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‘Tangerine’: humor e realismo trans

No filme “Tangerine”, Sin-Dee acabou de sair de uma curta temporada na prisão quando a amiga Alexandra conta, no banco da loja de donuts que frequentam, que seu namorado a traiu. Ao longo de um dia, as duas percorrem Los Angeles em busca de retaliação contra o namorado e a tal mulher, sobre quem a única coisa que elas sabem é que o nome começa com D. É uma história clássica de vingança e amizade. O fato de Sin-Dee e Alexandra serem mulheres trans é mais uma de suas características, não aquilo que as define. Diferente de outras produções com personagens trans, como “A Garota Dinamarquesa”, “Transparent” ou “Meu Nome É Ray”, não vemos a transição e sim um dia na vida que elas levam depois disso, com vários problemas, mas também muito humor, a pedido das próprias atrizes, que participaram do projeto desde o início.

Sean Baker, diretor do filme que estreou no Festival Sundance no ano passado e que tem estreia prevista para dia 4 de fevereiro no Brasil, não tinha roteiro ou ideia definida até conhecer Mya Taylor, que interpreta Alexandra, perto de sua casa. Seu último filme, “Starlet”, lançado em 2012, também era sobre uma amizade entre duas mulheres: a idosa Sadie e a jovem atriz pornô Jane, e foi a primeira inspiração para “Tangerine”. “Talvez o interesse pelo trabalho sexual não tenha deixado meu organismo, porque me senti atraído por um cruzamento famoso perto de minha casa em Los Angeles, na esquina de Santa Monica e Highland, conhecida por ser um distrito da luz vermelha para trans que trabalham com sexo”, me contou Baker.

Ali no cruzamento ele e seu corroteirista, Chris Bergoch, viram Mya pela primeira vez. “Ela nos impressionou de cara. Eu a vi do outro lado da rua e sabia que tínhamos que falar com ela”, lembra. Baker disse a Mya que pretendia fazer um filme e ela o ajudou apresentando várias de suas amigas, que foram entrevistadas pelo cineasta para ajudar a construir o projeto. Mas o filme só ganhou forma mesmo quando Kitana Kiki Rodriguez, a Sin-Dee, apareceu por lá. “No momento em que vi Mya e Kiki juntas sabia que tínhamos uma dupla dinâmica nas nossas mãos. Elas se complementavam, mas tinham um contraste. Chris e eu sabíamos que devíamos construir uma história com duas protagonistas para Mya e Kiki.”

Em cena, a Sin-Dee de Kiki é a mais exuberante. Com cabelo loiro tipo Beyoncé e uma roupa curta, desfila com confiança pela cidade em busca da tal garota — que não é trans, ainda por cima — que estava com seu namorado (e cafetão), chamando a atenção por onde passa. Alexandra é a voz da razão, que tenta conter a amiga enquanto se prepara para cantar num bar à noite, uma grande oportunidade. As diferenças de personalidade entre as duas são tão grandes quanto sua amizade. O tempo todo uma apoia a outra: Sin-Dee interrompe seu plano de vingança para ver o show de Alexandra, que retribui ao lhe oferecer a própria peruca quando a amiga é atingida por um copo de urina na rua.

O caso da urina, como outros eventos do filme, é inspirado numa história real. “Mya contou que isso aconteceu com algumas de suas amigas ou conhecidas”, diz Baker. A traição do namorado também tem um pé na realidade e veio de uma suspeita real de Kiki sobre seu relacionamento. “Pegamos isso e ficcionalizamos, vimos o que aconteceria se ela fosse atrás da mulher cisgênero envolvida no caso”, diz o diretor. “O processo de pesquisa nos ajudou a chegar num ponto em que nos sentíamos confiantes com o fato de que a ficção seria verdadeira e honesta.”

[olho]”Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades”[/olho]

Mas mesmo com o roteiro pronto, Mya e Kiki, ambas estreando no cinema, ficaram à vontade para improvisar, incentivadas pelo diretor. “Muitas vezes acho que o frescor de uma fala improvisada tem uma autenticidade que nenhuma palavra escrita pode ter. E em casos como ‘Tangerine’ existem gírias das ruas pras quais eu e Chris precisávamos de consultoria. Mya e Kiki nos falavam se o que tínhamos escrito era preciso ou não.”

Baker não considerou contratar atores que não fossem trans, ainda que fossem mais conhecidos, para participar do filme — caso de produções como “A Garota Dinamarquesa”. Num mundo ideal, um bom ator, diz, deveria ter a oportunidade de fazer qualquer tipo de papel. Um ator cisgênero poderia viver um papel trans e vice-versa. Mas o momento não é esse. “A situação triste é que pessoas trans têm uma taxa de desemprego que é o dobro da população em geral, e para pessoas de cor o desemprego chega a ser quatro vezes maior que a média nacional [dos EUA]”, diz. “Sinto que se tenho um papel trans, a escolha ética é contratar aquelas pessoas que realmente precisem de emprego e têm pouquíssimas oportunidades. Espero que no futuro, quando a igualdade for alcançada (pensamento positivo), cisgêneros e transgêneros poderão competir por esses papéis. Mas em 2016 acho que temos de fazer o que podemos para ajudar aqueles que a sociedade ignorou por tanto tempo.”

Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez em "Tangerine"
Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez em “Tangerine”

COM HUMOR

Além de emprestar suas histórias e suas palavras para Baker, Mya fez logo de cara dois pedidos importantes, que deram um norte para o filme. Primeiro, queria que a história fosse realista. “Ela disse que faria o filme se eu não segurasse a mão no realismo. Queria que eu capturasse a realidade brutal que as trabalhadoras do sexo trans enfrentam. Mesmo que fosse difícil de ver ou que não fosse politicamente correto”, conta.

A segunda demanda foi que o filme fosse engraçado. “Ela queria que ele apreendesse o humor que as garotas usam para lidar com as coisas. Fiquei abalado, porque ela me pediu para tentar um equilíbrio muito difícil, que podia dar muito errado. Mas quando avançamos percebi que fazer um filme abertamente político que só tratasse nossos personagens como vítimas seria condescendente”, diz. “Foi um momento importante na construção do filme e devo muito a Mya por me colocar na direção certa.”

“Tangerine” não esconde as dificuldades nas vidas de suas personagens. Alexandra leva um calote de um cliente e é chamada pelo nome masculino pela polícia, que se recusa a tratá-la como mulher, enquanto Sin-Dee é agredida na rua e começa a história saindo da prisão. Mas não é um filme triste. A fotografia, bem solar, com cores quentes e saturadas, ajuda a dar esse clima. No início, Baker tinha optado pelo contrário: tirou a saturação de todas as cores para deixar o filme com uma cara mais realista. “Mas assim que vi as imagens senti que algo estava errado. O estilo contrastava com as personalidades coloridas delas. Então fui pro outro lado e joguei as cores lá em cima. De repente pareceu certo.”

Vendo o filme não se percebe, mas “Tangerine” é uma produção que começou tão modestamente que teve de ser filmada inteiramente num iPhone. Baker não tenta disfarçar dizendo que foi uma escolha puramente estética, e sim orçamentária, pelo menos no início. “Mas tinha um instinto de que seria o jeito perfeito de fazer o tipo de filme de que eu gosto — gravado clandestinamente, socialmente realista, que mistura atores não profissionais, gente atuando pela primeira vez e gente experiente”, afirma. “O iPhone diminuiu as inibições e aumentou a confiança de quem normalmente ficaria intimidado com uma câmera tradicional. Acho que isso afetou tudo de uma maneira muito boa. Captei alguns momentos espontâneos que não teria conseguido com nenhuma outra câmera.”

A cara de filme profissional, e não amador, ficou por conta de uma lente que ainda estava em fase de protótipo de um grupo que arrecadava dinheiro em campanha de financiamento coletivo, acoplada ao telefone. Com essa lente, Baker conseguiu fazer com que a proporção entre altura e largura do vídeo fosse aquela que desejava para o filme.

O filme que começou pequeno, logo ficou grande. Foi um hit em Sundance no ano passado e as críticas foram bem positivas (o filme tem nota 96% no Rotten Tomatoes) e concorre agora a um dos principais prêmios da organização GLAAD (aliança de gays e lésbicas contra a difamação, na sigla em inglês). O desempenho de “Tangerine” deixou Baker contente. Agora, para seu próximo projeto — uma história para crianças ambientada na Flórida — diz que vai manter a mesma equipe, mas espera ter uma verba “bem maior”.

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O fim do silêncio na Indonésia

Joshua Oppenheimer foi à Indonésia em 2001 para ajudar a contar uma história difícil. Numa plantação de palma para produção de óleo, propriedade de uma empresa belga, trabalhadoras espirravam pesticidas e herbicidas sem ganharem roupas de proteção. Muitas ficaram doentes e morreram por problemas no fígado perto dos 40 anos de idade. Joshua foi ali ensinar o grupo de trabalhadores a fazer seu próprio documentário sobre as tentativas de formar um sindicato para lutar por melhores condições. O que descobriu por lá foi uma história ainda pior, sobre um massacre que desconhecia.

A empresa respondeu às demandas de seus empregados contratando o grupo paramilitar Pancasila Youth para ameaçá-los. As demandas foram retiradas imediatamente. “Eles me disseram: ‘Apesar de ser uma questão de vida e morte para a gente, nossos pais e avós morreram em um assassinato em massa em 1965 simplesmente por serem membros do sindicato nacional de trabalhadores de plantações’”, conta Joshua.

Naquele ano, pelo menos 500 mil pessoas (o número pode chegar a um milhão) foram assassinadas por supostamente serem comunistas. Artistas, ativistas, intelectuais e jornalistas foram mortos em um ataque coordenado pelo exército — que derrubou o presidente Sukarno — e realizado por grupos como o Pancasila Youth. A desculpa foi o assassinato de seis generais, atribuído na época aos comunistas, que cresceram durante o governo Sukarno. Hoje acredita-se que os militares usaram isso como desculpa para dar um golpe no presidente.

Na época, os trabalhadores sindicalizados, considerados ameaça ao regime, foram colocados em campos de concentração ou mortos. “Eles estavam com medo de que isso pudesse acontecer de novo, já que o Pancasila Youth estava mais poderoso que nunca.” Joshua viu ali uma oportunidade de falar sobre o massacre em um filme seu. A história acabou rendendo dois documentários: “The Act of Killing”, indicado ao Oscar em 2014, e “The Look of Silence”, que disputa o prêmio neste ano.

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Cena de 'The Act of Killing'
Cena de ‘The Act of Killing’

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“Percebi naquele momento que o que estava matando aquelas mulheres não era só veneno, mas também o medo. Encontrei lá o tema dos meus filmes: não o que aconteceu em 1965. Eles não são sobre o passado, nenhum dos dois é um documentário histórico. São filmes sobre um regime de medo, silêncio e impunidade que permanece até hoje. É sobre um estado presente”, afirma.

“The Act of Killing” é o menos convencional da dupla — um documentário não é continuação do outro, são duas metades de um todo. Para o filme, Joshua conversou com todos os assassinos que conseguiu encontrar durante anos, tentando entender o que havia acontecido. Surpreendentemente, seus entrevistados estavam abertos falar. E mais: eles pareciam se gabar do que tinha acontecido. Não só contavam a história como se ofereciam para levar Joshua até os locais onde tinham matado e até encenar os assassinatos.

Assim nasceu “The Act of Killing”. Em vez de mostrar as vítimas, o cineasta joga luz sobre os assassinos e dá a eles meios para fazer seu próprio filme sobre o massacre. Inspirados por Hollywood, os autointitulados gângsteres transformam a história real numa trama surrealista: meio musical, meio western, inteiramente bizarro. A morte vira um espetáculo e o resultado é aterrorizante — ver o filme uma vez é necessário, ver duas é tortura. “É um filme sobre as mentiras, as fantasias por trás da ostentação dos assassinos, e sobre como isso manteve uma sociedade inteira nas rédeas do medo e possibilitou que eles se safassem com uma corrupção imensa”, diz Joshua.

As primeiras imagens do estranho experimento foram responsáveis por trazer Werner Herzog (“Encontros no Fim do Mundo”) ao projeto, como produtor-executivo. Herzog estava no aeroporto, tomando um café antes de embarcar em seu voo, quando um colega disse que um rapaz queria desesperadamente falar com ele sobre um trabalho. Joshua tinha dez minutos para atrair o cineasta e utilizou-os para mostrar imagens aleatórias que tinha captado. A apresentação foi convincente. Naquela época, Joshua, hoje com 41 anos, tinha um currículo curto: formado em Harvard, tinha só dois documentários no portfólio, um de 1997 e outro de 2003. Foi com “The Act of Killing” que fez seu nome, e em 2014 ganhou uma “bolsa para gênios” da Fundação MacArthur, para qual as pessoas não se candidatam — são escolhidas.

Mas estamos nos adiantando na história, porque embora “The Look of Silence” tenha sido lançado depois, sua origem antecede “The Act of Killing”. Voltemos a 2003, quando Joshua, ainda um documentarista iniciante, viajou novamente à Indonésia após o trabalho inicial. Assim que chegou ao país, o cineasta foi apresentado à família de Ramli Rukun, cuja história era conhecida no país. Capturado e esfaqueado, Ramli havia conseguido voltar para sua casa, até que dois homens bateram à porta e disseram a sua mãe que o levariam ao hospital. Ramli foi amarrado nu, forçado a andar enquanto pedia por piedade e chorava, até ser castrado e jogado num rio.

Um dos irmãos de Ramli, na época com oito anos de idade, ouviu na escola o professor comentando que naquela noite eles matariam o irmão. Quando chegou em casa, contou o que tinha ouvido, mas não houve nada que a família pudesse fazer. Ramli de fato morreu naquele dia e o menino voltou à escola, onde tinha como mestre um dos membros do esquadrão da morte que havia matado o irmão mais velho.

ESCAPISMO E CULPA

Adi Rukun não era vivo quando Ramli, seu irmão, morreu, mas é ele a figura central de “The Look of Silence”. Foi ele quem convocou um grupo de sobreviventes do massacre e seus familiares para ajudar Joshua com o documentário, antes mesmo de “The Act of Killing” ser um projeto. Três semanas depois, militares ameaçaram todos que participassem do filme. Eles desistiram, mas pediram para que Joshua não engavetasse o projeto e que fosse atrás dos assassinos. Foi o que ele fez. Quando terminou as primeiras filmagens, mostrou as imagens ao grupo. “E eles me disseram: ‘Você deve continuar filmando os assassinos. Isso está levando a algo terrivelmente importante, porque qualquer um que veja como eles estão falando vai ser forçado a entender que o genocídio não terminou. Apesar de as mortes terem parado, os assassinos ainda estão no poder. O público vai entender que milhões de sobreviventes vivem com medo, porque estão rodeados por assassinos’”, relembra o cineasta.

Depois de dois anos de pesquisa, Joshua encontrou Anwar Congo, seu 41º entrevistado e personagem principal de “The Act of Killing”. Congo é uma figura curiosa: embora se vanglorie de ter matado comunistas, confessa que tem pesadelos à noite e parece ter alguma crise de consciência. “Fiquei com ele porque conseguia ver que sua dor estava perto da superfície. Ele não conseguia esconder completamente a dor de suas memórias. Comecei a entender, por meio de Anwar, que talvez a ostentação não fosse realmente orgulho, e sim o oposto: uma tentativa desesperada dos assassinos de se convencer de que fizeram a coisa certa. Porque eles sabem que foi errado. Passei os cinco anos seguintes explorando essa relação entre escapismo e fantasia, de um lado, e a culpa, de outro.”

Em 2012, após dois anos de edição, Joshua voltou a Adi, que havia acompanhado o processo durante todo aquele tempo e ouviu um pedido. “Ele disse para mim: ‘Passei anos vendo suas imagens dos assassinos e algo mudou em mim. Preciso conhecer os homens que mataram meu irmão. Preciso ver se eles assumem a responsabilidade pelo que fizeram. Preciso confrontá-los’.” Joshua negou. Era perigoso demais que Adi se expusesse daquela forma, ele dizia. “Ninguém tinha feito um filme em que sobreviventes confrontam assassinos que ainda estão no poder”, afirma. Mas Adi o convenceu, mostrando uma imagem que tinha filmado naquele período. Na cena, que faz parte do filme, o pai de Adi, já com mais de cem anos e cego, se arrasta pelo chão, achando que está na casa de um estranho e pedindo ajuda sem que ninguém o acuda. É uma imagem pesada, que parece desconectada do filme.

Aquele foi o primeiro dia, contou Adi, em que o pai não havia reconhecido ninguém da família. Sempre que alguém tentava ajudá-lo o pai se desesperava ainda mais. “Foi insuportável para Adi não poder confortar seu pai. Então ele pegou a câmera e começou a filmar, usando-a como um escudo para se proteger emocionalmente ao ver o pai se arrastando, com medo”, diz Joshua. Naquele momento, Adi viu que era tarde demais para as feridas do pai cicatrizarem. Ele tinha se esquecido da morte de Ramli, mas não do medo. “Depois de me mostrar a cena, Adi me disse: ‘Não quero que meus filhos herdem essa prisão de medo. Acho que se eu chegar gentilmente nos assassinos, mostrando que os vejo como seres humanos e que estou disposto a perdoá-los caso eles admitam que aquilo foi errado, talvez eles parem de se gabar. Eu devo aos meus filhos essa tentativa de estabelecer a paz com meus vizinhos para que eles não cresçam com medo’. Fiquei muito tocado com isso.”

Joshua Oppenheimer.
Joshua Oppenheimer.

O OLHAR DO SILÊNCIO

“The Look of Silence” é um retrato desses confrontos, cada um com resultados diferentes. Como oculista, Adi chegava à casa dos assassinos sem revelar sua verdadeira identidade e o que estava fazendo ali. Começava uma conversa fazendo um exame de vista, enquanto a câmera de Joshua registrava tudo. Não era uma tarefa simples, mas Joshua se aproveitou do fato de que “The Act of Killing” não tinha sido lançado ainda. A comunidade sabia que ele estava filmando líderes paramilitares nacionais. Como Adi só queria falar com gente da região, acharam que esses peixes menores tivessem medo de agredi-los, pensando que a equipe de Joshua era amiga de seus chefes.

Mesmo assim, tomaram medidas de segurança. Durante cada conversa, a família de Adi o esperava no aeroporto, pronta para fugir. Um carro também estava sempre a postos para levá-lo — todos tinham vistos para a Dinamarca, caso precisassem sair do país. Uma equipe de cinco pessoas acompanhava a família o tempo todo e todos eles se mudaram para uma outra região do país. As crianças foram transferidas para uma escola melhor, Adi ganhou um consultório próprio para não ter que bater de porta em porta vendendo óculos. “Mas desde o lançamento Adi tem sido visto como um herói nacional na Indonésia. Ele tem um papel central no movimento por verdade, justiça e reconciliação. Não só ele não foi ameaçado como parece que sua família está segura e muito, muito bem.”

Como pode-se esperar a partir dessa premissa, as conversas de Adi com os responsáveis pela morte de seu irmão não são de fácil digestão. O primeiro entrevistado conta como bebia o sangue das vítimas para “não enlouquecer” após os assassinatos. Ele não reage bem aos questionamentos e acusa Adi de politizar a conversa — que não poderia ser mais política. Adi é estoico e aguenta todos os confrontos com uma calma impressionante mesmo quando é pego de surpresa. Ao aparecer na casa do tio para uma consulta, começa a falar sobre o irmão e descobre que o tio havia sido guarda na prisão de Ramli e que não fez nada para impedir sua morte. “Ele fica bravo, defensivo, e usa a propaganda anticomunista para justificar o genocídio. Meio que diz que Ramli mereceu a morte e que se Adi continuasse a investigar também mereceria. É um momento horrível em que um relacionamento amoroso se despedaça. A cena revela como essa ferida aberta corta a família toda”, lembra Joshua.

Em outra cena, Adi visita um assassino que está surdo e cuja filha, que cuidava dele, descobre pela primeira vez o que o pai fez. “Ela percebe, de uma forma horrível, que o pai é um estranho para ela e que fez coisas terríveis. Vemos a cara dela entrar em colapso”, diz o cineasta. “Mas em vez de fazer o que eu teria feito, que é entrar em pânico e botar a equipe para fora para poder pensar, ela fica muito quieta, escuta sua consciência e pede perdão. Ela força Adi a perdoar, algo que ele disse no início que faria e que nunca tinha feito, já que até ali ninguém havia reconhecido o que fez de errado. Foi uma das coisas mais delicadas e bonitas que já vi.”

MURO INVISÍVEL

Essa foi a única conversa que não terminou num impasse. Quando a discussão ficava tensa demais, Joshua agia como um mediador. “Eu acalmava a situação dizendo que estava ali para filmar uma discussão entre duas pessoas com perspectivas diferentes. Entendia a irritação, era uma história pessoal para os dois, mas eles deviam tentar se escutar. Não fiz isso porque me sentia neutro em relação à situação, mas porque não queria que saíssemos feridos”, afirma. Do lado de fora, muitos dos assassinos tinha capangas prontos para colocar pra fora quem incomodasse seus patrões.

“Em todas as cenas chegávamos a um muro que não conseguíamos ultrapassar. O título ‘The Look of Silence’ [em português, ‘O Peso do Silêncio’] se refere a essa parede. O que ela é? Como é viver com ela?” Os vilarejos da Indonésia, diz o cineasta, podem parecer bucólicos e adoráveis porque a tensão não se vê. Como torná-la visível?

“Percebi que isso podia ser feito pelos confrontos. Disse a Adi que não acreditava que ele teria o pedido de desculpas que queria. Falei: ‘Acho o contrário. Você os vê como seres humanos e eles vão reciprocar seu olhar gentil e te ver como um ser humano também. Eles vão ver Ramli como um ser humano e todas as vítimas como humanas, e nesse momento as mentiras que eles se contaram vão entrar em colapso. Tudo aquilo a que eles se ativeram se baseia em tirar a humanidade das vítimas. Você as está humanizando só pela sua presença. Eles vão entrar em pânico, vão ficar defensivos, bravos, e vamos falhar. Mas acho que se conseguirmos mostrar esse impasse, esse muro, quem assistir ao filme vai sentir a pressão incrível que os sobreviventes sentem’”, lembra.

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A mãe de Adi em 'The Look of Silence'
A mãe de Adi em ‘The Look of Silence’

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RESPOSTA

Os filmes, diz Joshua, trouxeram a discussão do passado à tona na Indonésia. “A mídia era silenciosa a respeito e agora fala do que aconteceu como um genocídio, como um crime contra a humanidade. Mais importante: fala do regime criminoso que está no poder desde o genocídio”, diz. Quando “The Act of Killing” foi indicado ao Oscar, o presidente também se manifestou e disse que sabia que o que aconteceu em 1965 foi um crime e que em algum momento uma reconciliação seria necessária, mas que eles não precisavam de um filme para forçá-los a isso. “Eles meio que menosprezaram o filme, mas foi maravilhoso porque foi a primeira vez que o governo reconheceu que aquilo era errado”, diz Joshua.

Dois órgãos governamentais, inclusive, se ofereceram para distribuir o filme. Com a ajuda da Comissão Nacional de Direitos Humanos e do Conselho de Arte de Jacarta, “The Look of Silence” foi exibido no maior cinema do país, com capacidade para mil pessoas. Dois mil espectadores foram à abertura e o cinema teve de fazer duas sessões — depois das quais Adi foi aplaudido de pé. Depois disso, foram feitas mais de 500 exibições públicas e agora o filme está disponível na internet no país.

Mas nem tudo são flores. Gângsteres foram contratados para atacar exibições e 30 sessões tiveram de ser canceladas por questões de segurança. Como o órgão censor de filmes está no guarda-chuva do comitê de defesa do parlamento e é dominado pelo exército (“Parece louco, mas é só autoritário”), o documentário foi proibido de passar nos cinemas. “É uma situação peculiar. ‘The Look of Silence’ é o primeiro filme da Indonésia a ser indicado ao Oscar — ‘The Act of Killing’ não era uma produção formalmente indonésia — e está banido dos cinemas”, diz.

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Adi vê imagens captadas por Joshua Oppenheimer

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DEDO AMERICANO

O filme de Joshua não aponta só o dedo para o governo indonésio, mas também para os Estados Unidos. O diretor inclui um trecho de uma reportagem na TV americana exaltando o ocorrido como a maior batalha vencida contra o comunismo. Tem também imagens de um grupo de trabalhadores num campo de concentração para extrair látex para a empresa americana de pneus Goodyear. A crítica é ainda mais clara: em um momento, um dos assassinos olha para a câmera e diz que merecia um prêmio dos americanos, porque foram eles que os ensinaram a odiar e a matar os comunistas.

“Para os americanos é um momento muito doloroso, porque ele olha direto para o público. Ele está implicando a gente, dizendo que não é só a história da Indonésia, mas também a nossa. Essa é uma das muitas vezes em que os Estados Unidos apoiaram atrocidades em outros lugares”, critica.

“E a Goodyear usava escravos de campos de concentração, a mesma coisa que as empresas alemãs faziam perto de Auschwitz 20 anos antes. É uma crise de consciência para os americanos, nos faz pensar que talvez a ideologia anticomunista da Guerra Fria não seja a razão real para nossas intervenções. Talvez fosse uma desculpa, como a que os assassinos que vemos nos meus filmes usam. Talvez seja uma desculpa oficial para fazer aquilo que as corporações queriam”, continua. “Isso faz com que façamos perguntas difíceis sobre nossa política externa.”

O senador americano Tom Udall levou no ano passado, aos 50 anos do massacre, um projeto ao Senado para que o selo de sigiloso seja tirado de documentos que falam do papel dos Estados Unidos no que aconteceu na Indonésia. “Nosso governo continuou o apoio militar e financeiro à Indonésia naquela época. Ao chegarmos ao aniversário desse período horrível, há apenas 50 anos, os Estados Unidos e a Indonésia devem trabalhar para fechar esse capítulo horrível liberando informações e reconhecendo oficialmente as atrocidades que aconteceram. Muitos dos assassinos ainda estão vivos e soltos, e sua impunidade impede a Indonésia de verdadeiramente realizar seu potencial democrático”, diz o texto de Udall.

Joshua apoia a iniciativa. “Sabemos de ouvir por aí que os Estados Unidos deram dinheiro, armas e treinamento a eles. Também sabemos que eles fizeram uma lista com 5 mil nomes de figuras públicas da Indonésia — jornalistas, ativistas, artistas, intelectuais — e a entregaram ao Exército pedindo para devolverem os nomes quando tivessem se livrado de todos. Uma lista de morte. Essa é uma mancha grande na afirmação americana de que é uma força para a liberdade e a democracia no mundo pós-guerra”, diz.

Para o documentarista, enquanto esses documentos não forem públicos e os Estados Unidos não reconhecerem sua responsabilidade, tudo o que o país diz sobre direitos humanos é retórica e “será visto, corretamente, pelas pessoas do mundo como um disfarce hipócrita para avançar os interesses estratégicos e corporativos do país”. Circulam agora petições de americanos para que senadores de seus Estados apoiem a proposta de Udall. “Estamos tentando fazer agora com que isso passe pelo Senado e vire lei.” A discussão da história, diz ele, é fundamental. “Não haverá democracia genuína até que se lide com essa questão. Não há democracia sem comunidade e não há comunidade quando uns têm medo dos outros.”

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‘Joy’ é propaganda de esfregão

O filme “Joy” começa com um aviso que diz algo como: “A todas as mulheres corajosas (talvez o adjetivo não seja esse. Mas insira aqui uma característica positiva que está valendo) do mundo. Essa é a história de uma delas”. Parece um bom prenúncio em uma temporada de filmes predominantemente masculinos — “Spotlight”, “A Grande Aposta”, “Os Oito Odiados”, “O Regresso”, “Creed”. Maravilha, veremos uma história bem contada sobre uma mulher? Não é bem isso que vem pela frente. Mas o filme foi indicado como melhor comédia no Globo de Ouro, então pelo menos dá pra rir, certo? Quem dera. Talvez tenha uma boa história para ser contada sobre Joy Mangano, criadora de um esfregão milagroso, mas certamente não é a que está no filme. “Joy”, que estreia no dia 21, é tão desinteressante que o melhor contexto para assistir a ele é num avião, pra matar o tempo antes de dormir.

Jennifer Lawrence, de novo em parceria com o diretor David O. Russell, estava cotada para o Oscar antes que qualquer um tivesse assistido ao filme — o que é uma maluquice, ainda que a previsão estivesse certa. Mas sua escalação para o papel de Joy, na verdade, é um equívoco. Não que Lawrence não esteja bem. Só que é esquisitíssimo ver alguém dizer para a atriz de 25 anos que ela não tem a vida toda pela frente, “só alguns bons anos”.

Joy é uma mulher divorciada, que não foi à faculdade para ajudar os pais a tocar a vida depois da separação deles, com dois filhos que tem dificuldade para sustentar e que tem pesadelos (literalmente, falta muita sutileza ao filme) sobre como sua vida foi desperdiçada. Difícil de comprar vendo alguém de 25 anos na tela. Difícil de vender também, apesar de Lawrence ganhar pontos (e prêmios, como o Globo de Ouro) pela tentativa.

Mas esse não é o principal problema do filme. Lawrence já viveu mulheres mais velhas nos filmes de O. Russell – “O Lado Bom da Vida” e “Trapaça”, ambos melhores que “Joy”. O problema é o roteiro, com personagens profundos como um pires. A meia-irmã de Joy é uma chata que implica com ela aparentemente sem motivo (se o cinema é cheio de “bromances” e grandes amizades masculinas, o mesmo não se pode dizer de parcerias entre mulheres, quase sempre rivais), a mãe passa o dia no quarto vendo novela sabe-se lá por que, a avó só está no filme para fazer uma narração hiper cafona que serve de muleta para o diretor. Lá pelas tantas aparece Bradley Cooper num papel que não vai a lugar nenhum. Robert De Niro também está lá para fazer um discurso de “não sei por que deixei você acreditar que era mais que uma dona de casa” para a própria filha sem que entendamos o motivo da crueldade.

Joy é uma inventora desde pequena, como o filme não para de jogar na sua cara. A avó, narradora, reforça esse ponto constantemente e mais de uma vez vemos um flashback da pequena Joy construindo uma fazenda de papel e dizendo que não precisa de um príncipe, só de suas invenções, como se não desse pra ter tudo na vida. Quando finalmente ela cria o esfregão, o filme deixa um pouco sua família de lado e se volta para as dificuldades de uma mulher entrar no mundo dos negócios. Parece que vai deslanchar, mas é uma esperança vã. Tudo dá errado, até o momento em que Joy corta os próprios cabelos em frente ao espelho (alerta de clichê) e os problemas se resolvem magicamente. Nada como um bom cabelo curto para conferir força e determinação a alguém.

A mensagem é que se você realmente quiser algo e persistir, vai dar certo. Nem sempre é assim. O filme tem bons momentos aqui e ali, mas não passa muito disso. O esfregão, pelo menos, é bom. “Joy” seria excelente se fosse uma propaganda: se você não tem um desses em casa, ele te convence a comprar.

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Cinema Crítica

‘Carol’ e a faísca que não vira fogo

Em uma longa entrevista dada à revista New York no ano passado, Quentin Tarantino deu uma declaração polêmica sobre os filmes que disputam o Oscar hoje em dia: “Eles são bons, mas não sei se eles têm a permanência que uns filmes dos anos 90 ou 70 tinham (…). Metade desses filmes da Cate Blanchett — são essas coisas ‘de arte’. Não estou dizendo que são ruins, mas não sei se eles são longevos ”. Concorde-se ou não com a afirmação, é essa a impressão que deixa “Carol”, filme de Todd Haynes com Cate Blanchett que estreia nesta quinta (14) nos cinemas.

Baseado em um livro de Patricia Highsmith, “Carol” é lindo. Para usar o termo de Tarantino, é mesmo um filme “de arte”. Tudo em “Carol” é muito bonito: os figurinos do início dos anos 1950, a trilha sonora, os enquadramentos. Cada cena parece uma fotografia. Dá pra dizer o mesmo da história: é bonita. Carol (Cate Blanchett) está se divorciando do marido, Harge (Kyle Chandler), quando seu olhar cruza com o da vendedora Therese (Rooney Mara) numa loja de departamentos, perto do Natal. Naquele primeiro encontro é possível ver o encantamento de uma pela outra, ainda que Therese não saiba direito o que aquilo significa. É um belo começo para uma história de amor.

 

Apesar de o filme se chamar “Carol”, é bem mais uma história de Therese. Carol é uma mulher segura e já tinha se relacionado com uma amiga de infância, informação que o marido usa ao seu favor no processo de separação para conseguir a guarda da filha. Já Therese é bem mais nova, nunca se apaixonou e não sabe muito bem o que quer. Namora um rapaz apaixonado por ela apesar de não sentir o mesmo, trabalha numa loja sonhando em ser fotógrafa, mas não tem coragem de montar um portfólio com seu trabalho. Therese anda sem rumo, dizendo sim para tudo e sem tomar as rédeas da própria vida, até que Carol aparece.

(Aliás, um pequeno parêntese. Não faz sentido que Rooney Mara esteja na disputa pelo Oscar de atriz coadjuvante, já que ela é no mínimo tão protagonista quanto Cate Blanchett. É até mais, mas vamos dar uma colher de chá para o estúdio, que não quis colocá-la para concorrer diretamente com a colega – sabiamente, o Globo de Ouro não caiu nesse papo e indicou as duas a melhor atriz em filme de drama.)

Como a fotografia, tudo no filme é meticuloso, pensado. A história se desenvolve lentamente (talvez um pouco devagar de mais) e é tudo bastante sutil, quase frio de tão delicado. Depois de conversar brevemente com Therese, Carol deixa um par de luvas sobre o balcão, que a vendedora, com o endereço da cliente em mãos, logo devolve. Carol agradece com um convite para um almoço, que se desdobra em uma visita a sua casa, outra visita e, por fim, uma viagem de carro pelos Estados Unidos.

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Cate Blanchett e Rooney Mara em 'Carol'
Cate Blanchett e Rooney Mara em ‘Carol’

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Demora para que algo aconteça realmente entre elas e o público acompanha o início do relacionamento quase em tempo real, sentindo a tensão crescente entre as duas. Mesmo quando a tensão se concretiza não tem aquele momento épico de filmes românticos, com a declaração às lágrimas, a corrida para impedir que a pessoa entre no avião ou a perseguição de carro. “Carol” é um filme calmo e a faísca entre Therese e Carol nunca chega a virar fogo.

Essa sutileza toda exige boas atuações para que o filme dê certo. “Carol” seria bem chato se a dupla não fosse boa como é. Mara e Blanchett estão perfeitas e conseguem transmitir muito com poucas palavras e gestos contidos. Rooney Mara é uma figura bem peculiar, de fala baixa, sorrisos tímidos, maquiagem escura e roupas com um quê de fantasmagórico. O papel da contida e ingênua Therese é feito sob medida para ela. E Cate Blanchett nasceu para interpretar mulheres ricas e elegantes — parece saída direto da casa de Carol nos anos 1950.

Aí voltamos para a declaração de Tarantino. “Carol” é sim um filme bonito, “de arte”, e também é um filme bom. Mas lembraremos dele em 20 anos? Talvez seja injusto fazer essa pergunta, porque no fim do ano, quando se faz listas dos melhores filmes dos últimos 12 meses, percebe-se que pouca coisa é realmente memorável — é o caso de outro favorito ao Oscar, “Spotlight”, também legal, porém não incrível. Mas, no fim das contas, “Carol” é meio assim: é bom, é lindo de se ver, mas falta aquela sensação de “uau” saindo do cinema que os filmes longevos costumam deixar.

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Cinema Crítica

Em ‘Creed’, Rocky ainda é o cara

De cara, “Rocky” e “Star Wars” não têm muito em comum. Talvez dê pra achar uma semelhança forçando a barra, mas são filme bastante diferentes. Isso deixa ainda mais curioso o fato de que, quase 40 anos depois do lançamento das franquias, após filmes que não emplacaram muito, novos longas das séries sejam lançados com tanto sucesso usando mais ou menos a mesma receita. Diante da tarefa de ter que agradar uma multidão de fãs ansiosos e frustrados com a trilogia iniciada nos anos 90, J.J. Abrams fez praticamente um reboot da história original de George Lucas. “O Despertar da Força” tem muito de “Uma Nova Esperança”. Deu certo: o público recebeu o que queria e todos saíram contentes. O mesmo acontece com “Creed”: você viu algo muito parecido em “Rocky”. E é incrível.

No filme, Michael B. Jordan é Adonis, filho que Apollo Creed — o boxeador rival de Rocky no primeiro filme, que depois vira seu amigo — teve fora do casamento. Depois de uma temporada em orfanatos e reformatórios, Adonis vai morar com a viúva do pai, que quer para ele uma vida diferente do pai. A princípio tudo vai bem: Adonis vive numa casona, tem um carrão e acaba de ganhar uma grande promoção em seu trabalho num escritório. Mas a sombra de Apollo ainda paira ao seu redor e o que ele quer mesmo é lutar.

Para realizar o sonho, Adonis deixa Los Angeles rumo à Filadélfia para pedir a Rocky que seja seu treinador. No começo ele recusa, mas não é surpresa pra ninguém quando ele volta atrás. E, é claro, antes do fim do filme o sobrenome de Adonis terá chamado a atenção de um campeão de boxe, que o desafia. Como Rocky, Adonis é um azarão. Como Rocky, ele é muito melhor do que todos pensam. E dá-lhe cenas de treino: Adonis corre pelas ruas, pega galinhas para ganhar velocidade, treina onde dá. Tudo saído do início da série, em referências que o próprio filme escancara (“as galinhas estão ficando mais lentas”, reclama Rocky ante o desempenho do pupilo).

São poucas as surpresas — principalmente para quem assistiu ao trailer –, mas não importa. “Creed” é o tipo de filme que faz rir, chorar (sim, quem for do tipo que chora no cinema faz bem em levar uns lenços) e torcer por Adonis como se você o conhecesse há anos e ele estivesse disputando uma luta real. Michael B. Jordan é muito bom, mas o filme tem dois grandes trunfos: Sylvester Stallone, que foi aplaudido de pé ao ganhar o Globo de Ouro de ator coadjuvante, e Ryan Coogler, diretor de 29 anos em seu segundo longa — e que foi contratado nesta semana pela Marvel para dirigir “Pantera Negra”.

Ao receber o prêmio, Stallone disse que Rocky Balboa é seu melhor amigo. Parece verdade. Talvez o ator nunca faça outro papel tão bem, mas Rocky parece uma extensão dele. Quando criou Rocky, numa história já famosa, lhe ofereceram centenas de milhares de dólares pelo roteiro, desde que ele desse o papel do protagonista para outro ator. Stallone, tão azarão quanto seu personagem, não tinha cara de ator de Hollywood. Mas bateu o pé e ficou com o papel, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar em 1977. Essa conexão com Rocky é visível. Stallone está super engraçado, comovente quando precisa, sem medo de rir de si mesmo e muito fofo — adjetivo talvez inusitado para Stallone, mas fazer o quê, é verdade. Os prêmios são merecidos. Rocky ainda é o cara.

Michael B. Jordan e Sylvester Stallone
Michael B. Jordan e Sylvester Stallone

Mas a principal arma do filme é Coogler, que também assina o roteiro. De vez em quando “Creed” coloca um pé no piegas, mas o diretor nunca o deixa ficar cafona. É um filme sobre um boxeador azarão, é um filme de amor, é um filme sobre pai e filho — tudo isso foi feito muitas e muitas vezes. Mas o diretor dá a sua cara ao negócio e deixa “Creed” um pouco diferente daquilo que já vimos. Adonis treina correndo na rua e batendo em sacos de pancada, mas também se coloca em frente à imagem de seu pai lutando com Rocky num telão, imitando seus movimentos, e trava lutas contra sua própria imagem num espelho. São cenas simples, mas esteticamente bonitas. A luta final, então, é demais. Dá pra se sentir dentro do ringue. É difícil explicar por que, mas “Creed” dá a impressão de que estamos vendo algo novo, apesar da história pouco original.

Ava DuVernay, de “Selma”, recusou a direção de “Pantera Negra” dizendo sentir que não conseguiria fazer dele um filme seu. Talvez ela esteja certa e seja mais difícil fazer algo diferente e colocar sua marca em franquias, em histórias que todo o mundo conhece. Mas Ryan Coogler mostra que pode dar certo. Pode dar muito certo.

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Cinema Crítica

‘Spotlight’ é o novo ‘Argo’

Quase seis meses antes do Oscar deste ano, ainda em setembro, um crítico da revista New York afirmou: “Spotlight” era o favorito a levar o prêmio de melhor filme. O tempo passou e o panorama continua parecido. Não dá pra dizer que o filme de Tom McCarthy esteja com a estatueta no bolso, mas se você quiser fazer uma aposta pouco arriscada, “Spotlight” é uma ótima opção. É, realmente, o típico filme pra Oscar: história real, elenco famoso (Michael Keaton, Rachel McAdams, Mark Ruffalo e por aí vai), personagens inspiradores. Não muito diferente de, digamos, “Argo” ou “O Discurso do Rei”, que carregam uma bênção e uma maldição: ok, levaram o Oscar, mas ninguém mais se lembra muito deles hoje. “Spotlight” tem cara de quem vai seguir o mesmo caminho.

Isso não quer dizer que o filme, que estreia na próxima quinta, não seja bom. Ele é. É pouco provavél que alguém saia arrependido por ter gastado duas horas do seu dia no cinema vendo “Spotlight”, o que é sempre uma vitória. Mas o filme não é essa coca-cola toda, apesar de ter uma nota de 97% no Rotten Tomatoes. Uma tese para explicar tanto confete: “Spotlight” foi feito sob medida para jornalistas. É aquele filme capaz de fazer um adolescente pensar “hum, talvez eu queira ser repórter”, que dá ao recém-formado a esperança de mudar o mundo com um texto e que faz repórteres e editores pensarem que, bem, talvez tenham escolhido a profissão certa. “Spotlight” é o sonho de quem trabalha em uma Redação.

 

Spotlight é o nome de uma equipe do jornal americano Boston Globe que existe desde a década de 1970 com liberdade para passar meses ou até anos investigando uma história, a fundo, sem ter que se preocupar com as notícias do dia em circunstâncias normais. Em 2001, em sua primeira reunião de pauta com os editores do jornal, o recém-chegado editor-executivo Marty Baron (Liev Schreiber) pede para que os jornalistas do Spotlight engavetem tudo o que estavam fazendo para se dedicarem a uma reportagem sobre um caso de pedofilia envolvendo um padre da cidade. Segundo uma colunista do jornal, um advogado local teria provas sigilosas de que o alto clero da Igreja Católica sabia e havia acobertado o escândalo. Baron quer essas provas para abalar o sistema.

Essa era só a ponta de um novelo desenrolado ao longo de meses pelos jornalistas Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams), Michael Rezendes (Mark Ruffalo), Walter Robinson (Michael Keaton) e Matt Carroll (Brian d’Arcy James). A apuração começa com um padre e vai crescendo, crescendo, até que eles chegam a uma lista de quase 90 padres molestadores de crianças. Durante meses os repórteres conversam com vítimas, com advogados que tinham a dimensão do problema e ajudaram a empurrá-lo pra debaixo do tapete, procuram padres, esmiúçam documentos, vão a bibliotecas, fóruns, gastam a sola do sapato na rua e vão ao jornal nos fins de semana para continuar trabalhando, num esforço que rendeu mais de 600 histórias.

É o jornalismo dos sonhos: contar histórias relevantes, que façam diferença na vida das pessoas, com tempo para investigar de verdade. Em suas pesquisas, a equipe percebe que boa parte das pistas estavam disponíveis para todos, ali mesmo no jornal, em pequenas matérias picotadas escondidas nas páginas internas dos cadernos, pras quais ninguém deu muita atenção. As mesmas evidências que eles encontravam tinham sido enviadas anos antes para outros jornalistas do Boston Globe e ignoradas. Só que ninguém havia juntado as peças para formar o quebra-cabeças. Não foi um furo de reportagem que caiu no colo de alguém: foi fruto de muito trabalho, árduo e pouco glamouroso. Não à toa, os repórteres do Spotlight ganharam o Pulitzer. Suas reportagens mostram, basicamente, como o jornalismo é importante. É um filme que deve agradar todos os públicos, mas, nesse sentido, é especialmente irresistível para a crítica.

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Michael Keaton e Mark Ruffalo. Crédito: Divulgação
Michael Keaton e Mark Ruffalo. Crédito: Divulgação

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De certa forma, “Spotlight” lembra “A Grande Aposta”, outro filme que provavelmente disputará o Oscar. São duas boas histórias reais, com elencos enormes cheios de coadjuvantes e nenhum protagonista (e, ressalte-se, quase nenhuma mulher), sobre pessoas que olharam ao redor e entenderam a dimensão verdadeira de algo importante.

Mas “A Grande Aposta”, que conta a história de um grupo de pessoas que previu antes do mundo a crise econômica de 2008 e enriqueceu com isso, é mais original. Adam McKay, que foi roteirista do “Saturday Night Live” e diretor de “O Âncora”, consegue transformar uma crise difícil de entender em algo compreensível e engraçado. O diretor tenta fazer algo diferente, como colocar famosos em situações esdrúxulas para explicar termos econômicos (Margot Robbie numa banheira tomando champanhe, Selena Gomez num cassino…), personagens quebram a quarta parede e o filme todo é salpicado de cultura pop.

“Spotlight” é legal? Sim. É bem feito? Sem dúvidas. Conta uma história relevante? Definitivamente. O elenco é bom? Muito. Vale o ingresso? Com certeza. Mas é quadradinho. Pode até ganhar o Oscar, mas não é lá muito marcante.

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Cinema

A crise de 2008 para leigos

A certa altura de “A Grande Aposta”, alguém faz um comentário super complicado sobre economia e o personagem de Ryan Gosling diz algo como: “Esse papo faz você se sentir burro ou entediado? Bem, é esse o objetivo. Wall Street adora usar termos confusos pra você achar que só eles conseguem fazer o que fazem”. A crise de 2008, para quem não acompanhou com atenção ou estava mais preocupado com o nascimento dos gêmeos de Angelina Jolie e Brad Pitt e a greve dos roteiristas americanos, é um pouco assim. Todo o mundo sabe que ela aconteceu, alguns sabem mais ou menos como ela aconteceu e nem tantos sabem realmente como foi. “A Grande Aposta” desenha para você entender.

Baseado em um livro de Michael Lewis, cujos textos inspiraram também “O Homem que Mudou o Jogo” e “Um Sonho Possível”, o filme conta a história de alguns personagens reais que perceberam antes dos outros que a bolha imobiliária iria estourar e ficaram ricos com isso. Pela sinopse não parece, mas é uma comédia — afinal, o diretor é Adam McKay, de “O Âncora” e ex-roteirista do “Saturday Night Live” — e tudo é feito para facilitar. Quase um “a crise de 2008 para leigos”.

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Christian Bale em 'A Grande Aposta'
Christian Bale em ‘A Grande Aposta’

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O filme, que estreia em janeiro no Brasil, tem três núcleos principais que não conversam um com o outro. Christian Bale é Michael Burry, um investidor que trabalha descalço e de bermuda enquanto escuta rock num volume altíssimo, e o primeiro a perceber que a crise era inevitável por fazer algo que ninguém tinha feito antes: olhar o que estava acontecendo. Antecipando-se ao estouro da bolha, começou a apostar contra o mercado imobiliário, comprando em diferentes bancos uma espécie de seguro para caso as hipotecas que todos os americanos faziam não fossem pagas — para a alegria dos banqueiros, que acreditavam que o mercado imobiliário era o mais seguro de todos.

Ryan Gosling é Jared Vennett, funcionário de um banco que descobre o que Burry está fazendo, vê que aquilo tudo faz sentido e leva a informação para Mark Baum (Steve Carell), que também começa a apostar contra o mercado. Por fim, dois jovens investidores (Finn Wittrock e John Magaro) leem o plano de Vennett e também entram na jogada, com a ajuda do ex-banqueiro Ben Rickert (Brad Pitt, produtor do filme). Os protagonistas fazem uma aposta arriscada e é normal torcer para que eles vençam. Só que como Rickert aponta, se eles ganharem boa parte do país vai perder suas casas, suas economias, suas aposentadorias. Não tem mocinhos ali.

É possível entender a trama com zero conhecimento de economia, até porque McKay é didático. Depois de algumas cenas mais complexas, celebridades aparecem em diferentes situações explicando os termos para leigos. Margot Robbie (“O Lobo de Wall Street”) toma um banho de espuma enquanto toma champanhe, Selena Gomez joga blackjack num cassino e Anthony Bourdain reaproveita peixes velhos em seu restaurante enquanto explicam conceitos de economia. Mas como a explicação vem depois das cenas complexas, ajuda ir para o cinema com uma base mínima do que aconteceu.

Em termos bem (bem) simples, o que Burry descobre é que muita gente havia financiado suas casas nos Estados Unidos sem ter condições de arcar com empréstimos. Os bancos americanos juntavam diversas hipotecas em pacotes com vários níveis de risco e as vendiam para investidores. As mais seguras rendiam menos juros, mas mesmo assim tinham um retorno bom. Empolgados, começaram a emprestar mais e mais dinheiro para quem quisesse comprar casas, mesmo sem entrada ou garantias de que essas pessoas pudessem pagar. Burry percebeu que isso não poderia durar e investiu mais de 1 bilhão de dólares num seguro contra a inadimplência. Enquanto o calote não acontecesse, ele deveria pagar altos prêmios aos bancos. Mas quando a bolha finalmente estourasse, ele ficaria rico.

O que aconteceu todo o mundo já sabe: Burry estava certo, cada vez mais pessoas deixaram de pagar seus empréstimos e entregaram suas casas aos bancos, a oferta de imóveis cresceu, o valor de cada um deles caiu, bancos e investidores se viram com um monte de batatas quentes nas mãos e a economia quebrou. No fim das contas, o governo americano salvou os bancos da falência, deixando a população que perdeu tudo arcar com as consequências. Os protagonistas do filme se dão bem, mas não tem final feliz.

Imagens reais (fotos, clipes musicais, vídeos) são misturadas às descobertas devastadoras que os personagens fazem: casas abandonadas por pessoas que não conseguiram pagar suas dívidas, gente com vários empréstimos ao mesmo tempo, vendedores inescrupulosos de hipotecas, que nem se preocupavam em explicar as cláusulas aos clientes, agências de risco que avaliavam investimentos de risco como seguros. Havia problemas em todas as engrenagens do sistema e, sete anos depois, muita gente já se esqueceu deles. McKay não quer que as pessoas se esqueçam. É um filme político, quase educativo, mas sem ser chato.

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Sertão em ritmo de HQ

Criado em São Paulo, Homero Olivetto passava os verões com os avós em Aracaju, no Sergipe, ouvindo histórias do cangaço e de Lampião. Enquanto estudava em Salvador, ouvindo mangue beat, escreveu 20 anos atrás um conto que mistura suas experiências por essas diferentes cidades do Brasil. Em 2006, transformou a história no roteiro do filme de ação “Reza a Lenda”, uma história do sertão embalada numa roupagem bem pop. “É um universo de história em quadrinhos”, tenta explicar Cauã Reymond, o dúbio protagonista Ara.

Os primeiros minutos do filme, com estreia prevista para janeiro, são uma síntese do que vem pela frente. Duas amigas viajam à noite por uma estrada de terra no Nordeste, quando cruzam com um bando de motoqueiros perseguidos pela polícia. As motos passam zunindo pelas laterais do carro, a motorista consegue desviar de uma viatura, que capota e pega fogo, mas colide com a outra. É um filme de ação. Em seguida vem um letreiro explicativo. Reza a lenda, diz o texto, que a imagem de uma santa seria capaz de fazer chover no sertão ao ser colocada no lugar certo. Existe um bruxo que sabe dizer onde está a tal santa e para onde ela deve ser levada. Mas para que ele revele seus segredos, é necessário pagar um preço. É também um filme sobre fé.

Ara é um menino órfão quando conhece Pai Nosso (Nanego Lira), líder religioso que quer ver o milagre da santa e reúne um grupo de crianças, a quem ensina sobre a fé, para realizar a missão. Já na pele de Cauã, Ara integra o tal grupo de motoqueiros armados que rouba a santa do poderoso Tenório (Humberto Martins) depois de assassinar boa parte de seus capangas. Tenório — cujo pai matou sua mãe, fez buchada com suas tripas e serviu o prato a um grupo de convidados — não deixa barato e, para achar a gangue, deixa uma trilha de mortos em seu caminho, e amarra pedaços de seus corpos em balões de São João. Tanto Ara quanto Tenório são religiosos e nenhum dos dois hesita em matar em nome da santa.

Ao duelo dos dois se soma um triângulo amoroso, que envolve Severina (Sophie Charlotte), parte do grupo de Ara e Pai Nosso, e Laura (Luisa Arraes), sobrevivente do acidente de carro que inicia o filme mantida como refém pelos motoqueiros. Mas nem de longe é um filme romântico. Tem quase mais cenas de sexo na terra seca do sertão do que diálogos (“É o personagem mais silencioso que já fiz”, diz Cauã).

LADO POP

Segundo Homero, o filme é todo construído com base na realidade, em pesquisas feitas no local. “A seca existe, as estradas estão lá, as motos substituíram os cavalos. O lado pop da coisa é muito mais de linguagem do que o que está sendo contado. O que está sendo contado é real, é o que está lá. Mesmo a parte estética, como a roupa dos motoqueiros, foi construída a partir do tempo que a gente passou lá”, diz o diretor. “A gente colocou uma lente das nossas referências pop e ampliou. Foi essa a brincadeira que a gente fez. Era importante estar baseado na realidade pra criar essa fantasia. Até pra humanizar os personagens, pra entender as escolhas deles.”

O cenário é o sertão, mas o ritmo do filme muitas vezes lembra uma história em quadrinho ambientada na cidade. A trilha sonora, por exemplo, é bem urbana. “Ela tem uma função narrativa, porque eu queria fazer um sertão fantasioso e moderno. Queria tentar mostrar um lado diferente”, diz Homero. “A ligação afetiva que eu tenho do sertão como as minhas referências de paulistano, onde fui criado, me deram a ideia de fazer essa mistura. Me pareceu bem normal, orgânico”, conta. “Achei o máximo poder fazer um filme tão diferente. É novo. Não lembro de nenhum filme assim no Brasil”, diz Sophie.

Cauã e Luisa passam boa parte do filme montados numa moto que cruza o terreno deserto — ela quase sempre sem capacete na sua garupa. O ator tirou a habilitação para poder pilotar a moto, mas diz que “não adiantou muito”. “Logo que a gente começou a filmar eu tomei um tombaço. O pé ainda dói um pouco. Adoro moto, mas sou super medroso. Hoje em dia, tomar um tombo e ficar três meses parado pra mim é impossível, devido à rotina de trabalho que a gente tem.”

Numa conversa com jornalistas depois da exibição do filme, alguém pergunta se ele e Luisa precisaram de dublês. “Na hora que a moto empina sou eu. Mas a Luisa sem capacete não é ela, é outra pessoa”, brinca Cauã. “Tive que confiar muito na autoescola que ele fez”, responde a atriz. “Eu me lembro até hoje de um momento engraçado. A gente estava filmando num posto de gasolina e eu tinha que dar a volta e entrar na cena. A Luisa estava na minha garupa e eu falei: ‘tá preparada?’. E ela: ‘tô, né’. Aí eu botei a moto em vruuuuum, cento e pouco por hora. Estava me sentido o máximo. Me senti incrível, pilotando naquela velocidade com ela, seguro. Quando tirei o capacete ela bateu no meu ombro e disse: ‘e aí? Tá com a autoestima boa agora?’. Eu estava me exibindo”, conta ele, rindo. “Foi divertido.”

Para Cauã, as cenas de ação e violência são puro entretenimento, como numa história em quadrinhos. E defende as ações de seu personagem até o fim. “Vejo o Ara como um personagem criado numa situação extremamente árida, passando muitas dificuldades com esse líder que é o Pai Nosso. Um cara preparado pra tudo, pra trazer a chuva pro sertão, pra acabar com a seco. Ele está disposto a tudo, até porque foi a forma que ele aprendeu”, avalia.

Sophie Charlotte em 'Reza a Lenda'. Crédito: Divulgação
Sophie Charlotte em ‘Reza a Lenda’. Crédito: Divulgação

DA BABILÔNIA AO SERTÃO

Humberto Martins (“Nosso Tommy Lee Jones”, diz Cauã) não é tão positivo em relação a seu personagem. Solicitado a descrever Tenório, o ator tem bastante a dizer:

“Sou um cara de certa forma crente. É claro que a gente tem que ter bastante, vamos dizer, esperança, porque sem esperança a gente não atinge nada. Mas sou muito pragmático com relação à realidade do ser humano, do planeta Terra. Desde o que eu entendo de história, falei isso pra um repórter agora, desde a antiga Babilônia, Pérsia, aí veio o reino grego, Roma, entre outras coisas, vejo que a humanidade está muito mal administrada pelos seus governantes, pelas pessoas de poder, que são responsáveis pelas nossas vidas, pelo que acontece no cotidiano das nossas vidas. Esse filme retrata no Tenório uma base de consistência totalmente existencial, além do tempo, atemporal, desses governantes, dessas pessoas de poder que pensam muito em si, no ego. O Tenório acha uma afronta roubarem a santa dele, um desrespeito, ao prestígio, a tudo que ele exerce. Tudo dentro do ego”, diz.

“Eu vejo que a gente evolui muito em tecnologias, tecnologia medicinal, tem coisas boas nas evoluções humanas e científicas, de conhecimento do planeta, do que devemos fazer. Estamos vivendo um momento muito, muito preocupante e decisivo pra nossa humanidade, em todos os sentidos. Esse filme vem de uma forma muito conveniente no momento. Vejo ele dentro de uma realidade possível, muito possível. Daqui um tempo isso acontecer dentro dos Estados, você tá entendendo? Daqui a pouco até um Estado começar a brigar com o outro pelo recurso que o outro tem. Não vejo isso muito longe, não. Da maneira que vai. Principalmente no Brasil, onde os recursos são ignorados através dos nossos governantes. Vejo que ele tem uma pegada humanitária, política, muito forte”, continua.

“O Tenório é um cara que quer se manter no poder. Ele mantém a santa como uma… Ele acredita, é claro. Também, ele não tem outra coisa em que acreditar. Ele foi criado assim. Acho que ele é um protótipo do DNA formado pelo pai, que é um bárbaro. Tudo isso se impregnou dentro dele, por isso ele toma essas atitudes até impensadas, porque está dentro da genética dele. Todos somos assim, cópias da nossa criação, desde onde viemos. Cientificamente provado, não sou eu que estou dizendo isso, não. Dentro desse princípio ele justifica tudo o que faz. Dentro dessa involução que eu vejo dos poderosos desde a antiga Grécia, que se constitui até hoje. Pode até ter boa intenção em tudo, tentar um reservatório novo de água, não sei o quê. Mas o ego prevalece. O ego, a arrogância, a prepotência”, afirma.

“Esses garotos da motocicleta são heróis que resolvem confrontar esse poder máximo, você tá entendendo? Essa é a grande esperança que eu acho que pode existir. Tenório é um ser muito ignorante. Ele acredita na religião pela religião que foi formada da sua cidade, da vida, da sua área, da sua terra, pelo pai, a mãe e tal, não sei o quê. Mas ele não tem um conhecimento profundo sobre isso, sobre isso e a humanidade, o que isso representa, Deus, essas coisas. Ele não tem. É o cultural muito baixo. Muito baixo conhecimento que ele desenvolve na sua postura de vida”, diz.

“Ele comete essas atrocidades apenas pelo ego e pela vaidade de querer mostrar a força e confrontar friamente. O Nordeste sempre foi uma terra violenta dentro desses interiores. De famílias matarem as outras a tiros para tomar a terra das outras e se tornarem ricos assim. Lembro quando fiz ‘Gabriela’, estudei muito sobre isso. Era assim que eles tomavam a fazenda dos outros, na marra mesmo. Matavam até os descendentes pra não sobrar nenhum. Tem um pouco dessa cultura na região, violenta. Do espaço já ser difícil, da procriação de gado, de plantio, tudo. O que predomina no ser humano, que é a sobrevivência”, finaliza.

Cauã Reymond o interrompe para brincar sobre uma possível sequência do filme: “Humberto, você acha que no ‘Reza a Lenda 2’, se Deus quiser que tenha o dois, o Marcinho vem com tudo, então, porque ele é bem mau?”. “Marcinho?”, pergunta Humberto. “É, seu filho [do personagem]!” “Sim, vem na genética”, ri Humberto. “Sem spoiler!”, pede Homero.

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Violinos em Heliópolis

Lázaro Ramos não era a primeira opção do diretor Sérgio Machado para interpretar o protagonista do filme “Tudo que Aprendemos Juntos”, que estreia na próxima quinta-feira, dia 3. Na verdade, conta Lázaro, ele teve que implorar como há muito tempo não fazia para ganhar o papel do violinista que, após travar numa audição para a Osesp, começa a dar aulas na favela de Heliópolis, em São Paulo. “Ele me convidou pra fazer o melhor amigo [do protagonista]”, diz o ator, rindo. “Verdade!”

Ao ler o roteiro, Lázaro diz que só conseguia se identificar com Laerte, o professor que encontra uma turma de estudantes cheia de problemas, mas determinados em aprender a tocar instrumentos apesar das adversidades. Então parou de ler o roteiro, ligou para o diretor e disse que não poderia participar do filme. “Eu ia fazer um personagem de olho no outro. Ia jogar uma energia péssima no ator que fizesse o protagonista, porque ia querer estar no lugar dele.”

Sem resposta de Sérgio, Lázaro apelou para o produtor Caio Gullane. “Telefonei pra ele, ele foi almoçar na minha casa. Fiz uma comida bem gostosa. Quando acabou o almoço eu disse: ‘Caio, você não está entendendo. Eu vou fazer esse filme’. Depois de muito insistir, Sérgio foi obrigado a me convidar”, ri o ator. Sentado ao lado dele em um encontro para apresentar o filme à imprensa, Sérgio se defende. “Realmente, não tinha pensado nele. Pra mim, o personagem era eu”, diz. “Mas fico tão feliz. Nenhum ator teria o que Lázaro teve com os meninos. Lázaro é o que eles sonham ser e eles são o que ele já foi. Teve uma química que não rolaria com mais ninguém.”

[olho]”Lázaro é o que eles sonham ser e eles são o que ele já foi”[/olho]

Lázaro e Sérgio se identificaram com lados diferentes do personagem. O que interessou o diretor não é como Laerte transforma a comunidade de Heliópolis: é a transformação pela qual ele passa. Talentoso violinista, Laerte vive infeliz, sem trabalho e sem coragem de contar para os pais que não passou no teste para a Osesp, na qual todos seus amigos tocam. Sem saída, é obrigado a aceitar um emprego em Heliópolis. Como é de se esperar, ele acaba por estabelecer uma relação com seus alunos. Mas não é o professor perfeito estilo “Sociedade dos Poetas Mortos”. O começo da relação é difícil, ele é duro, não quer se envolver, está lá por necessidade. É em Heliópolis, porém, que ele reencontra sua confiança como músico.

“Desde criança, quando tinha dez anos de idade, eu falava que queria ser diretor de cinema. Nunca tive um plano B na vida. Quando estava começando esse filme, pensava: e se eu travar? É a única coisa que eu sei fazer”, conta Sérgio. Já o apelo para Lázaro foi a relação entre mestre e alunos, que o lembrou dos tempos de teatro na Bahia. “Trouxe para o filme minha relação com o Zebrinha, um grande coreógrafo baiano. Quando tinha 15 anos, ele resolveu me adotar como pai artístico. Foi um pai em todos em sentidos, desde o que dá carinho até o que dá muita bronca. Ele sempre olhava pra mim com um olhar de crença, de quem acreditava no meu potencial.”

Lázaro quis colocar esse mesmo olhar no filme. “Nos primeiros momentos, eu não olho no olho dos alunos. A gente não se relaciona. A partir de uma hora eu olho e vejo quem eles são”, diz. “Esse olhar eu tive. É o que faz a diferença. Pra mim, o filme é sobre isso. Ver o outro como uma potência, e não algo a ser rejeitado. Não teria outra maneira de fazer o filme que não fosse emprestando essa nossa verdade pros personagens.”

Entre os meninos, destacam-se Samuel (Kaique de Jesus), prodígio do violino, que estuda contra a vontade do pai, e VR (Elzio Vieira), que flerta com o crime. “Aprendi a dançar num projeto social e ganhei uma perspectiva de vida. Quando você sai da escola e vai pra casa, vai fazer o quê? Você está sujeito a seguir vários caminhos ruins, como meus amigos fizeram. Em vez disso, eu tinha algo pra me ocupar”, conta Elzio, que fez o primeiro teste para dançar em uma cena e conquistou o papel depois. “Eu me vejo na tela e me vejo na vida real. É um filme sobre a gente. Relata de onde eu venho e onde vivo.”

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Meninos tocam em 'Tudo que Aprendemos Juntos'
Meninos tocam em ‘Tudo que Aprendemos Juntos’. Crédito: Divulgação

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SEM ROMANTISMO

A sinopse do filme leva a crer que se trata de uma história açucarada de superação. É sim, no fim das contas, uma trama otimista, mas Sérgio fez questão de colocar realidade na mistura. “Os filmes brasileiros que viajaram mais o mundo tinham essa mensagem importante de crítica social, mas sempre me incomodou um pouco o fato de que alguns deles passam um pouco a ideia de que a gente está fadado ao fracasso, que não tem solução pros problemas brasileiros”, afirma. “Queria fazer um filme pra falar de uma maneira realista, sem romantismo, que a gente tem, sim, solução. Tem muita gente trabalhando, em todo lugar que eu vou, se virando pra mudar a situação.”

Não é uma história completamente verídica, mas “Tudo que Aprendemos Juntos” se inspira no real Instituto Baccarelli, criado em 1996 pelo maestro Silvio Baccarelli. Após ver na televisão um incêndio em Heliópolis, ele buscou uma escola pública de lá e sugeriu ensinar música a um grupo de crianças e adolescentes. Hoje, alunos do instituto formam a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, regida pelo maestro Isaac Karabtchevsky.

No elenco, há alguns alunos do Instituto e membros da Orquestra. “Pra mim era certo que todos os meninos tinham que ser de comunidade. Cem por cento. A gente começou pelo Instituto, fazendo testes. Depois em Heliópolis e outras comunidades”, conta Sérgio. “Uns 30%, 40%, sabiam tocar instrumento. Todos estudaram [música] durante um ano. Eles foram tão dedicados que tinham que se esforçar pra tocar mal [nas cenas iniciais].” Lázaro também estudou no Instituto, esperando tocar violino de verdade — o que não deu certo. Independente disso, a experiência no local foi importante.

“O que me guiou foi estar no Baccarelli, tomando aulas, ensaiando lá dentro, me apropriando disso, compreendendo o poder transformador da música”, conta. Logo que conheceu o Instituto, assistiu a uma apresentação da Orquestra de Heliópolis realizada só para ele. “Comecei a chorar de um jeito descontrolado, sem saber o que aquela música estava provocando em mim. Estava tomado. Naquele dia eu entendi. Não dá nem pra explicar que inspiração é essa, o poder transformador da música, que a gente não sabe de onde vem.”

Por “trabalhar no limite entre realidade e ficção”, alguns cuidados tiveram de ser tomados pela produção. Em um momento do filme, a polícia persegue dois alunos de Laerte que estão numa moto. “Nos meses anteriores a filmagem uns quatro ou cinco meninos tinham sido assassinados pela polícia assim. Foi uma preocupação enorme colocar um aviso enorme de ‘produção’ pras pessoas não acharem que era um carro de verdade de polícia perseguindo os meninos e atirarem”, conta Sérgio. “Foi muito tenso. A gente ficou com medo.”

Em outra cena, que misturou imagens reais às filmadas pela equipe, a população de Heliópolis entra em confronto com a polícia. As pessoas da comunidade pediram ao diretor que não filmasse em Heliópolis, já que o trauma do embate real ainda é muito vivo. “A gente trouxe alguns figurantes da comunidade e encenou tudo. Mas quando eu falava ‘ação’ as pessoas começavam a dar porrada de verdade, jogar pedra na polícia”, conta o cineasta. “A gente tinha que parar e falar: gente, são atores, vamos acalmar. Voltava a cena e era cada vez mais violento. Teve uma voadora no pescoço de um policial que não foi coreografada. Não tinha jeito de a gente convencer as pessoas. Fugia do controle.”

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Criolo como traficante
Criolo como traficante. Crédito: Divulgação

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MOZART E CRIOLO

Focado na música erudita, o filme não deixa o rap de lado. Rappin’ Hood faz uma participação cantando em uma festa em Heliópolis e Criolo, além de ter músicas na trilha sonora, ganhou um pequeno papel como chefe do tráfico. O objetivo, diz Sérgio, era não criar uma hierarquia de valores, chegando ali com a música clássica como se ela fosse superior. “Tem Mozart, tem Criolo, Emicida, Sabotage, Rappin’ Hood… Queria que a música erudita dialogasse no mesmo nível do rap. O cara chega num lugar com uma cultura de altíssimo nível. Saquei isso e queria escolher o melhor do melhor.”

Convidar Criolo para atuar foi pura intuição do diretor. “Ele tem uma teatralidade, eu intuía que ele faria bem. E era dentro dessa ideia de que as pessoas fossem do universo que elas representam. O Criolo sabe falar esse dialeto, ele é do Grajaú”, diz Sérgio. “Por conta de outros trabalhos que já fiz, conheço um pouco esse universo do tráfico e nunca conheci um traficante perto do estereótipo, com colar de ouro. O Criolo é muito mais parecido com os caras que eu conheci do que o estereótipo. E a câmera gosta dele. Fiquei muito surpreso.”

Exibido no Festival de Locarno, na Suíça, e no Festival do Rio, o filme levou o prêmio de melhor longa de ficção nacional pelo público na Mostra de São Paulo. Segundo Sérgio, “Tudo que Aprendemos Juntos” foi feito, porém, para os 25 jovens do elenco. “Entendi que o filme não era só feito pelos meninos, era para os meninos. Queria fazer um filme de que eles se orgulhem.”

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A ficção científica de “Perdido em Marte”

Falando sobre o novo longa de Ridley Scott, o apresentador americano Jimmy Kimmel brincou: “Esse é o segundo filme em que Matt Damon é um cara que fica preso no espaço. Quando o Ben Affleck vai para o espaço, ele explode um meteoro pra preservar a humanidade. Quando Matt Damon vai pra lá, ele se perde e tem que ser salvo”. Um ano depois de ficar ilhado em outro planeta em “Interestelar”, Damon se perde em Marte em… “Perdido em Marte”. Falando assim parece que são dois filmes parecidos. Não são. Ao descrever o filme de Scott, que estreia hoje (1º), o que vem à mente, surpreendentemente, é “engraçado”.

Talvez quem tenha lido o livro de mesmo nome, publicado por Andy Weir em 2011, já espere por algo assim. Sabendo sobre a história apenas que Matt Damon fica preso em Marte, é natural pensar que vem pela frente algo como o périplo de Sandra Bullock em “Gravidade”: um filme cheio de efeitos especiais, cenas tensas de ação e uma trilha sonora meio épica, meio dramática.

Mas não é bem assim. Matt Damon é Mark Watney, astronauta em viagem a Marte, dado como morto pelos companheiros nos primeiros minutos do filme ao ser atingido por uma antena em uma tempestade que os obriga a abortar a missão antes da hora. Quando a poeira abaixa, Watney se encontra sozinho, ferido, e num abrigo feito para durar apenas 31 dias. A próxima missão a Marte, ele sabe, só chega em quatro anos (e, ainda por cima, bem longe de onde ele está). Sua conclusão é simples e uma síntese do filme: para sobreviver todo esse tempo, melhor do que dar uma de herói de ação é “science the shit out of this” (numa tradução livre, a frase vira algo como “usar a ciência ao máximo”).

Watney é bem-humorado, surpreendentemente inabalável e consegue transformar uma situação desesperadora em algo leve. Como Tom Hanks em “Náufrago”, dá um jeito de manter a sanidade mental conversando com alguém. No caso, sua bola de vôlei Wilson é um vlog, que usa para documentar seu progresso. Com pouca infraestrutura para sobreviver por tanto tempo, o primeiro desafio é produzir comida para quatro anos, em um planeta em que nada cresce (se ele encontrasse a água anunciada nesta semana, teria sido bem mais fácil). Por sorte, ele é um botânico — o melhor do planeta, em suas palavras.

É aí que o filme fica interessante. Nada contra a luta desesperada de Sandra Bullock para voltar à Terra em “Gravidade”, mas Watney é mais envolvente. Sua fórmula, como ele mesmo explica, é pegar um problema de cada vez e resolvê-lo racionalmente, mostrando ao público a ciência por trás daquilo. Como plantar batatas naquele solo? Como irrigar sua plantação? Como se manter aquecido? Como atravessar milhares de quilômetros para chegar onde a próxima nave irá pousar? Como se comunicar com a NASA para avisar que está vivo? Todas essas questões são enfrentadas por Watney e descobrir os meios encontrados para solucioná-las é mais legal que saber o fim — principalmente se você tiver visto o trailer, que revela boa parte da trama.

“Perdido em Marte” é exemplar como filme de ficção científica. É ficção, já que não temos ainda missões tripuladas a Marte (no filme, eles estão na terceira). E é pura ciência. Tudo bem, talvez a ciência ali não seja totalmente compatível com a realidade. Um astronauta em Marte, por exemplo, não andaria como na Terra, e sim se locomoveria por saltos, como na Lua. Com uma atmosfera tão pouco densa, uma tempestade jamais seria violenta a ponto de fazer com que a missão fosse abortada. A radiação no planeta também seria tão forte que Watney ficaria muito doente e não sobreviveria muito tempo mesmo que voltasse logo à Terra.

E tem a questão da água, que deixou o filme levemente defasado. Em “Perdido em Marte”, Watney tem que dar um jeito de produzir o líquido para conseguir regar sua plantação de batatas e se manter vivo. Na semana do lançamento, porém, a NASA anunciou a descoberta de correntes de água salgada no planeta. Tudo bem, não resolveria totalmente o problema do astronauta, mas o enredo poderia ser um pouco diferente, o diretor reconheceu. Scott inclusive soube da descoberta dois meses antes do resto do mundo, segundo contou ao New York Times, mas não dava mais tempo de mudar a trama. “E teria perdido uma grande cena”, disse. O entretenimento vem em primeiro lugar.

De qualquer forma, a ciência por trás do filme é, de maneira geral, bastante crível. A NASA, aliás, deu uma consultoria à equipe de Scott para que os fatos do filme fossem o mais próximo possível da vida real. Para quem nunca mais teve contato com ciências depois da escola, “Perdido em Marte” é bem didático — “explique isso em inglês”, pede um personagem a outro depois de umas raras frases complexas para os leigos — e nada disso importa. Dá até vontade de aprender mais (a primeira coisa que perguntei a um amigo mais entendido, saindo da sala de cinema, foi: “Batatas não apodrecem em Marte?”).

Matt Damon, que passa boa parte do filme falando sozinho, segura as pontas. Não dá para dizer que ele dê um show de atuação, mas consegue se sustentar na base do carisma. O fato de Damon não ser o típico astro de cinema e parecer um pouco gente como a gente, nesse caso, ajuda.

Watney fala bastante palavrão, zoa o gosto musical dos amigos — apesar de algumas escolhas óbvias, como “Starman”, de David Bowie, a trilha sonora tem ótimos momentos — e mantém o otimismo o tempo todo. É um forte candidato a melhor personagem do cinema para ter como companhia numa ilha deserta, pela engenhosidade e pelo humor, e o mérito é tanto do roteiro quanto do ator.

“Perdido em Marte” vai virar um clássico como “Blade Runner” e “Alien”, de Ridley Scott? Num chute sem nenhum critério a não ser instinto: não. Mas é um bom divertimento. E, numa semana em que descobriram correntes de água salgada em Marte, faz com que mais pessoas se interessem pelas viagens espaciais ao colocar graça na ciência. Já é bastante.

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A invasão do terror brasileiro na TV

Dois lutadores, um descamisado com máscara de monstro e outro de fantasia vermelha, se enfrentam numa batalha estilo “Street Fighter” num galpão escuro. Trocam alguns golpes até que um agarra a cabeça do outro e a esmaga com as próprias mãos como se fosse uma fruta molenga, espirrando sangue para todos os lados. Algo como uma das mais famosas mortes do seriado “Game of Thrones”. Igualmente sangrento, mas menos sofisticado.

Produzido a custo zero, só com materiais que a equipe já tinha, o curta que mistura ação com terror é parte do programa “Cinelab”, que chega no dia 16 à segunda temporada (20h, Canal Universal). Cada episódio acompanha a produção de um pequeno filme nessa linha, com poucos diálogos e muitos efeitos especiais. Há cenas em cemitérios, tiroteios, alienígenas, zumbis, assassinos e zumbis assassinos. “O programa dá a oportunidade pra gente de fazer filmes que a Ancine [Agência Nacional do Cinema] não deixaria, por exemplo, se a gente mandasse os roteiros”, resume Kapel Furman, um dos três apresentadores da atração.

De tudo o que Kapel e seus colegas Armando Fonseca e Raphael Borghi – todos especialistas em efeitos especiais – disseram em uma conversa em São Paulo, é essa frase que chama mais a atenção. “Cinelab” não é incrível, é só legal. Mas tem ali algo de diferente. Revirando a biblioteca mental em busca de algo brasileiro parecido com os curtas que o programa apresenta, pouca coisa vem à cabeça.

No ano passado, de 113 longas nacionais lançados em circuito, segundo dados da Ancine, só um era de terror. É “Mar Negro”, aventura zumbi com um pouco de folclore brasileiro (tem um feiticeiro chamado Velho do Saco e seres como Baiacu-Sereia, por exemplo), em que uma vila de pescadores é contaminada misteriosamente e animais marinhos viram criaturas mortíferas. De Rodrigo Aragão, diretor de “Mangue Negro” e “A Noite do Chupacabras”, o filme estreou em janeiro. No resto do ano, alguns suspenses, mas nenhum puramente de horror.

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O público para o gênero, porém, existe. Lançado no ano passado, o americano “Annabelle”, por exemplo, foi o filme de terror mais visto do Brasil nos últimos anos, com 3,7 milhões de espectadores, levando as pessoas a buscar a fantasia da boneca-título na rua 25 de março. O “Cinelab” quer levar justamente esse público de terror americano para a TV. E mais: estimular a produção de terror brasileiro no cinema.

A cada episódio o programa apresenta o making of de um curta de terror, ação ou ficção científica bem improvisado. Com poucos recursos (às vezes nenhum) e só uma diária de filmagem, os três apresentadores devem produzir algo do zero à pós-produção, revelando os truques por trás das cenas (a cabeça esmagada, por exemplo, foi feita com uma máscara maleável cheia de sangue cenográfico acoplada ao braço do ator).

Alguns curtas têm um quê de humor — o da luta, por exemplo, em que o personagem de vermelho se chama Capitão Comunista –, mas outros são tensos de verdade, como um em que uma menina morta volta como zumbi para se vingar do homem que a assassinou. “Tem um efeito bizarro pra caramba. Incomoda, tem pressão psicológica. De vez em quando a gente quer fazer um filme sério. É um filme de terror que poderia participar de festival. Ficou redondo e tenso pra caramba”, avalia Kapel.

TIRO, PORRADA E BOMBA

Citando suas referências, o trio menciona filmes de ação chineses, histórias com grandes catástrofes, gore, e “aqueles filmes dos anos 1980 que passaram despercebidos do grande público”. Produções de terror e ação, basicamente, gêneros com os quais trabalham fora do “Cinelab”. Raphael participou do thriller chinês “Plastic City” e do brasileiro “Pólvora Negra”. Com Armando dirigiu o suspense com zumbis “Desalmados”. Já Kapel é especializado em cinema fantástico e cenas de violência. No currículo tem filmes como “O Cheiro do Ralo” e “Encarnação do Demônio”.

“Sem querer falar que filme de drama, que só tem diálogo, é chato, mas o filme que tem ação, explosão e luta é muito mais divertido de filmar do que ficar 12 horas num banheiro com um casal discutindo. Isso é inegável”, opina Armando. Na televisão, tiveram a oportunidade de fazer o que gostam fora do circuito de festivais de nicho — “Desalmados”, por exemplo, esteve no Fantaspoa, Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre, mas não chegou aos cinemas.

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“No programa a gente tem a oportunidade de contar histórias bizarras, ou mesmo de experimentar linguagens, experimentar efeitos”, diz Kapel. “Tá bizarro isso? Tá estranho? A gente gosta. É muito legal. A gente acaba se divertindo porque a experiência é um presente.” E usar a televisão como meio tem ajudado a conquistar o público de cinema, aquele que vai ver “Annabelle” e não encontra alternativas nacionais.

“A gente achava que não tinha público nenhum pro nosso trabalho, pra filme de terror, de ação. Com o ‘Cinelab’ passando na TV a gente descobriu que tem pra caralho. Mas nem todo o mundo pode estar aqui [em São Paulo] vendo nosso filme”, diz Raphael. “Descobrir que tem público pra esse nicho de filme é uma coisa muito massa. A gente achava que cinema de terror no Brasil fosse um fracasso, que não tinha público. O ‘Cinelab’ abriu uma porta.”

Segundo ele, há pessoas de todos os cantos do Brasil entrando em contato com o trio para falar de seu trabalho e apresentar suas próprias produções. “Tem mais gente que gosta desse tipo de filme fora de São Paulo do que aqui. Mas nossos filmes não atingiam esse público. Eles passavam em festival e ninguém vai em festival, só realizador. Por conta do ‘Cinelab’ passar na TV, a gente tem acesso a público e divulga nosso trabalho e o de gente que faz filme de terror. A gente é bem ativista nisso.”

MISSÃO QUASE IMPOSSÍVEL

E quais são as dificuldades para se fazer filmes de terror no Brasil? Segundo Rodrigo Aragão, diretor do solitário “Mar Negro”, todas. O cineasta começou como a equipe de “Cinelab”, trabalhando como técnico de efeitos especiais. “Era um profissional muito frustrado por trabalhar em poucos filmes, já que o cinema brasileiro não tem tradição de usar esse tipo de recurso. Aí resolvi fazer meus próprios filmes”, conta.

Os problemas, porém, não terminaram aí. Produzir terror no Brasil é missão “quase impossível”, diz ele. “Infelizmente, pra entrar na máquina e ser aprovado em edital, você tem que disfarçar seu filme de terror de outra coisa. Tem que fazer filme de terror envergonhado, de ‘suspense psicológico’”, afirma. “Qualquer filme de terror brasileiro que teve apoio e patrocinadores teve que cortar o título ‘terror’ do projeto. Isso é lamentável. Uma grande tristeza. Ou você consegue um caminho totalmente alternativo e independente ou tem que se enquadrar e fingir que está fazendo outra coisa, fazer terror sem sangue e sem tesão.” Esses filmes “pau mole” — diz, rindo — não agradam a ninguém: quem não gosta de terror não vai nem ao cinema assistir, e quem gosta sai frustrado.

O preconceito está em todos os setores da produção de cinema, diz. “Você tem comissões julgadoras de editais que consideram que o gênero tem pouco conteúdo cultural — o que é uma besteira –, patrocinadores que não querem colocar o nome da empresa num filme de terror, exibidores que, por não ter tradição do gênero no país, não aceitam distribuir esse tipo de filme, e um público que não está acostumado a ver terror brasileiro”, enumera Aragão.

“Nunca consegui passar nas leis de incentivo, misteriosamente. Mesmo tirando notas máximas em orçamento, capacidade. A gente não consegue passar. Todos os meus filmes foram feitos de maneira independente, com recursos particulares”, diz. Depois de prontos, é mais fácil exibi-los no Japão ou na Europa do que aqui. “Tento fazer terror tropical, com tempero bem brasileiro, figuras típicas, paisagens bonitas e música brasileira. Isso encanta muito o estrangeiro.”

Sem conseguir “romper a barreira do cinema”, Aragão tem buscado outras vias. Seu próximo filme, “Fábulas Negras”, feito com José Mojica Marins, o Zé do Caixão, será lançado direto digitalmente. “A contabilidade mais importante dos meus filmes é justamente nessas distribuições alternativas. Se juntar o que tive de downloads, mesmo ilegais, passa de 1 milhão fácil”, afirma.

“Toda semana recebo roteiros de jovens. O terror tem uma legião de fãs muito fiéis. Isso é comprovado com o sucesso de filmes baratos como [o americano] ‘Annabelle’. Mas ainda são órfãos de filmes brasileiros”, opina. Além da internet, a televisão é outra alternativa possível e, assim, programas como o “Cinelab” podem ajudar a mudar essa situação e alavancar o gênero no cinema, acredita. “Meus filmes estão passando no canal Space e sinto que esse apoio da televisão tem sido muito importante. O brasileiro tem que se acostumar a se ver”, diz.

Nas gravações de “Fábulas Negras”, conta o cineasta, Mojica lhe disse algo marcante. “Ele falou: ‘Rodrigo, quem faz filme de terror é maldito’. Isso é uma coisa muito triste. Esse conceito precisa mudar”, diz. “Fazer cinema de gênero no Brasil tem que ser considerado bendito. Estamos colocando cores brasileiras no nosso cinema, que tem sido pastel, às vezes muito careta e intelectual, sem contato com o povo. A gente precisa mudar o foco do cinema de gênero, não ser ‘under’.”

Apesar dos pesares, Aragão é otimista: “Existe uma nova geração de realizadores que está muito interessada em terror, produzindo cada vez mais filmes, e melhores. Vejo o futuro com bons olhos. Acho que as coisas vão mudar”.