrepiam, mas o maior acerto de Elza foi se abeirar do que há de melhor na nova safra da (podemos chamar assim?) nova MPB: Romulo Fróes e Celso Sim assinam a composição das músicas (ao lado de José Miguel Wisnik) e a banda que acompanha Elzinha tem por ali Fróes, Kiko Dinucci, Felipe Roseno e outros grandes nomes. Essa mistura funciona demais e as lamúrias se transformam em força, em poder, em uma violência musical merecidíssima para esses tempos.
INTERNACIONAIS
Kendrick Lamar –“To Pimp a Butterfly”
Desde o dia 16 de março deste ano a gente já sabia qual era o melhor disco do ano. Muita coisa boa surgiu no meio do caminho, mas o que Kendrick Lamar fez em “To Pimp a Butterfly” é algo raríssimo na música atual: ele conseguiu demonstrar todas as suas habilidades como um dos melhores rappers vivos, conseguiu fazer isso fazendo crítica social de altíssimo nível, conseguiu discutir religião, conseguiu não perder o humor e o desespero perante tudo isso e, assim, criou uma obra-prima, um disco que será lembrado por décadas e décadas, com louros para as letras, como em “Alright”, pelas participações, como a de George Clinton na abertura do disco, e pela capacidade de mais um rapper de Compton mudar o jogo.
Kamasi Washington – “The Epic”
É fácil sacar que os principais nomes do selo Brainfeeder piram muito em jazz: tanto o Flying Lotus quanto o Thundercat destilam várias referências em seus discos. Mas ser um monstro do jazz é mais complicado do que isso. Por sorte, eles encontraram alguém mais do que capaz: Kamasi Washington. E daí surgiu “The Epic”. É curioso pensar que um disco de jazz de quase três horas, com influência absurda dos imortais da Strata East, foi lançado por um selo de música eletrônica e que, surpresa!, ele foi um sucesso. Mas “The Epic” faz jus: são horas e horas de muito jazz bom, de altíssimo nível, de um reencontro com o passado com aquela pitada necessária e sem exageros dos tempos atuais. É também um convite para uma geração que parece não ter mais tempo para jazz, para contemplação, para paz de espírito. Ouvir “The Epic” em uma tacada só é um evento raro, mas vale cada segundo.
Arca – “Mutant”
Um produtor venezuelano nascido em 1990 fazendo música para Bjork, Kanye West e Kelela? Foi assim que o Arca fez seu primeiro barulho. Depois veio “Xen”, no ano passado, um ótimo disco de estreia. E, pouquíssimo tempo depois, Alejandro Ghersi surge com “Mutant”, uma viagem menos mecânica, mais fluída, mais atraente, do tipo que machuca seu cérebro em alguns momentos mas ainda assim libera doses de endorfina. É quase como transar com robô? Talvez, um dia a gente descobre se é tipo isso mesmo.
Sufjan Stevens – “Carrie & Lowell”
Não é de hoje que Sufjan Stevens gosta de falar sobre a morte em suas músicas. Mas “Carrie & Lowell” é o maior estudo que ele já fez sobre o assunto. Esqueça as brincadeiras e fanfarras que davam uma quebra nos discos anteriores dele. Aqui não há espaço para respirar, apenas absorver todas as dores, questionamentos e sofreguidões de um homem tentando entender o que é, o que foi e o que será a morte – o disco é uma ode a Carrie, a mãe que Stevens mal conheceu e que recentemente morreu, e Lowell, seu padrasto, ainda vivo, e extremamente próximo. Esqueça de respirar e sinta apenas o aperto no coração.
Grimes – “Art Angels”
Olha, é preciso respeitar muito a Claire Boucher. Depois do sucesso de “Visions”, em 2012, a cantora se trancou para produzir mais um disco e, em dado momento, jogou tudo fora. Os fãs piraram, e é preciso dizer aqui que há algo de diferente nessa pressão: a Grimes é um fruto do Tumblr, uma filha da internet, e ela já se meteu em muitas discussões por causa dessa verve conectada, de comunidade, de reblogs e coisas do tipo. Agora já podemos dizer que jogar tudo fora e criar “Art Angels” foi a escolha certa: o disco é um pop extremamente torto – e isso é um elogio. É um pop que, de repente, quando você imagina o caminho mais óbvio, te surpreende com uma letra ou um refrão fora da medida, como um tapa, mas um tapa sutil, sem maldade, quase infantil, querendo chamar sua atenção. E durante todo o disco esses tapas conseguem atingir seu objetivo.
Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.
Já falamos das séries e músicas que mais gostamos no ano, e agora vamos pra telona. 2015 não foi um dos anos mais incríveis do cinema e até tivemos uma certa dificuldade para fechar essa lista, mas eis os títulos que mais nos marcaram no ano:
Force Majeure
Se você for pego só pela sinopse, pode achar que é um filme de ação desses envolvendo desastres naturais. Não é nada disso, mas não deixa de ser impactante: “Force Majeure” é a história de um princípio de avalanche que abala as estruturas de uma família que esquiava nos Alpes. O filme intercala incríveis cenas apáticas do cenário nevado com situações cotidianas de uma família ruindo. A história e as atuações são um símbolo da derrocada de Tomas, o pai, e a crescente indignação de Ebba, a mãe. Uma história sobre moral, realidade, verdade e o homem e a mulher em tempos modernos. [Leo Martins]
Straight Outta Compton: A História do N.W.A.
É um pouco assustador pensar que demoraram tanto tempo para contar em filme uma das histórias mais incríveis da música americana. A criação do N.W.A., um dos grupos mais importantes da história do rap, envolve muita treta, tiro, vadiagem, afirmação racial, polícia nervosa e a explosão de Compton, na Califórnia, como um dos berços do hip hop. A escolha dos atores foi acertada demais – O’Shea Jackson Jr, que interpreta o Ice Cube, é filho do próprio – e o filme não esconde os demônios que cercaram e cercam até hoje Dre, Eazy E e todos os outros filhos de Compton que revolucionaram a música e a relação das tensões sociais que uma só música (“Fuck the Police”, no caso) pode causar. [LM]
Leviatã
Mesmo antes de entrar em cartaz nos cinemas russos, Leviatã causou. Sofreu duras críticas e fortes ataques do governo e da igreja ortodoxa, que acusaram o diretor Andrey Zvyagintsey de difamar o país comandado por Vladimir Putin. Já seria um bom motivo para assistir ao filme. Mas Leviatã é muito maior que isso. Fala de abuso de poder, injustiça, corrupção e impotência por meio da dramática história de Kolya. Morador de uma península no extremo norte do país, tem a propriedade herdada da família tomada pelo prefeito da cidade, que quer construir no terreno um empreendimento lucrativo. Vencedor dos prêmios de melhor roteiro em Cannes e melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro, Leviatã é pesado demais. Triste demais. E ainda, assim, bom demais. [Mariana Castro]
Ex-Machina: Instinto Artificial
Uma pena que não tenha entrado no circuito do cinema nacional – chegou aqui direto nas locadoras e serviços de aluguel por streaming. O primeiro filme de Alex Garland conta a história de Caleb, funcionário de uma empresa descolada (provavelmente do Vale do Silício, claro) que ganha o direito de passar uma temporada com o chefão da empresa, Nathan, em um local isolado para ajudá-lo a testar uma nova tecnologia revolucionária. A tecnologia em questão é um robô, Ava, que é tão real em seus sentimentos e expressões que assusta. A relação criada pelos três nessa esquisita casa é o suficiente para criar um ótimo filme. Para completar, Nathan é vivido por Oscar Isaac em mais uma atuação espetacular, uma espécie de Mark Zuckerberg mesclado com Steve Jobs. [LM]
Perdido em Marte
Ficção científica não é um gênero pra todo o mundo. Quando minha mãe acha que um filme de ficção é um dos melhores do ano, é porque algo deu certo. “Perdido em Marte” é um filme engraçado, muito mais que várias comédias tradicionais por aí. É uma história sem vilão, em que você sabe qual vai ser o final, e mesmo assim não deixa a peteca cair. O que interessa não é tanto o que vai acontecer e nem que dificuldades aparecem, mas como um astronauta sozinho em Marte dribla essas dificuldades para sobreviver. Ridley Scott consegue fazer a ciência divertida até para quem só gosta de humanas. É bem divertido, e às vezes é isso que basta. [Fernanda Reis]
Mad Max: Estrada da Fúria
Continuar uma série querida por muitos e que já ganhou ares nostálgicos é sempre complicado. Por isso a escolha de George Miller para dirigir novamente um filme da série “Mad Max” foi acertadíssima. Contando uma história simples e sem muita complexidade, Miller conseguiu causar um enorme impacto visual (o guitarrista-lança-chamas é um marco do ano) e também explicitou as diferenças entre os anos 80 e o agora (Max, vivido por Tom Hardy, é apenas um coadjuvante perto de Furiosa, interpretada por Charlize Theron). É daqueles filmes para ver no Imax, sair embasbacado e depois chegar em casa e pensar em todos os pequenos detalhes e nuances que couberam no meio daquela loucura toda. [LM]
Olmo e a Gaivota
Abordar o tema da gravidez de um jeito poético, contemporâneo e ao mesmo tempo livre de clichês não é pouca coisa. É o que fazem as diretoras Petra Costa (de Elena) e a dinamarquesa Lea Glob em Olmo e a Gaivota. Mas ao acompanhar os atores do Theatre du Soleil, Olivia e Serge, enquanto aguardam a chegada de seu primeiro filho, o documentário também acerta na linguagem. Há discretas, mas relevantes, interferências das diretoras nas cenas entre os protagonistas. Depois de um sangramento, Olivia passa os meses de gestação dentro de casa, em repouso. É nesse período que as filmagens acontecem. Quando a atriz, às vésperas de viver um grande momento na carreira com a peça Gaivota, de Tchekov, abre mão dela e da liberdade, à espera de Olmo (nome do bebê). As imagens do corpo, da barriga, da transformação de Olivia são de uma beleza delicada. Mas não por isso, menos poderosa. [MC]
A Corrente do Mal
É claro que não é fácil traduzir o título original “It Follows” para português, mas a escolha de “A Corrente do Mal” passou a impressão de que o filme de estreia de David Robert Mitchell era só mais um filme de terror pastiche e cheio de clichês. Nada disso. “A Corrente do Mal” é um dos melhores filmes de terror dos últimos tempos exatamente por não seguir nenhuma dessas fórmulas e utilizar a câmera e o espaço de forma completamente diferente do convencional. A história de uma adolescente perseguida por algo que a persegue de forma implacável (daí o título original) é contada com maestria e ótimo gosto. Não é a salvação do universo do terror, mas assim como “The Babadook” foi no ano passado, “A Corrente do Mal” é um suspiro de novidade em um mercado saturado de repetições. [LM]
Phoenix
“Phoenix” é zero divertido. Longe disso: é uma história triste, sobre os traumas da guerra, identidade e culpa, que se passa logo depois da Segunda Guerra. É um período menos explorado no cinema e “Phoenix” parece mesmo algo completamente novo, sem clichês. Com o rosto desfigurado num campo de concentração, uma cantora judia ganha uma cara nova numa cirurgia e a chance de recomeçar a vida. Ela decide, porém, ir atrás do marido que a tinha traído e a entregado aos nazistas, escondendo dele a verdadeira identidade. A história é tensa, com uma bela cena final. [FR]
Que Horas Ela Volta?
Depois do sotaque de Wagner Moura em “Narcos”, foi uma das produções que mais rendeu discussões no ano. Falta um pouco de sutileza ao filme: a trama toda com o patrão que dá em cima da filha da empregada é constrangedora e desnecessária e a patroa vira uma caricatura, praticamente uma vilã de novela. Mas Regina Casé está maravilhosa (e lembra que é mais do que a apresentadora do “Esquenta”) e é um filme que toca de alguma forma todo o mundo sem ser panfletário e sem deixar de lado o humor. [FR]
Star Wars: O Despertar da Força
J.J. Abrams deve ter comemorado horrores a estreia do seu “Star Wars”. O filme voltou às origens e fez jus às (altíssimas) expectativas do público e da crítica (mesmo com algumas questões). O sétimo episódio da série aplaca a nostalgia das pessoas com o retorno dos personagens principais da trilogia original e com um enredo que lembra bastante “Uma Nova Esperança”. Mas as novidades que traz são legais: tem boas cenas de batalhas, personagens novos interessantes e boas atuações. É um filme bem divertido. [FR]
Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo
“Foxcatcher” é um filme perturbador. Em vários aspectos. A história chocante e real na qual é baseado, embora envolva um milionário de uma tradicional família americana e dois irmãos lutadores de luta livre, ambos medalhistas de ouro na Olimpíada de 84, é pouco conhecida. Por isso, apesar dos fatos, o final trágico surpreende. A atuação dos atores é de tirar o chapéu. Steve Carell está brilhante e irreconhecível no papel do ricaço excêntrico Jonh Du Pont – que lhe rendeu a primeira indicação ao Oscar. Pelo olhar do diretor Bennett Miller, vencedor do prêmio de melhor direção em Cannes em 2014, “Foxcatcher” trata de homossexualidade velada, da relação mal resolvida entre uma mãe controladora que blinda o filho mimado e protegido, de carência, poder e obsessão. Sem que nada disso dê conta de explicar o que leva alguém a uma atitude extrema. Perturbador. [MC]
Quem chegou primeiro: o presépio do menino Jesus ou as listas de fim de ano? Difícil dizer, mas chegou aquele momento em que todo mundo dá aquela olhada pra trás e vê o que de melhor (e pior) aconteceu. Nos próximos dias, publicaremos uma série de listas sobre os filmes, séries, discos, músicas e livros que nos marcaram em 2015.
Ontem já contamos quais foram nossas séries favoritas do ano. Hoje, falaremos das melhores músicas de 2015. Novamente, não é um ranking, apenas as que mais nos agradaram. A diferença aqui é que há duas listas na lista: primeiro, as melhores nacionais do ano, depois as melhores internacionais. Vai vendo:
NACIONAIS
Rodrigo Ogi – “Virou Canção”
O disco do Ogi é um dos melhores do ano e conseguiu a façanha de agradar desde a rapa do rap nacional até a galera que por muito tempo ignorou o rap e agora percebeu que tem muita coisa boa (demorou, mas aconteceu). “Virou Canção” é o símbolo disso: um assunto comum ao rap nacional (a perda dos parceiros durante a vida) contada em uma letra fenomenal, interpretada de forma emocionada por Ogi (“parte de mim falece / e esse dia na deprê eu não fui na quermesse / mas recebi uma proposta que a cobiça cresce / peraí, tava ali, um jeito de impressionar Magali”) e que, de quebra, ainda conta com a participação de Thiago França no sax quebrando tudo e fazendo muitos olhos encherem com a nostalgia daqueles que se foram. [Leo Martins]
Aláfia – “Salve Geral”
“Com a nossa rapa você não é capaz”. “Corpura”, novo disco da super-banda Aláfia, é um manifesto, uma causa, um evento. A música de abertura “Salve Geral” é uma paulada logo de cara para você arregalar os olhos e prestar atenção em cada palavra, cada acorde, cada momento do que vem na sequência. [LM]
“Quando o funk chegou a São Paulo, falei para os rappers: ‘Vocês vão ficar para trás, estão escrevendo música para a minha avó ouvir’.” Que falou isso para O Globo foi Mano Brown que, mesmo tendo lançado um disco novo do Racionais no ano passado, parece não estar mais tão em paz com o rap. Por isso foi até o Rio de Janeiro e fez uma parceria improvável com o Naldo Benny, que faz parte de seu disco “Sarniô”. A letra é cheia de momentos e homenagens curiosas – de Emerson Sheik até Romero Britto –, mas esse funk meio trap segura bem no refrão e a parte do Brown é, como de costume, uma aula de métrica e flow. Como ele mesmo disse na mesma entrevista ao Globo, “o funk é revolucionário, doa a quem doer”. [LM]
Jads & Jadson – “Toca um João Mineiro e Marciano”
Artistas como Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran e Maysa já expressavam em suas canções o sentimento chamado de “fossa”. “Toca um João Mineiro & Marciano” aborda intensamente esse desespero da desilusão no relacionamento, “afogado” na mesa do bar. Não há enredo, personagens, mas apenas a ambientação do porre, do barman desconfiado com uma suposta inadimplência, da jukebox com o hit antigo, dos primórdios do sertanejo romântico. Ele a traiu? O pai dela é coronel? Ele foi pego perambulando pelo Tinder? Nunca saberemos. A música traz uma experiência bastante inovadora, Jads & Jadson são um upgrade às duplas caipiras das décadas de 60 e 70. Há um distanciamento do frescor pop dos demais nomes do sertanejo dito universitário. O clipe da canção é magnífico e, além da homenagem na letra, traz o próprio Marciano em sua exótica indumentária, que remete à figura do Dr. Fu Manchu. [Marcelo Daniel]
INTERNACIONAIS
Drake – “Hotline Bling”
Se não é a música do ano, tá ali nas primeiras posições. É aquele hip hop pop que todo mundo acaba consumindo, com uma letra fácil de grudar, um refrão, um papo de “ei, mina, que isso” típico de quem tomou um pé na bunda e acha que pode ficar palpitando na vida dos outros, e um clipe que instantaneamente virou máquina de piadas por causa das dancinhas do Drake. É o tipo de música que você ouve desde o carro rebaixado na quebrada até a festa descolada lotada de gente branca. Ou seja, tem tudo que um hit precisa. [LM]
Kendrick Lamar – “Alright”
Kendrick não fez só o melhor disco do ano. Ele criou hinos. “Alright” é uma delas, uma música sobre ser negro na América, sobre ser cristão na América, sobre pecar na América, sobre o demônio na América. “All my life I has to fight, nigga”. Além do peso que a canção teve nos EUA em um ano de tantos protestos contra a violência policial contra os negros no país, Kendrick ecoa todas as suas habilidades como rimador, escritor e poeta. Para completar, a música recebeu um dos melhores clipes do ano, com peso, humor e força merecidos. [LM]
Jamie XX – “I Know There’s Gonna Be (Good Times)”
A música mais VIBES de 2015 é de alguém que costumava tocar músicas meio tristes no The xx. O disco do Jamie XX não é uma obra-prima, mas “I Know There’s Gonna Be (Good Times)” é das melhores coisas que aconteceram em 2005, com dois dos rappers de inglês mais difícil de entender (Young Thug, com seu flow solto, e Popcaan) e um refrão que, espero, seja o mote de 2016. [LM]
Justin Bieber – “Sorry”
2015 foi o ano em que boa parte das pessoas tentou se justificar perante algumas músicas do disco novo do Justin Bieber. Não precisa se justificar não, galera. O disco tem boas músicas mesmo. “Sorry” é a melhor delas, com uma produção impecável, uma letra bestinha mas grudenta, e um refrão ótimo. O menino cresceu, aceitem. [LM]
The Internet – “Girl”
Syd the Kid, a mina de 20 e poucos anos que dominou o disco “Ego Death”, do The Internet, é foda. Ela espalha sua habilidade durante o disco todo e se sobressai de seus parceiros. Mas é “Girl”, que ela criou junto com outro jovem prodígio, o produtor KAYTRANADA, uma das melhores músicas-xaveco de 2015, que Syd exibe sua voz, seu flow suave, e dá a letra na garota dos seus sonhos, que ela quer que seja sua namorada, e quer muito. [LM]
Sufjan Stevens – “No Shade in the Shadow of the Cross”
Toda vez que você duvidar que o Sufjan Stevens vai dar uma nova facada no seu coração, ele chega lá e PLEI. Aconteceu de novo com “Carrie & Lowell”, o disco-homenagem para sua falecida mãe. O fenômeno ocorre por diversas faixas, mas “No Shade in the Shadow of the Cross” é uma música tão simples e poderosa, dessas que faz você ficar em silêncio, repensando diversos momentos, acontecimentos, histórias. E lá pros últimos versos ele ainda canta os versos “There’s blood on that blade / fuck me, I’m falling apart” e, putz, dói. [LM]
Beach House – “Space Song”
Dream pop é um nome esquisito para estilo musical, né? A única banda que consegue fazer realmente jus ao termo é o Beach House. A banda lançou dois discos esse ano, os dois com a mesma pegada de fim de tarde na praia, aquela moleza depois do Sol e de algumas latinhas de danone. “Space Song”, do álbum “Depression Cherry”, mantém a história do Beach House em seus primeiros discos, com aquela dose de melancolia misturada com uma certa felicidade, aquela sensação de que, bem, uma hora as coisas vão dar certo, né? [LM]
Joanna Newsom – “Leaving the City”
“Leaving the City” é a música mais completa, complexa e surpreendente do novo disco da Joanna Newsom, “Divers”. A elfa toca a harpa, mostra todos os traços de sua voz e, de repente, quando você acha que a toada será a mesma, entra uma bateria marcada, uma guitarra nervosa, como é bom uma guitarrinha nervosa assim, diz aí. [LM]
Sángo – “Não Falo” (Feat. MC Nem)
O Sángo já lançou três beat tapes em homenagem à favela mais conhecida do Rio de Janeiro. O cara realmente pirou no funk carioca e curtiu fazer várias misturas com elementos de trap. “Não Falo” é uma mistura desses dois mundos: o beat do funk, o vocal acelerado, e os recortes precisos do produtor. É pura curtição. [LM]
The Weeknd – “Can’t Feel My Face”
Lembra Michael Jackson, não lembra? Com um cabelinho doido, mas lembra. A música que uniu todas as tribos em 2015. [LM]
Kanye West – “All Day”
O disco ainda não veio, mas o ano não passou batido para o Kanye West. E “All Day”, a primeira parceria com Paul McCartney, é uma paulada. É forte, tem letra, o refrão curto e rápido do Allan Kingdom tem impacto, o Beatle no final é incrível e, para completar, essa apresentação no Brit Awards foi com vantagem a melhor do ano. [LM]
A estreia de um novo “Star Wars” mexe com as pessoas. No começo, foi fácil resistir a entrar no clima. Mas aí vieram os trailers, os comentários alucinados no Facebook, os pôsteres e — o golpe final — o fofíssimo robô BB-8. De repente, a internet estava cheia de discussões sobre a verdadeira natureza de Jar Jar Binks, o personagem mais chato da galáxia. Depois de três filmes meia-boca, porém, fica a dúvida: vale tanta animação? Quão bom é de fato “Star Wars”? Quais são os melhores filmes? Depois de muita análise, o nosso veredicto é simples: a franquia é boa. Mas nem tudo relacionado a seu universo é automaticamente bom. Longe disso.
Alguns livros e filmes além de criar personagens e uma trama, criam todo um universo, o que permite que novas histórias, antes e depois da original, sejam criadas. “Harry Potter”, por exemplo, vai ganhar spin-offs no cinema e no teatro. Nas telas, Eddie Redmayne será o magizoólogo Newt Scamander em “Animais Fantásticos e Onde Habitam”, ambientada décadas antes de “Harry Potter”, mas com o mesmo universo de bruxos.
Mas a possibilidade de criar novas histórias não significa que elas sejam necessariamente tão boas quanto as originais. O que tornou “Harry Potter” e a trilogia original de “Star Wars” produtos de sucesso é o conjunto da obra: universos interessantes com bons personagens e boas tramas. Ambientar um livro num futuro distópico, numa escola de magia ou numa galáxia muito, muito distante, por si só, não é garantia de nada. Quando se espera algo tão legal quanto o original, a decepção pode ser grande. A expectativa é cruel.
A trilogia original de “Star Wars” é muito boa. O primeiro filme, o mais fraco dos três, já é interessante. O trio de mocinhos protagonista é excelente: um garoto que só tem bondade no coração, um cafajeste charmoso e uma princesa que não tem nada de donzela em apuros. Há uma boa trama política, uma história de amor, ação, um alívio cômico que aparece na medida certa (C3-PO) e um vilão antológico. Nos filmes seguintes, com a descoberta de que — alerta de spoiler para quem viveu numa bolha nos últimos 30 anos — Luke Skywalker e Leia Organa são irmãos e filhos de Darth Vader, a trilogia ganha ainda um elemento de drama familiar e fica ainda melhor. Tudo deu certo.
Na teoria, a trilogia iniciada nos anos 90 também poderia ser boa. A premissa, pelo menos, é ótima: mostrar como o jedi Anakin Skywalker foi para o lado negro da força e virou o vilão Darth Vader, como os jedis foram dizimados, a formação do Império, o nascimento de Luke e Leia. Tem muito material. A execução é que foi ruim. George Lucas pegou vários dos mesmos elementos que deram certo nos três primeiros filmes, mas fez tudo errado com eles.
Como na trilogia original, tem política. Mas é tudo tão mais complicado que, para pessoas estreando no universo “Star Wars” ou há muito tempo afastadas dele, umas consultas ao Google ajudam. Há também uma história de amor, mas muito ruim. No primeiro filme, é estranho ver o romance nascente entre uma rainha, ainda que adolescente, e uma criança. Nos seguintes, Anakin força a barra com Padmé e não consegue entender que “não” significa não. Também não ajuda o fato de Hayden Christensen, o Anakin, ser um péssimo ator e Natalie Portman estar longe de seu melhor momento.
O alívio cômico, Jar Jar Binks, em vez de fazer rir, provoca em iguais medidas constrangimento, irritação e ímpetos violentos. E um vilão do calibre de Vader faz falta (Darth Maul? Pffff, por favor. Só seu sabre de luz, com duas pontas, é legal). Nem a transformação de Anakin em Vader é lá essas coisas. Falta sutileza: desde o começo ele é desobediente, irritadiço, com tendências ditatoriais, e um chato que só reclama. Yoda devia ter seguido seu primeiro instinto e se recusado a treiná-lo.
Pode parecer estranho dizer que os efeitos especiais dos filmes dos anos 1970/80 envelheceram melhor que os dos anos 1990/2000, mas é verdade. Na trilogia original, as estranhas criaturas espaciais são representadas por bonecos ora fofos — como Yoda –, ora curiosamente bizarros — escolha qualquer um no bar em que Luke conhece Han Solo. De qualquer forma, os bonecos são simpáticos. Nos filmes mais recentes, muitas criaturas são digitais, e os efeitos evoluíram muito de lá pra cá, e os efeitos envelheceram mal. Novamente Jar Jar Binks é o exemplo negativo. Mesmo Yoda é computadorizado no final, perdendo boa parte do seu charme.
Vale o mesmo para os livros de “Star Wars”. São muitos, escritos por vários autores e ambientados em épocas diferentes. São histórias tão diferentes que é impossível generalizar e dizer que os livros, como um todo, são bons ou ruins. Há dezenas de livros de “Star Wars” disponíveis, que contam histórias de antes da era da velha república, da época dos filmes e depois de “O Retorno de Jedi”. Alguns livros giram em torno de um só personagem (grande, como Han Solo, ou menor, ou do oficial Wilhuff Tarkin, comandante da Estrela da Morte).
Entre todos, “Marcas da Guerra”, de Chuck Wendig, é o único ambientado após “O Retorno de Jedi” que pertence ao cânone — coleção de livros oficiais, que existem no mesmo universo dos filmes. A maioria dos livros tem o selo “Legends”: são histórias que não têm impacto no que acontece no cinema e não dão pistas para o que vem por aí. Mesmo assim, esses volumes têm seus fãs.
Os mais populares da coleção são os da trilogia Thrawn, de Timothy Zahn. Publicada nos anos 1990, entre as trilogias cinematográficas, foi responsável por uma nova onda de interesse pelo universo de George Lucas. A história de Zahn se passa após a derrocada do Império e ganhou o selo “Legends” quando um novo filme foi anunciado. No livro, por exemplo, Leia engravida de gêmeos e Luke se casa. Vai saber o que acontece nos filmes.
Mas “Marcas da Guerra” é o único livro a dar pistas do que vem pela frente. Como os personagens do livro e do novo filme não são os mesmos e os dois foram feitos por pessoas diferentes, não dá para usá-lo como base para especular como será “O Despertar da Força”, só para sentir o clima de como andam as coisas na galáxia distante. O autor conta histórias de diferentes personagens, alguns do lado do Império, outros do lado da Nova República. Tem menos ação do que um fã da série está acostumado — é como se fosse um prólogo mesmo, um mosaico de como a galáxia está após a morte de Darth Vader e do Imperador (spoiler: não está nada bem, aqueles Ewoks começaram a dançar antes da hora).
Pelo menos, o livro mostra que ainda existem boas histórias para contar: diferente do que o final de “O Retorno de Jedi” dá a entender, com a festa de ewoks comemorando a morte do Imperador e de Darth Vader, a paz não foi alcançada na galáxia. O Império foi enfraquecido, mas a guerra está só começando.
Resta saber onde o sétimo filme se encaixará no ranking de melhores filme da série, que, por enquanto, está assim:
6) Episódio 1: A Ameaça Fantasma
Tão bom quanto uma visita ao dentista. O mundo estava certo ao dizer que Jar Jar Binks era o pior personagem de toda a série. Sem graça, irritante, é só ele aparecer em cena (e pior, abrir a boca) pra você sentir uma vontade súbita de ir ao banheiro sem pausar o filme. O ator que faz o Anakin Skywalker, coitado, é péssimo — e nunca mais fez outro trabalho como ator. Nada de emocionante acontece e a corrida de pod racers é maçante e poderia ser cortada facilmente. A luta de sabres de luz entre Darth Maul, Qui-Gon Jinn e Obi-Wan Kenobi é o único bom momento — e acontece só no final. Até lá é um suplício. Se a história for justa, esse filme será esquecido e virará apenas uma memória apagada na mente de todos nós.
5) Episódio 2: Ataque dos Clones
A boa notícia: outro ator faz Anakin. A má notícia: ele talvez seja pior que o primeiro. Impressionante, é “Star Wars”, eles podiam escalar qualquer ator do mundo, e escolheram Hayden Christensen. A química dele com Natalie Portman (Padmé Amidala) é praticamente inexistente e é difícil torcer pelo romance deles, que é o que leva Anakin ao lado negro da força. Ver Yoda como computação gráfica dá uma tristeza. Pelo menos tem menos Jar Jar e a trama de Obi-Wan investigando o exército de clones é até que legal. Se o filme se centrasse nele, talvez fosse melhor.
4) Episódio 3: A Vingança dos Sith
Hayden Christensen ainda está mal, mas melhora como Anakin. Dos filmes da trilogia nova, é o mais cheio de acontecimentos. O motivo que leva Anakin ao lado negro da força é um pouco idiota: convencido de que se juntar a Palpatine pode impedir a morte de Padmé, ele se volta contra os jedi. Mas ele não se deu conta de que ele ia perdê-la justamente por isso? E no fim das contas ela morre mesmo, o que é bem frustrante. Pelo menos o final, com a luta entre Obi-Wan (o melhor personagem da trilogia) e Anakin, é bom. E nem que seja por pura curiosidade, é legal descobrir o que aconteceu para Vader precisar daquela máscara e armadura e finalmente ver a transformação do vilão.
3) Episódio 4: Uma Nova Esperança
Não ter o romance entre Padmé e Anakin e Jar Jar Binks já faz do episódio 4 melhor que os três filmes da trilogia nova. Mas ainda não tem o mestre Yoda e como não se sabe que Darth Vader é pai de Luke e Leia há menos coisa em jogo. Para quem já sabia desse fato ao ver o filme, o clima de romance e azaração entre Luke e Leia é bem esquisito. É uma boa introdução para a história e a destruição da Estrela da Morte é legal, mas a história melhora quando Luke se torna um jedi.
2) Episódio 6: O Retorno de Jedi
Em “How I Met Your Mother” uma teoria é apresentada: quem nasceu antes de 1973 e já era grandinho no lançamento do filme não gosta dos ewoks. Quem nasceu depois, os adora. Talvez seja verdade. Como alguém que só viu a trilogia nova no cinema: eles são fofíssimos. O filme tem momentos divertidos (o resgate de Han Solo, preso por Jabba), boas lutas e um desfecho emocionante entre Darth Vader/Anakin e Luke.
1 ) Episódio 5: O Império Contra-Ataca
Ganha do “Retorno de Jedi” por ter Yoda montado nas costas de Luke, aprendiz de jedi. É, aliás, a primeira aparição de Yoda, forte candidato e melhor personagem da série. Tem também o momento mais famoso de “Star Wars”, a revelação de que Darth Vader é pai de Luke (pra quem viu o filme sem saber o spoiler, deve ter sido um momento e tanto). Como se não bastasse, tem outra frase clássica: depois de ouvir uma declaração de amor de Leia, Han Solo responde com “eu sei”. Grandes momentos em um grande filme.
Em janeiro de 1986, onze anos depois de ter sido envenenado por um sapo da espécie dendrobata, o naturalista Augusto Ruschi se viu condenado. O veneno, acreditava ele, havia contaminado 95% de seu fígado. Nos últimos meses, o naturalista acelerara o ritmo de trabalho para concluir os dois livros que estava escrevendo, mas suas forças diminuíam a cada dia. Ele ofegava, dormia mal, sofria com febres e hemorragias nasais. Depois de uma vida desbravando as florestas e matas do país, já não conseguia percorrer longas distâncias.
Temendo pelo pior, chamou um de seus amigos mais próximos, o jornalista Rogério Medeiros, e lhe fez um último pedido. Queria ser enterrado na Reserva Biológica de Santa Lúcia, a mata de 279 hectares cobertas de orquídeas e bromélias que ajudou a tombar.
“Mas tem que ser aqui?”, questionou Medeiros, argumentando que, no Brasil, “não se enterra ninguém fora do cemitério”. Ruschi foi irredutível. Era lá, no paraíso das plantas e dos pássaros, que havia realizado a maior parte de sua obra. A outro grande amigo, o cronista Rubem Braga, confidenciara: depois da morte, sonhava em ser carregado pelos beija-flores.
O naturalista já não tinha perspectivas de curar sua doença, quando recebeu um telefonema de Brasília. Então repórter do Jornal do Brasil, Medeiros estava com Ruschi no dia da ligação.
“Era um ministro do [então presidente] José Sarney, não lembro qual…”, conta o jornalista por telefone, do Espírito Santo, onde mora atualmente. “Eles falaram: conseguimos a ajuda dos índios… O Ruschi adorou a ideia e aceitou se tratar com eles.”
A ligação apenas oficializou um desejo acalentado pela opinião pública à época. Diante daquela doença desconhecida, prestes a matar uma das mais ilustres figuras científicas do país, o governo e a sociedade brasileira buscaram, na tradição de seus índios, uma solução mágica. Sem outra alternativa, o Brasil recorreu às suas próprias raízes. E descobriu, entre deslumbramento e desespero, um processo autóctone, até então desprezado em seu sonho de desenvolvimento.
***
Aos 70 anos, Augusto Ruschi acumulava uma longa lista de serviços prestados para o meio ambiente. Como botânico e ornitólogo, catalogou centenas de espécies de plantas e animais, em especial orquídeas e beija-flores. Como ativista ecológico, foi dos poucos a enfrentar a Ditadura Militar contra o desmatamento da Amazônia. Ganhou notoriedade ao ameaçar com uma espingarda o ex-governador do Espírito Santo, Élcio Álvares, quando este tentou destruir a estação biológica de Santa Lúcia para plantar palmito.
Visionário, Ruschi alertou desde cedo para os perigos dos agrotóxicos e da monocultura de eucalipto. Ainda em 1951, previu, em um congresso na ONU, que as reservas ecológicas se transformariam nos bancos genéticos e habitats do futuro. Seus esforços tinham sido recompensados com medalhas e condecorações no Brasil e no exterior, mas só então, com os dias contados, o cientista ganhava a merecida atenção da imprensa nacional.
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Em 1975, Ruschi buscava novos exemplares de beija-flores, seu animal fetiche, na Serra do Navio, Amapá, quando se deparou com dezenas de dendrobatas, pequenos sapos coloridos e, consequentemente, venenosos. Pediu ajuda aos índios que o acompanhavam para capturá-los, mas estes se recusaram. O naturalista não os imitou. Um dia depois de apanhar sozinho trinta sapos, foi internado de Macapá com o coração acelerado.
[olho]”Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”[/olho]
Ruschi estava contaminado. Ano após ano, silenciosamente, a peçonha foi corroendo sua saúde. O fato permaneceu desconhecido do grande público até ser revelado pelo Jornal do Brasil, no dia 12 de janeiro de 1986. Assinada por Rogério Medeiros, a reportagem soava como uma espécie de obituário antecipado. Uma chamada estrondosa na capa daquele edição dominical anunciava que o fígado do “defensor intransigente das florestas” já se encontrava “irremediavelmente comprometido”.
Três dias depois, foi a vez do colunista Affonso Romano de Sant’Anna escrever uma crônica emocionada, que mobilizaria os governantes do país.
“Vai morrer. Está morrendo a cada hora, a cada palavra aqui escrita ou lida o cientista Augusto Ruschi”, anunciava o poeta e ensaísta.
Sant’Anna foi o primeiro a colocar os índios na jogada. Seu texto conclamava as autoridades a buscarem uma cura para aquele que ele definia como um “monumento nacional”. Se os laboratórios mais sofisticados não a tivessem, sugeria o colunista, talvez os povos da Amazônia, conhecedores da letalidade dos dendrobatas, encontrassem uma alternativa.
“Mas não podemos assistir a essa tragédia tropical achando que Édipo tem mesmo que matar seu pai e Antígona seus filhos”, continuava. “Não podemos ler assim impotentes a crônica de uma morte anunciada, como se fosse uma novela de García Márquez. Alguém tem que ter um remédio.”
O texto sensibilizou a opinião pública. De uma hora para outra, todos queriam ajudar. Homeopatas ofereceram seus serviços e admiradores imploravam por uma intervenção do Palácio do Planalto. Especializada em retratar a flora amazônica, a pintora inglesa Margaret Mee embarcou aos Estados Unidos para informar botânicos americanos sobre o estado de saúde do naturalista.
Em Brasília, o texto caiu nas mãos do então presidente José Sarney, que enxergou uma oportunidade para ganhar simpatia da opinião pública. Em seu segundo ano no cargo, o maranhense sofria para administrar um país destroçado por 20 anos de Ditadura Militar. Mesmo concorrendo com planos de congelamento de preços e denúncias de corrupção, o caso Ruschi dominava rádios e jornais. Todos os dias, uma nova notícia sobre o cientista ilustrava a capa do Jornal do Brasil.
Sarney não perdeu tempo: no avião em que voltava de Manaus, pediu ao Ministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, que a Funai procurasse a ajuda dos índios. Em um primeiro momento, o órgão indigenista se ofereceu para contatar os Waiapi, povo indígena da Serra do Navio, onde Ruschi havia sido contaminado, em busca de um antídoto. Finalmente, receberam no Palácio do Planalto o cacique Raoni, já internacionalmente reconhecido por sua luta pela preservação da Amazônia, e acordaram uma pajelança.
“Mas por que ele não avisou antes?”, perguntou o cacique, ao ser informado da doença que acometia Ruschi. Raoni encomendou o colhimento de uma raiz da selva chamada atorokon, cuja maceração e cozimento serviria de antídoto para o veneno. “Primeiro, bate a raiz e põe na água quente; quando vira água, pinga no olho; depois bebe um pouco; depois toma banho”, explicou. Um avião da FAB saiu de Brasília com destino ao Parque Nacional de Xingu para buscar o pajé Sapaim, que iria auxiliar Raoni no tratamento.
Cacique dos Txucarramães, Raoni havia sido tema de um documentário premiado com o Oscar, em 1978, e narrado por Marlon Brando. Nascido em 1930 no Mato Grosso e pertencente a um dos ramos da etnia caiapó, aprendera português aos 20 e poucos anos com os célebres indigenistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Boas. Um dos irmãos de Raoni também fora envenenado por um sapo dendrobata, e o cacique garantia agora conhecer o seu antítodo. Ele, porém, não era reconhecido como pajé, nem mesmo entre os caiapós. Como o tratamento exigia um pajé, convocaram também Sapaim, um kamayurá do Alto Xingu, considerado um dos maiores xamãs dos povos indígenas, inciado e consagrado pelo espírito Mamaé.
A passagem dos dois índios pelo Rio de Janeiro, onde iriam tratar Ruschi, foi um prato cheio para a mídia da época. Com seu disco de madeira no lábio inferior, Raoni era uma figura fácil de marcar. O jeito enigmático de Sapaim, que pela primeira vez saía de sua aldeia para visitar uma cidade, também foi motivo de folclore. A mídia acabou focando nos aspectos mais superficiais da cultura indígena. Como o interesse de Sapaim pela música da banda RPM, cuja fita-cassete levou para o Xingu (“Quero ouvir muito o som dessa fita, muito boa”). Ou o comportamento informal de Raoni, que não se conteve e soltou um estrondoso “grito de Tarzan” durante um encontro no Palácio do Planato, não se sabe bem por quê (ao seu lado, o ministro Costa Couto ficou envergonhado e resolveu sair às pressas).
Jornalistas do mundo inteiro vieram cobrir o episódio. Nas disputadas coletivas, os repórteres repetiam a mesma pergunta: como homem de ciência, o naturalista acreditava na fé dos índios? Não estaria ele se rendendo ao “curanderismo”? Ruschi, que já conhecia bem os povos do Xingu, tentou desfazer a oposição ciência/medicina popular. Em suas respostas, sempre enfatizava o conhecimento dos poderes das plantas pelos índios, lembrando que a medicina deles tinha dois mil anos, “muito mais tempo do que a nossa”.
“Até agora enfrentamos problemas com soro antiofídico, com gente morrendo todo dia em decorrência de picada de cobra. No entanto, nesses 50 anos de vida na Amazônia, vi os índios ingerirem chás e serem curados de veneno”, afirmou o naturalista em uma entrevista coletiva no Rio de Janeiro, às vésperas da pajelança.
[olho]Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”[/olho]
“Houve uma cultura sensacionalista, que, aliás, ainda é atual”, lembra o biólogo André Ruschi, segundo dos três filhos de Augusto, em entrevista por e-mail. “Uma parte da mídia foi interessante e prestou significativos serviços. Mas ainda muito superficial. Pouco investigativa. Havia alguns interesses comerciais que estavam sendo mobilizados formando-se um jogo comercial no mercado, oculto do público, da grande mídia.”
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Antes mesmo de encontrar Ruschi, Raoni já o havia examinado por foto. “Está com cara de sapo”, diagnosticou. Para o cacique, era preciso urgentemente “tirar o sapo” de dentro de seu paciente. A Sarney, contou ter visto Ruschi em sonho, numa lagoa cheia de anfíbios: “Ele já virou um sapo, mas esse sonho pode ser um bom presságio”. Os jornais reproduziram as palavras do cacique sem nenhum contexto, ignorando qualquer cosmologia por trás delas. Também pouco falaram do papel dos espíritos e dos sonhos na cura.
“O pajé fala com o doente de dia e de noite vai dormir. Quando sonha, sai do corpo e acompanha o espírito-guia, que no caso de Sapaim se chama Ypotramaé [mamaé da flor, ‘ipoty + mamaé’]”, explica o médico e antropólogo Wesley Aragão, que acompanhou Sapaim em suas pesquisas de campo. “O mamaé-guia do pajé o leva para uma floresta, em ‘viagem fora do corpo’, e lhe mostra quais ervas deve usar e que procedimento deve tomar, no dia seguinte, com o paciente. O pajé ao estilo de Sapaim age sempre desta forma. Todos têm o seu espírito guia com quem conversam de dia, em clarividência suposta, ou de noite, no sonho. No rito de cura, este sonho terapeutico com o espírito é determimante. Inclusive em termos de prognóstico”.
Segundo Wesley, o pajé é apenas um médium — quem realmente cura é o espírito, no caso Mamaé. Daí a importância do sonho.
“É o Mamaé quem diz tudo: se o doente vai viver, se vai sarar definitivamente ou temporariamente, o que ele deve fazer, o que o pajé deve fazer como e por quanto tempo. Tudo é o Mamaé quem diz. E o sonho é o momento de melhor comunicação entre aqui e o além, onde vive o Mamaé [no Mamaéretam, a terra dos espíritos]”.
***
Às 9h da manhã do dia 23 de janeiro de 1986, os índios chegaram pintados com tinta de jenipapo, como manda a tradição. O ritual aconteceria no casarão do Parque Lage, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro, e iria durar três dias e três noites. De manhã, durante a primeira sessão, os índios cobriram-se de urucum e sopraram a fumaça de um charuto de folhas de trinta centímetros no corpo do naturalista. Vinte minutos mais tarde, Raoni inclinou-se sobre ele, massageou-o com unguento e foi tirando, a partir de seu pescoço, uma substância escura e mal-cheirosa. Era, segundo Raoni, o veneno do dendrobata.
Na segunda sessão, à tarde, Raoni e Sapaim preparam um chá com a raiz de atorokon. A erva foi fervida e espalhada sobre Ruschi. Depois, os índios fumaram novamente o charuto e retiraram mais uma vez a substância. A cada sessão, ela vinha mais clara e em menor quantidade.
Ainda há controvérsias sobre a s funções exercidas por Raoni e Sapaim. Em suas entrevistas mais recentes, este último afirma que, por não ser pajé, Raoni não sabia os procedimentos de pajé.
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“O que Sapaim me disse é que Raoni só quis aparecer perante os brancos como pajé para mostrar sua pessoa, seu povo, impor sua autoridade”, revela Wesley. “Em decorrência disto, Raoni na ocasião disse muitas coisas sem sentido, e fez algumas ‘performances’ para simular a condição de pajé”.
[olho]”Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo”[/olho]
Entre todos os jornalistas, Rogério Medeiros foi o único autorizado a presenciar os rituais. No dia 24 de janeiro, ele publicou um relato no qual descrevia a última sessão:
“No encerramento, Sapaim disse que o veneno já estava diminuindo muito no corpo de Ruschi. E Ruschi, com a voz mais firme, muito tranquilo, sem dor — o que ressaltou logo — disse para mim, com os olhos muito acesos — o que não fazia há meses: ‘Olha, acho que eles acabaram me curando mesmo’.”
Aos repórteres, Augusto Ruschi afirmava estar totalmente recuperado. Os sangramentos haviam parado e seu intestino voltara a funcionar normalmente, algo que não acontecia há anos. Também dormia melhor — e até sonhava. “Estou sentindo um gosto de vida”, disse a Medeiros. Mas, apesar das manchetes e entrevistas otimistas, o naturalista ainda sofria de insuficência hepática grave, causada por uma cirrose. A retirada tardia do veneno pela pajelança lhe ajudou a recuperar forças, mas não trouxe a cura. Ele morreria quatro meses depois, aos 71 anos, em Vitória, de cirrose viriótica.
A autópsia não revelou nenhum traço de veneno. Para os médicos, tudo indica que a cirrose foi derivada pelo consumo excessivo de remédios contra a malária — e não pelos sapos. A morte por hepatite C, inoculada em coleta de sangue normal para exames de rotina, foi confirmada pelo seu médico particular e assessor de pesquisas, o cardiologista Pedro José de Almeida. Segundo André Rushi, o óbito não foi devidamente esclarecido na época por causa de um desentendimento entre Ruschi e Almeida.
Sapaim, por outro lado, acreditava que o naturalista estava enfraquecido por um câncer, conta Wesley Aragão.
“O que Sapaim me contou é que o envenenamento de Rushi não teve nada a ver com Mamaé, que é um envenanamento físico de fato, que o ‘sapo mijou nele’ e que o ‘veneno entrou nele’ e estava matando ele aos poucos”, relembra o antropólogo. “O que Sapaim diz ter feito foi ‘tirar o veneno do sapo do corpo de Ruschi’. Segundo Sapaim, este se encontrava ‘muito mal’, ‘quase morrendo’, ‘nao tinha voz, não aguentava andar e sangrava pelo nariz’. Quando ele tirou o veneno, Ruschi voltou a andar, a falar normal e parou de sangrar. Perguntei uma vez a Sapaim por que, então, Ruschi morreu alguns meses depois. Ele me respondeu que ‘a parte dele foi feita, ele tirou o veneno, mas Ruschi morreu de câncer porque estava já enfraquecido’.”
***
Em seu ato final, Ruschi fez o Brasil abrir os olhos para a medicina indígena. A intensa — e sensacionalista — exposição de seu tratamento trouxe uma visibilidade inédita, ainda que fugaz, para a ciência dos povos do Xingu. Raoni e Sapaim sabiam que o que estava em jogo ia muito além da saúde do cientista: “Nós dois temos que curar direito, senão o branco não acredita e brinca com índio”, declarou o cacique.
Em uma sociedade descrente, paralisada no labirinto da Década Perdida, o termo “pajelança” ganhou a boca do povo, como uma solução mágica para todos os males do momento. Se o xamanismo indígena podia salvar um dos mais ilustres brasileiros, por que não resolveria os outros problemas do Brasil? O banqueiro Marcílio Marques Moreira chegou a afirmar que o país precisa de “uma pajelança econômica”. E até o jogador Sócrates, que enfrentava uma lesão aparentemente incurável, cogitou chamar Raoni para dar um jeito em seu tornozelo.
“Curado”, Ruschi fez elogios públicos aos indígenas, à “cultura linda” que o havia socorrido. E foi pessoalmente agradecer José Sarney pela intervenção. Já o antropólogo Darcy Ribeiro e o político Mário Juruna — primeiro e único deputado federal indígena do país — acusaram o presidente de usar politicamente os índios. Ribeiro, aliás, também temia que o episódio provocasse uma corrida de brancos a aldeias indígenas, em busca de tratamento.
Sua preocupação tinha fundamento. Graças ao episódio, Raoni e Sapaim alcançaram status de celebridade, fazedores de milagre. Durante a pajelança, pacientes brancos correram ao Parque da Cidade pedindo à dupla que os examinassem. Houve até quem temesse que o local se tornasse um local de romaria: “A fama dos pajés está se espalhando, começa a aparecer gente pedindo informações”, disse um guarda. Assediado enquanto passeava no Centro do Rio, Raoni ouviu de uma senhora: “Esse aí tem que ser ministro da saúde”.
“Durante os dias de pajelança, Raoni e Sapaim ficaram concentrados no Parque da Cidade, não saíram de lá, e os jornalistas se instalaram ali por perto, esperando novidades”, lembra o fotógrafo Custodio Coimbra, do jornal “O Globo”, que na época cobriu o episódio pelo “Jornal do Brasil”. “Quando o tratamento acabou, os índios saíram para fazer compras na Casa Turuna [tradicional loja de fantasias do Rio] e toda a imprensa foi atrás, porque eles tinham virado uma atração na cidade.”
Em um dos seus plantões no Parque da Cidade, o fotógrafo ganhou um charuto de Sapaim, feito provavelmente com as mesmas ervas usadas na pajelança.
“Vi ele de longe, e fiz um sinal. Ele me chamou e deu o charuto de presente. O pessoal queria experimentar ali mesmo, mas eu preferi fumar em casa. Na época era comum fazermos projeções lá na minha casa, e em duas delas fumamos o charuto. Fazia uma fumaceira danada. E até dava um barato.”
[olho]”O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”[/olho]
Em sua coluna, Affonso Romano de Sant’Anna chegou a sugerir a exploração de uma farmacopeia que unisse “a sabedoria indígena e o que há de mais avançado na indústria química”. Raoni, porém, descartou qualquer possibilidade de industrializar a raiz atorokon. “A raiz não pode vender para o branco. Os brancos já têm seus remédios”, enfatizou.
“O caso Ruschi foi um marco para se pensar a tensa relação entre magia, religião e ciência”, diz a antropóloga Gisela Macambira Villacorta, especializada em antropologia da religião e da saúde, e professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. “A repercussão na mídia trouxe à tona algo que já estava ocorrendo no cotidiano: a redescoberta, por não-indígenas, dos sistemas de cura tradicionais. Isso acontece em função da crise da saúde no país, mas também da crise da medicina ocidental, da relação entre paciente e médico, que era e ainda é de muita distância. Na relação com o pajé, o paciente participa mais da cura, ambos são protagonistas, vivem junto o processo.”
No dia 26 de janeiro daquele ano, uma reportagem no “Jornal do Brasil” mostrava que o caso Ruschi havia devolvido o prestígio das ervas medicinais, com a busca de remédios naturais crescendo a cada dia. Um movimento superficial e momentâneo, mas que deixou marcas, acredita André Ruschi. Ele conta que, quando foi delegado do Conselho Estadual de Saúde do E. ES nas Plenárias Nacionais de Saúde, entre 1999 e 2006, conseguiu a aprovação do reconhecimento oficial das terapias alternativas, que foram incluídas no SUS e no ensino oficial dos cursos de medicina. A referência ao nome “Ruschi”, segundo ele, ajudou a fortalecer os argumentos junto aos delegados.
“A ciência médica é produto da coleta de informações populares que vão sendo confirmadas de maneira técnica para que possamos reproduzi-las de maneira consciente”, diz ele. “Portanto, [o caso] trouxe à luz, de maneira mais evidente, como ocorre este processo de assimilação de conhecimentos e desenvolvimento cultural.”
Quase três décadas após a pajelança, Raoni se tornou um ícone da preservação ambiental e da cultura ancestral, mas não deu continuidade a sua experiência como pajé. Sapaim se tornou conhecido especialmente entre pessoas brancas, urbanas, ligadas a movimentos new age, e continua atendendo pacientes famosos, como Leonardo DiCaprio e Gisele Bünchen. Já os alertas de Augusto Ruschi, que no dia 12 de dezembro de 2015 completaria 100 anos, nunca estiveram tão atuais.
“A ausência de política florestal leva o país a um desastre ambiental permanente com desertificação na maior parte do território nacional. Ele sempre advertiu sobre esta tendência. O combate aos agrotóxicos, a rejeição à monocultura, a política de criação de Unidades de Conservação são legados universais do pensamento de Ruschi, amplamente aceitos e adotados em todas as nações”, enumera André, que continua o trabalho do pai na Estação Biologia Marinha Ruschi, uma escola de ecologia dedicada à pesquisa, educação e cultura. Ele lamenta, no entanto, que a instituição continue sofrendo perseguições políticas e lutando contra a falta de apoio governamental.
Após a morte de Ruschi, não demorou um mês para o que o Espírito Santo começasse a sofrer uma nova onda de desmatamentos, que atingiu até sua terra natal, Santa Teresa, na região serrana Estado. Rogério Medeiros, que em 1995 escreveu o livro “Ruschi — o agitador ecológico” (Editora Record), lamenta que o legado do naturalista ainda não seja devidamente reconhecido em sua própria região.
“O mundo respeita Ruschi, mas o Estado inteiro do Espírito Santo, da Academia aos políticos, o odeia. Porque tudo que ele falou que ia acontecer no Estado já está acontecendo. Os estragos das mineradoras, a natureza se vingando, a situação do Rio Doce… Ele previu tudo isso.”
Acompanhar as indicações do Globo de Ouro para a televisão é sempre uma surpresa. Diferente do Emmy, em que é mais ou menos fácil prever a lista, o prêmio, que divulgou hoje (10) seus candidatos, é mais favorável a séries iniciantes, às vezes troca quase todos os indicados em uma categoria de um ano para o outro e olha com carinho para as séries originais dos serviços de vídeo sob demanda — e não só para as já figurinhas fáceis “House of Card”, “Orange Is the New Black” e “Transparent”.
Nesse ano não foi diferente. Foi um bom ano para o Netflix. “Narcos” concorre a dois dos prêmios principais: melhor série de drama e melhor ator em série de drama, com Wagner Moura (grande surpresa, mas infelizmente ele disputa com o favorito Jon Hamm, pelo fim de “Mad Men”). “Master of None” e “Better Call Saul” tiveram seus protagonistas, Aziz Ansari e Bob Odenkirk, indicados a melhor ator. “Orange Is the New Black” tem duas indicações, “House of Cards” e “Grace & Frankie”, uma. Até no cinema o Netflix foi indicado, com Idris Elba disputando o prêmio de melhor ator coadjuvante. Quase todas suas séries foram contempladas.
A Amazon também foi surpreendentemente bem. “Transparent” já é barbada, costuma concorrer e ganhar em todas as premiações de TV. Neste ano não foi diferente e tem a chance de repetir os prêmios de 2015 de melhor série de comédia e melhor ator em série de comédia e ainda concorre em melhor atriz coadjuvante. Mas nesse ano o serviço ainda conseguiu duas indicações para a pouco comentada “Mozart in the Jungle”, protagonizada por Gael García Bernal. E talvez a maior surpresa de todas: “Casual”, série do Hulu, também concorre a melhor série cômica.
É uma felicidade ver “Modern Family”, “The Big Bang Theory”, “Homeland” ou Maggie Smith (boa, mas chega, né?) completamente fora da disputa. Ou mesmo não ter ganhadores do ano passado, como a série “The Affair”, a atriz Ruth Wilson (da mesma série), ou Kevin Spacey (“House of Cards”). O Globo de Ouro fez escolhas menos óbvias, indicando “Scream Queens”, “Crazy Ex-Girlfriend”, “The Grinder”, “Blunt Talk” e “Mr. Robot”. Até Lady Gaga disputa um prêmio, como atriz de filme para a TV ou minissérie, por “American Horror Story: Hotel”.
Como todo bom prêmio, o Globo de Ouro também cometeu algumas injustiças. Indicar “Game of Thrones”, em sua pior temporada, no lugar de “Mad Men” é um insulto. “UnREAL”, uma das melhores estreias do ano, ou “The Americans”, que teve um ano incrível, seriam alternativas melhores. E se era para escolher um medalhão, que fosse “House of Cards”. “Game of Thrones” não fez por merecer. E quantas personagens Tatiana Maslany tem que interpretar para ser indicada pela série sobre clones “Orphan Black”? Na comédia, “Master of None” e “You’re the Worst” mereceriam uma indicação como melhor série também. Mas o Globo de Ouro é tão louco que quem sabe eles entrem no ano que vem.
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NA GRANDE TELA
No cinema, a situação se inverte um pouco e as surpresas são poucas. Como na maioria das categorias tem uma divisão entre filmes de comédia e de drama, quase todos os favoritos encontram uma vaga. Jennifer Lawrence, por exemplo, foi ignorada pelo sindicato de atores pelo filme “Joy”. Mas como as favoritas (Brie Larson, Cate Blanchett e Saoirse Ronan) vão se digladiar na disputa no drama, ela tem boas chances na comédia (Amy Schumer e Melissa McCarthy são algumas das concorrentes). Nessas categorias ainda tem o fato de que Oscar e Globo de Ouro discordam em relação a que prêmio certas atrizes devem disputar. No Oscar, Rooney Mara (“Carol”) e Alicia Vikander (“A Garota Dinamarquesa”) vão tentar como coadjuvantes, onde têm mais chance. No Globo de Ouro, concorrem ao prêmio principal mesmo.
O mesmo acontece na disputa de melhor ator. Matt Damon, até essa semana onipresente na lista de favoritos a ganhar uma indicação ao Oscar pelo sucesso “Perdido em Marte”, ficou de fora pelo sindicato dos atores. Como ator de comédia, também tem grandes chances, favorecido pelo fato de que Steve Carell e Christian Bale podem se anular na briga ao concorrer pelo mesmo filme, “A Grande Aposta”.
Talvez o grande esnobado tenha sido Johnny Depp, por “Aliança do Crime”. É o tipo de papel perfeito para premiações: envolve uma transformação física, é uma história real e ele interpreta um psicopata. Ficou um pouco mais fácil para Leonardo DiCaprio, que pode finalmente ganhar seu Oscar em 2016 (seu papel também é perfeito para prêmios, já que ele comeu fígado cru de bisão e dormiu pelado na carcaça de um animal). Outra ausência: “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, considerado candidato a uma indicação ao Oscar, não entrou na lista de filmes estrangeiros.
Pensando no número inclusivo de candidatos, talvez a lista de melhor diretor seja a mais significativa, já que une as duas categorias em uma só. Lenny Abrahamson, de “O Quarto de Jack”, e David O. Russell, de “Joy: O Nome do Sucesso”, por exemplo, ficaram de fora e perderam o lugar para George Miller, de “Mad Max: Estrada da Fúria”. De qualquer forma, tem sido raro o diretor vencedor do Globo levar o troféu no Oscar — Richard Linklater, que ganhou por “Boyhood” neste ano, que o diga.
Com todo o mundo incluído, a lista de indicados ao Globo de Ouro no cinema não é muito polêmica e nem é o melhor termômetro para o Oscar. Nem os resultados significam muita coisa, aliás, já que frequentemente os resultados das premiações divergem (DiCaprio tem dois Globos de Ouro, por exemplo). De qualquer forma, o prêmio é divertido. Com os atores bebendo em mesas grandes, como num casamento, e apresentadores com menos medo de forçar a barra nas piadas, o Globo de Ouro é uma ótima parada na longa temporada anual de premiações.
A lista completa de indicados:
CINEMA
FILME DE DRAMA
“Carol”
“Mad Max: Estrada da Fúria”
“O Regresso”
“O Quarto de Jack”
“Spotlight – Segredos Revelados”
FILME DE COMÉDIA
“A Grande Aposta”
“Joy: O Nome do Sucesso”
“Perdido em Marte”
“A Espiã que Sabia de Menos”
“Descompensada”
DIRETOR
Todd Haynes, “Carol”
Alejandro Iñárritu, “O Regresso”
Tom McCarthy, “Spotlight – Segredos Revelados”
George Miller, “Mad Max: Estrada da Fúria”
Ridley Scott, “Perdido em Marte”
ATRIZ EM DRAMA
Cate Blanchett, “Carol”
Brie Larson, “O Quarto de Jack”
Rooney Mara, “Carol”
Saoirse Ronan, “Brooklyn”
Alicia Vikander, “A Garota Dinamarquesa”
ATRIZ EM COMÉDIA
Jennifer Lawrence, “Joy: O Nome do Sucesso”
Melissa McCarthy, “A Espiã que Sabia de Menos”
Amy Schumer, “Descompensada”
Maggie Smith, “A Senhora da Van”
Lily Tomlin, “Grandma”
ATRIZ COADJUVANTE
Jane Fonda, “Youth”
Jennifer Jason Leigh, “Os Oito Odiados”
Helen Mirren, “Trumbo”
Alicia Vikander, “Ex-Machina: Instinto Artificial”
Kate Winslet, “Steve Jobs”
ATOR EM DRAMA
Bryan Cranston, “Trumbo ”
Leonardo DiCaprio, “O Regresso”
Michael Fassbender, “Steve Jobs”
Eddie Redmayne, “A Garota Dinamarquesa”
Will Smith, “Um Homem entre Gigantes”
ATOR EM COMÉDIA
Christian Bale, “A Grande Aposta”
Steve Carell, “A Grande Aposta”
Matt Damon, “Perdido em Marte”
Al Pacino, “Não Olhe para Trás”
Mark Ruffalo, “Sentimentos que Curam”
ATOR COADJUVANTE
Paul Dano, “Love & Mercy”
Idris Elba, “Beasts of No Nation”
Mark Rylance, “A Ponte dos Espiões”
Michael Shannon, “99 Homes”
Sylvester Stallone, “Creed: Nascido para Lutar”
ROTEIRO
Emma Donoghue, “O Quarto de Jack”
Tom McCarthy, Josh Singer, “Spotlight – Segredos Revelados”
Charles Randolph, Adam McKay, “A Grande Aposta”
Aaron Sorkin, “Steve Jobs”
Quentin Tarantino, “Os Oito Odiados”
FILME DE ANIMAÇÃO
“Anomalisa ”
“O Bom Dinossauro”
“Divertida Mente”
“Snoopy & Charlie Brown: Peanuts, o Filme”
“Shaun: O Carneiro”
CANÇÃO ORIGINAL
“Love Me Like You Do”, “Cinquenta Tons de Cinza”
“One Kind of Love”, “Love & Mercy”
“See You Again”, “Velozes & Furiosos 7”
“Simple Song No. 3”, “Youth”
“Writing’s on the Wall”, “007 Contra Spectre”
FILME ESTRANGEIRO
“The Brand New Testament”
“The Club”
“The Fencer”
“Cinco Graças”
“O Filho de Saul”
TELEVISÃO
SÉRIE DE DRAMA
“Empire”
“Game of Thrones”
“Mr. Robot”
“Outlander”
“Narcos”
ATOR EM SÉRIE DE DRAMA
Jon Hamm, “Mad Men”
Rami Malek, “Mr. Robot”
Wagner Moura, “Narcos”
Bob Odenkirk, “Better Call Saul”
Liev Schreiber, “Ray Donovan”
ATRIZ EM SÉRIE DE DRAMA
Caitriona Balfe, “Outlander”
Viola Davis, “How to Get Away With Murder”
Eva Green, “Penny Dreadful”
Taraji P. Henson, “Empire”
Robin Wright, “House of Cards”
SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
“Casual”
“Mozart in the Jungle”
“Orange Is the New Black”
“Silicon Valley”
“Transparent”
“Veep”
ATRIZ EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
Rachel Bloom, “Crazy Ex-Girlfriend”
Jamie Lee Curtis, “Scream Queens”
Julia Louis-Dreyfus, “Veep”
Gina Rodriguez, “Jane the Virgin”
Lily Tomlin, “Grace & Frankie”
ATOR EM SÉRIE DE COMÉDIA OU MUSICAL
Aziz Anzari, “Master of None”
Gael García Bernal, “Mozart in the Jungle”
Rob Lowe, “The Grinder”
Patrick Stewart, “Blunt Talk”
Jeffrey Tambor, “Transparent”
MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
“American Crime”
“American Horror Story: Hotel”
“Fargo”
“Flesh & Bone”
“Wolf Hall”
ATOR EM MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
Idris Elba, “Luther”
Oscar Isaac, “Show Me a Hero”
David Oyelowo, “Nightingale”
Mark Rylance, “Wolf Hall”
Patrick Wilson, “Fargo”
ATRIZ EM MINISSÉRIE OU FILME PARA A TV
Lady Gaga, “American Horror Story: Hotel”
Sarah Hay, “Flesh & Bone”
Felicity Huffman, “American Crime”
Queen Latifah, “Bessie”
Kristen Dunst, “Fargo”
ATRIZ COADJUVANTE EM TV
Uzo Aduba, “Orange Is the New Black”
Joanne Froggatt, “Downton Abbey”
Regina King, “American Crime”
Judith Light, “Transparent”
Maura Tierney, “The Affair”
ATOR COADJUVANTE EM TV
Alan Cumming, “The Good Wife”
Damien Lewis, “Wolf Hall”
Ben Mendelsohn, “Bloodline”
Tobias Menzies, “Outlander”
Christian Slater, “Mr. Robot”