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‘Batman vs Superman’:¯\_(ツ)_/¯

O nível de satisfação na saída de “Batman vs Superman: A Origem da Justiça”, que estreia na quinta (24), provavelmente está relacionado com o nível de expectativa depois de ver seus trailers. Quem achava que o filme ia ser horrível pode sair relativamente contente — ele não chega a ser tão ruim assim. Por outro lado, quem se empolgou com a história pode sair decepcionado, afinal o filme é uma versão (bem) mais longa do trailer. No início da exibição do filme para a imprensa, um vídeo do diretor Zack Snyder pede para que ninguém dê spoilers da história, como se o trailer não tivesse revelado quase tudo.

Falar sobre a história, aliás, não é muito fácil. Quando você para e pensa sobre o que aconteceu, vê que a história pode até entreter, mas é cheia de buracos. Tem coisas sem explicação, cenas de sonhos soltas, tramas que não evoluem. Mas, de qualquer forma, aqui vai: depois de presenciar o cenário de destruição da batalha de Superman (Henry Cavill) contra Zod, que aconteceu no filme “O Homem de Aço”, e ver um de seus funcionários perder as duas pernas por causa disso, Batman (Ben Affleck) fica desconfiado do outro herói. Por ser um alienígena capaz de destruir todo o mundo, pensa Batman, ele não seria de confiança. Já o Superman acha que o Batman é um justiceiro que não respeita leis e quer que ele pare de circular por Gotham. Quando Clark Kent e Bruce Wayne se encontram, Bruce aponta que a posição de Clark é um pouco hipócrita, mas enfim. Vamos aceitar a premissa e seguir em frente.

Nem só Batman começa a desconfiar do Superman. Depois de salvar Lois Lane (Amy Adams) de uma entrevista com um terrorista e, no processo, causar a morte de vários africanos, Superman começa a ser considerado um perigo por parte dos americanos e, principalmente, por uma senadora. Nada de muito interessante sai dessa vertente da história — o Superman questiona sua existência durante cinco minutos e o conflito, que poderia ser legal, se resolve. Enquanto isso, Batman investiga um homem chamado Português Branco, por motivos que — além de incluir a Mulher Maravilha (Gal Gadot) na história — não ficam muito claros.

O elo comum entre todas as tramas é Lex Luthor (Jesse Eisenberg), milionário cheio de tiques que lembra muito Mark Zuckerberg em “A Rede Social” (Eisenberg parece interpretar sempre o mesmo papel, sempre meio detestável e, desta vez, bem pouco sutil, para ficar num eufemismo). Luthor quer que Batman e Superman se enfrentem também por razões misteriosas. Talvez quem entenda mais dos quadrinhos tenha alguma pista, mas para os leigos nada do que Lex faz tem pé nem cabeça. A única explicação possível é que ele é completamente louco e, por isso, suas ações não precisam fazer sentido mesmo. É pouco para um vilão.

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Superman, Mulher Maravilha e Batman
Superman, Mulher Maravilha e Batman

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Também não é surpresa pra ninguém que viu o trailer que, a certa altura, Batman, Superman e Mulher Maravilha se unem de uma maneira esquisitíssima para lutar contra o vilão sem personalidade e com ares de ex machina chamado Apocalipse (culpe a tradução dos quadrinhos pela confusão com o vilão de X-Men, já que o nome original do monstro é Doomsday). A aparição da super-heroína fez com que parte da sala de cinema batesse palmas. Ela vai bem na cena de luta e Gal Gadot faz o que pode no resto do filme para que sua personagem seja interessante. Mas depois de cruzar com o caminho de Bruce Wayne nas investigações do Português Branco, ela é escanteada e aparece zanzando por aí durante o resto da história.

Não há nenhuma explicação para quem é ela, nenhum minuto dedicado à sua origem (em compensação, vemos os pais de Batman serem assassinados pelo que parece ser a milésima vez). Se seu nome é mencionado é tão breve que não dá nem para lembrar. O mesmo vale para os outros heróis. Quem esperava ver mais do Flash ou do Aquaman sairá desapontado. Eles aparecem durante um segundo, de forma bem questionável, só para estabelecer uma base para o filme da Liga da Justiça, planejado para o ano que vem. É difícil acreditar em um bom futuro para a franquia enquanto Zack Snyder estiver à frente dos principais títulos.

A Mulher Maravilha, aliás, não é a única personagem feminina mal aproveitada pela trama: uma atriz boa como Amy Adams merecia algo melhor do que a Lois Lane que recebeu, que aparece aqui e ali para apurar uma história sem pé nem cabeça sobre uma projétil, para ser salva pelo Superman e para dizer palavras de conforto para Clark Kent, numa atuação robótica de Henry Cavill. Ele tem a cara do herói, é verdade, mas um pôster com seu rosto teria feito um trabalho quase tão bom quanto. O trabalho de Cavill somado ao roteiro pouco interessante do personagem faz com que ninguém tenha apreço algum ao nome mais famoso da DC.

Mas há a parte boa: Ben Affleck, que declarou recentemente ao “New York Times” que seu trabalho no filme tinha prevalecido sobre aquilo que aconteceu na sua vida pessoal após a separação de Jennifer Garner, está bem no papel — uma ótima surpresa. Há mais Batman na versão Ben Affleck do que no Batman de Christian Bale. Seu Batman é complexo e não hesita em marcar bandidos com uma brasa em formato de morcego. O Batman não é um super-herói clichê, só com bondade no coração e boas intenções.

Também não são clichês algumas questões que o filme propõe: o impacto que essas batalhas de heróis contra vilões têm nas cidades (prédios destruídos, mortes, ferimentos), a ideia de que mesmo os super-heróis mais perfeitos e bondosos também têm falhas e pontos fracos — como Superman, que arrisca a vida de pessoas inocentes para salvar a mulher que ama –, a discussão sobre a necessidade de respeitar a lei mesmo quando é para fazer uma boa ação. “Batman vs Superman” não é ruim. Há uma história boa por trás do filme — ela só não é bem contada.

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‘Mundo Cão’: violência e um pouco de futebol

Antes da sessão de “Mundo Cão” para jornalistas começar cada um recebeu um papel que pedia: por favor, não deem spoilers para os leitores. Parece um pedido esquisito. Não contar demais de uma história sem aviso e estragar a experiência de quem quer ver um filme é que nem lavar as mãos depois de ir ao banheiro: tem gente que não faz, mas é senso comum. Na coletiva de imprensa, realizada logo depois da exibição emSão Paulo, percebe-se o porquê do panfleto. Quase nenhuma das respostas dadas pela equipe do filme, que estreia na quinta (17), pode ser usada numa reportagem sem que alguma reviravolta da história seja revelada.

Dirigido por Marcos Jorge, de “Estômago” (2007), o filme mostra as repercussões do encontro entre Santana (Babu Santana), funcionário do centro de zoonoses, e Nenê (Lázaro Ramos), que cria cachorros para aterrorizar quem atrapalhar seu negócio de máquinas de jogo em bares. Quando um de seus cachorros escapa e vai parar em uma escola, Santana e seu parceiro capturam o animal e o levam para o centro. Pela lei, se em três dias o dono não aparecer, o cachorro é sacrificado. Mordido na bunda pelo cachorro, o colega de Santana tem pressa para dar o fim no cão assim que o prazo termina, e o animal acaba por morrer minutos antes de Nenê chegar para buscá-lo.

Até então, Santana levava uma vida sossegada com os filhos, João (Vini Carvalho) e Isaura (Thainá Duarte), e a mulher, Dilza (Adriana Esteves), uma evangélica que vende calcinhas sexy — mas não de enfiar na bunda — pelo bairro. Depois de conhecer Nenê e entrar num confronto tenso com ele, acaba a paz. Santana chama o dono do cachorro de animal, e, como vingança, Nenê sequestra João, começando um jogo de gato e rato entre os dois no qual tabuleiro vira algumas vezes. Não dá pra contar mais nada. Como diria Marcos Jorge, é um filme cheio de “truquinhos do diretor”.

A história nasceu de uma obsessão de infância do cineasta pelo homem da carrocinha e de sua vontade de falar sobre amor entre pai e filho. Ainda quando fazia “Estômago”, o filme foi ganhando forma. Não à toa Babu Santana interpreta Santana: quando os dois filmavam juntos o longa de 2007, anos atrás, Marcos pensava em seu protagonista como “um cara bonachão, de coração muito bom”, como Babu.

O papel veio a calhar, diz Babu. “Foi um filme que me confortou. Eu tinha acabado de perder minha mãe, foi uma ação que não permitiu minha cabeça de se desmotivar. Segurou muito minha onda e minha autoestima”, diz ele sobre a experiência. “O Santana foi lindo. É a figura mais humana com quem me deparei. Como na nossa vida, alguma atitude que a gente toma ou alguma coisa em que a gente tropeça pode mudar tudo.” Depois de Babu, foi a vez de Lázaro entrar no projeto. “Eu me senti à vontade pra convidar qualquer ator brasileiro que eu sentisse no nível que eu queria. E o Lázaro foi escolha quase que natural. Ele é um dos maiores atores brasileiros”, afirma o diretor, questionado sobre o fato de seus dois personagens principais serem negros.

“Não escolhi esses dois caras por eles serem negros. Escolhi porque eles são dois dos melhores atores brasileiros. Depois eu fui fundo na questão black, porque desde que eu fiz o roteiro a música estava impregnada no personagem do Santana, que é baterista”, continua o cineasta. “A família tem esse tom de pele lindo que representa fundamentalmente o Brasil. Até nas minhas publicidades — sou diretor de publicidade — tenho o costume de colocar muita gente negra. Acho que isso é um valor. Eu procuro a verdade. Como o Brasil é um país com muita gente misturada, eu sou misturado, quase todos nós somos misturados, acho natural que o cinema reflita isso. É curioso que não faça e que esse seja um filme que de certa forma se diferencie dos outros por esse motivo. Esse não deveria ser um motivo.”

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Lázaro Ramos e Vini Carvalho. Crédito: Divulgação
Lázaro Ramos e Vini Carvalho. Crédito: Divulgação

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Para Lázaro, a motivação foi poder abordar um tema em que pensa muito, mas não entende: a vingança pelas próprias mãos. Também diz ter se sentido pronto, pela primeira vez, para interpretar um vilão (com direito a risada maquiavélica e tudo). “Sempre fugi um pouco desse tipo de personagem. E em ‘Mundo Cão’ me senti preparado, achei que era o momento certo pra fazer um personagem muito diferente de mim, muito impulsivo, mais apaixonado por futebol e por cachorro do que por seres humanos. Exatamente o oposto de mim”, diz. “Tentei investigar como o ser humano consegue chegar ao limite por esses dois motivos.”

O amor de Nenê por cachorros e o Palmeiras trouxe duas grandes dificuldades para o diretor. A primeira foi trabalhar com os animais. “Eu me meti numa enrascada nesse filme, porque você começa a escrever o roteiro dizendo ‘cachorro ataca, cachorro é preso, cachorro foge’ e cada uma dessas palavras que você coloca no roteiro dá um trabalho infernal”, lembra. “É muito mais fácil treinar o cachorro pra ser simpático do que pra parecer agressivo sem ser agressivo.” Cada plano tem um truque, diz, como uma corda que manteve o cachorro parado na marca apagada na finalização. Foram 12 diárias com cachorros e 12 noites não dormidas, diz ele. Apesar do trabalho, Marcos é grato aos cães, “verdadeiros atores”, que são citados pelo nome nos créditos finais depois dos atores humanos. “O cachorro é um pouco a metáfora. Eles me permitem passar agressividade sem que gere um filme violento.”

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Babu Santana em 'Mundo Cão'. Crédito: Divulgação
Babu Santana em ‘Mundo Cão’. Crédito: Divulgação

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Segundo desafio: o futebol. Em uma das cenas — que aparece no trailer, então tudo bem falar dela –, Nenê leva João, filho de corintiano, ao estádio para ver o Palmeiras e um plano sequência mostra a sensação do menino de chegar à arquibancada pela primeira vez. Outra cena daquelas que você coloca no roteiro e depois causam dor de cabeça, lembra Marcos. “É o plano mais difícil do filme, um plano sequência feito com duas câmeras separadas, fundidas na finalização. Ali tem 3D, 2D, drone, steadicam”, conta, acrescentando que a cena levou meses para ficar pronta. “[Foi] essa sensação de ir ao estádio pela primeira vez que eu quis passar e quis fazer com plenitude. Inventei um plano que depois me deu muito trabalho pra fazer, mas acho que passa essa energia do estádio.”

Mas futebol é um penduricalho. O tema principal do filme fica claro logo no início, quando os dois protagonistas se enfrentam no centro de zoonoses. Por que Santana não disse pra Nenê que o principal responsável pela morte do cachorro era seu parceiro? Há, em primeiro lugar, um elemento de lealdade à corporação. “Ele se sente ofendido como profissional. O trabalho dele é caçar cachorro. A carrocinha que a gente usou, que nos foi emprestada pelo centro de zoonoses de São Paulo, tinha furos de bala na traseira. Os caras andavam pela cidade e levavam tiros. Os laçadores de cães são uma categoria profissional vituperada. No entanto, nos anos 70 e 80 eles erradicaram a raiva no Brasil. São pessoas que fazem seu trabalho. Não é culpa deles. Eles têm orgulho do trabalho deles, fazem um trabalho útil para a sociedade”, diz. “O Santana toma essas dores porque é da natureza dele. Ele é o cara que toma a frente, que tem a pegada de defender.”

É também mais que isso. Tanto a cena quanto o filme falam sobre a escalada da violência e a dificuldade em identificar onde ela começa — esse sim o ponto central da história. “Uma hora você não sabe mais por quê, você não entende mais por que começou aquilo tudo. O fato é que aconteceu o que aconteceu, não interessa se eu tive ou não tive culpa”, diz Babu. Marcos concorda: “O que se diz é mais importante do que o que originou a discussão. Ontem, na rua, eu vi um guarda e um ciclista brigando fisicamente, numa discussão que começou com um bate-boca e num momento um dos dois pegou um martelo de uma construção. Me lembrou muito essa discussão. Começa por um motivo meio banal, as pessoas dizem coisas erradas e de repente aquilo é mais importante, a falta de paciência. Isso é a violência que a gente vive hoje”.

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Ascensão, queda e evolução dos trailers

Uma ameaça, uns super-heróis capazes de enfrentar a ameaça, os socos, pontapés e explosões que acontecem nesse enfrentamento e uma frase espertinha no final. Poderia ser a descrição do trailer de vários filmes de super-heróis — e é. De acordo com Dana Polan, professor do departamento de cinema da Universidade de Nova York, essa é uma das receitas para as prévias de blockbusters de ação. A semelhança entre trailers lançados numa mesma época não é mera coincidência: cada época tem seu tipo. Muita coisa mudou desde o nascimento dos trailers, por volta de cem anos atrás – com as mudanças tecnológicas e socioculturais, transformou-se não só a forma como eles são produzidos e consumidos, como também sua cara.

Segundo Polan, os trailers parecem ter começado por volta do meio da década de 1910 — é difícil precisar a data e definir qual foi o primeiro filme a usar esse tipo de vídeo curto para promover seu lançamento. No início, eram exibidos depois do filme no cinema, e foi daí que nasceu seu nome, já que um dos significados da palavra “trail”, em inglês, é vir em seguida. Os pequenos filmes mostravam alguns trechos importantes do longa, dando ênfase para cenas de ação ou romance, com um aviso de “em breve no cinema”. No início, os trailers serviam como propaganda não só para o filme como também para a indústria cinematográfica. “Eles diziam: ‘Olhem como é dinâmico o mundo dos filmes! Você realmente quer perder isso?’”, diz Polan, lembrando a presença de grandes letreiros e efeitos ópticos que marcavam os trailers até os anos 1950.

Entre os anos 1930 e 1950, as prévias destacavam o elenco. “Enfatizavam muito o nome da estrela e, em segundo lugar, como seu personagem se encaixava no filme sendo promovido. Em outras palavras, não era a trama que era vendida, e sim como a estrela aparecia no filme”, afirma ele. Para Keith Johnston, autor do livro “Coming Soon: Film Trailers and the Selling of Hollywood Technology”, sem edição em português, até 1930 ainda estavam sendo testadas estruturas e diferentes estéticas para os trailers, resultando em vinhetas mais experimentais. Durante os anos 1920, havia três grandes tipos de trailers: os curtos, com menos de um minuto, o título do filme e algumas fotos; os regulares, de um a dois minutos, com o título, animações e uma ou duas cenas; e os de luxo, com dois a três minutos de duração e cenas do filme.

Alexander S. Davis, doutorando do departamento de cinema da Universidade de Nova York, diz que as tendências nos trailers acompanham a evolução da tecnologia no cinema. “Se os trailers são feitos para mostrar o que há de mais único e valioso em um filme, as inovações na tecnologia (uso de widescreen, 3D, efeitos especiais etc.) devem impactar o modo como eles são construídos”, diz. “Com o widescreen os filmes passaram a ser um espetáculo de imagem e os trailers poderiam focar nas grandes paisagens em vez de na narrativa ou no filme em si. Quando essa tecnologia envelhece, os trailers voltam a ser propagandas da narrativa.”

[citacao credito=”Alexander S. Davis” ]Se os trailers são feitos para mostrar o que há de mais único e valioso em um filme, as inovações na tecnologia (uso de widescreen, 3D, efeitos especiais etc.) devem impactar o modo como eles são construídos[/citacao]

Johnston dá outro exemplo. Com a chegada do som ao cinema, começou uma nova tendência, com um mestre de cerimônias apresentando o filme, caso do trailer de “The Jazz Singer”, de 1927. Quando ficou comum ter som no filme e a edição de sons ficou mais sofisticada, aumentou o balanço entre letreiros, cenas, música e narração — o que ficou conhecido como o estilo “clássico” dos trailers.

“Não estou dizendo que a tecnologia ajuda o trailer a evoluir — porque isso não é uma questão de evolução, e sim de tentativa e erro por parte da indústria. Mas há momentos claros em que novas tecnologias forçam ou encorajam produtores de trailers a experimentar”, diz Johnston. Até os anos 1960, o monopólio da produção de trailers estava nas mãos da National Screen Service, que produzia as prévias de modo industrial, com uma fórmula um pouco parecida. Letreiros que contavam um pouco da história e faziam promessas como “se você busca aventura, vai encontrar neste filme”, um narrador, algumas cenas não muito reveladoras do filme e apresentação do elenco e personagens — como o caso de “Casablanca”.

AGILIDADE

Nos anos 1960, começaram a aparecer outras empresas, como a Kaleidoscope, mais dispostas a experimentar. Andrew J. Kuehn, que fundou a companhia em 1968, produziu mais de mil trailers, incluindo os de “Tubarão”, “E.T” e “Star Wars”. Seus trailers eram mais ágeis, ainda com a presença de narração — mas narradores com mais personalidade –, bastante música e que contavam a história por meio de cenas, abrindo mão dos letreiros explicativos. Em uma entrevista citada pela revista Variety em seu obituário, Kuehn afirmou: “Um trailer tem um objetivo: levar o público das suas casas para uma sala de cinema. Para fazer isso você tem que gerar um senso de urgência. No processo de chegar a esse ritmo avançamos o estilo de edição. Realmente forçamos os limites do que o público poderia aceitar”.

Com o sucesso de franquias e blockbusters como “Star Wars”, os estúdios passaram a querer ter mais controle sobre seus trailers, afirma Polan. O lançamento de um filme passou a significar também a venda de outros produtos: livros, quadrinhos, brinquedos, e depois vídeos. “A partir dos anos 1970 cada vez mais a qualidade e a cara dos trailers passou a ficar nas mãos dos estúdios e seus diretores, para que o trailer fizesse parte do mesmo universo narrativo que o filme”, diz ele.

Populares anos atrás, as narrações viraram tão clichê que hoje são mais usadas por comédias que querem tirar um sarro — ou por vídeos engraçadinhos como os do Honest Trailers, que mostrariam “a realidade” do filme. “Agora estamos num momento em que montagens estão mais populares, com menos coisas escritas e narrações. Mas é provável que isso mude de novo, com trailers como os de ‘Magic Mike XXL’ e ‘Independence Day: Ressurgence’ mostrando que letreiros estão crescendo em popularidade novamente”, palpita Johnston.

ERA DA INTERNET

A internet representou outra grande mudança no universo dos trailers. “Ela definitivamente mudou a forma como consumimos trailers. Agora há múltiplos trailers lançados para construir interesse, teasers lançados muito antes do filme para garantir que ele estará na cabeça das pessoas desde já, e trailers que podem mostrar violência, sexo e palavrões que cinemas não podem, prometendo aos espectadores um reflexo mais preciso do filme”, diz Davis. Para ele, embora a internet não tenha mudado muito a cara dos trailers, agora são produzidos vídeos especificamente para o consumo na internet, perfeitos para serem pausados e analisados.

Quando os trailers só existiam na sala de cinema, eram um aviso de que o lançamento do filme estava próximo. Na internet, divulgar um trailer novo não tem necessariamente como objetivo principal tirar alguém de sua casa para comprar um ingresso. É o caso do sétimo episódio de “Star Wars”: muita gente já queria ver o filme quando ele foi anunciado. O primeiro trailer não convenceu as pessoas a ir ao cinema, só as deixou com mais vontade de ir.

“Muitos blockbusters lançam trailers um ano antes do filme. O trailer não faz com que ninguém fique pronto pra ir no cinema no ano seguinte, mas aumenta o reconhecimento e a antecipação e torna o filme uma parte da conversa cultural que as pessoas têm. Provavelmente os filmes menores, independentes, se beneficiam mais dos trailers [como estratégia para atrair público]”, diz Dana Polan. “Trailers são ferramentas inestimáveis para contar as pessoas que seu filme existe e merece ser visto, mas são de alguma forma supérfluos na era da internet, em que a expectativa é cultivada pela discussão online”, concorda Alexander S. Davis.

Já vemos na internet várias versões de um mesmo trailer — teaser, versão internacional, trailer 1, trailer 2 –, mas segundo o livro “Promotional Screen Industries”, de Paul Grainge e Cathy Johnson, o número é muito maior e mais de 200 versões são feitas para um blockbuster moderno. Os estúdios encomendam diversas opções e as versões que chegamos a ver compilam os trechos favoritos do estúdio. Como blockbusters dependem muito do fim de semana de estreia, a expectativa do público tem que ser a maior possível, e por isso diferentes versões de um trailer, com uma ou outra cena diferente, são lançadas. Cada vídeo novo contribui para os comentários na internet — gerando muita propaganda gratuita, segundo Keith Johnston.

De acordo com uma de suas pesquisas, mais de 60% das pessoas têm a internet como fonte primária de trailers. “O que é interessante é que essas pessoas estavam quase sempre procurando um trailer específico — não apenas vendo o que estava pra estrear — ou respondendo a recomendações que viram nas redes sociais. As pessoas veem os trailers como parte de suas interações sociais, compartilhando e discutindo, querendo estar atualizadas e também mostrando suas preferências”, conta.

SPOILER?

Com tanta quantidade de informações sobre um filme disponível na internet anos antes de seu lançamento, os trailers já não precisam apresentar personagens, atores e elementos básicos da trama como as prévias de antigamente. Uma reclamação comum hoje, aliás, é que os trailers revelam demais da história e estragam as surpresas do filme. Tanto que Zack Snyder, diretor de “Batman v. Superman” teve que garantir aos fãs que seu trailer não contou a trama toda. “É legal que eles achem que é demais e aprecio o fato de que as pessoas não querem saber, mas tem muita coisa que eles não sabem. Muito do filme não está ano trailer”, disse ele à MTV.

Segundo Polan, um produtor de trailers foi a uma aula de sua mulher, professora de publicidade, e disse para um estudante que é “óbvio que trailers revelam muito do enredo”. “Precisamos fazer com que você queira ir ver o filme. Damos muitas informações, mas sabemos que isso vai fazer com que você vá ao cinema. Se você comprar seu ingresso e sair achando que tudo estava no trailer a gente não liga. Nosso objetivo é levar você à sala de cinema, não o que acontece depois que você vê o filme”, disse ele.

Ele vai além e diz que vivemos uma cultura de repetições e que estamos dispostos a ver tudo mais de uma vez. Assim, tanto faz se já sabemos a história toda do filme ou não. Esse seria o “efeito spoiler”, segundo Davis. Segundo uma teoria psicológica, as pessoas tendem a gostar mais de um filme ou de uma série de TV se sabem o que vai acontecer. “Fazendo com que você saiba demais sobre um filme antes de vê-lo, um estúdio pode fazer com que você goste mais dele, o que vai te levar a recomendá-lo para seus amigos. Mas é incrivelmente especulativo, apesar de ser uma teoria que eu adoro”, afirma ele.

[citacao credito=”Keith Johnston” ]O desafio é: o que é informação demais? Isso varia drasticamente de pessoa pra pessoa — então como você decide? Provavelmente você opta por algo no meio do caminho[/citacao]

Além disso, ressalta Johnston, não dá para saber se um trailer revelou demais antes de ver o filme pronto. “O clipe dos velociraptors correndo ao lado do Chris Pratt em ‘Jurassic World’ — eu vi aquilo no trailer e em outros vídeos sobre o filme. Estragou a experiência pra mim? Não, porque é legal visualmente, mas o filme não é sobre isso”, opina. “O desafio é: o que é informação demais? Isso varia drasticamente de pessoa pra pessoa — então como você decide? Provavelmente você opta por algo no meio do caminho, o que significa que você vai irritar algumas pessoas por mostrar demais e outras por não contar o suficiente.”

Embora exista uma fundação que guarda 60 mil trailers — disponíveis para consulta presencial em Los Angeles, na coleção do Packard Humanities Institute –, Johnston ressalta que eles não estão na maior parte dos arquivos de filme, e que quando estão não são prioridade para restauração. “É uma perda real para a história do cinema. Há lacunas que nunca serão preenchidas, o que reduz a possibilidade de mostrar o verdadeiro escopo dos trailers que existiram nos últimos cem anos”, diz ele. “Há mais pesquisa para se fazer sobre trailers? Com certeza. Só alcançamos a superfície.”

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Nada vai bem em ‘Tudo Vai Ficar Bem’

Existe uma diferença entre filmes ruins e filmes chatos. Dá para se divertir num domingo à noite vendo uma comédia ruim na televisão, por exemplo. Talvez você não recomende pra ninguém ou prefira dizer que passou o fim de semana vendo “O Poderoso Chefão” caso te perguntem, mas não quer dizer que tenha sido chato. E existem filmes que são bons, mas não muito legais. Você pode dizer orgulhoso numa roda de amigos que viu, gostou, mas no fundo sabe que não veria de novo. “Tudo Vai Ficar Bem”, de Wim Wenders, é um dos infelizes filmes que combinam as duas características.

É mais uma história de um homem jovem, branco, em crise. No filme, que estreou na quinta (10), James Franco é Tomas, um escritor com bloqueio criativo, sofrendo para escrever duas páginas depois de ter lançado dois romances. O relacionamento com Sara (Rachel McAdams) também vai mal, mas não sabemos muito bem o porquê. A questão, diz ele, é que eles têm planos incompatíveis: ela quer ter filhos e ele quer escrever. A verdade é que ele é, vamos usar um eufemismo, difícil. Enquanto ela quer investir no relacionamento ele ignora seus telefonemas e qualquer tentativa de aproximação. Quando ela o pressiona, ele diz platitudes (como seu pai, mais tarde, aponta sabiamente) do estilo “não é você, sou eu”.

Voltando para casa um dia num dia com neve, Tomas não vê duas crianças que cruzam a estrada num trenó e atropela uma delas. A mãe dos meninos (Charlotte Gainsbourg) não o culpa: trata-se de um acidente, ela diz, a culpa foi dela que não colocou as crianças para dentro de casa porque não conseguia largar um livro. Depois disso, não há grandes acontecimentos. Tomas não consegue se esquecer do acidente, ele entra numa espiral rumo ao fundo do poço, termina o namoro, mas sua carreira decola (em um momento, o acusam de ter usado os acontecimentos daquele dia fatídico como inspiração).

Rachel McAdams, coitada, não tem muito com o que trabalhar e faz o melhor possível com o papel, apesar de ter um sotaque esquisitíssimo. James Franco mal consegue manter os olhos abertos, parecendo estar eternamente chapado. Charlotte Gainsbourg chora, reza ou murmura o tempo todo. Mas o pior é a edição: depois de uma cena (que acrescenta pouco, diga-se de passagem) de conversa entre Tomas e o pai, por exemplo, pode vir uma da personagem de Charlotte (tão mal desenvolvida que tive que olhar no IMDb seu nome: Kate) passeando com seu cachorro. Por que motivo? Não sabemos. É uma sucessão de cenas aleatórias e as transições são tão bruscas, com tanto fade-out, que em diversos momentos você acha que o filme acabou.

Vários saltos de tempo são dados, também sem sutileza. Um letreiro avisa que passaram-se dois anos, depois quatro, depois mais quatro. Mas em mais de uma década de história nada de interessante acontece, Tomas continua o mesmo, só ganha uma nova namorada — mais uma personagem fraca, que pelo menos tem uma filha interessante. Mais para o final parece que a história vai virar um suspense (a trilha sonora sinistra ajuda a passar essa impressão), mas isso também não evolui muito. Embora o filme tenha uma cara própria, o que é bom, e uma premissa que poderia ser interessante, ele nunca deslancha. Nem toda história de homem em crise é boa. Nem todo homem “difícil” é interessante ou profundo. Às vezes ele é só chato mesmo.

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‘Cassiopéia’, 20 anos

Bem antes de “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu, ser indicado ao Oscar, uma animação brasileira disputava outro importante título internacional. Pouco mais de vinte anos atrás, “Cassiopéia”, de Clóvis Vieira, brigava com “Toy Story” pelo reconhecimento de primeira animação 100% digital. O filme começou a ser produzido antes e com bem menos recursos, mas foi lançado alguns meses depois do longa da Disney. Mesmo assim, há uma controvérsia em torno da primazia de “Toy Story”, já que o longa usou escaneamento de bonecos modelados em argila, enquanto o filme brasileiro foi feito completamente no computador, sem usar imagens ou modelos feito fora dele.

Depois do lançamento, os dois filmes seguiram trajetórias completamente diferentes: enquanto “Toy Story”, lançado em dezembro de 1995, virou uma franquia de sucesso pelo mundo, com um quarto filme em fase de pré-produção, “Cassiopéia”, que saiu em 1996, encontrou dificuldades na distribuição, não conseguiu ser exibido no exterior e teve sua continuação cancelada por falta de dinheiro. Hoje em dia pouco se fala do filme brasileiro pioneiro, que pode ser visto inteiramente no YouTube, com a aprovação do diretor, que trabalha agora no filme espírita “Deixe-me Viver”. Até imagens do filme são escassas.

Cena de "Cassiopéia"
Cena de ‘Cassiopéia’

Mas um lugar não se esqueceu de “Cassiopéia”. Duas décadas depois de seu lançamento, um cartaz de “Cassiopéia” ainda enfeita um dos salões do restaurante Nello’s, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Foi por ali que o filme começou a tomar forma, quando Clóvis Vieira conheceu Nello De Rossi, dono do restaurante e, na época, também da produtora NDR. Nello era um ator italiano que havia se mudado para o Brasil em 1973 e que, mesmo com um restaurante de sucesso, não conseguia se afastar do cinema, sua grande paixão. “Quando papai abriu a produtora, foi um êxodo do restaurante. Todo mundo foi trabalhar lá”, lembra Patricia De Rossi, filha de Nello, numa conversa no restaurante. “Minha mãe dizia que aqui era o pão de cada dia. A gente trabalhava de dia lá e de noite ajudava aqui. Todo o mundo preferia trabalhar na produtora.”

Clóvis, que animava filmes de publicidade e fazia vinhetas desde os anos 1970, conheceu Nello nos anos 1980, quando o italiano produzia o filme “Jeitosa, um Assunto Muito Particular”, com Lúcia Veríssimo e John Herbert, cujo cartaz também enfeita o restaurante. “Meu estúdio também prestava serviços para longas, fazia coisas como efeitos especiais e letreiros de apresentação. O Nello gostou do meu projeto do ‘Pifft’ e queria produzir, mas naquela época era muito caro e não foi para frente”, conta Clóvis, referindo-se ao seu projeto de animação sobre um morcego chamado Pifft, que acabou não virando filme. “Em 1991 sugeri substituir o projeto do ‘Pifft’ pelo ‘Cassiopéia’, devido à diminuição dos custos. A introdução da imagem digital viria a nos beneficiar.”

Segundo Patricia, que foi assistente de montagem de “Cassiopéia”, Nello se apaixonou pela nova história de Clóvis — ambientada num planeta na constelação de Cassiopéia, que vive em paz até a chegada de invasores que sugam sua energia vital — apesar de não entender nada de animação ou computadores. “Durante a produção ele dizia: ‘Nossa senhora, eu gostei da ideia, apostei no Clóvis, mas nunca mais vou me envolver numa coisa que eu não sei’.” Era uma tecnologia nova e que Nello, morto em 2013, não entendia. Mas esse nem foi o maior dos problemas. No making of do filme, também disponível no YouTube, ele diz ter feito uma coisa que nunca se deve fazer no cinema: começar um filme sem saber como financiar o filme até o último fotograma.

Quando Nello entrou no projeto, “Cassiopéia” era só um embrião, ainda sem roteiro. Foi ele quem apresentou a Clóvis a roteirista Robin Geld, que se juntou a uma equipe formada por Aloisio de Castro e José Feliciano. “Trocávamos ideias. O filme foi sendo feito sem roteiro. Na medida que avançávamos, criávamos as situações, como nas novelas. Um dia a Robin me disse: ‘Sonhei com uma lua, o filme precisa ter uma lua’. Então criei a cena da Lua que foi o desfecho do filme”, diz o diretor.

INVESTIMENTO E ROUBO

A produção começou com um investimento do próprio Nello em 1992. No ano seguinte, foi aprovada a Lei do Audiovisual, que dá incentivos fiscais para quem direciona recursos a projetos audiovisuais, e com ela, conta Clóvis, a equipe conseguiu captar por volta de R$ 700 mil. O filme todo foi feito no Brasil, enviado para os Estados Unidos apenas para ser transposto para película cinematográfica no laboratório DuArt, em Nova York. Por volta de seis meses antes da finalização do filme, houve uma invasão na produtora e alguns CDs com o trabalho de “Cassiopéia” foram roubados. “Isso atrasou o lançamento”, lembra Patrícia. Até hoje não se sabe direito o que aconteceu. “Foi proposital pra Disney dizer que lançou [um filme 100% digital] antes. Os americanos gostam de fazer primeiro. A gente acredita que foi uma sabotagem intencional”, diz ela.

[olho]”A gente acredita que foi uma sabotagem intencional”[/olho]

As dificuldades não acabaram por aí. Depois de pronto, conta Patricia, foi complicado arrumar uma distribuidora para levar o filme às salas de cinema. “É a segunda parte do drama. ‘Cassiopéia’ foi lançado pela PlayArte na época da Olimpíada. Queimou nossa primeira semana, porque o foco era totalmente a Olimpíada. O filme morre”, afirma. “E era um filme importante, o primeiro todo digitalizado no Brasil, e não deram a atenção necessária. A distribuição foi ruim e, por consequência, a repercussão foi morosa, triste.” Clóvis concorda: “O filme foi mal lançado, no dia da abertura da Olimpíada de Atlanta. Os distribuidores queimaram o filme. Mas em vídeo foi bem lançado, havia lista de espera nas locadoras”, diz. Por causa da distribuidora, diz, “Toy Story” chegou aos cinemas antes mesmo tendo começado a ser produzido depois.

Personagens de 'Cassiopéia'
Personagens de ‘Cassiopéia’

Ainda que tenha sido lançado depois de “Toy Story”, há quem diga que “Cassiopéia” é o primeiro filme totalmente digital por não ter feito o escaneamento dos bonecos. Clóvis não liga muito para o título ou para a polêmica. “Isso não tem muita importância. O que vale no mundo é o marketing e a data do lançamento nos cinemas”, diz o diretor. “Contudo, nós saímos na frente. A Disney soube que estávamos fazendo um filme totalmente digital. Quando perceberam que estávamos na frente, correram para a Pixar, de Steve Jobs, que tinha projetos na área. Então a Disney jogou US$ 30 milhões no colo de Jobs para terminar antes que nós. Pessoalmente, fico feliz em fazer a Disney e Jobs terem corrido atrás de nós por algum tempo. Hoje perdemos de mil a zero. Mas essa disputa fez bem a ambas as partes.”

NO EXTERIOR

Fora do Brasil, “Cassiopéia” também não emplacou. “Conseguimos distribuição nos Estados Unidos, mas precisaríamos investir na dublagem em inglês. Fomos à Ancine pedir autorização para captar R$ 400 mil. Negaram dizendo que o Nello não era naturalizado brasileiro, só residente. Ele ficou desgostoso depois de tanto fazer pelo cinema brasileiro. Então desistimos do projeto”, diz Clóvis.

[olho]”Durmo feliz sabendo que um dia rivalizei com Steve Jobs e a Disney”[/olho]

Patricia diz que Nello esperava ganhar dinheiro com produtos relacionados a “Cassiopéia” — brinquedos, roupas, mochilas e outras mercadorias com a imagem de seus personagens — e que não quis que ceder esse lucro de licenciamento a distribuidoras estrangeiras que manifestaram interesse no filme. “Se alguém investe no filme, tem que ter a certeza de que pode fazer o merchandising e ganhar pela venda”, diz ela. “Todo mundo conversava com o pai pra ele ser mais flexível, mas ele não queria abrir mão da possibilidade do lucro do merchandising. Ele não entendia que no primeiro filme ele tinha que ceder. No segundo filme, se o primeiro for um sucesso, você pode ditar regras. Isso papai não entendeu.”

Uma continuação de “Cassiopéia” chegou a ser anunciada, mas por falta de financiamento o projeto foi engavetado. Depois disso, a NDR fechou as portas. “Foi nossa última produção. Mas papai viveu com o cinema dentro dele a vida toda”, diz Patricia. Apesar dos pesares, ela conta que Nello ficou feliz com o resultado. Clóvis segue a mesma linha: diz que sempre assiste ao filme e que não mudaria nada em toda sua trajetória. “Tínhamos limitações técnicas, pois a tecnologia de hardware e software estava nos primórdios. Tiramos leite de pedra. Fizemos o máximo que alguém no Brasil faria nas mesmas condições”, afirma. “Não rendeu dinheiro, mas durmo feliz sabendo que um dia rivalizei com Steve Jobs e a Disney.”

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O Evangelho segundo ‘A Bruxa’

 

E num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles.
Jó 1:6

A primeira cena de “A Bruxa” mostra um pai de família discutindo, de forma ríspida, com os sacerdotes de uma vila do século 17. William (Ralph Ineson) acredita que todos aqueles presentes na vila não temem e oram a Deus o suficiente. É preciso mais. Para William, há algo muito latente: o Bem e o Mal existem em sua forma mais pura. E, mesmo com séculos de distância, o filme de estreia do diretor Robert Eggers é capaz de causar a mesma crença no espectador.

Após o debate, a família deixa a vila e decide criar sua própria fazenda – e seu próprio mundo – próxima a uma floresta. William e sua esposa, Katherine (Kate Dickie), levam os cinco filhos para uma nova vida, uma vida calvinista. A filha mais velha, Thomasin (Anya Taylor-Joy), com feições angelicais, fica encarregada de cuidar do irmão mais novo, um bebê que, durante uma brincadeira boba, some de forma repentina. Daí em diante, a vida da família em sua pequenina fazenda se transforma. William e todos passam a ser uma espécie de Jó, da Bíblia, mas em uma versão em que todos pecam e, por consequência, perdem a batalha para Satanás.

Se hoje vivemos em tempos em que tudo é racionalizado e cientificamente esmiuçado, como entender e ter empatia com os sentimentos e reações que um povo sentia perante ameaças externas e, possivelmente, espirituais? Se hoje há teorias de que comidas estragadas causaram delírios em Salem na época das famosas queimas das bruxas, e se não damos mais espaço ao que pode não ser terreno, como mostrar o medo e o terror de quem acreditava, sem sombra de dúvida, que o Bem e o Mal disputavam o espaço na Terra?

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"O Grande Bode", de Francisco de Goya
“O Grande Bode”, de Francisco de Goya

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O esforço de Eggers e da produção do filme em nos transportar para a região da Nova Inglaterra, nos EUA, no século 17 é impressionante. O diretor diz ter estudado diversas publicações da época e criado uma gigantesca paranoia para conseguir criar uma pequena fazenda de época em seus mínimos detalhes – do figurino ao jeito em que as plantações eram feitas, passando pela linguagem da época e a iluminação à base de luz de velas. Tal esforço poderia ser apenas um TOC desenfreado de toda a produção, mas é extremamente necessário para acreditarmos e nos conectarmos com o que acontece durante todo o filme. Com uma paleta de cores escura e fria e bom uso da iluminação natural, Eggers criou a sensação de estarmos dentro de um quadro de Goya – fascinante, mas ao mesmo tempo assustador.

Além do trabalho de figurino e cenário, “A Bruxa” atinge isso com sua trilha sonora. Composta por Mark Kovern e executada com instrumentos incomuns, como a Nyckelharpa e o Waterphone, a música do filme cria a tensão necessária, com seus crescendos acompanhados de bons cortes, e é tão poderosa que faz com que o close em animais, como um coelho e uma cabra, crie um medo e uma tensão palpável, real, temerosa.

A construção desse cenário faz com que “A Bruxa” não seja um filme de terror da escola mais popular nos tempos atuais. Ele não irá lhe dar sustos repentinos, nem abusar de cortes frenéticos para causa confusão. O filme mora mais próximo de filmes como “O Iluminado”, mexendo com o imaginário do espectador de uma forma cruel e bem alimentada. Isso faz com que, ao aproximar-se da conclusão, em que o Mal toma forma e mostra seu verdadeiro plano, mesmo nós, racionais e céticos seres do século 21, consigamos acreditar que, sim, o mundo nada mais do que uma eterna batalha entre a luz e a escuridão.

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O filme proibido de Leonardo DiCaprio

Leonardo DiCaprio ainda não era o rei do mundo quando interpretou um jovem misógino, agressivo e bocudo que se reunia com um grupo de amigos num bar para discutir de tudo. Era antes de “Titanic”, antes de suas parcerias com Martin Scorsese, antes da comoção na internet para que ele ganhasse o Oscar. Mas é normal não conhecer esse papel. Vinte anos depois, o filme, chamado “Don’s Plum” e gravado totalmente no improviso com um grupo de amigos, não viu a luz do dia na América do Norte. Antes que o filme fosse lançado, DiCaprio e Tobey Maguire — seu amigo de infância, que também está no filme — conseguiram barrar na Justiça sua exibição nos Estados Unidos e no Canadá.

Há muito mistério sobre o que aconteceu de fato, já que o acordo jurídico impede os envolvidos de falarem a respeito. Pouca coisa foi publicada, pouquíssimas vezes o filme foi mencionado em entrevistas. O que já se sabia há algum tempo é o seguinte: o filme foi dirigido por R.D. Robb, que na época fazia parte do grupo apelidado pela revista New York de “pussy posse” — que vivia intensamente a noite dos Estados Unidos –, e tinha no elenco boa parte de seus outros integrantes: DiCaprio, Maguire e Kevin Connolly (de “Entourage”).

Mas depois da gravação, algo aconteceu. Um dos produtores, David Stutman, entrou com uma ação contra DiCaprio e Maguire dizendo que foi convencido pelos dois a financiar o filme e a contratar R.D. como diretor, que DiCaprio tinha ficado muito satisfeito com o resultado, e que depois tinha se voltado contra ele por um motivo “egomaníaco”. Ainda segundo Stutman, Maguire não gostou de como foi retratado no filme e se incomodou por ter revelado tendências pessoais nas suas falas improvisadas. DiCaprio teria, então, apoiado o amigo e se aproveitado do poder conquistado pelo sucesso de “Titanic” para censurar o filme.

Em uma entrevista à revista Detour, DiCaprio mencionou o filme, dizendo que tinha feito um favor a R.D. topando participar de um curta-metragem seu, que o diretor quis transformar o projeto num longa e ameaçou jogar a mídia contra ele caso ele não aceitasse lançar “Don’s Plum” como um longa-metragem. Depois disso houve um acordo entre os envolvidos, que determinou que o filme não seria lançado nos Estados Unidos e no Canadá. Em outros países, foi liberado, e o filme chegou a ser exibido no Festival de Berlim e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2001.

O assunto esfriou depois disso. Mas em 2014, um dos produtores de “Don’s Plum”, Dale Wheatley, cansou de ficar quieto. Criou o site Free Don’s Plum, escreveu uma carta pública a DiCaprio e publicou o vídeo, hospedado no Vimeo, para quem quisesse ver. Quando uma conversa sobre o site foi parar no Reddit, já em 2016, as matérias avisando que quem quisesse ver o filme perdido de Leonardo DiCaprio poderia finalmente fazê-lo começaram a sair. E o vídeo foi tirado do ar.

Agora, Dale envia os links por e-mail para quem quiser assistir ao filme e está fazendo um documentário sobre o caso com a brasileira Angela Carvalho. O filme deve incluir vídeos de depoimentos de Tobey Maguire e Leonardo DiCaprio, que Dale tem desde a época do processo e hoje estão com a cineasta, que mostram o lado deles do embate. Sua versão da história ele conta agora. O depoimento abaixo é resultado de entrevistas do Risca Faca com Dale por telefone e e-mail.
Leonardo DiCaprio em 'Don's Plum'
Leonardo DiCaprio em ‘Don’s Plum’
***

Em 1995, eu, R.D. Robb, Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire, Kevin Connolly e Scott Bloom éramos amigos muito próximos e resolvemos fazer um filme juntos. Na época ele era chamado “Saturday Night Club”, e hoje é conhecido como “Don’s Plum”. O projeto partiu de David Stutman, que nos vendeu a ideia uma noite na casa do Leo. Todos concordamos que era um projeto ótimo. Naquela época, Leo já tinha sido indicado ao Oscar [em 1994, por “Gilbert Grape: Aprendiz de Sonhador”] e certamente não precisava ter feito o filme. Talvez ele tenha visto como um favor pra gente, como disse numa entrevista, mas acho que, na verdade, ele estava tão animado quanto o resto de nós por trabalhar com seus amigos e estava envolvido desde o começo.

Nos reunimos para fazer um filme experimental e decidimos fazê-lo totalmente por improviso. Fizemos cartões para cada personagem, delineando seus arcos e histórias. Depois de uma série de ensaios os personagens ficaram prontos e no ponto para serem filmados. Filmamos por três dias em 1995 — Leonardo DiCaprio participou de dois desses dias. Mais ou menos oito meses depois gravamos algumas cenas a mais pra terminar o filme, durante mais três dias. Leonardo não gravou dessa vez, mas Tobey Maguire, Kevin Connolly e Scott Bloom voltaram. Todos assinaram contratos concordando em aparecer no filme, sem restrição geográfica para a exibição. Verbalmente, eles também concordaram em receber o valor do sindicato pelo seu trabalho mais 1% dos lucros.

Gravamos as cenas novas em março de 1996 e achamos que dava pra ter uma versão pronta uns meses depois disso. Então planejamos para o verão de 1996 uma exibição para Leonardo DiCaprio e os outros caras — todos os nossos amigos e potenciais distribuidores –, pra ver se alguém estaria interessado em comprar o filme. Naquela data Tobey Maguire não ia estar na cidade para ir à exibição, porque ia gravar outro filme. Então R.D. e eu decidimos fazer uma versão de 72 minutos, sem nenhuma das imagens da segunda gravação, pra ele assistir.

Soube recentemente que o Tobey achou, depois de ver aquela versão, que o filme era um pouco “real” demais. Quero deixar claro: todos aqueles caras interpretaram personagens. Ian [personagem de Maguire] e Tobey são pessoas completamente diferentes. Mas acredite: Tobey é muito pior que Ian. Muito. Aparentemente, depois de ver o filme Tobey começou a falar mal dele pra todos os nossos amigos. Enquanto isso eu e R.D. estávamos trabalhando, não sabíamos o que estava acontecendo. Ele não disse pra gente que não tinha gostado.

[olho]”Quero deixar claro: todos aqueles caras interpretaram personagens. Ian e Tobey são pessoas completamente diferentes. Mas acredite: Tobey é muito pior que Ian” [/olho]

Havia uma tensão naquela época porque Leonardo DiCaprio já era um ator indicado ao Oscar, e a última coisa que ele queria era fazer um filme que o envergonhasse ou tirasse seu crédito como ator. Mas R.D. e eu nunca, nunca, lançaríamos um filme que prejudicasse sua reputação. R.D., que foi meu parceiro em toda essa história épica de “Don’s Plum”, começou sua carreira como ator fazendo propaganda de fralda. Ele fez peças na Broadway, em Nova York, aos 13 anos, fez o filme “Uma História de Natal”, um clássico americano, na adolescência. Ele estava na indústria desde sempre, é um artista extraordinário.

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Tobey Maguire em 'Don's Plum'
Tobey Maguire em ‘Don’s Plum’

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Alguns meses depois disso fizemos uma exibição nos estúdios da MGM em Hollywood. Nesse dia estávamos eu, Leonardo DiCaprio, R.D. Robb, Kevin Connolly, a maioria do elenco, com exceção do Tobey Maguire. Também estavam alguns distribuidores para nos dar uma opinião e dizer se aquilo que era algo que eles comprariam. Leonardo DiCaprio estava muito animado durante a exibição: levantava da cadeira, batia o pé no chão, dava risada. Foi uma noite muito boa. Depois saímos para a boate HMS Bounty, na avenida Wilshire, em Hollywood. Kevin Connolly deu a R.D. um cartão lindo, dizendo “parabéns, você conseguiu!”, com flores dele e da namorada, Nikki Cox, que contracenava com ele na série “Unhappily Ever After”. Foi maravilhoso, todo o mundo estava animado, as preocupações do Leo tinham desaparecido. Kevin Connolly me disse que o Leo tinha dado um giro de 180º em relação aos seus medos sobre “Don’s Plum”. Tanto que o Leo disse pra mim e pro R.D. que queria que seus agentes vissem o filme.

Uma semana depois, mais ou menos, fomos à Creative Arts Agency e exibimos o filme para o agente do Leo, Adam Venit, seu empresário, Rich Yorn, seu advogado, Steve Warren, para a agente Beth Swafford e outras pessoas da CAA. Foi um sucesso. Tanto que o pessoal da CAA — os agentes do Leo — assinou um contrato para representar não só o filme como o R.D. Robb como um de seus talentos. Foi uma época muito excitante e depois disso Leo nos deu seu consentimento para seguirmos em frente com a distribuição.

Logo estávamos negociando com Harvey Weinstein e a Miramax, e tínhamos outros compradores interessados. Esse processo de venda do filme estava acontecendo quando Tobey Maguire apareceu na nossa casa — eu e R.D. morávamos juntos naquela época — com uma caixa de macarrão e salsichas de tofu, dizendo que queria conversar sobre “Don’s Plum”. Acho que ele nem tinha assistido ao filme todo, só àquela versão de 72 minutos. De qualquer forma, ele pirou. Começou a gritar, dizendo que queria destruir o filme, e a fazer acusações contra a gente, falando que tínhamos sido anti-éticos. Nenhuma das acusações fazia sentido. Ele dizia que queríamos alcançar as estrelas, que estávamos usando o Leonardo DiCaprio pra ganhar fama e dinheiro. Tinha muita paixão e nonsense por trás do discurso dele. Uma hora ele começou a gritar histericamente centímetros da minha cara dizendo que queria acabar com “Don’s Plum”. Foi muito perturbador e até hoje não sei explicar o porquê. Tentei acalmá-lo, ficamos até de manhã tentando acabar com as preocupações dele, que até hoje não compreendo de verdade.

Em um momento, do nada, ele disse: “O que aconteceria se Leonardo DiCaprio dissesse que queria acabar com o filme?”. Naquela hora a gente já tinha passado o filme pros agentes e pro empresário do Leo, estava tudo certo. Mas Tobey pirou. Eu disse pra ele que pegaria muito mal pro Leo tentar parar um filme independente. Ainda acho isso. E ele usou essa frase pra pilhar o Leo. Fomos chamados pra uma reunião na casa do Kevin Connolly, com Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire, Scott Bloom. Eu e R.D. sentamos e ouvimos abusos verbais por horas de cada um deles.

[olho]”Eu disse pro Tobey que pegaria muito mal pro Leo tentar parar um filme independente. Ainda acho isso. E ele usou essa frase pra pilhar o Leo”[/olho]

Antes da reunião o Tobey disse pra todo mundo que eu tinha confessado que ia colocar a mídia contra o Leonardo DiCaprio se ele não concordasse em lançar Don’s Plum como um longa. E ele já tinha concordado em lançar como um longa. Tenho um vídeo do Tobey falando, sob juramento, que voltou pra gravar mais cenas sabendo que “Don’s Plum” seria um longa. E tenho o vídeo do Leo falando, também sob juramento, que não sabia que tínhamos gravado aquelas cenas a mais. Um deles está mentindo, porque se você acreditar no Leo e no Tobey significa que o Tobey também estava enganando o Leo fazendo um longa pelas costas dele. Tobey estava falando a verdade nesse depoimento. Leo e todo o mundo envolvido com o filme sabiam o que estávamos fazendo desde o começo. Fomos transparentes.

Mas tudo estava correndo bem, por que eu teria dito aquilo pro Tobey? Eu tinha 26 anos, nem sabia como fazer para colocar a imprensa contra alguém. E isso não é algo que esteja de acordo com a minha bússola moral, sabe. Mas Tobey fez todo o mundo acreditar que eu, R.D. e outro dos nossos produtores iríamos difamar o Leonardo DiCaprio se ele não quisesse lançar o filme como um longa. Pelo que eu sei, o Kevin Connolly filmou essa reunião, ele gravava um monte de coisas na época e nem sei por que ele fez isso. Mas quando pedimos uma cópia da fita ele disse que ela tinha sido roubada.

Aquilo enfureceu o Leonardo DiCaprio. Ele ficou completamente maluco. Era uma época sensível pra ele, nos Estados Unidos o Leo estava começando a virar uma estrela e a imprensa pegava no pé dele. Havia muitas questões sobre sua sexualidade. Então quando Tobey fez essa acusação contra a gente, encheu Leo com uma fúria incontrolável. Chegou a um ponto em que ele gritou: “Você vai colocar a mídia contra mim? Eu sou o Coração Valente, seu filho da puta!”. Ele disse: “Minha equipe falou que estava tudo bem, que esse filme não ia ser um problema”. E uma das últimas coisas que ele disse me deu alguma esperança: “Se eu seguir em frente com o filme, vai ser por causa deles”. E apontou pro Kevin e pro Scott. Disse: “Estou pouco me fodendo pra vocês. Nem aguento olhar pra cara de vocês. Deem o fora daqui”.

[olho]”Chegou a um ponto em que o Leo gritou: ‘Você vai colocar a mídia contra mim? Eu sou o Coração Valente, seu filho da puta!’”[/olho]

Quando R.D. e eu fomos embora, lembro de ter dito que o Leo reconhecia que o filme precisava sair pra que as pessoas vissem as performances dos amigos dele. Apesar dos problemas, achei que daria certo, que o Leo faria a coisa certa e deixaria o mundo ver a atuação dos seus amigos. Como sabemos agora, não foi o caso. A partir dali nunca mais conversamos como amigos.

Era 1996 e estávamos com uma estrela em ascensão falando mal publicamente do nosso filme e do nosso trabalho. Ele dizia coisas horríveis sobre a gente pela cidade toda. A CAA abandonou nosso filme, cancelou o acordo com R.D. Robb. Tínhamos um acordo verbal para produzir três filmes com a produtora do Danny DeVito, a Jersey Films. Também abandonaram. Entramos numa lista negra depois daquela noite. E não tínhamos o dinheiro do Leonardo DiCaprio. Tentamos contratar um advogado, mas ninguém aceitava o caso. Naquela época o Leo não era um astro. Já era rico, mas ainda fazia comerciais para empresas de carro. Ganhava bem, mas ainda não renderia tanto dinheiro pra um advogado que o processasse.

Aí veio “Titanic” e contratamos um dos maiores advogados de Hollywood, Bert Fields. Ele seria pago com uma porcentagem do lucro do processo, não de cara. Em 1999 David Stutman entrou com um processo contra Leonardo DiCaprio e Tobey Maguire por calúnia, difamação e impedimento de um lucro futuro — algo assim. Bert Fields achava que eles fariam um acordo com a gente, que seguir em frente não traria nada de bom pra eles. Ele achava que ganharia um bom dinheiro. Naquela época, por causa de “Titanic”, tínhamos uma proposta de US$ 20 milhões pelos direitos do filme. Estávamos tentando vender o filme desde 1996, ninguém sabia que “Titanic” seria aquele sucesso. Mas o Leonardo DiCaprio não quis acordo, Bert Fields largou o caso e ficamos sem advogado.

Conseguimos outro advogado, que também só receberia uma porcentagem dos lucros. Durante meses ele ficou com nosso caso, gastando milhares de dólares. Então finalmente marcamos uma reunião para um acordo. Mas o advogado disse que se não assinássemos um acordo naquele dia ele largaria o caso. A gente não queria que o filme fosse proibido de passar nos Estados Unidos e no Canadá, mas se perdêssemos o segundo advogado havia um risco grande de o filme não passar em nenhum lugar do mundo. Seria difícil encontrar outro advogado disposto a enfrentar o time jurídico de Leonardo DiCaprio e Tobey Maguire, que era bem financiado.

[olho]”A gente não queria que o filme fosse proibido nos Estados Unidos e no Canadá, mas se perdêssemos o segundo advogado havia um risco grande de o filme não passar em nenhum lugar do mundo”[/olho]

Nos contratos que eles assinaram não dizia se o filme seria um curta ou um longa. Foi isso que eles argumentaram, mas a ideia de que eles não sabiam que seria um longa é ridícula, o Tobey Maguire admitiu que sabia. É uma mentira. Seria muito difícil transformar um curta em longa. E mesmo que você acredite nisso, o Leonardo DiCaprio viu o filme como longa numa sessão com seus agentes e eles contrataram o diretor e iam representar o filme. Então você tem que acreditar que o Leonardo DiCaprio estava OK com o fato de que “Don’s Plum” tinha virado um longa.

Os dois não queriam de jeito nenhum que o filme fosse lançado no Canadá ou nos Estados Unidos. Então as atenções se voltaram para o Japão. Leo também não queria que o filme fosse lançado lá, mas não íamos fazer um acordo a não ser que ganhássemos um país grande. Sem isso não receberíamos dinheiro suficiente pra poder fazer outro filme. Ninguém queria trabalhar com a gente, então o único jeito de trabalharmos de novo seria financiando nosso próprio filme. Por isso brigamos pelo Japão. Eles consentiram e ficou acordado que os dois não iriam interferir no lançamento de “Don’s Plum” em outros países nem difamar o filme ou seus produtores, e nós concordamos em não lançar o filme nos Estados Unidos e no Canadá.

Brigamos pelo Japão porque tínhamos uma oferta de uma distribuidora local de US$ 1,2 milhão. Nas nossas projeções, conseguíriamos ganhar US$ 9 milhões no mundo. Pagaríamos US$ 3 milhões pros advogados, pagaríamos o elenco e a equipe de filmagem — que não tinham recebido nada até então — e ainda sobraria uns US$ 2 milhões pra gente, o suficiente para continuarmos fazendo filmes. Mas não sabíamos que o David Stutman, que tinha a maior parte dos direitos do filme, tinha assinado um contrato de US$ 170 mil com outra distribuidora japonesa. Só soubemos disso depois, quando estávamos na Dinamarca terminando o filme nos estúdios Zentropa, do Lars von Trier.

Aí teve uma briga na justiça, porque essa distribuidora dizia que era dona do filme no Japão, apesar de o contrato só ter assinado pelo David Stutman. E ele prometia, no contrato, entregar o filme para a distribuidora em 1997. Mas ele não conseguiu cumprir o prazo porque o Leonardo DiCaprio tinha bloqueado a produção. Por causa disso tivemos de pagar US$ 1 milhão para a distribuidora japonesa. Em vez dos US$ 9 milhões, o filme acabou rendendo US$ 3 milhões. Pagamos os advogados e a equipe e não ficamos com nada. Não processamos o David Stutman porque não tínhamos dinheiro.

Se o filme fosse liberado hoje a carreira dos dois não sofreria nada. Acho que eles só o impedem de ser lançado hoje porque têm uma questão pessoal com a gente. Você pode ir no YouTube agora e achar o filme dublado em russo. O único motivo pelo qual eles proíbem o filme de passar nos Estados Unidos e no Canadá é para punir o diretor e o produtor. Eles deveriam ter vergonha disso. Leonardo DiCaprio proíbe um filme nos Estados Unidos. O diretor com quem ele mais trabalhou é o Martin Scorsese, que dedicou boa parte de sua vida à preservação de filmes americanos. Pense nisso.

Acredito que um dia o Leonardo DiCaprio, mais maduro, vai perceber que impediu o trabalho de muita gente de ver a luz e vai consertar as coisas. Mas o prazo já se esgotou e por isso fiz o site Free Don’s Plum, que vou manter no ar. Os advogados do Leo falaram com o Vimeo, que tirou o vídeo do ar, mas vou colocá-lo de novo, só preciso descobrir como e quando. Passo várias horas por dia mandando o link pra pessoas que me escrevem dizendo que querem assistir ao filme. Vou continuar lutando. Antes da minha carta, publicada em 2014, estourar no Reddit, 16 pessoas tinham visto o filme. Só 24 horas depois do Reddit o número de visualizações chegou a 35 mil. Depois mais 15 mil pessoas viram, até o vídeo sair do ar. Estou fazendo um documentário agora sobre essa história e acho que é um passo importante. A diretora do documentário, Angela Carvalho, está agora com as minhas fitas dos depoimentos do Leo e do Tobey.

Falo com R.D. Robb bastante [fica com a voz embargada]. Fico muito triste falando dele, porque ele continua respeitando o acordo judicial e não fala sobre o filme. É um homem melhor que eu. Fico emotivo porque sei que foi muito difícil pra ele, ele ama “Don’s Plum” e isso acabou com ele. É um diretor que tem o filme censurado. R.D. Robb fica muito triste com o que aconteceu. Mas agora o filme está sendo visto, comentado, e acho que as tentativas de censura estão começando a falhar.

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‘Deadpool’ quebra o molde de heróis

Logo de cara, na abertura, “Deadpool” mostra que, sim, você vai ver um filme de super-herói — apesar da insistência do protagonista em dizer que não é herói coisa nenhuma –, mas um filme que não se leva a sério e está ciente de todos os clichês por trás do gênero. “Deadpool” não tem músicas épicas, olhares dramáticos para o vazio, lágrimas ou a mensagem de que com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Nos créditos iniciais, o filme anuncia “uma garota gostosa”, “uma adolescente geniosa”, “um personagem feito digitalmente”, “um vilão britânico”, “uma participação especial gratuita”. Sim, está tudo lá, mas pelo menos o filme tira um sarro.

Do ponto de vista de alguém que nunca tinha ouvido falar em Deadpool até ver o trailer, é refrescante poder ver um filme da Marvel sem precisar estar em dia com uma penca de outros longas (é bom ver o primeiro “Capitão América” antes do primeiro “Vingadores” e ver o segundo “Vingadores” antes do terceiro “Capitão América” e por aí vai num grande loop). Os X-Men aparecem de leve, mas dá para entender a história toda sem saber quem é Mística ou Ciclope — apesar de que uma boa piada com as diferentes versões do Professor Xavier se perde se você não souber absolutamente nada sobre os mutantes no cinema.

Em tempos em que o Homem-Aranha ganha uma terceira cara em menos de 15 anos, qualquer novidade é bem-vinda. E “Deadpool” é cheio de pequenas novidades. Para começar, como em todo filme que apresenta um herói, há uma história de origem (a aranha radioativa, a chegada de Clark Kent à Terra… Wolverine ganhou um filme inteiro sobre seu passado), mas que só vem depois de já termos conhecido Deadpool e ligarmos minimamente para ele. Já sabemos que Deadpool, interpretado por Ryan Reynolds, é bocudo, convencido e vingativo quando conhecemos Wade Wilson, um mercernário que passa por um tratamento experimental para curar um câncer e ganha uma habilidade de cura rápida e uma aparência pouco atraente.

Wilson não tem intenções honradas nem a menor vontade de se juntar aos X-Men para combater o mal e salvar o mundo. Sua motivação é encontrar o homem que o deixou assim (o tal vilão britânico, papel meio canastrão de Ed Skrein) para que ele recupere sua cara normal e possa voltar para a namorada, a prostituta Vanessa (Morena Baccarin, que nos faz esquecer de que um dia já foi a chatíssima Jessica Brody de “Homeland”).

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Morena Baccarin e Ryan Reynolds em 'Deadpool'
Morena Baccarin e Ryan Reynolds em ‘Deadpool’

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Vanessa, aliás, é um capítulo à parte. Deadpool, que também narra o filme e conversa o tempo todo com o espectador, diz em certo ponto algo como “os homens no cinema devem ter convencido as namoradas a ver o filme falando que era uma história de amor”. Uma história de amor é completamente desnecessária para levar uma mulher ao cinema. Mulheres também gostam de quadrinhos, filmes de ação e super-heróis. O problema é a ausência de boas personagens femininas nos filmes do gênero (cadê o filme da Viúva Negra? É capaz de o Gavião Arqueiro ter um longa solo antes dela).

Ao lado de outras personagens femininas menores Vanessa cumpre esse papel em “Deadpool”. Mesmo quando é colocada na posição de vítima ela parte para a ação e não deixa Deadpool resgatá-la sozinha. Ela não é a mocinha perfeita e inatingível, não é a Mary Jane do “Homem Aranha”, nem a Rachel de “Batman Begins” (um Google foi necessário para lembrar o nome da personagem de Katie Holmes no filme, de tão pouco memorável), e sim alguém que poderia perfeitamente existir no mundo real, com seus defeitos e qualidades.

“Deadpool” não é perfeito porque é tão piadista que às vezes exagera na dose. Ryan Reynolds já tinha feito uma piada consigo mesmo, citando seu fracasso em “Lanterna Verde”, quando faz um comentário sobre o fato de que o ator é mais conhecido pelo rostinho bonito do que pela atuação. Ok, já entendemos que vocé capaz de rir da própria cara. Mas às vezes o filme parece querer ser engraçado demais, fazendo uma piada atrás da outra só para mostrar que consegue. “Deadpool” é tão pop e tão frenético que parece saído de um fórum na internet.

É uma referência atrás da outra, do começo ao fim — na última cena, depois dos créditos, “Deadpool” remete a “Curtindo a Vida Adoidado”, de 1986, um filme “muito, muito velho”, segundo um adolescente que saía da sala de cinema impressionando o amigo por ter captado uma referência tão cult (já eu, por outro lado, não reconheci Stan Lee — a participação especial gratuita anunciada no início. Tem citações para todos os gostos).

O filme era um projeto caro a Ryan Reynolds, que batalhou por anos para conseguir fazê-lo. Foi só quando uma cena teste vazou na internet e empolgou os fãs que o estúdio resolveu de fato fazer o filme, com um orçamento menor do que produções como “Os Vingadores”. E a aposta deu tão certo que o filme bateu o recorde de bilheteria nos Estados Unidos para a estreia de um filme em que menores de 17 anos devem entrar acompanhados, arrecadando 132,7 milhões de dólares de sexta a domingo. É uma prova de que dá para fazer filmes de heróis diferentes do molde tradicional. Dá para fazer humor, dá para inovar na trilha sonora (que tem de George Michael a Salt-N-Pepa), dá para ter bons personagens femininos, dá para ter um herói que não seja um machão, dá para fazer com menos dinheiro e mesmo assim ser um sucesso.

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Cinema

‘O Quarto de Jack’ acha luz no horror

Transformar o livro “Quarto” em filme não era uma tarefa simples. Publicada em 2010, a obra da irlandesa Emma Donoghue, 46, é narrada por um menino de cinco anos, preso num pequeno quarto com sua mãe desde o nascimento. Conduzido por Jack, o leitor desvenda aos poucos a situação em que os dois se encontram, colecionando os pedaços de informação que a criança dá e que ela própria não sabe interpretar. O quebra-cabeças formado não é bonito: a mãe de Jack foi raptada quando adolescente por um estranho que a prendeu naquele quarto à prova de som e hermeticamente fechado. Estuprada ao longo de anos, ela engravidou, e a chegada de Jack a manteve sã. Para proteger o filho, disse a ele que aquele quarto era o mundo todo e que tudo o que ele via na televisão não era real.

A história fica menos sombria contada por Jack, com sua inocência, sua visão peculiar de mundo (o sol, que via pela claraboia, era chamado por ele de Deus) e seus erros de inglês, e foi justamente esse olhar que serviu de ponto de partida para o livro. “Minha ideia, na verdade, era ter o ponto de vista da criança nesse cenário particular, como ele poderia oferecer uma visão fresca desse horror todo e essa mistura comovente entre alegria e dor que uma infância dessas pode envolver”, conta Emma por e-mail. Mas encontrar luz nesse horror em um filme — que em português ganhou o nome “O Quarto de Jack” e estreia no dia 18 — tinha duas grandes dificuldades: como levar para a tela esse ponto de vista infantil e como encontrar um ator dessa idade capaz de sustentar o drama.

A tarefa de resolver a primeira questão ficou nas mãos da própria Emma, que foi responsável pela adaptação — foi seu primeiro longa, que já lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Ela já havia recebido vários pedidos para transformar “Quarto” em filme, mas sentiu algo de diferente na oferta do diretor Lenny Abrahamson, que até então tinha um currículo pequeno, que inclui “Frank”, com Michael Fassbender. “A maioria das pessoas faz propostas vagas, focando nos nomes de grandes atores que podem escalar. Lenny escreveu uma descrição de dez páginas sobre sua compreensão do livro e sua visão detalhada de como recontar essa história na tela”, lembra Emma. “Tão inteligente, tão sensível, tão amável.”

Passar a adaptação para outra pessoa foi uma hipótese que nem cruzou sua cabeça. “Acho que foi mais difícil que escrever o livro, porque envolveu aprender novas habilidades (não só de fazer um roteiro, mas o processo de colaboração. Na verdade, de subordinação, porque você sempre tem de se lembrar que o filme pertence ao diretor!). Mas foi um desafio agradável, não sofrido”, diz. “Não considerei deixar outra pessoa adaptar o livro não porque eu fosse a única pessoa que pudesse conseguir, mas porque eu realmente queria o trabalho. Não diria que fui calma e objetiva, mas acho que isso seria verdade caso fosse um roteiro original, já que eu ficaria apegada a ele também. Os cortes são sempre doloridos!”

Vez ou outra, Emma usou o recurso da narração, na voz de Jacob Tremblay, 9, escolhido para o papel de Jack. São poucos trechos, que remetem ao livro e ajudam a entrar na mente do menino e nunca servem de muleta narrativa — sem as narrações do menino, o filme ainda se sustentaria. Como no livro, o espectador não sabe mais do que Jack. Na verdade, talvez saiba um pouco mais se tiver visto o trailer, que revela boa parte da trama (no caso, é mais importante ver como acontece do que o que acontece). Quando o sequestrador aparece para ver sua mãe, papel de Brie Larson, Jack se esconde no armário. Vemos a interação dos dois pelas frestas e ouvimos o que acontece enquanto a câmera fica no rosto do menino. O espírito do livro se mantém, embora alguns detalhes mudem: no filme, por exemplo, descobrimos que a mãe se chama Joy (nome não revelado no livro), que amamenta o filho bem menos em cena do que na versão por escrito.

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Jacob Tremblay e Brie Larson
Jacob Tremblay e Brie Larson

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Jacob Tremblay merece um parágrafo à parte: sem ele, o filme perderia muito do impacto. Indicado como ator coadjuvante ao prêmio do sindicato dos atores, que perdeu para Idris Elba, Jacob carrega pelo menos metade do filme nas costas. Brie Larson é a favorita ao Oscar de melhor atriz e é merecido, mas num mundo ideal os dois seriam indicados juntos, num combo — a química ali é impressionante e num filme em que personagens importam mais que enredo a performance é ainda mais essencial.

O diretor afirmou num evento em outubro que “suava à noite” aterrorizado com a perspectiva de achar uma criança que desse conta do recado. “Vimos centenas de crianças. Muitas extraordinárias, que você podia ver pra sempre, mas dava pra saber que com certeza elas não conseguiriam lidar com o drama desse filme”, disse o cineasta. E então Jacob Tremblay apareceu. “Foi o maior desafio e a maior recompensa que tive como cineasta. Encontrá-lo foi a maior sorte.”

Apesar de ter sido inspirado no caso real de Elizabeth Fritzl, mantida em cativeiro durante anos na Áustria, período no qual teve vários filhos do captor, “Quarto” não gira em torno do crime. Não é uma trama policial (embora tenha polícia), não é uma história particularmente triste (embora tenha vários momentos assim). Tem um quê do mito da caverna de Platão, com Jack no papel dos presos que só conheciam o mundo pelas suas sombras na parede. Mas é principalmente uma história sobre a relação de mãe e filho. Uma história bem pessoal, que carrega muito da autora. Nas palavras de Emma: “Gosto de contar histórias esquisitas — ou, na verdade, histórias únicas que iluminem nossa condição universal e cotidiana. Então, por exemplo, nunca vivi num quarto fechado, mas fui mãe de crianças pequenas e coloquei tudo o que conhecia em ‘Quarto’”.

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Cinema Crítica

Alicia Vikander é a garota dinamarquesa

Eddie Redmayne tem uma capacidade incrível de imitar pessoas em seus mínimos trejeitos, e isso ficou claro em “A Teoria de Tudo”, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator no ano passado por sua interpretação de Stephen Hawking. Seu rosto também se transforma com facilidade — a cada filme ele parece uma pessoa diferente. E em “A Garota Dinamarquesa”, que estreia hoje (11), não é diferente. Redmayne mostra de novo que, fisicamente, é um camaleão. Pelo papel de Lili Elbe, pintora dinamarquesa que fez uma das primeiras cirurgias de mudança de sexo de que se tem notícia, Redmayne concorre pela segunda vez seguida ao Oscar.

Seus dois filmes, aliás, têm bastante em comum. Como em “A Teoria de Tudo”, Redmayne interpreta uma personagem num casamento feliz, que vai se deteriorando à medida em que o marido passa por uma grande transformação. Nos dois filmes, seu personagem tem uma mulher que dá apoio o tempo inteiro mesmo às custas de um sofrimento pessoal (um papel clássico de mulheres no cinema, aliás). A diferença é que, enquanto em “A Teoria de Tudo” Felicity Jones era bem coadjuvante, em “A Garota Dinamarquesa” a mulher rouba a cena de Redmayne.

Alicia Vikander disputa o Oscar de melhor atriz coadjuvante neste ano pelo papel de Gerda Wegener, o que faz pouco sentido. Está certo que se ela concorresse ao prêmio de atriz a briga seria mais acirrada — Brie Larson é a favorita, mas Saiorse Ronan e Cate Blanchett também estão no páreo –, mas é ela quem carrega o filme. Não que Redmayne esteja mal. Mas sua atuação é muito mais física que emocional. Lili estuda os gestos de mulheres na rua, paga uma prostituta para poder observá-la, estuda o próprio corpo no espelho e faz dieta para ficar magérrima. Redmayne, que imita como poucos, capta bem a parte corporal da transformação, mas é Vikander quem faz chorar.

Quando o filme começa, Gerda e o marido, Einar, têm um casamento de causar inveja. Eles não se desgrudam, passam os fins de semana na cama, conseguem se comunicar com um olhar numa multidão, têm uma bela vida social e tentam ter um filho. Um dia, a modelo que Gerda estava pintando se atrasa para uma sessão e ela pede para o marido vestir meias e sapatos femininos para que ela possa adiantar o trabalho. Ali, algo muda em Einar. Nos dias seguintes ele pede primeiro para que a mulher não tire a camisola nova na cama e, logo depois, veste a mesma camisola por baixo das roupas.

Gerda não faz muitas perguntas e inclusive sugere que ele vá vestido de mulher a uma festa e se apresente a todos como Lili, uma prima de Einar do interior. Ela o ensina a se maquiar, a andar de salto, a escolher as roupas. Para Gerda, aquilo não passa de uma brincadeira, até que ela vê Lili beijar um homem na festa. Mas a essa altura seu casamento nunca mais seria o mesmo. Einar começa a se portar como Lili com mais e mais frequência, até que ele começa a sonhar os sonhos de Lili e Einar desaparece completamente.

Alicia Vikander em 'A Garota Dinamarquesa'
Alicia Vikander em ‘A Garota Dinamarquesa’

A trajetória de Lili não é nada fácil. Quase ninguém, ali no começo do século 20, entendia o que ela estava passando. Foi vítima de transfobia, médicos tentaram interná-la e a fizeram passar por sessões de radiação, dizendo que ela era esquizofrênica entre vários outros diagnósticos terríveis. Mas, por causa da performance de Vikander, é o sofrimento de Gerda que se sente mais na pele. Em certo momento, quando sua carreira começa a deslanchar e ela vai sozinha a uma festa de abertura de sua exposição em Paris, ela volta para casa aos prantos, diz que o marido deveria ter ido com ela e pede para que Einar apareça só um pouco, ao que Lili responde que isso não é mais possível.

Einar já não existe mais. Lili e Einar são pessoas completamente diferentes, que não têm nem paixões em comum. Quando Gerda sugere que Lili pinte, ela responde: “Eu quero ser uma mulher, não uma pintora”, ao que ela responde: “Existem pessoas que são as duas coisas”. A transformação física de Redmayne é impressionante, mas o filme se preocupa mais com a parte estética do que com o que se passa na cabeça de Lili.

Enquanto isso, embora Gerda continue ao lado de Lili até o fim, ajudando-a se recuperar das cirurgias para a mudança de sexo — mesmo achando que elas eram perigosas –, ela é bem mais que “a mulher sofredora que dá apoio”. Sua jornada como personagem é tão ou mais importante quanto a de Lili: vemos claramente seu conflito interno, seu amargor, suas decepções, seus momentos de fraqueza. Em um momento, inclusive, Gerda é chamada por alguém de “a garota dinamarquesa” do título. Faz sentido. O filme é 100% de Vikander.

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Cinema

‘O Filho de Saul’ torna horror palpável

Quando “O Filho de Saul” começa, as imagens que se vê são bem desfocadas. O espectador desavisado logo percebe que não é um problema do projetor, e sim uma escolha do diretor estreante László Nemes. Só vemos com clareza o rosto do protagonista, Saul (Géza Röhrig), e aquilo que ele enxerga próximo a ele. Os horrores do campo de concentração em que ele vive ficam nublados, não vemos rostos dos mortos, só um grande borrão de corpos misturados. Houve quem dissesse que, assim, só a dor do protagonista importasse. Houve quem achasse a falta de identidade dos mortos ainda mais incômoda do que conhecê-los. Mas mesmo que não se veja muito, dá para ouvir tudo que se passa, sentir o desespero de Saul e o horror da situação.

No filme que estreia hoje (4), Saul faz parte de um grupo de judeus que ganha alguns meses de vida a mais ao trabalhar para os nazistas nos campos de concentração. Em Auschwitz ele é responsável por tarefas como limpar câmaras de gás, recolher os pertences das roupas dos mortos, cremá-los e jogar suas cinzas no rio. Ver os corpos como uma massa anônima e borrar o cenário que o rodeia parecem ser formas que Saul encontra para desempenhar seu trabalho.

Sua rotina muda, porém, quando um menino sobrevive ao gás e, asfixiado por um médico, é encaminhado para uma autópsia para que se descubra como ele não morreu na câmara. Saul reconhece naquele menino seu filho e ele resolve roubar o corpo para enterrá-lo de acordo com os preceitos da religião. Pegar o corpo não é fácil, achar um rabino é menos ainda e encontrar um rabino disposto a ajudá-lo é quase impossível. Mas Saul não desiste da missão e no curto período de tempo em que o filme se passa ele atravessa o campo inteiro — mostrando seu funcionamento como uma fábrica, pouco visto em outros filmes — em busca de uma saída.

Enquanto Saul procura um rabino, seus colegas preparam uma fuga, com a ajuda de um grupo de mulheres que trabalham nos campos e lhes fornecem pólvora — evento que aconteceu na vida real em 1944. O problema é que Saul está mais preocupado com o corpo do filho, já morto, do que com a possibilidade de um grande grupo de homens escapar com vida dali. Nenhum deles é tratado como herói, nenhuma missão é apresentada como superior.

Favorito ao Oscar de filme estrangeiro, “O Filho de Saul” pode se juntar a tantos outros vencedores de prêmios da Academia que falam sobre a Segunda Guerra (“O Pianista”, “O Leitor”, etc. etc.). Porém, como “Phoenix”, um dos melhores filmes do ano passado, seu olhar sobre a época é mais original do que se espera de um filme sobre o Holocausto. Não só a câmera fica próxima do protagonista o tempo todo como a proporção da imagem é pouco usual, praticamente quadrada, o que deixa tudo mais claustrofóbico e incômodo de ver. O filme se concentra no drama de uma pessoa só, mas ganha força em vez de perder. O espectador se sente na pele de Saul e, apesar de o horror ser menos gráfico que em outros filmes, poucas vezes ele foi tão palpável.

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Cinema

‘O Regresso’: imagens de dor e sofrimento

Leonardo DiCaprio sofre menos em “Titanic”, em que morre de frio num mar gelado após um naufrágio, que em “O Regresso”. Sofre menos em “O Homem da Máscara de Ferro”, em que passa anos preso com uma máscara na cara a mando de seu próprio irmão, que em “O Regresso”. Sofre menos em “Romeu + Julieta”, em que se mata ao achar que sua mulher morreu, que em “O Regresso”. DiCaprio quase sempre sofre nos filmes, mas nada se compara a “O Regresso”, que estreia nesta quinta (4). Em mais de duas horas e meia, seu personagem, Hugh Glass é atacado por um urso, abandonado pelos companheiros, quase morre sufocado, afogado, esfaqueado, alvejado por flechas e a lista só cresce.

Fica difícil saber o quanto do que se vê é atuação e o quanto é sofrimento real — o ator disse em entrevistas que realmente comeu fígado cru de bisão, dormiu em carcaças de animal, entrou em rios congelados e quase teve hipotermia mais de uma vez. Com meia dúzia de falas no filme todo, DiCaprio não demonstra tantas nuances quanto em outros trabalhos. Hugh Glass não tem o charme de Jack, de “Titanic”, ou o humor de Jordan Belfort, de “O Lobo de Wall Street”. É só dor e sofrimento, dor e sofrimento. Como o Oscar tende a recompensar os atores por esforço e comprometimento, DiCaprio finalmente deve levar o prêmio e acabar com as piadas, apesar de ter tido outras performances mais, digamos, interessantes no passado.

Mas, como história, “O Regresso” não é nada demais. Tanto que tem o maior número de indicações ao Oscar, disputando 12 categorias, mas roteiro não é uma delas. Hugh Glass faz parte de um grupo de americanos caçadores e vendedores de peles, até ser atacado por um urso que o vê como ameaça a seus filhotes. Todo machucado e sem poder falar, Glass é abandonado pelos companheiros, que deixam um pequeno grupo encabeçado por Fitzgerald (Tom Hardy) com ele para que seja enterrado quando finalmente morrer. Só que Fitzgerald não está a fim de esperar: ele enterra o companheiro vivo e parte sem olhar para trás.

Durante o resto do filme, Leonardo DiCaprio grunhe, cambaleia e se arrasta pela neve para se vingar de Fitzgerald. No caminho, enfrenta tempestades, pesca com as próprias mãos e come o peixe cru (parece até bom comparado ao fígado que vem depois), cauteriza as próprias feridas e foge de diferentes inimigos — de índios a outros grupos de caçadores. Sozinho em outro planeta, Matt Damon tem a vida mais fácil que DiCaprio em seu “Perdido em Marte”, também uma história de sobrevivência, mas bem mais otimista.

Iñárritu e DiCaprio no set de 'O Regresso'
Iñárritu e DiCaprio no set de ‘O Regresso’

“O Regresso” é bruto: em um momento, a lente da câmera fica manchada de sangue. Hugh Glass não chega a ser estuprado por um urso, como dizia um boato bizarro que circulou meses atrás, mas o ataque é violentíssimo. Quando você acha que acabou e respira aliviado, o urso volta para um repeteco e joga DiCaprio pra lá e pra cá.

O filme  impressiona pelo aspecto técnico. Foi feito para ser visto no cinema, como “Gravidade”, que tem o mesmo diretor de fotografia, atual bicampeão do Oscar, Emmanuel Lubezki. As imagens são maravilhosas e foi tudo filmado com luz natural, em condições climáticas bem difíceis. Valeu a pena, dá vontade de viver num mundo em que ele seja diretor de fotografia. Em alguns momentos, o filme lembra “A Árvore da Vida”, de Terrence Malik, e não é gratuito: Lubezki também foi responsável pela fotografia. É um filme lindíssimo, mas como história bate numa tecla só e são horas de pura tortura. Quem diria que algum personagem de DiCaprio conseguiria ter uma experiência mais infeliz com gelo que o Jack, de “Titanic”.