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Entre os muros da escola de música

Em uma estreita rua no bairro do Ipiranga, já perto de Heliópolis, um prédio grande chama a atenção entre as vendinhas e casas. Crianças não param de entrar: sozinhas, em duplas, acompanhadas pelos pais, ou vindas de um grande ônibus amarelo que para ali na frente de tempos em tempos, levando e trazendo crianças do bairro, passando pela entrada da favela até chegar ali. É lá que fica, desde 2005, o Instituto Baccarelli, que dá aulas gratuitas de música para 1.300 jovens, boa parte vindos da comunidade vizinha.

O Instituto, criado em 1996 pelo maestro Silvio Baccarelli, é inspiração para o filme “Tudo que Aprendemos Juntos”, que estreia hoje (3). Nele, Lázaro Ramos é um violinista talentoso que trava na hora de uma importante audição para a Osesp e, sem outro trabalho, aceita dar aulas na favela de Heliópolis para um grupo de 25 adolescentes que se prepara para uma apresentação para uma ONG.

Não é propriamente um filme “baseado em fatos reais”, mas tem uma proximidade grande com o trabalho do Instituto. Parte dos jovens atores vem, inclusive, de suas salas de aula, escolhidos através de testes. É o caso de Thais Plastina, contrabaixista de 22 anos, e Lucas Andrade, flautista de 20, que hoje fazem parte da Orquestra Sinfônica de Heliópolis e fazem sua estreia no cinema. Os dois eram estudantes do Instituto quando a equipe do diretor Sérgio Machado passou por lá fazendo testes, já que queria que todos os atores fossem músicos da comunidade — Lucas mora em Heliópolis e Thais, no Jardim Patente, ali perto.

 

Coral do Instituto Baccarelli
Coral do Instituto Baccarelli

O primeiro contato de Thais com a música foi por meio de um teclado dado pelo avô, que o pegou depois que alguém o jogou fora. Era tão pequenininha que nem se lembra ao certo de quando foi. Só diz que aquilo nunca foi um hobby. Desde que encostou num instrumento, soube que era aquilo que queria fazer, apesar de não ter nenhum músico na família. “Foi um susto pra eles, mas dei a cara a tapa. Era isso que eu queria.”

Ainda criança começou a cantar na igreja. Aos 14 anos, uma amiga da escola falou do Instituto, que dava aulas gratuitas de música. “Eu nem acreditei. Precisei vir ver”, diz, um dia antes da estreia do filme numa sala de aula do Instituto. Ela queria aprender a tocar cello, mas não passou no teste. A mesma amiga sugeriu que ela tocasse contrabaixo como ela, já que seu professor tinha vagas. “Pensei que depois mudaria de instrumento, mas depois você se apega. Gostei da frequência grave. Brinco que o contrabaixo me escolheu.” Para pagar seu instrumento, vendeu trufas durante um ano no Instituto.

Lucas entrou no Instituto ainda mais novo, aos oito anos — há aulas de musicalização para crianças desde os quatro anos de idade –, quando a sede ainda ficava na Vila Mariana, na casa de Silvio Baccarelli. Ele dedilhava um violão encostado em casa, até que o levaram ao Instituto. Começou na percussão e odiou. Pensou em deixar as aulas, até que ouviu uma aula de flauta e se apaixonou. Hoje, toca flauta transversal e piccolo, também da família das flautas.

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FOGO EM HELIÓPOLIS

No filme de Sérgio Machado, o professor de violino que desperta nos alunos da comunidade a paixão pela música chega lá a contragosto e não tem intenção de criar raízes. Seu objetivo é ganhar tempo enquanto não passa em outra audição para a Osesp. Na vida, foi diferente. O Instituto foi criado pelo maestro depois de um incêndio ter atingido Heliópolis. Ele viu aquilo pela televisão e quis ajudar a comunidade de alguma forma. Procurou uma escola pública da região e passou a ensinar instrumentos de orquestra a um grupo de 36 alunos em seu próprio imóvel.

Anos mais tarde, a Prefeitura lhe cedeu um terreno. A organização Pró-Vida construiu o primeiro prédio, com três andares e salas de aula e ensaio. Suas paredes são levemente curvas, o que é quase imperceptível aos olhos, para que a acústica seja a melhor possível. Um segundo prédio foi construído pela Eletrobras.

Hoje, os corredores andam cheios de crianças, que correm em grupos pelos corredores. Até chegar na porta da sala de aula. Enquanto cerca de cem jovens — de pequeninos a já adolescentes — ensaiam uma apresentação do coral com músicas de Natal para a Catedral da Sé, três meninas quietinhas olham pelo vidro e se perguntam se podem entrar, só para assistir.

Dentro das salas, as aulas são levadas a sério. Em um momento, o maestro interrompe a apresentação, quando o coral já está acompanhado por uma orquestra, e aponta para um grupo: “Ou vocês me ajudam ou saem. Não é a primeira vez que vejo vocês dando risada”. Filmados para um canal de TV, os músicos falham. O maestro para o ensaio: “Não tem TV aqui. Somos só nós aqui”. A concentração volta.

Mais de mil alunos hoje são de Heliópolis. Há dois jeitos de entrar no Instituto: para aqueles que estão iniciando e querem aprender um instrumento, é preciso ser morador da região e estar matriculado em uma escola pública. Quem tem um nível avançado de algum instrumento sinfônico pode fazer um teste para as Orquestras Juvenil e Sinfônica de Heliópolis, as únicas que permitem membros de fora da comunidade. Regida por Isaac Karabtchevsky é composta por alunos avançados do Instituto. Pelo quinto ano consecutivo, a Orquestra teve uma temporada regular de concertos na Sala São Paulo.

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DEDICAÇÃO TOTAL

Quem toca nas orquestras continua tendo aulas no Instituto e a rotina, dizem Thais e Lucas, é puxada. Há uma aula individual semanal de instrumento, há aulas de naipes e ensaios com a Orquestra. A partir de uma idade é preciso escolher entre levar o instrumento a sério e fazer outras atividades. Lucas dançava num grupo em São Caetano e o largou — assim como as aulas de computação e o futebol. O único momento em que deixaram os estudos um pouco de lado foi durante a gravação do filme, em 2012.

Todos os membros do elenco tiveram de fazer aulas no Instituto. Lucas também passou por algumas dificuldades, já que em “Tudo que Aprendemos Juntos” ele toca viola, e não flauta. “Nunca tinha tocado. Como a gente é músico, tem uma noção. Mas foi punk aprender”, conta. Hoje diz que só pega o instrumento de vez em quando. Para Thais, uma das dificuldades foi “dublar” seu instrumento. As músicas eram gravadas previamente em estúdio, pelas orquestras do Instituto, e ela tinha que fingir tocar em cena, sem encostar nas cordas. “Só fazendo aquela cara de quem está tocando”, brinca Lucas.

Embora o Instituto Baccarelli não apareça no filme, os dois dizem que ele está lá o tempo todo. As músicas foram tocadas por seus alunos, os professores deram aulas a todos do elenco (inclusive ao diretor, que diz ter sido um desastre como músico) e há muito deles mesmos ali. Tem um pouco de improviso? “Um pouco?”, Thais gargalha. “A gente não tinha roteiro!”, completa Lucas. Eles explicam um pouco melhor: Sérgio Machado tinha alguma ideia de como a cena iria se passar, mas a partir disso a bola estava com ele.

Em uma cena, Laerte, o personagem de Lázaro, pega um papel que circula entre os alunos e vê que ali estão escritas as notas da música, não como notas numa partitura, que eles não sabiam ler, mas por extenso: dó, ré, mi… Ele pergunta o que é aquilo. “O Joabe estava lá só pra acompanhar e diz: ‘ué, são notas, professor’. A gente queria dar risada, mas não podia”, lembra Lucas. Também em uma cena de sala de aula, Laerte diz que eles passarão a ter aulas de sábado. Os alunos debatem: alguns trabalham, outros têm que ajudar em casa, nem todo o mundo pode… Até que uma das meninas faz um desabafo emocionado sobre a importância daquelas aulas em sua vida. Tudo verdade, tudo espontâneo.

Lucas diz que todos os meninos do filme viraram irmãos. Ver o resultado nas telas foi o momento mais emocionante de sua vida, conta. “A gente se emociona muito com a mensagem. É um trabalho muito bonito. E se ver num trabalho desses…”, diz Thais. “A pena é que a gente vai concorrer com ‘Star Wars’.”

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As fanfics da vida real

Anna Todd, 25, parece uma americana como qualquer outra. Às 11h já está de cílios postiços e entra na sala com um copo de Starbucks na mão e um vestido de mangas compridas num calor paulistano de 32ºC (“Vim preparada pro frio, é inverno aqui, não?”). Como outras tantas garotas, começou a publicar alguns textos na internet, escritos no celular, sem grandes pretensões. Mas o motivo da visita de Anna ao Brasil em setembro é pouco comum: lançar um dos volumes de sua série de livros — aqueles digitados no telefone –, fenômeno juvenil que vai virar filme e lhe deu um contrato de milhões de dólares. Livros eróticos com os membros da boy band One Direction.

Na internet, o cantor Harry Styles é um stalker. É também um garoto mimado num mundo distópico. Tem um caso com o companheiro de boyband Louis Tomlinson. É ainda um jovem punk, um rebelde sem causa, um apresentador de TV, um psicopata. O cantor Harry Styles é, em suma, uma tela em branco para suas fãs projetarem suas fantasias em fanfics publicadas na internet. A única semelhança entre a maioria das histórias é: Harry Styles é um deus do sexo.

Há uma quantidade absurda de textos de ficção com os cantores da banda — principalmente Harry, o mais conhecido — por aí. Dá para achar os tradicionais textos de comédia romântica, mas também de terror, ficção científica, ação ou religiosos. Nenhuma novidade aí: ler e publicar fanfics na internet é comum entre pré-adolescentes desde pelo menos o início dos anos 2000, auge da era Harry Potter. Mas agora a moda é escrever sobre ídolos reais. E mais: essas ficções, vistas como gênero literário menor, mostram que podem virar livros best-sellers.

A trama de Anna Todd, “After”, era só mais uma nesse mar de histórias e — sucesso à parte — é um caso clássico de como funciona o universo das fanfics. Anna era uma fã da banda, leitora de outras fanfics, que começou a escrever sem grandes planos, um capítulo de cada vez, contando com os comentários de outros leitores. Mas sua história foi crescendo, crescendo, até ser visualizada mais de 1 bilhão de vezes no site de autopublicação Wattpad.

“Há tantas fanfics de One Direction. Até mais que de ‘Crepúsculo’”, diz Anna, citando outro fênomeno juvenil que inspirou, por exemplo, “Cinquenta Tons de Cinza”, de E.L. James. Ela era uma leitora ávida até que se encontrou sem novos capítulos das histórias que acompanhava e resolveu começar sua própria trama. “Eu escrevia ‘imagines’, sabe?”, conta, falando tão rápido que digo que sim antes mesmo de pensar a respeito. Para os não iniciados, uma pequena explicação: são histórias curtas, às vezes de um parágrafo, publicadas no Instagram ou no Tumblr.

Quando teve uma ideia para uma história maior, migrou para o Wattpad. “As ideias surgiam enquanto eu ia escrevendo, eu não tinha noção de para onde estava indo”, diz. Logo Anna passou a escrever loucamente em seu celular (digita mais rápido no telefone do que no computador, afirma) por até seis horas ao dia. “Eu não fazia mais nada. Meu marido me perguntava se eu queria ir ao cinema e eu dizia que estava ocupada. E ele não sabia o que eu estava fazendo, só achou que eu fosse obcecada por meu telefone.”

Anna tentou manter a atividade em segredo, pois tinha medo do que as pessoas diriam se descobrissem que ela passava tanto tempo escrevendo ficção sobre One Direction. Diz que fanfics já não têm tanto prestígio, e que mesmo entre essas ficções os textos sobre a boyband são malvistos. Foi só quando começaram a fazer matérias sobre ela que resolveu contar para o marido e amigos. E, para sua surpresa, ninguém ligou.

 

Anna Todd. Crédito: JD Witkowski/Divulgação
Anna Todd. Crédito: JD Witkowski/Divulgação

CHRISTIAN STYLES

Sua premissa é bem simples e lembra bastante, em certos pontos, a de “Cinquenta Tons de Cinza”, que teve trajetória parecida com a sua — saiu na internet, foi publicada por uma editora e depois virou filme. Tessa é uma jovem virgem, super careta, que deixa a casa da mãe para ir à faculdade. No primeiro dia por lá, conhece Harry Styles, estudante punk, todo tatuado, do tipo difícil e que não cultiva relacionamentos — até conhecer Tessa (Christian Grey, é você?).

Os capítulos publicados no Wattpad são curtos, para ler em cinco minutos. Quem encarou “Cinquenta Tons” sabe mais ou menos o que esperar: diálogos que beiram o constrangedor e cenas de sexo que não são lá super sexy, mas algo te leva a seguir em frente. Quando você vê, gastou duas horas do seu dia com o casal Hessa, como a dupla ficou conhecida entre os fãs.

Anna diz que demorou para perceber o sucesso que tinha em mãos, apesar de os números não pararem de crescer. O baque veio quando descobriu que haviam criado contas nas redes sociais para seus personagens. Havia o perfil de Tessa, o perfil de Harry, e os dois conversavam como se existissem de verdade. “Como uma fã da banda, sei que quando essas contas aparecem o negócio é grande”, diz. “A conta do Harry no Instagram tinha 25 mil seguidores e eles atualizavam a cada capítulo. Foi aí que vi que os leitores estavam se dedicando à história.”

No Wattpad, pessoas se identificando como agentes literários começaram a procurá-la. “Podia ser real, mas eu pensava: que tipo de pessoa louca iria publicar uma fanfic de One Direction? Eu não respondia, simplesmente ignorava”, lembra. Mas, nos comentários, viu que alguns leitores estavam imprimindo a história para ler no papel e pensou em fazer exemplares para quem quisesse, cobrando apenas o preço de custo. Comunicou a decisão no Twitter e 24 horas depois funcionários do Wattpad mandaram uma mensagem, dizendo que queriam entrar no negócio. Falaram com algumas editoras, Anna foi a Nova York e optou por uma. “Achei que todos os escritores tivessem o privilégio de escolher. Não é verdade.”

MULTIDÃO DE EDITORES

A única exigência que Anna fez foi manter a versão virtual no ar. “A maioria das pessoas tira suas histórias da internet [quando o livro é publicado por uma editora]. A E.L. James tirou. Respeito totalmente essa decisão, cada um tem suas razões, mas acho que o único motivo para o livro ter ficado tão grande foi o fato de que as pessoas estavam lendo. Seria estranho tirar do ar”, diz. “Meu contrato com a editora me permite postar uma parte dos meus próximos quatro livros no Wattpad. As pessoas devem pagar por livros, mas muita gente não pode. Acho importante que eles estejam disponíveis de graça.”

Escrever no Wattpad, em sua opinião, tem como vantagem dar ao escritor uma multidão de editores, fazendo comentários sobre a trama e apontando pequenas discrepâncias que ela não tinha notado — como a cor do carro de Tessa, que era diferente em vários pontos da história. “Geralmente o livro passa pelo editor. O meu foi direto para o público. Eu gostei, porque eu meio que sabia o que estava fazendo, mas não o tempo todo”, ri.

O Wattpad é uma das poucas redes sociais em que quase todos os comentários são positivos, avalia. “Mesmo que fosse algo negativo, normalmente as intenções são boas. Às vezes aparecem uns loucos, mas isso acontece em todo lugar”, diz. “Todo o mundo está lá porque ama ler e escrever. Então não tive medo.”

Quando o texto passou por um editor de verdade, várias pequenas coisas tiveram de mudar para deixar o texto mais com cara de livro e menos com cara de ficção de fã. “Em fanfic você tem liberdade para colocar coisas que não importam para a estrutura da história”, diz. O livro tem mais sexo e “linguagem vulgar”, porque no site crianças poderiam parar ali sem querer. E o fim é diferente, já que ela tinha odiado o desfecho da internet. “Felizmente pude fazer tudo de novo.”

HARRY PUNK

Entre todos os garotos da banda, Harry Styles é o protagonista mais recorrente das fanfics. Por que Harry? “Não faço ideia, de verdade! Geralmente quando leio ficção de One Direction eu prefiro Zayn [Malik]. Mas quando comecei, por alguma razão, ninguém mais me veio à cabeça. Foi estranho.” E, mais importante, por que um Harry punk? “Na época estava na moda a edição punk. As pessoas pegavam fotos dos caras da banda e colocavam tatuagens. Isso antes de eles se cobrirem de tatuagem na vida real. Hoje Harry tem um monte, mas lá atrás só tinha umas duas”, lembra.

Além de achar que ele ficava gato daquele jeito, pensou que teria uma liberdade maior como autora se o personagem não fosse tão parecido com o Harry da vida real. “Eu gosto de fanfics de universos alternativos. Com uma versão oposta, como um Harry punk, posso ser mais criativa. Ele poderia ser totalmente louco por ser tão diferente do Harry real”, explica.

Os textos de fãs sobre One Direction frequentemente deixam de lado a personalidade dos cantores, que são usados apenas pelas suas características físicas. Diferente, por exemplo, das ficções de Harry Potter: apesar de haver algumas mudanças em relação à história de J.K. Rowling (Draco Malfoy gay era uma versão popular), a essência dos personagens era geralmente parecida com a dos livros.

Na versão impressa de “After”, inclusive os nomes dos personagens foram trocados por razões legais. Embora seja permitido criar histórias fictícias sobre celebridades, não se pode vender mercadorias com o nome delas sem sua autorização. Enquanto Anna não ganhava dinheiro, publicando na internet, não havia problema. Mas não poderia usar o nome Harry Styles no livro.

A questão do uso de pessoas reais em livros de ficção não diz respeito só a escritores de livros juvenis. Recentemente, a atriz Scarlett Johansson se envolveu em uma disputa legal pelo uso de seu nome em um livro do francês Grégoire Delacourt. Em “La Première Chose Qu’on Regarde” (a primeira coisa que vemos), o protagonista conhece uma mulher que acredita ser Scarlett. Não se trata, entretanto, da atriz, e sim de uma sósia, com a qual ele começa um relacionamento. Na França, o livro vendeu mais de 140 mil exemplares.

A atriz processou o escritor no ano passado, afirmando que o livro era uma exploração fraudulenta e ilegal de seu nome, sua reputação e sua imagem, e que havia afirmações difamatórias sobre sua vida pessoal. Seu objetivo era impedir a tradução do texto ou uma adaptação para o cinema. Em agosto, porém, suas demandas foram rejeitadas e o livro pôde ser traduzido para o inglês. O juiz concedeu que houve um ataque à sua imagem quando o autor cita dois relacionamentos que ela não teve na vida real e, por isso, ganhou 2.500 euros e uma nova edição do livro sem esses trechos. Delacourt, por sua vez, afirmou que a referência à atriz foi bem-intencionada.

Para evitar esse tipo de problema, Anna tirou os nomes dos cantores, embora toda a publicidade do livro tenha girado em torno do fato de que ele falava do One Direction. Mesmo com essa omissão, alguns fãs da banda não gostaram de ver seu ídolo Harry Styles retratado como um cara tão problemático. “No começo, quase todos os fãs da banda gostavam. Foram eles que fizeram o livro o que é. Mas quando eu fui ficando famosa, eles passaram a se voltar contra mim”, afirma. “Mas são pessoas muito jovens. E não levo as críticas a sério, porque antes elas gostavam e só pararam de gostar porque era ‘cool’ não gostar. Os fãs de One Direction são conhecidos por serem maus na internet.”

Agora, Anna vive o mundo viajando, escrevendo outros livros (inclusive uma versão da história sob o ponto de vista de Harry, tal qual E.L. James fez com “Cinquenta Tons de Cinza”) e acompanhando a versão cinematográfica — na qual não tem direito de palpitar, apesar de agradecer a roteirista por deixar que ela o faça mesmo assim.

Em cada lugar diz ter uma experiência bem diferente. Na Alemanha, por exemplo, seus fãs são homens mais velhos. “Não sei por quê. Cheguei numa sessão de autógrafos e achei que eles fossem pais das meninas, mas não.” Nos países latinos também encontra mais garotos. “Tem uns dez meninos em cada sessão. Nos Estados Unidos tem sempre só um.” E, para provar que fanfic de celebridade não é só coisa de garota, na França encontrou um rapaz de 25 anos que disse imaginar Taylor Swift como Tessa, assim como as meninas veem o protagonista como Harry Styles. “Achei demais.”

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Dois séculos de ‘Emma’

Dos livros de Jane Austen (1775-1817), “Orgulho e Preconceito” é provavelmente o mais conhecido. Entre os fãs mais fervorosos, o preferido talvez seja “Persuasão”. Mas para os críticos e estudiosos é “Emma” a obra-prima da escritora. O livro, que completa 200 anos em dezembro, ganha agora uma edição de luxo pela Penguin, e será tema de um curso na Universidade Oxford, no Reino Unido. O interesse de editores e acadêmicos num livro ambientado na Inglaterra do século 19 tem uma explicação: seus temas, como as barreiras entre classes e, principalmente, a independência feminina, ainda ressoam pelo mundo.

Emma, a protagonista do livro, é uma rica mulher de 20 anos mais interessada em arrumar pretendentes para as pessoas ao seu redor do que encontrar um marido. Convencida de que foi responsável por juntar a melhor amiga com o noivo, Emma resolve se tornar casamenteira, metendo constantemente os pés pelas mãos sem jamais reconhecer que está errada. Enquanto trama com a vida alheia, jura que não vai se casar e que prefere passar a vida a cuidar de seu pai e administrar a casa. Emma preza sua independência.

Apesar de bem-intencionada, a personagem é mimada e um pouco esnobe. Em carta enviada a um amigo, Austen afirmou, inclusive, que provavelmente ninguém gostaria de sua heroína. Mas são justamente seus defeitos que tornam a personagem mais interessante do que a quase perfeita Elizabeth Bennet, de “Orgulho e Preconceito”, por exemplo. Emma não é um modelo a ser seguido, mas alguém que qualquer um poderia ser. O amor por ela dificilmente acontece à primeira vista, mas aos poucos ela conquista o público por ser uma personagem cheia de camadas, real, com a qual o leitor consegue estabelecer uma conexão — numa época em que personagens femininas eram menos complexas.

“Certamente as pessoas se identificam com ela por causa de seus defeitos! O celebrado crítico Lionel Trilling (1905-1975) disse uma vez, nos anos 1950, que era notável que Emma tivesse uma vida moral, como homens têm uma vida moral”, diz Emma Clery, professora da Universidade Southampton que pesquisa Jane Austen e dará uma aula no seminário de Oxford em maio do próximo ano. “Ela representa uma grande mudança em relação às heroínas perfeitas da maior parte da ficção do século 18.”

Clery vê, inclusive, semelhanças entre a Emma de Austen e a Emma Bovary de Gustave Flaubert (1821-1880). “Há um descompasso entre a afirmação, no início do livro, de que Emma tem muito pouco para afligi-la ou aborrecê-la e as informações de que ela perdeu a mãe muito cedo, é efetivamente escrava de um pai velho, bobo e exigente, e vive quase sem amigos, aspirações ou esperança de mudança”, avalia. “Ela pode ser materialmente privilegiada e esnobe, mas tem um vazio espiritual que sugere um parentesco com Bovary.”

LEITURAS MÚLTIPLAS

Como sua protagonista, “Emma” melhora com o passar do tempo. Sandie Byrne, pesquisadora de Austen em Oxford, o leu pela primeira vez na adolescência e o releu “muitas vezes” desde então. “Encontro mais coisas para admirar e me divertir a cada vez”, conta. Octavia Cox, que dá um curso online de Jane Austen na mesma universidade, teve o primeiro contato com o livro aos 12 anos. Não gostou nem um pouco. “Era muito nova para entender as nuances. Jane Austen deve ser relida, na minha opinião.”

Já Juliette Wells, editora do novo volume da Penguin, o leu por obrigação na escola. “Se você tivesse me dito que um diria eu faria minha própria edição do livro, não teria acreditado!”, lembra. “Eu me surpreendi com quanto meu apreço por esse romance cresceu trabalhando com ele. Fiquei particularmente impressionada pelo grande domínio da linguagem de Austen. Ela escolheu as palavras com tanto cuidado e tanta inteligência.”

Para ela, “Orgulho e Preconceito” é o livro de Jane Austen mais fácil de se gostar, por causa da memorável história de amor entre Elizabeth e Mr. Darcy. “Razão e Sensibilidade”, por sua vez, se popularizou com o sucesso de sua versão cinematográfica, de 1995. Mas é em “Emma” que Austen se supera como escritora. “Ela cria uma história envolvente com elementos muito banais”, afirma. Diferente de outros livros, em que os personagens viajam e os cenários variam, “Emma” se passa no mesmo lugar, com as mesmas pessoas, e mesmo assim consegue impressionar.

“Os críticos muitas vezes descrevem ‘Emma’ como a obra-prima de Austen: é menos agradável — com uma preponderância de personagens ‘difíceis’, incluindo a heroína –, mas é artístico e complexo. Austen tem um controle notável do enredo, construindo suspense e excitação com meios mínimos”, analisa Clery. “É nesse livro que seu uso do discurso indireto livre, que funde a voz do narrador com a perspectiva interna do protagonista, é usado com um estilo realmente virtuoso.”

Na opinião de Clery, “Emma” é um livro totalmente radical, quase como um protesto. “Austen virou as costas para o sucesso de ‘Orgulho e Preconceito’ e desafiou o gosto da época por melodramas, locações exóticas e eventos fantásticos”, diz. “E apesar de sombrio em espírito, tem muitas cenas engraçadas e alguns dos melhores personagens cômicos de sua obra.”

PATRICINHA DE BEVERLY HILLS

Duzentos anos depois, os temas do livro pouco envelheceram, afirma Wells. “Cada um de nós lida com relacionamento familiares, então reconhecemos algo nas descrições do livro de pais, filhos e irmãos. Todos nós pensamos em como achar um parceiro para a vida, então sua preocupação com namoro e esposos compatíveis é algo que compartilhamos”, diz.

“Os detalhes de nosso cotidiano e oportunidades são muito diferentes dos de seus personagens, mas os personagens em si nos lembram de gente que conhecemos graças à genialidade de Austen em observar e a seu talento para criar diálogos e atitudes críveis”, elogia a editora.

Clery concorda. “Críticos literários demonstram a importância de muitos temas de ‘Emma’ que ainda são atuais — feminismo, classes, a chegada da modernidade, a representação da subjetividade. Eu poderia falar mais e mais sobre isso”, afirma. “Eu me interesso particularmente na ênfase da economia na obra de Austen. Thomas Piketty, autor de ‘O Capital no Século 21’, o best-seller de economia do ano passado, discute bastante sua ficção, assim como a de Balzac.”

Talvez por isso a melhor adaptação de “Emma” para as telas seja justamente aquela que tira a trama do século 19. O livro já foi transformado, por exemplo, em minissérie e em um filme com Gwyneth Paltrow. Nenhuma dessas versões, porém, atingiu o sucesso de longas como “Orgulho e Preconceito”, com Keira Knightley, e “Razão e Sensibilidade”, com Kate Winslet, Emma Thompson e Hugh Grant. A adaptação de “Emma” lembrada até hoje tem outro nome: “As Patricinhas de Beverly Hills”.

No filme, que completou duas décadas neste ano, a história de “Emma” é transportada para os Estados Unidos nos anos 1990. Nele, Alicia Silverstone é Cher, uma adolescente riquíssima e bonita que resolve ajudar Tai (Brittany Murphy) a conseguir um namorado, sem perceber que o pretendente que arrumou está interessado nela e não na amiga, aos moldes do que acontece no livro. Como Emma, Cher gaba-se de não precisar de homens até perceber que seu par perfeito estava ali, ao seu lado, na pele de Paul Rudd.

Clery, Wells, Cox e Byrne são unânimes ao dizer que gostam das “Patricinhas”. “É um filme muito divertido e engenhoso ao encontrar equivalentes modernos aos personagens e situações originais”, opina Clery. “‘Patricinhas’ é otimo porque sua criadora, Amy Heckerling, reinterpretou o livro com muita liberdade. É um olhar novo. Amy pega algumas preocupações centrais de Austen — personagens, linguagem, tom — e inventa um mundo novo e colorido para brincar com elas”, completa Wells.

EDIÇÃO AMIGÁVEL

A nova edição de “Emma” (Penguin, 496 págs., R$ 90, em inglês) esteve na cabeça de Juliette Wells por vários anos. Embora seja considerado o melhor livro de Austen, os leitores de hoje podem ter dificuldades em entendê-lo e apreciá-lo, especialmente se não estiverem acostumados com a literatura do século 19, ela diz. “Já existem várias edições do livro maravilhosas, aprofundadas, com comentários de estudiosos. Mas não tinha nenhuma amigável para os leitores, que eu pudesse recomendar a alguém interessado em ler o livro pela primeira vez, ou depois de anos.”

Foi ela quem levou a ideia à Penguin, que gostou da proposta e lhe pediu para criar uma edição nova e acessível de “Emma” em comemoração a seus 200 anos. Seu objetivo declarado é tornar a leitura prazerosa e fácil, para agradar aos fãs antigos e, principalmente, apresentar Austen a quem não a conhece. “Em vez de notas de rodapé ou no fim do livro, que podem ser frustrantes se você não for estudante ou acadêmico, escrevi pequenos ensaios que dão o contexto e explicam tópicos importantes para o livro, desde relacionamento familiares a dança e comida”, conta.

Na introdução, por exemplo, fala sobre o trabalho de Austen e a importância de Emma para sua carreira e sua reputação. “São as questões que estudantes e leitores mais me fazem.” Há também um glossário com palavras que podem confundir o leitor do século 21. “Fiz essas escolhas pensando mais nos americanos, mas espero que leitores do resto do mundo também o aproveitem”, afirma. Tem ainda ilustrações de edições históricas do livro e sugestões de filmes e outros volumes que podem complementar a experiência.

Em 21 de maio do ano que vem, Sandie Byrne, Octavia Cox, Emma Clery e Freya Johnston darão um curso em Oxford, com inscrições abertas, por a partir de 65 libras. Serão dadas, ao longo do dia, quatro aulas, uma por cada professora: “Emma como experimento literário”, “Emma e voz”, “Austen, Emma e escrita” e “Quebra-cabeças e jogos em Emma”.

Tentando explicar por que Jane Austen é tão popular até hoje, Wells diz acreditar que o cinema e a televisão ajudaram a difundir sua obra, atualizando sua linguagem para agradar às novas gerações. Não há mal nenhum nisso, diz ela. Muitas das adaptações são divertidas e verdadeiras obras de arte por si só. A editora só espera que isso leve os espectadores a se tornarem leitores. E fazer seminários ou novas edições de seus romances ajudam a fazer isso acontecer. “Toda vez que você voltar aos textos de Jane Austen você vai ver que seu brilhantismo continua radiante como sempre”, complementa Clery.

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Bem-vindos ao Risca Faca!

Chega mais. Hoje é um dia de festa pra gente, e queremos que seja para vocês também.

O Risca Faca é o novo site de cultura e comportamento da F451. A gente sabe que a internet é grande e já tem muita coisa rolando por aí, mas acreditamos que há espaço para certos conteúdos que sentimos falta em nosso cotidiano: jornalismo aprofundado, grandes histórias, personagens interessantes, análises incomuns. Sim, a internet é enorme, mas sempre há histórias incríveis que ainda não foram contadas.

Queremos fugir da cobertura que somente acompanha o ritmo das redes sociais. E queremos mostrar novas histórias, e novas formas de contá-las – pode ser em áudio, em quadrinhos, em vídeo. E ao mesmo tempo, como o nome sugere, não queremos ser sisudos nem cabeçudos – a gente curte um forró às 6h da manhã no Largo da Batata e isso também é uma forma de explicar o que queremos por aqui.

Para fazer isso, contamos com uma rede de colaboradores de várias partes do Brasil, de todos os tipos e estilos, que estão produzindo matérias e histórias que nos deixaram bastante orgulhosos. Leandro Demori, Peu Araújo, Taís Toti e Bolívar Torres são alguns dos jornalistas que você vai encontrar nos primeiros dias do Risca Faca. Assim como os fotógrafos Felipe Larozza e Lucas Lima, a artista Barbara Scarambone e o ilustrador Issao Nakabachi.

De cara, recomendo a leitura do nosso dossiê sobre a febre dos trenzinhos. O repórter Felipe Maia e o fotógrafo Felipe Larozza viajaram pelo interior de São Paulo para entender, e explicar, esse fenômeno que gera comoção entre as pessoas e, ao mesmo tempo, é pouco conhecido para muita gente. Na entrevista da Fernanda Reis, Lourenço Mutarelli conta como começou a acreditar em sereias. E também temos os conteúdos que já foram publicadas no Gizmodo Brasil, nosso site-irmão-mais-velho – recomendamos esta sobre nudez e o mergulho do repórter Marcelo Daniel pelo mundo de League of Legends.

Ficamos bem felizes também com o visual do site: imagens grandes, fonte boa para leitura e sem muita firula. Nessa seara, agradecemos bastante o trabalho da Datadot e da Haste, e também da Casa Rex, que assina nossa identidade visual – sem esquecer, claro, toda a equipe da F451.

Tem muita coisa boa na manga e esperamos que vocês aproveitem. O site ainda não tem comentários porque não encontramos a ferramenta ideal, e estamos esperando o surgimento de uma, tipo o Civil Comments. Enquanto isso, toda e qualquer sugestão, crítica, elogio, bate-papo, GIF animado, pode ser enviada pra mim: leo@riscafaca.com.br. Isso também se estende a ideias de pauta.

Sem mais blábláblá: seja bem-vindo! E não esqueça da canção popular: “foi no Risca Faca que eu te conheci”.

De bar em bar,
De mesa em mesa
Bebendo cachaça,
Tomando cerveja.

Foi assim, que eu,
Te conheci…

Olha que foi no Risca Faca,
Que eu te conheci
Dançando, enchendo a cara,
Fazendo farra,
Tô nem aí

Foi no risca faca,
Que eu te conheci
Dançando, enchendo a cara,
Fazendo farra, tô nem aí…

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Cultura

MC Soffia, 11: “Duro é seu preconceito”

São 15h10 de uma terça-feira e cerca de 200 pessoas estão acomodadas num auditório da Fábrica de Cultura da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, enquanto o rapper Thaíde se apresenta. O show vai bem, o cantor caminha pela plateia, há um clima meio família no ar. Mas a coisa esquenta mesmo quando Thaíde diz, depois de três músicas, que tem uma convidada. “Quem vem aí?”, pergunta ele. E o público urra em coro: “Soffia!”.

Em meio a palmas e gritinhos, Thaíde fala: “É uma honra apresentar… Apresentar não, porque ela já é conhecida. Mas é uma honra ter aqui a MC Soffia!”. Parte do público — maioria de crianças e pré-adolescentes — fica de pé para receber Soffia, menina de 11 anos que entra no palco como se o fizesse há anos. Com um laço azul no cabelo black power, MC Soffia chega comandando a massa: “Todo o mundo de pé, família!”. Seu pedido é prontamente atendido.

MC Soffia é diferente dos também jovens MCs Pedrinho, Brinquedo, Pikachu e Melody, que cantam um funk mais pesadão, com citação a uma penca de drogas e muita putaria. O negócio de Soffia é hip hop, com rimas feministas que exaltam a cultura negra. Antes de chamar Soffia ao palco, Thaíde diz que cantar é divertido, mas que é um trabalho “responsa”. A música tem que ter algo positivo, algo a dizer que as pessoas precisem ouvir. Soffia tem a mesma filosofia.

Seus primeiros versos são “joga a mão pra cima pra entrar no clima” e depois vêm “na escola eu apavoro e só tiro dez”, “represento as crianças e o público feminino”, “África, onde tudo começou, África, onde está meu coração”, “eu sou negra e tenho orgulho da minha cor”. As crianças na plateia respondem dançando, cantando junto e tirando fotos enquanto Thaíde e os MCs que o acompanham ficam ao fundo do palco, fazendo backing vocal, claramente se divertindo enquanto Soffia manda suas rimas. “Eu me encho de alegria ao ver uma menina dessa idade falando da sua negritude”, diz ele.

Aí vem o hit de Soffia, “Menina Pretinha”, cujo refrão resume sua mensagem: “Menina pretinha, você não é bonitinha. Você é uma rainha”. Nessa hora, a cantora chama “quem tiver coragem” para subir no palco e dançar com ela. Entre os voluntários há meninos e meninas, que acompanham a rapper até o fim da canção. Thaíde toma de novo a frente e diz que o que falta no mundo hoje é respeito e o reconhecimento de que todos somos iguais. O show continua, mas Soffia sai do palco e o assédio do público começa.

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Crédito: Rodrigo Esper

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No caminho para o camarim, algumas crianças pedem para tirar selfies com ela. Sorridente, atende todos. Chega então uma mulher, que diz que só tirou na vida fotos com dois cantores antes dela: Chico César e Luiz Melodia. Ela fala para Soffia que só quer registro de artistas que admira. Diz ainda que tem um projeto educacional e adoraria que a cantora falasse com seus alunos, já que ela tem tanto a dizer.

Na fila para falar com ela tem também um fotógrafo, que pede para fazer só quatro fotos, prometendo que é rápido. O tempo é curto, ela tem mais gente para atender (entrevistas, fãs, outros fotógrafos), mas ela topa, desde que seja ali mesmo no camarim. Sorri e faz pose de modelo — apoia o pé na parede e coloca as mãos na cintura. “Ergue o queixo”, pede o fotógrafo. Ela ajusta a pose rapidamente e se senta para conversar.

Começa a responder a primeira pergunta quando abrem a porta do camarim: “Soffia, o Thaíde está te chamando pra voltar pro palco. Desce lá um minutinho?”. Ela pede licença e continua a jornada de trabalho. E era só o começo da semana: ela ainda se apresentaria com Thaíde até a outra segunda, com folga apenas no sábado, em outras Fábricas de Cultura — Capão Redondo, Brasilândia, Jardim São Luís e Jaçanã — e em Araras, no interior de São Paulo.

CRIANÇAS DO HIP HOP

De volta ao camarim Soffia conta que sempre gostou de música. “Meu biso tocava vários instrumentos de corda, e eu comecei a cantar quando tinha seis anos”, diz. Como ídolos musicais, cita várias mulheres negras: Beyoncé, Nicki Minaj, Rihanna, Jennifer Lopez, Karol Conká, Flora Matos, Divas do Hip Hop. “Gosto de todas as mulheres que cantam”, resume, depois de pensar um pouco. Entre homens cita Dexter, Racionais, Jay Z.

Sua mãe, Camila Pimentel, foi quem a apresentou ao hip hop. “Eu frequentava os eventos. Trabalhava na Coordenadoria dos Assuntos da População Negra [da Prefeitura de São Paulo] e procurava levar a Soffia. Sempre levei em shows, eventos culturais de hip hop”, conta.

Soffia sempre gostou de cantar. “Mas não assim, em lugares. Cantava em casa.” Foi quando fez uma oficina do projeto Futuro do Hip Hop — que dá aulas de MC, DJ, dança break — que começou a fazer isso em público. Viu seu amigo Tum Tum, outro MC mirim, cantando e quis fazer o mesmo. Aos sete anos, tomou gosto pela coisa.

[citacao credito=”Mc Soffia” ]Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito[/citacao]

Depois, entrou para o coletivo Hip Hop Kidz — formado por sua mãe –, que desenvolve o intercâmbio cultural com crianças e jovens da periferia e que conta com seis rappers mirins. “Nas periferias tem muitas crianças sem perspectiva, que não têm oportunidades, referências ou acesso à cultura”, diz Camila. “Criei esse projeto com algumas crianças que eu já conhecia, trabalhando os quatro elementos do hip hop. Fui contemplada por um edital e fizemos um circuito pelas periferias de São Paulo. Mas não consegui mais incentivo e eu preciso disso pra transporte, alimentação, ajuda de custo.”

Na plateia dos shows, conta Camila, havia uma maioria de crianças, sempre interessadas. “Elas viam uma possibilidade de um futuro diferente, uma outra possibilidade de vida na periferia.” Às vezes o grupo ainda faz shows, mas não com tanta frequência. “Está meio parado, já mandei o projeto pra dois editais. Mas é acertar na loteria, não é garantido.”

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Crédito: Rodrigo Esper

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Com o Hip Hop Kidz, Soffia começou a fazer seus primeiros shows. Só recentemente passou a se apresentar sozinha. Foi se apresentando com o grupo, inclusive, que conheceu Thaíde. “Fiz um show na Praça das Artes e encontrei com ele. A gente começou a conversar. A mulher dele ligou depois pra minha mãe pra falar desse show. Vai ter a semana inteira”, diz, animada.

Antes de subir no palco sente “muito, muito medo”. Quando está lá, porém, o nervosismo passa. “No palco é normal”, afirma. Minutos antes havia mostrado que tem mesmo jeito pra coisa: pedia para a galera ficar de pé e bater palmas, apontava o microfone para a plateia na hora de seus refrões e puxava coros.

Está se acostumando à rotina cheia, às sessões de foto e às entrevistas. “Fui na Fátima agora”, conta, referindo-se ao programa “Encontro com Fátima Bernardes”, na Globo, para o qual foi chamada em setembro. Naquele mês, também foi a Brasília ao ser convidada pelo Ministério da Educação para abrir um seminário internacional de direitos humanos e desenvolvimento inclusivo.

DURO É SEU PRECONCEITO

No começo, as letras de Soffia eram escritas nas oficinas. Agora já começa a compor suas próprias rimas sozinha. “Estou fazendo uma que diz que não tem essa de brincadeira de menino e de menina”, conta. As letras exaltam o estudo, falam do empoderamento feminino e da cultura negra. Quando era mais nova, Soffia sofreu racismo na escola e disse para a mãe que queria ser branca. Camila conversou com ela e hoje Soffia exibe orgulhosa o cabelo black power. “Meu cabelo não é duro, meu cabelo é cacheado. Duro é seu preconceito” é a resposta da menina para racistas.

O feminismo também tem o dedo da mãe. Elas estavam em Maceió quando se depararam com um livro sobre mulheres que fizeram história no Brasil, do qual ela não se lembra o nome. “Ela leu o livro e eu disse que ela poderia aproveitar e fazer uma pesquisa mais aprofundada sobre alguma dessas mulheres”, diz Camila. “Falei: ‘Você escolhe algumas delas pra citar na sua música’. Ela pesquisou algumas e agora está pesquisando sobre outras.”

Os estudos sempre foram estimulados em casa. “Crianças da periferia não costumam ter esse incentivo. Sempre incentivei ela a ler, a interpretar texto. Fiz isso dentro de casa até perceber que ela tinha criado o gosto. A professora dela diz que ela é uma das poucas alunas que faz as pesquisas e depois dá seu parecer”, conta a mãe. “Ainda hoje eu falo pra ela: vamos pegar um livro aí.”

A matéria favorita de Soffia na escola, não por acaso, é história, diz ela sem titubear. “Estudo bastante, gosto muito de pesquisar.” E só tira dez como diz na música? “Aham”, sorri. Ela confirma o depoimento da mãe e conta que gosta de pesquisar particularmente a história de mulheres negras. “Estudo Anastácia, Clementina de Jesus, Carolina de Jesus, Chica da Silva, Cleópatra. Já pesquisei sobre todas elas” — todas as mulheres são citadas em suas canções. Na escola, diz, é só Soffia e não MC Soffia. Todo o mundo sabe que ela canta e faz shows, mas lá é uma criança como as outras.

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Crédito: Rodrigo Esper

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Agora, Soffia faz uma campanha na internet para arrecadar fundos para seu primeiro disco, chamado “Menina Pretinha”. Entre seus planos para o futuro mais distante está continuar a cantar, mas também quer ser médica e trabalhar como modelo e atriz. “Agora eu falo tudo isso, mas vamos ver quando eu crescer”, ri. Por enquanto quer estudar medicina para poder ajudar as pessoas, e quer atender especialmente negros e índios. “Eu quero dar medicamentos, fazer hospitais melhores. Quero ser uma médica negra.”

A essa altura da conversa, Thaíde e o resto dos músicos já estão no camarim e Soffia tem muito o que fazer. Vai posar para fotos com os companheiros de palco e depois atender as crianças que fazem fila para dar um oi para ela. Antes de a porta se fechar, ainda dá tempo de ouvir Thaíde elogiar a garota. “Mandou ver, hein, Soffia!”

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Um trenzinho de doido

Durante a perseguição a um caminhão colorido, cheio de luzes e personagens, um garoto de bicicleta aborda o fotógrafo Felipe Larozza. Papo vai, papo vem, ele descobre que somos de São Paulo e, com um olhar curioso, indaga: “Como são os trenzinhos de São Paulo?”. Em São Paulo não tem disso, não, mas em Ribeirão Preto, onde vive o pequeno, todo mundo tem uma história com trenzinho. Contarei algumas das que ouvi e todas que vivi ao desbravar o mundo de reluzentes colossos mecatrônicos, seres antropozoomórficos, casamentos entre profano e sagrado e confrontos de todos os tipos em uma cidade rodeada por um denso cinturão de cana de açúcar no interior de São Paulo.

Distantes do centro da cidade, nas quebradas onde as classes se confundem, jovens de máscaras e corpos vestidos com roupas malucas dançam, pulam, correm, brincam. Veículos imensos arrastam pequenas multidões ao som dos últimos lançamentos musicais em meio a uma erupção de cores. O povo admira, interage, para ou vira a esquina. Correm luzes como as das aparelhagens de Belém, gambiarras de baile funk, sistemas de som de trio elétrico, referências carnavalescas, símbolos infantis e delírio adolescente.

A nossa bandeira foi investigativa e nossa entrada, pacífica. A ideia platônica de trenzinho da alegria estava em nossa mente: um veículo mais ou menos comum que reboca vagões coloridos seguido por pessoas fantasiadas formando um pitoresco comboio cuja única função é circular pelos pontos turísticos de cidades pequenas — a orla, o coreto, a igreja, a ponte mais bonita. Sabíamos, contudo, que em Ribeirão Preto havia alguma coisa diferente por causa do trenzinho mais famoso do Brasil, o Trenzinho Carreta Furacão.

Ele foi o primeiro tipo exportação da cidade. No vídeo que correu a internet em 2010, Homem-Aranha, Fofão, Palhaço, Capitão América e Popeye marcam a cultura popular do país ao deturpar nosso imaginário lúdico com molejo, suíngue e mistura que só um Brasil brasileiro é capaz de oferecer. “Samba do Mestiço”, na trilha do vídeo original, canta para seguir em frente e olhar para os lados. E nessa toada o Carreta Furacão chegou aos canais de TV aberta naquele ano.

Os trenzinhos hoje são marco na internet brasileira em novos clássicos como Fofão sobe o muro, mas eles também são parte fundamental de Ribeirão Preto há pelo menos trinta anos. E isso não fica evidente na piada do meme ou do programa de auditório. A cidade tem a única organização exclusiva da classe no país, a Associação de Trenzinhos, com 14 empresas. Esse é apenas mais um detalhe de um fenômeno cultural interessante e de muita festa.

[olho]”Tem que fazer por merecer pra ser o Fofão”[/olho]

Seus protagonistas são garotos como Renan e André Luiz “Sheyck”. Os irmãos de 17 anos, com apenas meses de diferença de idade, vivem na periferia de Ribeirão Preto. Eles estudam e trabalham de dia. À noite, saem de casa com uma fantasia remendada e um capacete de isopor embaixo do braço. De 20h a 23h, são estrelas do Trio Big Folia, trenzinho da empresa Dominium — também proprietária do Carreta Furacão. Um dos maiores da cidade, o mastodôntico duplex ambulante de luminosos e som potentes é palco para Renan, o Palhaço, e André, o Fofão.

“Tem que fazer por merecer pra ser o Fofão”, diz André. O cruzamento de espécies que resultou no personagem original não previa a aparição de uma linhagem hábil nas peripécias que ele faz. O Fofão de André sobe um muro e posa sob a luz em seu topo ao som de MC Sapão, dá um mortal apoiado na parede como Jackie Chan e treme os quadris freneticamente como uma integrante do Bonde das Maravilhas — tudo em cinco minutos. “Tem que ser louco!”, completa Renan. “Tem que passar dos limites!”

Encarnar o Fofão é atingir o mais alto nível no plano de carreira dos trenzinhos. O Palhaço vem a seguir. “É como qualquer empresa: quer subir?”, me perguntou Renan. “Tem que fazer por merecer.” Os personagens com as cabeleiras vastas são os mais cobiçados entre os dançarinos. Com trejeitos femininos, eles jogam as madeixas de lã de um lado para o outro. Nasce um novo gênero com uma dança que mistura passinhos do funk paulista, breakdance e footwork.

A coreografia é liderada pelo dançarino que dispara à frente. “Trenzinho é um pouco de tudo: axé, sertanejo, funk, arrocha, eletrônica”, explica Renan. Tem também parkour aplicado aos obstáculos próprios de uma cidade do interior, destreza de pixadores na escalada de muros e acrobacias circenses e humor pastelão de grupos como Os Trapalhões ou Os Três Patetas — ainda não tenho certeza se um cachorro realmente mordeu a bunda de um dos dançarinos que rebolava junto ao portão de uma casa.

Os garotos pouco ensaiam e de vez em quando vão a um parque para tentar uns passos. Quedas e acidentes são frequentes, mas a máscara dos personagens não cai. Enquanto dão voltas pelas quadras, os trenzinhos disputam espaço com carros e motos acostumados à festa itinerante. Entendi por que o Popeye é atropelado enquanto o Fofão sobe o muro quando eu mesmo corria ao lado dos trenzinhos. “Eu já fui atropelado por bike, moto, carro”, diz Renan. “Teve uma moto que me jogou pro alto, mas nem me machucou.”

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Leandro Wesley e os irmãos Renan e André Luiz “Sheyck”. Crédito: Felipe Larozza

Garotos com suas bicicletas também disputam o espaço durante a noite nas ruas de Ribeirão Preto. No decorrer do trajeto do trenzinho, aumenta a quantidade de moleques sobre duas rodas naquela carreata pela cidade. Uma senhora descontente sai de casa. “Eu acho isso horrível. Tem até consumista aí no meio”, diz ela, sobre o uso de drogas. Uns garotos baforam loló, outros fumam cigarro artesanal. A maior parte só passa em alta velocidade ao lado dos dançarinos. “Eles trombam na gente e falam: você está na minha quebrada!”, explica André.

Contei trinta desses garotos em uma das voltas do Trio Big Folia numa noite de sexta no entorno da desleixada praça Rômulo Morandi. Do chão, eles observam o espetáculo com reverência e desprezo por um motivo evidente: garotas, cujos olhares se voltam para os dançarinos. Mais de vinte meninas compõem o público. De roupas de festa e maquiagem pesada, elas gritam, batem palmas e rebolam até o chão. Enquanto mães e filhos pequenos ficam no térreo, as adolescentes desfilam pela cidade no topo do trenzinho.

GALERIA: Veja mais fotos dos trenzinhos em Ribeirão Preto

O andar de cima parece acessível somente a quem está na puberdade. Vitória Teodoro comemora seu aniversário de 15 anos naquela noite. Passa das 22h. Sua irmã pequena, Sofia, acompanha o cortejo bocejando vez ou outra, mas suas amigas aproveitam o passeio como quem vai a uma animada festa de aniversário. Dançando, elas chamam a atenção dos garotos de bicicleta; esgoelando-se, elas chamam a atenção dos dançarinos que correm no chão.

Vitória diz que sempre acompanha o Trio Big Folia. Os grandes trenzinhos da cidade têm seu séquito fiel. No Facebook existem páginas dos fã-clubes formados exclusivamente por garotas, como as Trenzetes. As Dominiunzetes, por exemplo, adoram os trenzinhos da Dominium — Carreta Furacão incluso. Como qualquer grupo do tipo, seu álbum online tem fotos e vídeos dos ídolos, os personagens.

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Vermelho é a cor mais quente. Crédito: Felipe Larozza

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Fama, mulheres e brigas

Alguns dançarinos me falaram que em Ribeirão Preto existe até o apelido de “Maria Trenzinho”, dado às garotas que têm preferência pelos personagens de trenzinho. “Tem uns caras que zoam a gente, mas a gente pega muita mulher!”, diz João Victor Urbines, dançarino do Trio Trem Balada. Propriedade da Tony Leme Eventos, esse trenzinho de dois andares, som potente e muitos luminosos disputa o título de maior da cidade com o Trio Big Folia da Dominium.

João tem 21 anos, seis deles dedicado a dançar como personagem. Há pouco tempo ele se tornou pai, então arranjou um emprego comum para os dias da semana. Nos fins de tarde de quinta a domingo, contudo, ele vai até o bairro Planalto Verde para encontrar seus amigos de equipe. Muitas vezes ele tem de ajudar na manutenção do trenzinho do qual faz parte, carregando alto-falantes, ou soldando alguma peça com os olhos fechados — não há máscara para protegê-lo das faíscas. Quando a noite chega, é hora de sair.

O Trio Trem Balada tinha uma agenda cheia a cumprir naquele sábado. A bordo, os moleques na faixa dos vinte anos estão mais acostumados ainda. Eles bebem uma mistura alcoólica no andar debaixo. Em cima, seguram uma caixa de som atentos a árvores e fios elétricos que passam rentes à cabeça.

Pouco a pouco eles entram no personagem. Trocam as camisas do Barcelona e bermudas da Hollister por panos puídos sobrepostos em camisetas velhas, meias longas de cores berrantes, calças largas de material leve e tênis baixos de sola aderente. Eles enfiam a cabeça nos elmos depois de vestir as armaduras de tecido. Quando pisam no asfalto, os garotos formam uma gangue de máscaras: Mario, Luigi, Patolino, Patati, Patatá, Mickey, Cebolinha e Fofão — personagem encarnado por João.

O primeiro compromisso é em um buffet a quinze minutos do centro. Francieli Esteves, recepcionista de 33 anos, tinha contratado o Trio Trem Balada para a festa de aniversário do filho, Rafael Lopes, de 2 anos. “A gente é mais chegado nesse trenzinho”, diz ela ao descer do veículo. “Toda quinta-feira a gente vai pra praça ver esses personagens.” Astros da festa, os dançarinos abrem o espetáculo com apresentações individuais. Dali em diante se vê um rebuliço, uma zona, um alvoroço vistos em poucos lugares do mundo.

Um outro trenzinho cruza o caminho logo na primeira esquina. Trata-se do Carreta Tremendão, com cinco dançarinos. Um veículo dá preferência ao outro, mas no chão os garotos disputam o espaço como guerreiros tribais. Cercada por meninos de bicicleta, a aglomeração com mais de dez personagens parece um círculo aberto para bate-cabeça em um show de death metal. Pisando com força no asfalto, ficando cara a cara a poucos centímetros das máscaras e simulando chutes e socos, os dançarinos quase partem pra porrada.

João já tinha me mostrado um vídeo em que está prestes a brigar com outro personagem. Vestido como Fofão, ele toma um soco do Mickey de outra equipe. “A gente sabia que a gente tinha treta, ele acha que é bonzão”, diz. “Eu estava dançando, aí ele veio e eu fiquei bravo”. A confusão foi evitada pelos seus companheiros, mas nem sempre é assim. No YouTube é possível encontrar vídeos de tensos encontros entre trenzinhos — outro sinal da ocorrência dos conflitos.

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De dia, os dançarinos também trabalham na manutenção dos trenzinhos. Crédito: Felipe Larozza

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“Todo mundo já brigou”, me conta Renan, o Palhaço do Trio Big Folia. “Às vezes alguém briga por sentir inveja de outra pessoa que está com a mesma fantasia de Palhaço ou fantasia de Fofão”. Além do ego, rivalidades entre grupos, desentendimentos por namoradas e provocações simples podem dar em confusões perigosas. “Acho que antes de existir Associação a molecada que trabalha com trenzinho era mais unida que agora”, diz João. “Tinha menos briga, mas tinha umas que dava até morte.”

O clima pesado ficou apenas na ameaça naquela noite. Após o encontro com o outro trenzinho, o Trio Trem Balada segue em um frenesi dantesco. O volume da música é nocivo ao lado dos alto-falantes, as luzes piscantes confundem os olhos. O alarme de um carro dispara. O Patolino acende um rojão que explode a poucos metros do chão. O Patati entra em uma casa, o Patatá toca a campainha de outra. Mario e Luigi sobem rapidamente em um beiral de três metros de altura — atendendo a pedidos do público. Num pedaço de terreno baldio, o grupo se espalha dançando numa coreografia feita para levantar poeira.

[olho]”Às vezes alguém briga por sentir inveja de outra pessoa que está com a mesma fantasia de Palhaço ou fantasia de Fofão”[/olho]

De repente, todos os dançarinos sobem na caçamba de um carro utilitário. A suspensão do veículo sente o peso. O motorista buzina. Ele ri de alegria. Uma pequena que tem a idade do aniversariante da noite está no banco de passageiros com cara de quem adora aquela farra mesmo sem entendê-la. Crianças são prioridade dos personagens. Algumas pessoas saem de suas casas para saudar a bagunça. “A gente gosta, passam vários por dia”, diz uma senhora.

Apenas convidados da festa podem subir no trenzinho — nas praças, basta pagar três ou quatro reais para embarcar. Além da garotada nas bicicletas, do fotógrafo e de mim, outro grupo o acompanha do chão. Como os personagens, eles têm máscaras, roupas coloridas, muito pique e uma destreza com o corpo que lhes permite fazer o quadradinho de oito do funk, o top rocking do breakdance e até o espacáte do balé clássico. No entanto, é tudo mais mambembe, malajambrado. E o grupo tem média de um metro e meio de altura.

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“Os tremedeira”. Crédito: Felipe Larozza

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Eles são os seguidores: garotos com menos de 15 anos que se fantasiam, brincam e atuam como os dançarinos oficiais. Eles aguardam os trenzinhos nas noites de quinta a domingo nas imediações de praças e buffets marcando território como a gangue de menores do filme “Cidade de Deus”. A lei natural que passa de boca a boca os autoriza a ficar ao lado do veículo oposto ao lado reservado aos dançarinos oficiais. De vez em quando, todos dançam juntos na frente dos trenzinhos. É um encontro de gerações.

Alguns seguidores dão nomes para seus grupos. A equipe que dança ao lado do Trio Trem Balada naquela noite se autodenomina “Os Tremedeira”. “Isso aqui é uma diversão que você nem imagina”, diz Pedro dos Santos, um dos integrantes do time. Durante o dia, estuda; à noite, fica em busca de trenzinhos no seu bairro. Ele sonha em ser um dançarino oficial das equipes. Por quê? “Estou fazendo uma criança feliz e fazendo algo que eu gosto: dançar no trenzinho.” Pedro usa a máscara do Pica-pau. Ele tem 13 anos.

O garoto reproduz o discurso dos mais velhos que, por sua vez, reproduzem o discurso de ídolos: jogadores de futebol, cantores populares e celebridades unânimes. A grana que os dançarinos de trenzinho ganham, no entanto, está bem aquém da remuneração nessas categorias. Deydison Santos é o Mickey no mesmo grupo do João. Ele diz que ganha sete reais por festa. Isso dá, em média, sessenta reais por fim de semana. Ele trabalha durante o dia e vai ao trenzinho por prazer. “Isso aqui pra mim é um rolê”, diz ele.

Tiquinho, como é apelidado Deydison, tinha desistido da vida de dançarino há alguns meses por causa do trabalho na organização de festas e shows em Ribeirão Preto. Ele fez 20 anos em março de 2015, mas o fim da linha para a maior parte dos personagens de trenzinho costuma chegar mais tarde, aos vinte e poucos. Além da vida adulta, até relacionamentos botam fim à carreira. “Tem namorada que diz ‘ou eu ou o trenzinho!'”, diz André, o Fofão do Trio Big Folia.

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Uma avalanche de referências desconexas. Crédito: Felipe Larozza

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Um de seus amigos, Gabriel Lopes, é outro exemplo de quem faz participações especiais por causa da saudade. Ele tem 17 anos, mas parou com a vida de dançarino logo cedo porque seu joelho esquerdo não suportava mais a frenética rotina de saltos, correria e passos sensuais que dura até cinco horas por noite. Se dá vontade, ele volta à ativa. “Quando eu ponho a fantasia não dá pra ficar parado, aí eu só sinto o joelho depois”, diz ele. “Isso é um vício: se você entrou, nunca mais quer sair.”

Sem fantasia, os garotos passam despercebidos até entre eles mesmos. Eles são apenas jovens com espinhas na cara às portas da vida adulta. O bom-humor e o erre retroflexo típico do interior fazem parte deles tanto quanto as incertezas adequadas à idade. Não fosse por alguma ótima oportunidade, Renan diz que não faria as estrepulias que faz desprovido de seu traje super poderoso. O que você sente quando coloca sua fantasia? “Emoção”, diz ele.

[olho]”Isso é um vício: se você entrou, nunca mais quer sair”[/olho]

O fim do encantamento está marcado para meia-noite. As festas ou as voltas na praça terminam por volta de 23h. Os personagens tiram suas fantasias. Uns vão gastar o curto soldo em outras festas e outros vão descansar para o dia seguinte. Na cidade não há rastro da barulheira dos vários alto-falantes, nem sombra das lâmpadas cintilantes dos trenzinhos. Nas ruas por onde passou uma tempestade de gente fantasiada, o dia vai nascer sob a imperativa calmaria do Brasil profundo.

 

Trenzinho para tudo

Todo tipo de evento tem um trenzinho em Ribeirão Preto. Festa de aniversário de senhoras centenárias, festa de aniversário de animais de estimação, casamentos, festas de 15 anos, rodeios, inauguração de supermercado, encontro empresarial, balada universitária, dia das crianças. Das mais impensáveis que ouvi, pude viver a pregação de uma igreja evangélica sobre um trenzinho. A louvação em forma de cortejo neon aconteceu no sábado à noite a pedido da Igreja Batista do Simioni, bairro da periferia da cidade.

O Trio Trem Balada fora contratado para o evento. Ao se aproximar da igreja, o som emitido pelo trenzinho muda de “Farra, Pinga e Foguete” para uma canção da cantora gospel Aline Barros. Os dançarinos são dispensados quando o veículo para. Três equipes de fiéis são formadas: enquanto uma embarca, outras duas ficam encarregadas de panfletar com santinhos pelo trajeto. Os times de jovens adultos, homens e mulheres, se revezam a cada 15 minutos entre o chão e o trenzinho.

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Crédito: Felipe Larozza

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“A gente se juntou com outras igrejas para falar de Jesus para outras pessoas”, me explica Nemias Magalhães, 26 anos, organizador do evento. “O trenzinho é só um meio de chamar atenção, a gente quer falar de Jesus Cristo.” É a primeira vez que eles chamam um veículo daquele tipo para pregar os ensinamentos cristãos pelas ruas da cidade. Isso fica flagrante com o andamento do trenzinho. “Grita quem vai pro céu” e “cuidado com o galho!” são duas frases ditas com frequência — ainda assim, duas árvores me acertam.

Nemias volta a falar comigo quando voltamos a ficar de pé, ultrapassados os obstáculos. “A gente está acostumado com o trenzinho aqui e, por onde ele passa, as pessoas param, olham, acham legal”, diz ele. “Agora a gente uniu o útil ao agradável: evangelizar e chamar a atenção das pessoas.” No chão, seus colegas conversam com transeuntes. No trenzinho, os fiéis gritam: “Ah! Eu sou de Cristo!” enquanto balançam seus cartazes de cartolina.

Silmara Gonçalves é uma das passageiras da noite. Ela tem 35 anos e afirma sem pestanejar que tem trenzinho em Ribeirão Preto desde que era criança — uma época em que eles eram menores, seu público era essencialmente infantil e suas canções falavam de temas lúdicos. Silmara também não titubeou ao dizer o que pensa das músicas que geralmente fazem a cabeça da molecada que frequenta o trenzinho: “É algo muito imoral para crianças”.

O mecânico Pélcio Ferreira reforçou o coro: “Hoje em dia tem que tocar esses raio desses funks”. Mineiro de Governador Valadares, ele saiu da cidade a bordo de seu trenzinho em 1983. Foram anos numa vida de circo. “A gente ficava uns seis meses em cada cidade”, diz ele. “A gente alugava uma casa e no fim de semana ficava na pracinha”. A rotina andante chegou ao fim em Ribeirão Preto por caprichos do coração: Pélcio conheceu sua amada, casou-se, fixou pouso e virou o maior mecânico de trenzinhos na cidade.

Ele abriu sua oficina em 1998 e, hoje, boa parte dos trenzinhos da região saem de lá. “O trenzinho começa do zero”, explica ele. “Às vezes é um chassi de caminhão pra fazer e às vezes é ônibus, aí a gente corta e utiliza a estrutura mecânica.” Diferencial de um, motor de outro, câmbio daquele e sistema de freio daquele outro dão forma a um frankenstein metálico sobre rodas. Sem pintura ou acabamento, um trenzinho fica pronto em dois meses por R$ 80 mil. “Você pensa, nós faz”, diz ele.

O mecânico tem seu próprio trenzinho: o carcomido City Bus, construído em 1992. Além de fabricação, ele também faz manutenção dos brilhantes veículos. O trabalho é preventivo, embora às vezes ele tenha de socorrer um ou outro trenzinho que para no meio do trajeto. A demanda de construção e cuidados cresceu desde os anos 90. Hoje, metade do faturamento da sua oficina vem do trabalho com Carretas, Trios, Naves, entre outros, mas os negócios estagnaram. “Com essa crise, está tudo parado.”

 

Dos pés à cabeça

Alguns motoristas de trenzinho sabem lidar com problemas mecânicos urgentes dado o tempo de dedicação. Fabio Jeferson, 29 anos, dirige trenzinhos há sete anos. Ele trabalhou como personagem dos 14 aos 25 anos. Hoje, fica atrás do volante do Trio Big Folia mantendo o motor entre a primeira e a terceira marcha. “Dou uma volta de 45 minutos e volto pra descarregar o pessoal”, diz ele. “Tem que prestar atenção em velocidade, galhos, fios, altura do som, meninos que ficam tumultuando na lateral.”

Quem ajuda Fabio na labuta é João Quaglio, 17 anos. Ele trabalha ao lado dos passageiros como DJ de trenzinho. Suas funções são selecionar as melhores músicas em um aparelho similar a um rádio de carro, regular o som em uma mesa de som adaptada e abaixar o volume quando passam em frente a igrejas ou hospitais. Seu naipe bonachão, sua voz empostada e o microfone na mão denunciam algo mais. “Sou locutor também e tenho de agitar a galera”, diz ele. “Sempre foi meu sonho trabalhar com trenzinho.”

Apesar da diferença de idade, Fabio e João frequentam trenzinhos desde moleques. Fabio começou a brincar como seguidor aos 10 anos. A vontade de participar daquilo era tamanha que levou o então garoto a fazer suas próprias cabeças de personagem. “Você faz uma máscara com um bloco de isopor, vai fazendo no formato da cabeça”, diz Fabio, esculpindo o ar. “Depois tem a fibra de vidro, o mesmo material usado em capacetes de moto.” Cada máscara leva três dias para ser feita ao preço médio de R$ 250.

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Crédito: Felipe Larozza

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A identidade dos personagens está quase somente no rosto que carregam. Como poucas fantasias são fiéis aos modelos originais, não é raro encontrar um Patolino com regata vermelha da Quiksilver ou um Ben 10 com colete de brechó — uma colcha de retalhos. Ainda assim, existe um mercado de roupas específicas para os dançarinos. “Se eu vejo na rua, eu sei exatamente qual fantasia eu fiz”, diz Tania Cardoso, 52 anos, costureira que confecciona roupas para trenzinhos há dez anos.

Seu primeiro molde foi feito em 2005. Ele foi destinado a seu próprio filho que era personagem de trenzinho. Hoje em dia, ela costura camiseta e macacão em apenas um dia cobrando R$ 50 pela mão de obra. O trabalho é constante: como a correria é grande, as fantasias rasgam com frequência. Cabe ao dançarino cuidar do seu uniforme de trabalho, às vezes até facilitando o reconhecimento do público com um detalhe ou uma estampa. “São eles que colocam os nomes dos personagens na fantasia”, diz Tania.

Além do isopor, os materiais mais usados na confecção do conjunto são cetim e lã para o cabelo e acabamento das mãos e pés. A Palhaçaria, única loja especializada da cidade, vende seus melhores trajes por cerca de R$ 420 — um baita presente para crianças que se divertem nos trenzinhos. “Os pais que podem dão a festa de aniversário e compram a roupa do Fofão, mas alguns trocam a festa pela roupa”, diz Sandra Cruz, 42 anos, gerente e coproprietária da loja. “Tem crianças que dizem: ‘eu só quero ganhar a roupa!'”

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Crédito: Felipe Larozza

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Segundo Sandra, 60% do rendimento da empresa vem de fantasias. Cerca de 60 conjuntos de vários tamanhos e modelos são vendidos mensalmente. “Temos fantasias para outros estilos também, mas as fantasias do trenzinho são carro-chefe”, diz ela. Os personagens são vários: Mario, Luigi, Cebolinha, Cascão, Mônica, Magali, Ben 10, Máscara, e por aí vai. Adivinhe quais os mais procurados? “Fofão e Palhaço são os personagens que mais vendem.”

[olho]Não é raro encontrar um Patolino com regata vermelha da Quiksilver ou um Ben 10 com colete de brechó[/olho]

Sandra e sua irmã fundaram a loja há quatro anos. A mãe delas faz fantasias desde 2008 e a demanda aumentou com o sucesso da confecção. Sandra lembra que sua casa vivia cheia de garotos e donos de trenzinho em busca de fantasias. O bico virou emprego em tempo integral quando os rendimentos aumentaram. “Eu e minha irmã deixamos nossos trabalhos para investir nisso”, me conta ela. “Hoje nós vivemos da loja, praticamente três famílias vivem da loja.”

Que trem é esse?

Como não há literatura a respeito, existem poucas informações confirmadas sobre a cultura dos trenzinhos no Brasil. Em arquivos da década de 50 é possível encontrar as primeiras menções ao termo. Em 1956, um trenzinho dava voltas pelos gramados ainda pelados do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Em 1958, uma loja da falida rede Mappin contratou um trenzinho para comemorar o Natal. Segundo uma carta enviada por um leitor ao Estadão, coube a um funcionário empurrar o trambolho pelas ruas no centro de São Paulo.

A Trenzinho Star Tolomelli, de Governador Valadares, é uma das empresas mais antigas do ramo ainda em atividade. Criada em 1979, ela hoje tem um dos mais famosos trenzinhos da cidade mineira. Seu fundador não revela o nome por receio de se tornar muito conhecido. Ele tampouco confirma a lenda de que construiu seu primeiro trenzinho inspirado após uma visita à Disney nos anos 70 — os recorrentes casos de valadarenses que migram para os Estados Unidos dão um toque de realidade ao mito fundador.

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Em uma conversa por telefone, contudo, o senhor responsável pela Star Tolomelli conta vantagens de alcance nacional. Apoiando-se em conversas de colegas de trabalho, ele afirma ter sido o primeiro a construir um veículo de dois andares no Brasil, há 30 anos, e ter estreado os tipos de caminhões usados hoje em trios elétricos baianos, também há três décadas. Ele arrisca uma cifra. “Os trenzinhos empregam mais de cinco mil pessoas, direta e indiretamente, em todo o Brasil.”

Hoje, o plantel de trenzinhos da Star Tolomelli diminuiu de cinco veículos espalhados em São Paulo, Minas Gerais e Bahia para um único representante em Governador Valadares. O modelo é sofisticado: tem Wi-Fi, banheiro, DJ profissional, palco e, claro, personagens. “O pessoal universitário aderiu ao trenzinho, tem gente que me fala que vinha no trenzinho quando era filho e agora traz o neto e o sonho das crianças aqui é trabalhar no trenzinho Star Tolomelli”, afirma o anônimo empresário. “Passou a ser uma cultura.”

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À exceção da alta velocidade dos seus trenzinhos, a cidade mineira repete o esquema de Ribeirão Preto: exímios dançarinos fantasiados, público adolescente, músicas de sucesso, veículos gigantes e ostensivas turnês locais e regionais. A cultura dos trenzinhos ribeirão-pretana, no entanto, se apoia na fraqueza do equipamento e do sistema públicos de lazer, esporte e cultura; no elevado índice populacional frente a outras cidades do interior; e na relevância regional da cidade.

Para 2015, por exemplo, a despesa da prefeitura de Ribeirão Preto com as pastas de cultura, lazer e esporte foi orçada em cerca de R$ 24 milhões. Isso corresponde a 1,2% do R$ 1,8 bilhão investido ou R$ 36 por ano para cada um dos 666 mil habitantes estimados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Segundo a mais recente classificação do órgão, a cidade apresenta o 28º maior PIB do país, uma pirâmide etária larga nas faixas de 15 a 34 anos e IDH 0,800 — índice muito alto.

A pujança interiorana se deve parcialmente a séculos passados. O campus da Universidade de São Paulo que alimenta a cidade com novos profissionais ocupa o que fora uma fazenda cafeeira até meados de 1950. As lavouras da região agora são lembranças em ruas asfaltadas como a principal via de acesso a USP, a Avenida do Café. Segundo um recente levantamento, a cada quatro habitantes de Ribeirão Preto, três estão empregados no setor de comércio e serviços. E eventos como o último Agrishow mostram que o agronegócio diminuiu.

Esse misto de importância socio-econômica, desenvolvimento relativo, políticas públicas lenientes, população jovem e clima de interior criou um cenário favorável ao agigantamento metamórfico dos trenzinhos na cidade. “O pessoal de Ribeirão Preto é festeiro pra caramba também”, me explica Wellington Cardoni, 37 anos. Ele e sua esposa, Fabiana Cardoni, 34 anos, são proprietários da Dominium, maior empresa de trenzinhos da região. Com cinco veículos e quarenta funcionários, eles chegam a fazer cento e sessenta festas por mês.

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Wellington e Fabiana no pátio de trenzinhos da empresa do casal. Crédito: Felipe Larozza

“Quando era criança, eu andei muito no trenzinho Pancadão porque tinha um supermercado que chamava ele toda semana das crianças”, me conta Wellington. “Tinha gente virando a esquina na fila, tinha a Cuca, o Fofão… Eu não imaginava que esse trenzinho ia ser meu.” Esse foi o terceiro trenzinho comprado pela sua empresa. O primeiro foi o singelo Encantado. O segundo foi o clássico Carreta Furacão. Até hoje, ele é a maior locomotiva do sucesso da Dominium.

Quem vê o sorridente rosto estampado na frente desse trenzinho mal sabe que ele não passava de tristes ferragens largadas em uma garagem em Franca, cidade do interior de São Paulo, em 2010. O antigo proprietário tinha começado a montar o veículo havia alguns meses, mas ele não pôde finalizar obra. Ao saber disso, Wellington e Fabiana arremataram o potencial trenzinho por R$ 50 mil. Ele só foi à rua após ganhar reforma e nome. Naquele mesmo ano, o Carreta Furacão foi ao mundo na filmagem de um segurança da equipe.

“Quando o cara que vendeu descobriu o sucesso, ele ligou pedindo pra gente vender de volta”, diz Fabiana. No meio da conversa, ela atende à chamada de algum cliente da capital. O marido lembra de algumas histórias do trenzinho: a ligação feita pelo cantor Leandro Lehart agradecendo a divulgação involuntária da sua música ou os jovens dançarinos do Guarujá que cogitaram pedir emprego na Dominium. “Não tem como vender o Carreta Furacão”, sentencia Wellington. “Muitos já ligaram pedindo, mas não tem como.”

Ainda assim, a menina dos olhos é estimada pelo empresário em R$ 200 mil. O valor aumentou com a reforma concluída em outubro. A reestreia do Carreta Furacão será no Dia dos Trenzinhos, evento organizado pelo casal junto de outras empresas da cidade. Como todo dono de trenzinhos, Wellington puxa sardinha para seu lado — com um fundo de razão. “O Carreta Furacão levou o nome dos trenzinhos pro mundo”, diz ele. “Você veio de São Paulo por causa da Carreta Furacão.”

Tamanha fama não viria sem efeitos indesejados. Segundo o casal, há trenzinhos que aproveitam a relevância conquistada pelo seu trabalho. Eles relatam dois casos em que empresas fecharam contratos em nome do Carreta Furacão, mas, na verdade, outros trenzinhos foram usados nas festas. A concorrência, que chegava a seis ou oito representantes nos anos 90, hoje chega a 40 veículos em uma única cidade.”É um mercado desleal”, afirma Fabiana.

A competição fica mais acirrada com a presença de trenzinhos de outros lugares. O contrato para uma festa com trenzinho de Ribeirão Preto varia entre R$ 200 e R$ 350, mas trenzinhos forasteiros cobram até 100 reais a menos que isso. Embora Wellington tenha excursionado com sua equipe em outras cidades, ele se opõe a essa prática em sua própria terra. “Eles não pagaram o que a gente pagou pra manter advogado, assessoria, os laudos dos veículos da Associação”, diz ele.

A Associação de Trenzinhos de Ribeirão Preto foi formada em 2011 para impedir a presença de trenzinhos de outras cidades. Desde as primeiras reuniões ela é presidida por Tony Leme. Ele construiu seu primeiro trenzinho há quarenta anos — uma Variant adaptada. Hoje, seu filho comanda o trenzinho Trio Big Folia. Presidente da Associação, o patricarca também cuida da empresa com seu nome. “Minha preocupação como presidente é ajudar os donos de trenzinho que querem ser ajudados”, diz ele.

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Tony Leme. Crédito: Felipe Larozza

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Nem mesmo o neto pequeno balbuciando a palavra trenzinho consegue derrubar o semblante turrão do empresário. Para ele, outro problema no mercado é a crise econômica. Na sua análise, ela reduziu até mesmo a procura por atividades de lazer baratas. “A crise cai sobre a população”, diz ele. “O único divertimento que uma pessoa pobre tinha até então era o trenzinho: se for ao shopping, ela gasta R$ 150; se for ao parque, ela gasta R$ 20; se for à praça, não tem nada porque está tudo destruído.”

Os proprietários da Dominium também pensam dessa maneira. Fabiana reconhece que a maior parte de seu público é formado pela camada de menor poder aquisitivo da população. O trenzinho é o único divertimento acessível a crianças e adolescentes dessa parcela. “Ribeirão Preto não tem o que fazer, é uma cidade muito grande e não tem nada”, diz ela. “Se uma pessoa tem quatro, cinco filhos, como ela vai levar todos pra um parque de diversão?”

Seu marido afirma que a Associação surge para proteger os trenzinhos, mas que ela não atua nesse sentido. “Hoje, a Associação não exerce o papel dela”, afirma Wellington. Ele também diz que há queixas de vários associados a gestão da entidade, da qual ele mesmo faz parte. Segundo o proprietário da Dominium, chegou ao fim o mandato da chapa atual da Associação, mas não houve novo pleito. “O presidente tem vantagens com trenzinhos, pra ele não é interessante essa votação”, diz ele.

Segundo o presidente da organização, nem todos associados pagam a taxa de manutenção exigida em estatuto. Tony também alega que poucos filiados ajudam nos trâmites burocráticos. Para ele, vale aquela máxima: a união faz a força. “Nós, da Associação, somos desunidos. Se alguém vier aqui, eu passo o cargo porque isso é só bucha, dor de cabeça”, afirma ele. “Mas eu não vi ninguém que vista a camisa como eu visto.”

 

Cultura pra quem?

A Associação de Trenzinhos de Ribeirão Preto também nasceu para defender os interesses da classe ante as regulações do governo. Em 2011 a câmara legislativa da cidade deu início às primeiras discussões sobre a atividade dos trenzinhos. “A gente percebeu que, de fato, era uma atividade cultural irregular da cidade que estava trazendo uma série de situações de risco para os trabalhadores e para seus próprios usuários”, afirma Gláucia Berenice, vereadora do PSDB, em seu gabinete no prédio de inspiração brutalista que abriga a Câmara Municipal da cidade.

Segundo ela, há vários relatos de cidadãos incomodados com trenzinhos. As reclamações em geral recaem sobre o comportamento do público ou sobre as músicas dos veículos — não só o volume. “Tem letras de conotação sexual e muita apologia a criminalidade”, diz ela. A vereadora conta a história de uma mãe que acenava com o filho de colo para o personagem Homem-Aranha em um trenzinho. “Quando levantou a máscara, ele tinha um cigarro de maconha enorme na boca!” Acidentes também estão na lista de problemas.

O aumento da quantidade de trenzinhos acentuou o número de denúncias. Segundo Glaucia, o Ministério Público da cidade era favorável à proibição da atividade, mas o legislativo buscou uma alternativa. Em julho de 2013 foi aprovada a lei nº 13.030, a “lei dos trenzinhos”, após debates entre bombeiros, policiais, engenheiros, fiscais, legisladores e representantes do trenzinhos — em um dia de protesto, eles levaram os poderosos veículos para a frente da Câmara.

A lei, no entanto, criou um limbo jurídico por dois motivos. Ela prevê que todos os trenzinhos da cidade recebam um alvará da prefeitura para circular e cria um departamento de fiscalização para atender denúncias dos cidadãos, mas não determinava qual representante da prefeitura desempenharia essas funções. Sem documentos, empresários como Tony Leme e o casal Wellington e Fabiana eram clandestinos na própria cidade. Sem fiscalização, qualquer trenzinho agia como bem queria.

No papel, esses problemas foram solucionados com um novo decreto de lei publicado em diário oficial no fim de agosto. O dispositivo legal coloca o Departamento de Fiscalização Geral da Prefeitura de Ribeirão Preto para atuar junto aos trenzinhos. Segundo Osvaldo Braga, diretor do setor, uma questão simples, mas de grande importância seria resolvida até o fim de outubro. “Nós teremos a realidade de quantos trenzinhos existem na cidade porque todos terão de apresentar documentação”, diz ele.

Segundo Osvaldo, houve um grande período de debates e revisões até que a lei fosse sancionada pela prefeita. “Coube a nós estudar mais a lei e foram feitas várias reuniões no Departamento junto aos profissionais dos trenzinhos”, diz ele. Embora o alto volume do som dos veículos entre 22h30 e meia-noite seja a causa de maior parte das reclamações, os empresários do setor estavam mais preocupados com o estilo das músicas: eles queriam funk. “Era uma briga grande dos profissionais, mas prevaleceu que esse tipo de música não será executado.”

A atuação das empresas de outras cidades em Ribeirão Preto também será verificada pela fiscalização. Para Osvaldo, é preciso que todos os trenzinhos tenham CNPJ e firma aberta no município. “Temos uns três ou quatro trenzinhos de outras cidades que vêm atuar aqui e agora vamos agir no rigor da lei”, diz ele. “Será uma fiscalização árdua, principalmente nesse início, e daremos prioridade para os casos do pessoal de fora que vem trabalhar aqui.”

A punição para empresas que cometerem infrações varia de multas entre R$ 501 e R$ 11 mil a cassação do alvará. O departamento recebe denúncias no 156. Dois funcionários verificam as denúncias feitas à noite, mas eles também estão encarregados pelos casos de perturbação do sossego em toda a cidade. Por isso, Osvaldo pede que as reclamações sejam realizadas com imagens dos veículos infratores. “Se eu recebo uma denúncia, na hora que o fiscal chega o trenzinho já passou e foi embora”, diz ele.

Perto do fim da conversa, Osvaldo me conta de uma recente visita que tinha feito a Caldas Novas, no interior de Goiás: “Lá os trenzinhos não têm música alta, eles ficam andando pela cidade com um sininho.” Estranho. Caldas Novas é conhecida por dionisíacos festivais sertanejos, beberranças homéricas, canhões de luz tão potentes quanto o sinal do Batman, paredões de alto-falantes que fazem o som da percussão de qualquer arrocha estalar pelos ossos. Seriam os trenzinhos de lá meros bibelôs?

Este vídeo me mostra que sim. Depois da descoberta no interior de São Paulo, contudo, não deixo de pensar que há um potencial, um devir maior em qualquer carroça férrea que circule pelo interior do Brasil. Na saída de Ribeirão Preto, em uma calorenta tarde de domingo, vi uma dessas correndo pela estrada. A pintura opaca do dia, as lâmpadas ofuscadas pelo sol, as cadeiras vazias, o motorista oculto, os personagens ausentes. Tudo isso, mas um nome estampado. Trenzinho da Alegria.

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CHOOSE YOUR DESTINY. Crédito: Felipe Larozza

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Cultura

A busca de Vincent Moon pelo invisível

É difícil fazer um retrato do cineasta francês Vincent Moon. Em mais de cinco horas distribuídas em dois encontros com o público em São Paulo, ele solta fragmentos de informação fora de ordem, sem planejamento, sem ensaios, num grande fluxo de consciência. De certa forma, Vincent se parece com seus filmes. Feitos em um take só, sem pesquisa prévia, com uma única câmera, eles privilegiam a imaginação à informação. O espectador não sabe exatamente a que está assistindo, mas fica imerso na experiência. Seu trabalho, sintetiza, junta os meios do cinema e da música para formar algo “acima disso”. Totalmente experimental.

As duas conversas seguiram o mesmo padrão. Vincent atrasa um pouco – “vamos começar em uns 15, 20 minutos, ok? Vocês têm tempo, não?” – e deixa o público ouvindo músicas de gravações suas pelo mundo. Depois, diz querer uma conversa solta, sem roteiro. Vai passar um de seus filmes, escolhidos um pouco ao acaso, falar um pouco sobre ele e abrir para perguntas. Depois outro filme e mais perguntas. E por aí vai.

Vincent ficou conhecido pelos vídeos musicais. No site La Blogothèque, criado dez anos atrás, postava pequenos filmes de bandas de rock tocando em lugares inusitados, com a câmera bem perto, sem ensaio prévio, em uma tomada só. Seus vídeos não lembram em nada videoclipes, feitos para vender a música. Um dos filmes que mostrou ao público em um dos encontros é um exemplo claro de sua obra: dá a sensação ao espectador de estar dentro de um show. A câmera treme, vê-se apenas pedaços de cada músico e às vezes você não sabe para o que exatamente está olhando. “Quando você vai para um show, você não vai ver tudo. Você não vai ver nada. Você vai estar no meio de uma coisa que é muito mais que só música. Essa sensação de estar no meio das pessoas, fazendo parte de uma comunidade, tem muito a ver com um ritual”, ele explica.

“Minha ideia era ir pra rua. Iniciei esse projeto muito mais com intuição do que pensamento. O desejo foi de quebrar hierarquias e colocar anarquia. Nunca tive o desejo de filmar algo em seu lugar oficial. Ir num show e fazer um filme… É chato. Não quero dar muitas informações para o espectador, quero ir para o lado experimental”, diz. Vincent nunca gostou de ouvir discos em casa. Teve a sorte de nascer em Paris, ele conta, onde podia ir a um show por noite e “participar” da música. A câmera é uma extensão de seu corpo. Quando caminha, quer que o espectador caminhe junto e sinta que faz parte daquela experiência.

Hoje, ainda trabalha com a união de cinema e música, mas mudou seu foco. Em vez de documentar o rock, Vincent investiga o papel da música em rituais pelo mundo todo. O sucesso da Blogothèque, curiosamente, foi o que o levou a largar o projeto. “Dez anos atrás não tinha nada na internet. O sucesso foi rápido, a gente mostrava música de um jeito diferente. Mas você entra numa relação muito estranha com a quantidade. ‘Opa, tive 50 mil visualizações na semana passada, agora preciso de mais.’ É muito ruim. Uma relação muito perigosa. Depois de quatro, cinco anos, entrei nessa e ai ai ai. Precisei sair.”

RODANDO O MUNDO

Decidiu então rodar o mundo buscando trabalhos de qualidade, independente de quantas pessoas fosse atingir. “Não vou tocar 50 mil pessoas, mas vou tocar de um jeito diferente. Isso é muito mais legal”, diz. “Tinha um desejo de encontrar outras pessoas e outras músicas. De fazer uma grande pesquisa sobre a origem da música.” Nessa busca, encontrou uma ligação entre a arte e o sagrado e resolveu ir atrás de cerimônias e rituais.

Os filmes que mostra passam por Peru, Geórgia, Rússia, Ucrânia, Etiópia, Egito e Brasil. Viaja sem planos, sem saber quanto tempo vai ficar em cada lugar, para onde vai depois ou o que vai filmar ali. Nem pensa em fazer a conta de quantos países já visitou. “Vivemos numa sociedade da quantificação e isso atrapalha”, diz, voltando à questão que o motivou a deixar a França. “Nunca tenho o desejo de saber o que vai acontecer. Filmei muitos grupos sem saber o que eles iam tocar. Rapidamente você pode sentir pra onde vai a música. Você entra num momento de conexão tão lindo”, diz, servindo-se de vinho. “Não sou profissional e nem quero ser. Sou amador.”

Uma vez que chega ao lugar, vai conhecendo pessoas. Dividindo uma garrafa de vinho ou um baseado com um desconhecido, recebe dicas de onde ir. Foi assim, por exemplo, que chegou a uma casinha no centro do Cairo onde encontrou duas mulheres tocando tambor enquanto outra entrava em transe. Outro homem com quem cruzou deu a dica de um grupo tradicional da Ucrânia e salvou sua viagem: ele ia embora no dia seguinte e não tinha filmado nada.

Assim como não gosta de pesquisa diz não gostar de dar muitas informações ao público. “Na internet há informações extra embaixo do vídeo. É fantástico trabalhar um cinema em que você pode ir pra poesia total. Se você tem curiosidade, vai procurar. O desejo inicial é deixar vocês trabalharem.” Também só atrapalha, em sua opinião, a ideia de que um filme precisa de um começo e um fim ou recursos como narração para facilitar a vida do espectador. Vincent é categórico ao afirmar que não tem relações com escolas de cinema. “Fui para a universidade e me falaram de John Ford. Pfffff. Não me encontrei lá”, fala. E vai além: “Não sou diretor, sou só o rapaz com a câmera”.

SEM PROJETOS, SEM DINHEIRO

Alguém pergunta como ele faz para se sustentar na estrada e Vincent desconversa. “Não preciso de muitas coisas pra viver. Viajei por cinco anos e não aluguei nada, não paguei por uma casa. Não tenho nada. Só uma mochila”, diz. “Quando você entra nessa maneira de existência é fácil. É uma coisa estranha, entender como é possível viver com muito pouco. Mas fazer esse tipo de conversa me dá um pouco de dinheiro.” Tampouco conta com patrocínio ou editais para financiar seus filmes. Como não faz planos, não faz projetos. E, sem projetos, resta pagar tudo do seu bolso.

Com esse estilo, é difícil as coisas darem errado. “Gosto muito de trabalhar com qualquer coisa. Pode virar muito experimental.” Uma vez, conta, foi ao Peru acompanhar um ritual inca. Depois de caminhar duas horas no frio, achou que as condições estavam muito ruins para filmar. Mas registrou o som. Na volta, encontrou um vendedor de DVDs que tinha imagens da cerimônia do ano anterior. “Eu tinha o som, filmei o ritual do ano passado. Inventei um pouco uma história e juntei os dois. É!”, lembra, animado. “Deu um filme legal, experimental. É interessante trabalhar com qualquer material, sem ter o desejo de chegar num lugar seguro.”

Nas duas noites, o público faz a mesma pergunta: como filmar um ritual, uma cerimônia religiosa, sem interferir no que está acontecendo? Vincent responde: “Qualquer coisa que você faça vai interferir. Mesmo sem a câmera. Objetividade não existe. Tudo é um intercâmbio de energias. O movimento de ir até lá já muda o lugar”. O que é necessário, continua, é estabelecer uma relação com as pessoas que não atrapalhe a energia do local. “Muito rapidamente você se conecta. Meu trabalho não é o de um antropológo acadêmico, que passa muito tempo no lugar. Gosto da aproximação rápida, sem saber muito antes.”

Paris, diz Vincent, é o lugar menos espiritual do mundo (“muito racional, muito”), mas viajar o fez abrir seu entendimento de mundo. Ao tentar definir sua fé, faz uma pausa longa. “Eu acredito. Em tudo. Gosto muito de ser um camaleão”, afirma. “Esse desejo de encontrar o invisível vem de filmes que fiz anteriormente. Esse é o desejo original da Blogothèque. Busco a interconexão em tudo, sem gênero, sem fechamento.”

Seu projeto mais recente, intitulado “Híbridos”, nasceu dessa descoberta espiritual. Na sua volta ao mundo, passou pelo Brasil e foi tocado pelo candomblé. “Tem uma coisa bem especial nele, que é a ligação com a realidade. Vai além do livro. Voltei pra cá no ano passado pra fazer um grande projeto da espiritualidade. O Brasil é um grande país pra falar disso.”

Ao longo de um ano, Vincent e sua mulher, Priscilla Telmon, viajaram pelo país registrando rituais. Como resultado, lançarão na internet mais de 60 curtas — um para cada cerimônia — e um longa que costure tudo, com estreia prevista para o ano que vem. “O que estamos fazendo no Brasil tem a ver com celebração, com mostrar a beleza. Desmistificar, de uma maneira, sem desmistificar. Sem dar informações demais, mas mostrar que precisamos de tudo isso.”

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Cultura

A irrealidade virtual de Oscar Raby

O pai do artista Oscar Raby tinha 22 anos quando a Caravana da Morte passou por seu regimento, no norte do Chile. Pouco tempo havia passado desde o golpe liderado pelo general Augusto Pinochet, e a Caravana rodava o país executando presos pelo regime. Raby era tenente e presenciou, sem poder fazer nada, uma dessas execuções.

Anos depois, quando era adolescente, Oscar Raby ouviu essa história pela primeira vez. O pai lhe chamou, pediu para que se sentasse e narrou os acontecimentos daquele dia — como havia feito em depoimentos à polícia– para explicar ao filho porque seu nome iria aparecer em livros de história e notícias no jornal. Por mais de 20 anos Oscar carregou consigo essa lembrança sem saber exatamente o que fazer com ela. Até deparar-se com a realidade virtual.

“Percebi que esse meio era ideal para te colocar numa situação em que você tem controle, mas esse mesmo controle te arrasta. Foi por isso que meu pai passou”, diz o artista, que esteve em São Paulo para o evento Mediamorfosis Brasil, que discute o impacto de novas tecnologias na produção de conteúdo.

“Assent”, trabalho que resultou da descoberta dessa tecnologia, utiliza a realidade virtual para colocar o espectador no lugar do pai de Raby, observando de mãos atadas a morte de um grupo de pessoas. Exibido neste ano na mostra New Frontier, voltada para artistas independentes no festival de cinema Sundance, o trabalho borra os limites entre documentário e videogame.

Em “Assent”, Raby não utiliza, por exemplo, fotografias ou imagens realistas para compor o ambiente no qual, usando óculos de realidade virtual, o espectador fica imerso. O cenário lembra um jogo, com imagens estilizadas e atmosfera que lembra a de um sonho ou de uma lembrança já meio apagada. “O processo envolveu muita tinta jogada sobre uma tela. Há um monte de coisa escondida debaixo de camadas de pintura seca”, conta o artista.

Os personagens tampouco são reais: foi o próprio Raby quem serviu de modelo para todo o mundo que aparece em cena. “A questão mais crucial para mim era: com o que se pareceriam as vítimas? E os assassinos? Quem sou eu para contar a história deles?”, diz. “Não senti que seria justo eu tentar representar a vida deles. A única coisa honesta que eu poderia fazer seria mostrar como essa história afetou a vida do meu pai e a minha. Acabei usando a mim mesmo, minha cara e meu corpo, para representar todos. O usuário se torna meu pai, uma testemunha silenciosa da execução.”

É, portanto, uma interpretação dos fatos. “Não sou jornalista, sou artista. Tudo o que faço é uma interpretação”, afirma. “As memórias do meu pai são parte das minhas próprias lembranças, da mesma forma inescapável em que às vezes você se vê agindo ou falando como seus pais. Às vezes é reconfortante, mas na maior parte das vezes isso te lembra do quanto você tem medo de repetir seus defeitos.”

Depois do primeiro lampejo, Raby levou dois anos refletindo sobre como contar a história (colocar o espectador no lugar das vítimas? Dos assassinos, talvez?) e quatro meses tocando o projeto durante a noite, após trabalhar durante o dia na Galeria Nacional da Austrália. Foi uma jornada completamente solitária. “Duas pessoas estiveram no projeto: o Oscar do dia e o Oscar da noite”, brinca.

Ele nunca tinha trabalhado com realidade virtual antes disso. “Sou um artista visual, mas também um designer multimídia. A maior parte do meu trabalho foi criada com ferramentas digitais. Até pinturas, colagens e performances”, diz. “Por causa desse passado eu penso na realidade virtual não como algo que necessariamente siga a escola do cinema, mas como uma mistura de teatro, arquitetura, fotografia, pintura e, claro, videogames.”

A REALIDADE VIRTUAL PUNK

As experiências com a tecnologia e cinema tradicional são bastante diferentes tanto para espectador quanto para realizadores, segundo Raby. Se ao fazer um filme o diretor determina aquilo que as pessoas vão ver numa cena, na realidade virtual o olhar pode ser direcionado a qualquer lugar, a critério do público. “Agora aprendemos a sugerir, a convidar e montar a mesa para uma festa, para que os convidados à nossa experiência escolham aquilo que os estimula.”

Trata-se, para ele, de uma arte totalmente nova, que assimila elementos de mídias anteriores, as mastiga e as transforma numa linguagem única. “Um trabalho de realidade virtual pode não ser um filme, mas uma performance ou uma peça escrita para o usuário, que coloca os óculos e vira um ator nela. Pode ser um um dançarino seguindo um roteiro visual ditado pelos óculos de realidade de virtual”, diz Raby, listando outras formas de incorporar a tecnologia à arte.

Para ele, a tecnologia ainda engatinha e dá margem para muita experimentação. “Já alcançamos o potencial da pintura?”, compara. “Estou esperando a aparição do jazz da realidade virtual, o punk. Espero por todos os gêneros de realidade virtual, que representem todas as vozes.”

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Por ora, o acesso a projetos do gênero não é tão disseminado, já que não é fácil colocar as mãos nos óculos de realidade virtual. O ambiente também pode influenciar na experiência de imersão, diz Raby. “O entorno, o espaço físico, pode fazer tanto para colocar o público no universo minúsculo que você preparou. Pode dar aquela sensação de ritual que reconhecemos quando as luzes do cinema se apagam ou quando o maestro levanta a batuta.”

FICÇÃO E DOCUMENTÁRIO

Depois de “Assent”, Raby criou um estúdio de realidade virtual em Melbourne, Austrália, chamado VRTOV, com vários projetos em desenvolvimento. Em “Travelling While Black”, o objetivo é mostrar a dificuldade que negros tinham em circular pelos Estados Unidos na década de 1950. “Alguém publicou um guia de viagem para eles, uma espécie de [guia] Lonely Planet mostrando as melhores rotas para se divertir e evitar problemas”, conta. “Vamos criar uma experiência que coloque o espectador na pele de um desses viajantes.”

Ainda no gênero documentário, uma série procurará mostrar como se vivencia a solidão, colocando o público em situações de isolamento, em locais como uma prisão ou Antártida.

Há também um projeto de ficção, baseado no romance publicado na internet “Queerskins”. O personagem principal é uma das primeiras vítimas da Aids nos Estados Unidos, nos anos 1980. “Conhecemos seus pais e vemos como eles lidam com a perda do filho. Você é convidado à cena como o fantasma desse filho morto.”

Na realidade virtual, a poesia importa tanto quanto a tecnologia. A dica de Raby para quem quer começar a trabalhar com realidade virtual é singela: aprender a focar em si e experimentar aqueles momentos que só se tem sozinho. “Para deixar a realidade virtual acontecer graciosamente você precisa praticar ficar consigo. É como nadar. Você deve encontrar um desses momentos e tentar replicá-lo.”

“Deve-se achar aquele gesto que faça sentido para você, que te faça sentir algo. As chances de que pelo menos uma pessoa no mundo também sinta isso são muito grandes. Recrie e mostre isso ao mundo. Você provavelmente vai ver, assim, que a realidade virtual não é um lugar tão solitário.”

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“Duna”, 50 anos

Como um complexo livro escrito nos anos 60 levou dois dos diretores de cinema mais excêntricos a embarcarem em projetos mirabolantes, influenciou uma das maiores sagas cinematográficas já criadas e mesmo assim demorou anos, até décadas, para ser reconhecido como um dos marcos da literatura de ficção científica? Não é uma pergunta fácil de responder, mas tudo começou com uma obsessão por montanhas feitas de areia e vento.

Enquanto estava se preparando para uma reportagem que nunca escreveu, Frank Herbert se viu fascinado por dunas. A paixão tinha um quê de poesia: Herbert gostava do fato de que ninguém percebia que as massas de areia eram primas das ondas do mar, movendo-se da mesma forma, mas num ritmo mais lento. Estudando um monte de arquivos sobre areia, ele acabou pensando: “E se existisse um planeta que fosse todo deserto?”. E foi além: “Nos meus estudos sobre desertos e em estudos anteriores sobre religião, vi que muitas religiões nasceram no deserto. Então resolvi juntar as duas coisas, pois não acho que uma história deva ter uma linha só”.

Foi assim, de uma singela observação sobre a areia, que nasceu o livro “Duna”, publicado 50 anos atrás. Às duas linhas — deserto e religião — somaram-se tantas outras que a história pensada como um conto terminou por se desdobrar em seis volumes escritos por Herbert e mais de dez feitos por seu filho, Brian, em parceria com Kevin J. Anderson, como continuação de seu legado. Sozinho, o primeiro livro tem tantas tramas que fazer uma sinopse, ainda que em alguns parágrafos, é uma tarefa complicada.

Mas aqui vai uma tentativa: num futuro distante vive o garoto Paul, herdeiro da nobre família Atreides, designada para governar o planeta desértico Arrakis. É somente lá que se produz a substância mais valiosa do universo, que dá vitalidade e uma clareza incrível a quem a toma, possibilitando longas viagens entre planetas, essenciais para a manutenção da ordem do universo. Tirar essa substância das dunas, no entanto, é um problema, já que qualquer atividade na areia atrai vermes gigantes devoradores de pessoas.

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Por causa da escassez desse recurso natural fundamental, Arrakis é um território cobiçado por outras famílias que querem dominá-lo. Na disputa, Paul acaba por se perder no deserto com a mãe, iniciada em uma ordem político-religiosa de mulheres com poderes como controlar a mente alheia. Ah, e Paul é também uma espécie de messias, aguardado ansiosamente pela ordem há gerações e dotado de poderes incríveis.

Não é fácil de explicar, muito menos de ler. Herbert não introduz seus leitores lentamente a seu universo — que é complicado e detalhado como a Terra Média de J.R.R. Tolkien. Algumas (muitas) consultas na internet ajudam a situar o leitor em meio às tramas e termos como Bene Gesserit e gom jabbar, citados sem cerimônia ou explicações logo nas primeiras páginas.

Essa complexidade não assusta, porém, a legião de fãs de ficção científica. Em 2011, uma enquete da americana NPR (Rádio Pública Nacional) com mais de 60 mil votos elegeu “Duna” como a quarta melhor publicação de ficção científica da história. Mas como acontece com muitas obras do gênero, o livro não foi um sucesso imediato.

Segundo James E. Gunn, autor da antologia em seis volumes “The Road to Science Fiction” e criador do Centro para o Estudo da Ficção Científica da Universidade do Kansas, “Duna” nasceu muito à frente de seu tempo. “‘A Sociedade do Anel’ [de Tolkien] veio em um período em que as pessoas estavam prontas. Independente de seus méritos, é isso que é fundamental para que um trabalho adquira esse nível de popularidade”, diz.

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“‘Duna’ era um livro mais complexo e difícil. Foi um sucesso fora do comum como uma história publicada em revistas, mas teve dificuldades em sair como livro porque estava à frente de sua época tanto em relação aos temas quanto à abordagem”, diz. “É um livro significativo por causa desses temas e do tratamento compreensivo dado a eles, por causa dos personagens e pela capacidade de criar um universo futuro crível com uma história que o sustente.”

Rejeitado por dezenas de editoras até conseguir ser publicado, o livro deslanchou, segundo Gunn, surfando na onda do movimento ambientalista fortalecido nos Estados Unidos após a publicação de “Primavera Silenciosa”, de Rachel Carson, sobre os danos causados por pesticidas no ambiente. Foi aí que “Duna” e seu coquetel de assuntos, que falavam de danos à natureza e escassez de recursos naturais valiosos, deu certo. O livro conquistou os prêmios Hugo e Nebula, os mais importantes do gênero, e ultrapassou a marca de 1 milhão de exemplares vendidos.

O MAIOR FILME JAMAIS FEITO

Uma história como “Duna” merecia uma versão cinematográfica digna de sua grandiosidade. E se isso não aconteceu nas telas, acabou rolando nos bastidores. A mais curiosa tentativa de adaptação da história foi do diretor, escritor, poeta e cartomante Alejandro Jodorowsky, em 1975. Com o objetivo de proporcionar ao espectador a sensação de uma viagem de ácido, o diretor escolheu para o elenco nomes tão exóticos como Orson Welles, Mick Jagger e Salvador Dalí. A trilha sonora ficaria a cargo do Pink Floyd. Uma experiência lisérgica completa.

Mas, como na literatura, o filme “Duna” era moderno demais para aquele momento. Se no papel a saga de Herbert deu certo apesar das dificuldades, no cinema o projeto naufragou por causa de sua megalomania, ficando conhecido como um dos melhores filmes que nunca existiram. A história está documentada no filme “Jodorowsky’s Dune”, de Frank Pavich, lançado em 2013.

Jodorowsky nem havia lido a obra quando um produtor perguntou para ele qual seria seu filme dos sonhos. Poderia ter dito “Dom Quixote”, por exemplo, mas disse “Duna”, o livro de ficção científica mais popular daquele momento. Depois de lê-lo, finalmente, o cineasta teve certeza: precisou de cem páginas para entender o que se passava na trama.

Seu projeto era ambicioso. Só o storyboard, desenhado pelo consagrado artista francês Moebius, tinha mais de 3.000 imagens. O elenco estelar foi escolhido a dedo. Para aceitar um pequeno papel, Dalí exigiu ser o ator mais bem pago da história, pedindo de cara US$ 100 mil por hora trabalhada. Inviável. Mas Jodorowsky deu um jeito de driblá-lo. Como ele apareceria em cena por no máximo cinco minutos, ofereceu-lhe US$ 100 mil por minuto na tela.

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Convencer um estúdio foi mais difícil. A resposta de todos era a mesma: a história era boa, o custo estimado, de US$ 15 milhões, era aceitável, mas os executivos não confiavam no diretor maluco nem acreditavam que alguém toparia ir ao cinema para assistir aquilo — como numa viagem de LSD, a jornada era longa, e estimada em mais de dez horas. Jodorowsky não cedeu: “Esse é meu sonho, não desistirei dele”. E ficou por isso mesmo.

Mas a história não terminou por aí. Quase dez anos após a tentativa de Jodorowsky, o filme “Duna” tornou-se realidade pelas mãos de ninguém menos que David Lynch, em 1984. Nele, o papel de Paul ficou com Kyle MacLachlan, que, anos mais tarde, reprisaria a parceria com o diretor na série “Twin Peaks”. O elenco tem ainda nomes como Patrick Stewart, Virginia Madsen e Sting — sim, o ex-vocalista da banda The Police.

No fim das contas, o filme não agradou nem mesmo a Lynch, que, sem poder fazer o corte final, não reconheceu aquele trabalho como seu. Anos depois, declarou que não seria justo dizer que a produção foi um pesadelo total. “Mas acho que foi 75% de um pesadelo”, afirmou, sincero. A ausência de controle criativo, disse, é a morte para um cineasta. “E eu morri.”

Sem o respaldo de seu diretor, o filme foi detonado pela crítica. No New York Times, Janet Maslin escreveu: “Muitos personagens de ‘Duna’ têm poderes psíquicos, o que os coloca na posição única de serem capazes de compreender o que está acontecendo no filme”. Richard Corliss, da revista Time, não deixou por menos: “A maioria dos filmes de ficção científica oferece um escape, como uma folga da lição de casa. Mas ‘Duna’ é tão difícil quanto uma prova. Você tem que se esforçar”.

GUERRA NAS DUNAS

Apesar do filme que nunca saiu do papel de Jodorowsky e da decepcionante versão de Lynch que foi às telas, o Guardian afirmou, em julho, que “Duna” tornou-se, sim, um grande filme: “Star Wars”.

“Dos poderes mentais dos jedis similares aos das Bene Gesserit à mineração em Tatooine”, há muito no universo de George Lucas que remete a “Duna”, segundo a publicação. “Herbert sabia que tinha sido copiado”, diz o texto. “Ele e alguns colegas formaram, como piada, uma organização chamada Sociedade Somos Muito Grandes para Processar George Lucas.”

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Fãs na internet compartilham o sentimento. “‘Star Wars’ é ‘Duna’”, diz, categórico, um site que compila semelhanças entre a saga de Frank Herbert e a criada por Lucas. Alguns dos pontos que sustentam essa tese são bem simples: Tatooine (“Star Wars”) é um planeta deserto. Arrakis (“Duna”) também. “Star Wars” tem uma princesa Leia, enquanto “Duna” tem uma princesa Alia (se você não se convenceu, diga os nomes em voz alta. A pronúncia é bem parecida, argumentam).

Mas há também teorias mais bem desenvolvidas. Nas duas histórias, por exemplo, há um grupo de rebeldes lutando contra um império. Tanto Luke Skywalker quanto Paul Atreides, protagonistas das duas histórias, são jovens rapazes com destinos ligados a planetas desérticos, com poderes com os quais devem aprender a lidar. E (pequeno spoiler) são descendentes dos vilões da trama.

Cópia ou não, é inegável que há em “Star Wars” uma influência de Herbet, diz James E. Gunn. Segundo ele, “George Lucas foi atrás da literatura de ficção científica para se inspirar e fez homenagem a muita coisa que leu”. Como exemplo, Gunn diz que a forma como os Wookie, espécie do personagem Chewbacca, são retratados é inspirada em um desenho de capa da revista “Analog”, que publicou os primeiros trechos de “Duna”. “E há o esqueleto de um verme de areia [de ‘Duna’] que aparece em um dos filmes [de ‘Star Wars’]”, cita.

VERSÃO BRASILEIRA

No Brasil, a saga ganhou uma nova versão em 2010 motivada pela paixão de um fã. O editor Marcos Fernando trabalhava em uma livraria paulistana quando conheceu Adriano Fromer, publisher da editora Aleph, que tem como foco livros de ficção científica. Conversando sobre o gênero e os pedidos mais frequentes de leitores, Marcos comentou que um dos mais procurados era “Duna”, que estava esgotado.

Havia descoberto o livro tempos antes por indicação de um colega, que sabia de seu gosto pela ficção. “Ele percebeu que eu acabara de ler mais um livro de H. G. Wells, então me indicou ‘Duna’. Acabei devorando o livro, com mais de 500 páginas, em menos de uma semana. De lá para cá, reli esse volume da série pelo menos três vezes”, conta.

Com a indicação em mãos, a Aleph o contratou para fazer a revisão do texto traduzido, cotejando-o com o original do primeiro volume de “Duna” — tarefa que ele repetiu para todos os outros livros da série lançados pela editora até hoje — e para participar de coordenação editorial. Marcos deixou, então, a livraria e mergulhou no universo de Frank Herbert.

“Uma das maiores dificuldades que encontramos de imediato foi realizar uma nova tradução de um livro já consagrado, com seus fãs acostumados com a versão lançada nos anos 1980”, explica ele. “As escolhas da tradução da Aleph sempre se pautaram em um paralelismo com o original, dando espaço para os neologismos e aglutinações, muito empregados por Frank Herbert.”

“Duna” continua rendendo frutos. Da nova edição brasileira a volumes inéditos da saga, passando pelo documentário sobre o filme de Jodorowsky e pelas obras influenciadas pelo livro, há constantemente algo novo com a marca de Herbert circulando. “A prova cabal é a contemporaneidade das questões suscitadas pelo autor: disputas políticas, uso consciente da água, monopólio de combustíveis, a importância social das religiões”, diz Marcos. É sempre complicado explicar os motivos do sucesso de algo, mas, a mesma modernidade que atrapalhou “Duna” no começo está ajudando a trazer novos leitores 50 anos depois.